Jornada

Eu me apresentei para ir a Cingapura, e de lá para a Terra de Van Diemen e para a cidade de Hobart, o último porto onde meu pai fora visto. Mas não se tratava apenas do porto final dele: era o beco sem saída de todo o mundo e, se não tivesse sido o seu, logo seria, se não caísse fora dali a tempo. Imagine a casa de correção de Marstal: Hobart era assim.

O ano era 1862. Conheci um homem de um olho só que estava lá desde 1822 e nunca tivera nem um dia de liberdade durante a maior parte desses quarenta anos. Ele documentara cada chicotada que tinham lhe dado durante seu período de aprisionamento: três mil no total, afirmou. Agora era livre, mas sua vontade estava tão avariada quanto a pele das costas, que tinha mais ondulações do que uma tábua de lavar. E não era o único. Contava sua história em troca de um copo de gim e, com quarenta anos de sobriedade para compensar, ficava feliz em contá-la dez vezes por dia. Mas, na cidade de Hobart, não havia muita gente para escutar. O lugar era cheio de párias e ex-condenados como ele, que cometeriam assassinato pelo preço de uma bebida.

Hobart tinha sido colônia penal desde que a primeira casa fora construída ali, em 1803. Agora, diziam que era uma cidade de homens livres, mas como todo mundo ou era ex-condenado ou guarda, a distinção não tinha muito significado. Eram todos homens acostumados ou a dar surras ou a recebê-las. Aparentemente, a opção de viver juntos como homens, de cabeça erguida, não tinha ocorrido a nenhum deles. Ninguém por lá jamais me olhou bem nos olhos. Mantinham o olhar no chão, e, se o erguiam, era para avaliar a profundidade do seu bolso e se valia a pena matar para obter o que você tinha dentro dele. Diziam que eles roubariam o filhote da bolsa de um canguru. Os cangurus carregam as crias em uma bolsa, sabia?

Havia montes de velhos na cidade de Hobart, mas poucos jovens. Qualquer um que tivesse força, ou o menor resíduo de esperança, fugia para pastos mais verdejantes. Enxames inteiros de crianças imundas corriam enlouquecidas, sem sinal algum de pai. Mas as mães ficavam em paz, porque dizem que os condenados perdem o apetite por mulheres quando passam muito tempo na prisão e, em vez disso, vão atrás de outros homens. Se isso é verdade ou não, eu não sei e não quero saber. Mas uma coisa é certeza: desperdicei meu salário com aqueles canalhas.

Comecei minha busca pela Delegacia de Polícia, mas disseram apenas o mesmo que as outras autoridades com quem eu falara:

– Se um homem que ser discreto e sumir da superfície da terra sem deixar vestígios, vai escolher a cidade de Hobart.

Mas papa tru não tinha nenhum motivo para desaparecer, disso eu sabia. Os oficiais apenas menearam a cabeça e disseram que não podiam me ajudar.

Então, caminhei para cima e para baixo na Liverpool Street. Metade dos bares ali era chamada Passarinho na Mão. Isso fazia sentido, a meu ver. Na cidade de Hobart, o álcool cantava com mais doçura do que qualquer outro passarinho, e, se você não tem nada em que acreditar, irá crer em qualquer coisa na qual conseguir colocar as mãos.

Eu pagava um gim para qualquer pessoa que parecesse ter uma história para contar. E todos tinham. Começavam fazendo perguntas a respeito de papa tru: altura, nacionalidade, que aparência tinha. Então, ah sim, eles se lembravam bem dele, diziam, e coçavam o cabelo imundo até os piolhos mortos caírem e olhavam com pesar para o copo vazio e diziam com tom de voz humilde que mais um gim poderia ajudar a memória. E, é claro, agora se lembravam dele: o dinamarquês alto com barba comprida e olhos distantes! Ele tinha se hospedado no Esperança e Âncora, na Macquerie Street. Depois, tinha embarcado como marinheiro no...

Ah, mas o nome do navio lhes escapava. Olhavam mais uma vez, cheios de desejo, para o copo e, assim que voltava a ser enchido, o nome do navio lhes vinha.

Em poucas semanas, ficou claro que existiram mil Laurids Madsens na cidade de Hobart, e que o meu papa tru tinha embarcado em mil navios que partiram para mil destinos. Eu não segurava nem um único passarinho na mão, mas tinha mil voando. Laurids Madsen não era um homem. Era uma raça toda.

 

 

Ainda assim, fui ao Esperança e Âncora e perguntei sobre o homem desaparecido. Tinha chegado muito longe e não estava pronto para desistir. O homem atrás do balcão se chamava Anthony Fox. Era um ex-condenado como o restante, mas, diferentemente dos outros, tinha se se tornado próspero ao lucrar com a miséria deles. Postava-se atrás de seu balcão de latão, esfregando-o com um pano até brilhar. Quando me inclinei mais para perto a fim de interrogá-lo, vi meu rosto nele e fiquei imaginando se a barba do meu pai já tinha se refletido ali.

Pedi um gim, para mim mesmo desta vez, e mencionei o nome de meu pai. Foi tudo que eu disse, porque agora tinha aprendido a lição. Poderia ter descrito Laurids como um hotentote de cabelo lanoso ruivo, que se espetava para todos os lados, e com três pernas em vez das duas habituais, e teriam dito que sim, lembramos bem desse dinamarquês. Então, só mencionei o nome.

Ele ficou parado durante um tempo.

– Qual era mesmo o nome? –perguntou. – E o ano?

– Cinquenta ou cinquenta e um – respondi.

– Espere um minuto.

Ele ordenou a um garçom que assumisse o posto atrás do balcão e desapareceu em uma sala dos fundos; logo, voltou com um livro-caixa grande enfiado debaixo do braço.

– Nunca me lembro de um rosto – ele disse. – Mas de uma dívida, sim.

Colocou o livro-caixa no balcão e começou a folheá-lo.

– Pronto! – exclamou, triunfante, e empurrou o livro em minha direção. – Eu sabia.

Apontou para um nome. Laurids Madsen, dizia.

Não posso afirmar que reconheci a assinatura de meu pai. Ainda não tinha aprendido a ler quando ele desapareceu, e ele não era homem de escrever o próprio nome com muita frequência.

– O que ele deve a você? – perguntei.

– Ele me deve duas cervejas – Anthony Fox respondeu.

Achei o dinheiro e o paguei.

– Agora estamos quites.

– Não me diga que você viajou meio mundo para pagar a dívida de Madsen...

Meneei a cabeça.

– Ele desapareceu. Estou à sua procura.

– Marinheiro ou condenado?

Examinou-me de cima a baixo.

– Marinheiro.

– Então suponho que ele deve ter se afogado, como acontece com os marinheiros. Ou abandonado o navio.

Abriu os braços em um gesto amplo que poderia abranger o oceano Pacífico, com suas dezenas de milhares de ilhas, além do polo sul coberto de gelo, onde ninguém jamais tinha colocado os pés.

– O mundo é grande. Você nunca vai encontrá-lo.

– Eu encontrei esta dívida – falei.

– As pessoas que desaparecem nem sempre querem ser encontradas. Qual é o lugar de um marinheiro? No convés, ou com a patroa e os filhos? Às vezes ele se confunde. Então começa a viver como se sua vida fosse um pião que pode fazer girar vez após outra. Ele se afoga dez vezes, e volta dez vezes... E, a cada vez, tem uma mulher nova nos braços. Em casa, sua família está de luto por ele, enquanto se encontra sentado ao lado de um berço em outro continente, dando risada. Até se fartar dessa família também. Pode acreditar. Já vi isso acontecer.

– Eu não sabia que sábios eram atendentes aqui na cidade de Hobart.

Ele sorriu para mim.

– Você é filho dele. Estou certo?

– Achei que tinha dito que nunca se lembra de um rosto. Sou parecido com Laurids Madsen?

– Não faço ideia. Não me lembro dele. Mas reconheço um homem ofendido quando vejo um. Só um filho ficaria com uma expressão dessas quando o pai é acusado de traição.

Voltei-me para sair.

– Espere – Anthony Fox disse. – Vou lhe dar um nome.

– Um nome?

Parei à porta do Esperança e Âncora.

– Sim, um nome. Jack Lewis. Lembre-se dele.

– E quem é Jack Lewis?

– O homem com quem seu pai bebeu uma cerveja.

– E você se lembra daquele homem dez anos depois? Suponho que ele também lhe deva uma cerveja, não?

– Ele me deve muito mais do que uma cerveja. Encontre-o para mim e avive sua memória em relação àquela dívida.

Eu me virei para a taberna mais uma vez, onde o copo de gim semivazio ainda me esperava. Fox não o tinha retirado. Ele sabia que era capaz de me atrair de volta.

Ainda era cedo, e eu era o único cliente no Esperança e Âncora.

– Quer comer alguma coisa? – perguntou.

– Não se for cordeiro. – Eu estava enjoado de cordeiro. Era a única carne que se comia na cidade de Hobart.

– Tenho robalo. – Sentamo-nos a uma mesa. – Tem lugar de sobra aqui – ele disse. – A Austrália é maior do que a Europa e ainda precisa de mais cidadãos. O oceano Pacífico ocupa metade do globo. Eu o chamo de a pátria dos sem-teto.

– Você já navegou?

– Já fiz de tudo. Agricultura, carpintaria, navegação, golpes. Porque isso também é um ofício. Dois tipos de homem vêm ao Pacífico. Aqueles que desejam apenas se deitar embaixo de uma palmeira e nunca trabalhar um único dia, e aqueles que estão atrás do dinheiro.

– Dinheiro?

– Jack Lewis é um deles. Ópio da China, armas, tráfico humano; pode citar qualquer vício em que for capaz de pensar, e não estou falando apenas de carga que possa ser pesada e medida, e Jack Lewis vai se apresentar como seu humilde fornecedor. Se você seguir o dinheiro, precisa se ater a certas rotas. Em uma delas, vai encontrar Jack Lewis.

– Dê-me o nome do navio dele.

Míssil Voador. Mas você precisa tomar uma decisão antes de começar. Precisa decidir que tipo de homem seu pai era. Será que ele era do primeiro tipo, que queria passar a vida deitado à sombra de um coqueiro, ou estava atrás do dinheiro? Se fosse um homem de coqueiro, você nunca vai encontrá-lo. Melanésia, ilhas Gilbert, ilhas da Sociedade, ilhas Sandwich: dez vidas não bastam para visitá-las todas. Mas, se ele for do outro tipo, você tem chance. Jack Lewis não vem mais aqui. Porém está por aí, em algum lugar.

– E como eu o encontro?

– Não vai ser em nenhum registro. Jack Lewis é o tipo de homem sobre quem as autoridades não sabem nada. Mas ele está alojado na memória de muitos homens. Inclusive na minha.

– Fale sobre a dívida dele.

– Apenas mencione meu nome. Anthony Fox. E a soma de mil libras.

– Mil libras! – exclamei. – Mas por que deu mil libras para um golpista notório?

– Cobiça é o termo correto, acredito – Anthony Fox respondeu, sem titu­bear. – Além do mais, eu próprio não tinha adquirido o dinheiro de maneira legal. Chame de empréstimo entre golpistas. Hoje, caminho pela trilha estreita da virtude. Mas apenas por falta de meios.

– Este mundo está virado de cabeça para baixo – eu disse. – A maior parte dos homens se torna ladra por necessidade.

– Como aconteceu comigo no passado. Bom, eu era mais do que ladrão. Vou deixar que adivinhe o que era. Hoje, tenho uma vida honesta. As pessoas prestam atenção em um ex-condenado... Míssil Voador. Agora você tem o nome do homem e o do navio também.

– E se eu achar o navio?

– Não posso prometer que vá encontrar seu pai. Mas vai encontrar Jack Lewis. Não tenho esperança de voltar a ver meu dinheiro. Mas agora você sabe que Jack Lewis é um canalha. Faça o que quiser com ele, e terá a minha bênção.

Era assim que os homens da cidade de Hobart falavam entre si: de um golpista para outro. Pensei na vasta superfície do oceano Pacífico, que eu já tinha atravessado uma vez. Quem seria capaz de ficar de olho no que acontecia em um convés a milhares de quilômetros do litoral, ou em uma ilha que não era maior do que um navio?

A palavra liberdade era algo que o mundo tinha me ensinado recentemente, e eu tive de navegar para apreender seu significado. Na cidade de Hobart, ouvi essa palavra de homens que se acorrentavam à própria cobiça. A liberdade tinha mil faces. Mas o mesmo valia para o crime. Pensar no que um homem era capaz de fazer me deixava tonto.

 

 

– Honolulu – Anthony Fox disse. – Sugiro que você comece a sua busca por Honolulu.

– Se sabe onde posso encontrá-lo, por que não vai lá pessoalmente pegar seu dinheiro?

– Eu me tornei um homem honesto. Só os idiotas roubam dos ricos. Os espertos roubam dos pobres. A lei, geralmente, protege os ricos.

– Então, você não rouba dos pobres?

– Não, eu só exploro suas fraquezas. – Ele apontou para a taberna e para sua bateria de garrafas. – É mais lucrativo e menos arriscado. Uma garrafa na mão é melhor do que dinheiro no banco. É assim que os pobres pensam.

– Ah! Então você é dono de todos aqueles bares Passarinho na Mão?

– De fato, sou. – Levantei-me para ir embora. – Um momento. – Era um truque dele. Segurar informação até o fim. – Eu me lembro, sim, de uma coisa sobre o seu pai. – Fitei-o. Meu coração batia forte no peito. – Ele parecia um homem que tinha perdido algo. Você faz alguma ideia do que pode ser?

– Não – respondi, com o coração ainda acelerado. – Eu era muito pequeno quando ele desapareceu.

Saí pela porta e ouvi a voz de Anthony Fox pela última vez.

– Você se esqueceu de pagar! – gritou. – Vai entrar no meu livro.