Não sabíamos com certeza se Herman Frandsen era ou não assassino. Mas, se era, sabíamos o que o tinha levado a isso.
Impaciência.
Em nossa cidade, essa coisa de privacidade não existe. Sempre há um olho a observar, uma orelha estendida. Cada um de nós gera todo um arquivo de falatório. A menor observação brusca assume o peso de um longo comentário de jornal. Um olhar furtivo é imediatamente retribuído e atribuído ao emissor. Sempre inventamos nomes novos uns para os outros. Um apelido é uma maneira de afirmar que ninguém pertence a si mesmo. Agora, você é nosso, é o que diz: nós o rebatizamos. Sabemos mais sobre você do que sabe sobre si mesmo. Olhamos para você e vimos mais do que irá perceber no espelho.
Rasmus das Palmadas, Atormentador de Gatos, Assassino de Violino, Conde do Monte de Esterco, Klaus do Quarto, Hans Mijão, Kamma Beberrão, como algum de vocês pode imaginar que não conhecemos seus segredos? Ei, Ponto de Interrogação, nós o apelidamos assim porque é corcunda! E, Cabeça de Mastro: bom, que nome poderia ser melhor para alguém com a cabeça minúscula, o corpo comprido e sem ombro?
Todo mundo na cidade tem uma história, mas não aquela que a pessoa conta a si mesma. Seu autor tem mil olhos, mil ouvidos e quinhentas canetas que nunca param de escrever.
Ninguém viu o que Herman Frandsen fez. Um momento veio e passou, e com ele uma vida humana se foi, extinta para sempre. Não há como saber o que aconteceu, nem como. É tudo especulação. E, porque não sabemos com certeza, parece que não conseguimos deixar isso de lado.
Mas sabemos qual foi sua motivação. Nós a encontramos dentro de nós mesmos.
Era uma noite de verão de 1904, e Herman tinha doze anos. Quando se esgueirou porta afora de sua casa na Skippergade, deu para ouvir os ruídos que saíam lá de dentro. A mãe, Erna, e o padrasto, Holger Jepsen, estavam gemendo e mandando ver na cama de mogno que rangia. Herman caminhou na direção do sul, até deixar para trás as últimas casas, e então prosseguiu em direção à praia. Acima dele, a Via Láctea se acendeu. Ela estava indo para o mesmo lugar que ele, espalhando-se para fora da noite por sobre os telhados da Kongegade e desaparecendo em algum lugar do outro lado da Cauda. No universo infinito não há nada; no entanto, a Via Láctea continua nos dando, ao povo de Marstal, a impressão de ser uma estrada de verdade: uma estrada que leva ao mar.
Herman só parou quando chegou à água. Tirou os sapatos e ficou com os pés na espuma das ondas, observando a Via Láctea se estender dali para longe, e uma sensação que poderia facilmente ser confundida com solidão tomou conta dele. Não era o tipo de abandono que uma criança órfã sente, mas, sim, o sentimento de perda que restava quando os meninos mais velhos saíam em suas aventuras e o deixavam para trás. Você fica cheio de angústia e não percebe que é um sentimento nascido da impaciência. Você anseia por crescer, ali e naquele momento. Reconhece que a infância é um estado antinatural e que dentro de você existe uma pessoa muito maior – e que, apesar de não poder sê-la nesse momento, ela ganhará vida em algum lugar além do horizonte.
Herman nunca conversou sobre aquela noite com nenhum de nós.
Mas nós sabíamos: tínhamos estado lá pessoalmente.
Herman perdera o pai cedo. Isso é algo que um bom número de nós experimenta, mas essa perda foi especialmente cruel. Frederik Frandsen, da Sølvgade, afundou com seu navio, o Ofélia, na rota da Terra Nova, em 1900. Os dois irmãos de Herman, Morten e Jakob, também estavam a bordo. Ele só tinha oito anos quando ficou sozinho com a mãe. Erna era uma mulher grande, que se equiparava em altura e dimensão ao marido: ele sempre tinha de abaixar a cabeça ao passar pelas portas, tanto em sua cabine modesta de capitão no Ofélia quanto em casa, na Sølvgade. O teto era tão baixo ali que, se alguém da família quisesse ficar em pé com o corpo ereto, tinha de sair de casa para fazê-lo ao ar livre de Deus. À exceção de Herman, é claro.
Erna logo se casou de novo e, por isso, adquiriu reputação bastante ruim de ter o coração frio, apesar de ser possível argumentar que o caso dela era bem o oposto. Será que seu casamento rápido se deveu ao fato de ela não ter necessidade de ficar de luto ou, ao contrário, porque seu coração ficou tão fragilizado perante a solidão que precisou buscar conforto onde pudesse encontrar? O novo marido era o capitão do Duas Irmãs, Holger Jepsen, da Skippergade, um homem quieto que parecia ter se acomodado na vida de solteiro fazia muito tempo. Ele era tão anguloso que seus ossos pareciam presos por barbantes, mas era pequeno e de constituição frágil e, ao lado da grandalhona Erna, praticamente desaparecia: tornava-se quase cômico. Depois do casamento, foi apelidado “O Menino”.
Mas dava para ver que Jepsen despertava algo em Erna. Ela ficou mais corada, coisa que nunca tinha sido antes. Além do mais, seu bigode desapareceu. Até Jepsen entrar em sua vida, ela sempre tivera um buço sobre o lábio superior, apesar de ninguém ser capaz de dizer se ele pinicava, porque ela não era do tipo que andava por aí beijando os outros, muito menos os próprios filhos.
Frandsen tinha sido um homem rude, e todos concordaram que Erna, uma mulher masculinizada e de ombros largos, havia sido uma boa combinação para ele. Mas agora ela ficara quase terna, se é que dá para imaginar ternura em uma mulher com as mãos do tamanho de pás. Era como se Jepsen tivesse descoberto naquela mulher gigantesca um quê de menina de seu próprio tamanho, e a incitara a sair.
Mas Herman não ficou lá muito contente. Já tinha perdido o pai e dois irmãos, e talvez sentisse que também estava perdendo a mãe. Deveria se sentir um sem-teto na casa de Jepsen, como se tivesse chegado a um país desconhecido com outra língua, apesar de o padrasto tratá-lo com decência: não demorou muito para que presenteasse seu novo enteado com um barco e o ensinasse a remar, içar velas, dar nós e tudo o mais que ele precisava para se virar no mar. Mas, aos olhos de Herman, Jepsen tinha cometido o pecado imperdoável de transformar Erna em uma tola sorridente. Ficar pegando um no outro e tocando as mãos faz mal para a saúde, ele diria a quem quisesse escutar. Comportava-se como se fosse o proprietário por direito de Erna, observando sua posse enquanto era mal gerenciada. Pela maneira como inchava o peito e ficava todo indignado, como um homenzinho propriamente dito, dava para achar que considerava o bigode de Erna sua melhor característica.
Herman também iria culpar o padrasto pela morte súbita da mãe. Erna pereceu em consequência da intoxicação do sangue, depois de estripar um bacalhau. Um anzol enterrado na carne dele tinha furado o dedo da mulher, mas ela não se preocupou, e arrancou o anzol sem nem piscar. Essa era a velha Erna, aquela de que Herman gostava. Mas, dois dias depois, estava morta, apesar de Jepsen ter chamado o doutor Kroman, que fez todo o possível.
A opinião de Herman era de que sua mãe não teria morrido se o pai estivesse vivo. Em casa, na Sølvgade, ela teria sobrevivido, como a mulher grande e forte como um prego que já tinha sido, e não a molenga tremelicante, corada, sem bigode e apaixonada a que Jepsen a tinha reduzido quando fez com que se mudassem para a Skippergade. O fato de Herman ainda dizer “em casa, na Sølvgade”, muito depois da morte do pai, apesar de ter passado a maior parte da infância na Skippergade, deveria ter servido de aviso ao padrasto.
Erna e Jepsen nunca tiveram filhos juntos. Na companhia despojada do Café Weber, contávamos nossa piada favorita: Jepsen era baixinho demais para vencer as coxas majestosas de Erna, que eram tão grossas e altas quanto o mastro de mezena do Duas Irmãs. Mas, quando Erna se foi e Herman ficou sozinho, sem nenhuma família neste mundo, Jepsen, que tinha o coração mais mole do que lhe era benéfico, deu ao menino toda a afeição que antes tinha dedicado a Erna, convencido de que ele precisava do amor e da orientação de um pai mais do que de qualquer outra coisa no mundo.
Mas Herman tinha opinião oposta. Não havia nada que ele quisesse mais do que se livrar do padrasto.
E se livrou mesmo dele, com mais rapidez do que qualquer um esperava.
A maneira como aconteceu despertou, ao mesmo tempo, nossa admiração e uma sensação de medo estranha e vaga.