Assim que Herman Frandsen foi crismado, partiu para o mar. Holger Jepsen, que só queria o melhor para o menino, cometeu o erro de contratá-lo para o Duas Irmãs em vez de mandá-lo trabalhar em outro navio. A relação deles era carregada, apesar de nunca ter de fato acabado em troca de socos. Jepsen tinha mais autoridade no convés de um navio do que em terra. Apesar de ser magro, tinha voz potente e a usava para mandar Herman subir e descer pelas escadinhas de corda e usar os estribos de verga.
– Nunca confie em seus pés – gritava para o corpanzil de Herman, que se dependurava ali feito um gorila, enjoado por causa do balanço do mar. – Os pés podem escorregar e as cordas podem falhar, e daí você cai do alto de vinte metros e aprende a lição mais inútil da sua vida. O mar não vai cuspi-lo de volta, e, se bater no convés, vamos ter de tirar você dali com a ajuda de uma pá.
Herman olhava para os pés. Se não podia confiar neles, no que poderia confiar? Lá no alto da verga, Herman empacava feito um brinquedo em que alguém se esqueceu de dar corda. Não por medo ou pânico, mas por falta de confiança. Ele não compreendia o que Jepsen queria dizer.
Jepsen teve de subir nas amarras pessoalmente para ajudar o enteado a descer. Foi até a verga e estendeu a mão.
– Venha aqui – disse com gentileza.
Herman desdenhou-o e se agarrou com mais força às cordas.
– Não tenha medo – o padrasto disse, e colocou a mão no braço de Herman.
Mas Herman não estava com medo. Simplesmente ficara rígido de tanta relutância.
Jepsen precisou abrir-lhe os dedos, um por um. Era um teste de resistência, mas ele era mais forte.
– Pronto. Devagar. Um passo de cada vez. Uma mão de cada vez.
Ele falava com Herman como se este fosse uma criança aprendendo a andar. O enteado baixou os olhos para o convés. O imediato e o contramestre olhavam-no fixamente. Também achavam que ele tinha entrado em pânico.
– Eu sou capaz de me virar sozinho. Deixe-me em paz – sibilou.
Jepsen se afastou, sem lhe dar as costas.
– Então, lembre-se – ele disse. – Segure firme com as mãos. E, se não puder confiar nas mãos, use os dentes. E, se os dentes falharem, use os cílios. – Lançou um sorriso de incentivo a Herman e lhe deu uma piscadela. Em troca, Herman desdenhou-o.
Um ano se passou e ficamos nos perguntando se não estava na hora de Herman se demitir. A situação agora entre os dois estava feia.
Então, em um dia de primavera, pouco depois de Herman ter completado quinze anos, o Duas Irmãs zarpou do porto carregando a bordo apenas Holger Jepsen e seu enteado. Tinham partido para buscar um contramestre e dois imediatos que iriam embarcar em Rudkøbing, antes de o navio se dirigir para a Espanha. Rudkøbing não ficava longe, mas, mesmo assim, achamos que Jepsen estava correndo risco ao navegar apenas com um ajudante de cabine a bordo. Talvez ele tivesse imaginado a travessia como uma espécie de iniciação para o enteado adolescente? Ou talvez seu coração mole tivesse endurecido, e ele sentisse necessidade de, uma vez por todas, mostrar a Herman quem mandava a bordo?
A viagem de fato se revelou um teste de macheza... Mas não como Jepsen imaginara.
Jepsen e Herman zarparam pela manhã bem cedo, e não esperávamos voltar a ver o Duas Irmãs por sete ou oito meses, quando retornaria passando pela Terra Nova e aportaria em Marstal para passar o inverno. Mas, naquela mesma tarde, o navio reapareceu com o curso traçado diretamente para o porto. Uma multidão logo se reuniu em Dampskibsbroen. O que estava acontecendo? As velas se mostravam içadas, e um vento lépido soprava: dava para ver, mesmo daquela distância, que avançava com rapidez excessiva. Estava indo de encontro a uma colisão: ou com o quebra-mar na entrada do porto, ou com uma das embarcações presas aos postes de atracação cobertos de piche preto logo depois dele.
Só havia um homem ao timão, e parecia ser a única pessoa a bordo. Quando o Duas Irmãs se aproximou, foi possível distinguir o timoneiro solitário como sendo Herman, usando oleados amarelos e um quepe de chuva. Por um instante, pareceu que o navio iria bater com tudo no cais. Mas foi bem ali, no último minuto, com um movimento cuja elegância não passou despercebida a nenhum de nós, que Herman virou o timão e o navio deslizou ao longo da beira do porto, a apenas alguns dedos de distância do ancoradouro. Mas continuava avançando a toda a velocidade e correndo o risco de colidir com outra embarcação. Se a situação não fosse tão fora do comum (sem mencionar desesperadora), poderíamos ter acreditado que o garoto só queria se exibir.
De repente, uma silhueta ampla destacou-se da multidão, em Dampskibsbroen, e pousou no convés do Duas Irmãs. Era Albert Madsen.
Àquela altura, ele estava na casa dos sessenta anos, mas foi o único que fez aquilo que o resto de nós, homens muito mais novos, deveríamos ter feito. Percebera que algo estava terrivelmente fora de controle, com o garoto sozinho no convés, todas as velas içadas e o navio em rota de colisão.
Até poderia fazer dez anos que Albert não navegava, mas o capitão dentro dele continuava vivo.
Ele atravessou o convés com firmeza e pousou a mão no ombro de Herman. Com isso, este ergueu os olhos e, então, fez algo que não tinha o menor sentido. Tentou bater em Albert. O garotão e o sólido senhor de idade eram quase da mesma altura e de porte parecido. Mas, ao passo que o garoto contava com a energia da juventude, Madsen possuía experiência e reagiu imediatamente. Seu famoso golpe de mão aberta era suficiente para mandar um adulto voando vários metros pelo convés. E aquela vez não foi exceção.
Nem uma palavra fora trocada entre os dois: não houvera tempo para isso. Quando Albert agarrou o timão e virou o navio de lado, o Eos, atracado em um dos postes no meio do porto, estava apenas a uns poucos metros de distância. No momento em que a popa do Duas Irmãs bateu na proa do Eos, sua velocidade tinha caído o suficiente para evitar qualquer dano grave.
Herman levantou-se com dificuldade, com a mão segurando a face ardente. Tinha perdido o quepe de chuva. Pela maneira como olhava feio para Albert Madsen, seria de se pensar que o velho capitão tivesse estragado alguma brincadeira dele, não evitado um naufrágio. Assim que atracamos o Duas Irmãs ao cais e inspecionamos os danos, ficou claro para todos que Herman estava se sentindo humilhado. Ninguém deu bronca nele. Mas ninguém tampouco o elogiou, apesar de ele, provavelmente, ter merecido. Tinha apenas quinze anos e manobrara um navio sozinho. Talvez tenha sido aí que as coisas azedaram: quando Albert bateu nele, e nós permanecemos em silêncio. Mas talvez algo tivesse dado errado para Herman muito antes. Talvez tivesse entendido mal o silêncio das estrelas na noite em que fitara a Via Láctea.
Não sabemos.
De todo modo, a sensibilidade adolescente não era o que dominava nossos pensamentos àquela altura: um navio tinha chegado ao porto com apenas o ajudante de cabine a bordo. Onde estava o capitão? Será que desembarcara em Rudkøbing e Herman tinha fugido com o navio?
– O que aconteceu com o capitão Jepsen? – perguntamos a ele.
Continuava preocupado com a face dolorida.
– Ele caiu no mar.
Parecia desatento, como se precisasse de um tempo para lembrar quem era o capitão Jepsen.
– Caiu no mar? Ninguém cai no mar entre Marstal e Rudkøbing, com vento leve.
– Talvez eu não tenha colocado da maneira correta – Herman disse. Foi aí que sentimos pela primeira vez uma terrível arrogância nele. – Quero dizer que ele saltou para o mar.
– Jepsen? Pulou para fora do barco?
A única coisa que conseguíamos fazer era repetir as palavras de Herman feito um bando de papagaios. Era-nos impossível apreender o que dissera.
– É – ele falou. – Vivia choramingando por sentir saudades da minha mãe. No fim, acho que não conseguiu mais aguentar.
Dava para ouvir sua arrogância crescendo a cada palavra, e ficamos com vontade de lhe perguntar se também não tinha chorado pela ausência de Erna, e se a morte dela não tinha sido um golpe para ele, assim como fora para o padrasto. Então, finalmente, demo-nos conta da verdade. Herman tinha perdido a mãe muito tempo antes, no dia em que ela se casara com Jepsen. Quando ela morreu de fato, ele não sentira nada além de desprezo pelo desespero do padrasto. Talvez até tivesse a sensação mórbida de que as coisas tinham entrado nos eixos. Será que o luto e a angústia do padrasto tinham-lhe causado satisfação? Será que se sentira vingado quando Jepsen saltou para o mar? Ou... e aqui nós hesitamos, nunca falamos em voz alta, mas pensamos em silêncio (e quando um número suficiente de homens de Marstal pensa a mesma coisa, é o mesmo que se tivesse sido dito em voz alta)... Será que Jepsen recebera uma “ajudinha”?
– Onde ele saltou? – perguntamos, apesar de sentirmos que a maneira como tínhamos formulado a pergunta iria nos levar para mais longe da verdade.
– Sei lá – o garoto respondeu, irritado.
– Não sabe? Mas tem de saber. Foi em Mørkedybet? Nas proximidades de Strynø? Pense. É importante.
– Por quê? – Lançou-nos um olhar desafiador. – Água é água, e, quando você se afoga, fica afogado. O lugar não faz diferença.
Não conseguimos arrancar nada dele.
Cedo ou tarde, o corpo de Jepsen iria aparecer na praia de uma das várias ilhotas do arquipélago, em Strynø, em Tåsinge ou no litoral da Langeland, talvez tão longe quanto Lindelse Nor. E lá permaneceria, balançando junto às algas, meio comido por peixes e caranguejos. Mas não seria um corpo qualquer jogado na praia. Ou, pelo menos, era o que a maior parte de nós pensava. Porque sua testa estaria perfurada por um chifre de peixe-espada. Ou por um golpe de um pau de retranca. Ou por alguma dentre as várias outras armas que um aspirante a assassino poderia ter achado a bordo.
Mas Jepsen nunca foi encontrado. Talvez tenha afundado com uma pedra em volta do pescoço, para não voltar à superfície. Ou, talvez, viajante de longa distância até o fim, tivesse sido levado pela corrente para o sul, Báltico adentro. De qualquer maneira, nunca voltou para testemunhar.
E foi por isso que nunca expressamos nossos pensamentos, apesar de alguns de nós os sugerirmos com um sussurro:
– Há algo que não parece correto com aquele Herman, não é mesmo? E será que Jepsen pode mesmo ter pulado?
Um espaço crescia ao redor do enteado. Ele era apenas um garoto de quinze anos, mas também era algo mais, algo diferente e estranho. Nós lhe demos tapas no ombro e o elogiamos, no final, por ter manobrado o Duas Irmãs em segurança de volta a Marstal. Era necessário, porque fizera algo espetacular, algo que nenhum outro garoto de sua idade teria sido capaz de fazer. Outro garoto teria entrado em pânico, ou simplesmente desistido. Sim, Herman tinha tudo para ser um bom marinheiro. Mas a dureza que aplaudíamos nele também fazia com que nos mantivéssemos afastados.
Herman herdou o Duas Irmãs e a casa de Jepsen na Skippergade. Ele não tinha idade suficiente para ser o proprietário legal, nem do navio nem da casa, por isso o irmão de Jepsen, Hans, foi nomeado seu guardião. Hans Jepsen encontrara um novo capitão e uma nova tripulação para a embarcação, mas, quando Herman exigiu embarcar como marinheiro comum, ele recusou.
– Você não passou tempo suficiente no mar – disse.
– Eu conduzi a desgraça de um navio inteiro sozinho – Herman berrou. Com o rosto vermelho, deu um passo ameaçador na direção de Hans, que reagiu com um passo igualmente ameaçador na direção do menino.
– Você é apenas um garoto e vai navegar como um garoto.
– O navio é meu! – Herman urrou.
Hans Jepsen tinha sido contramestre durante muitos anos; por isso, não se impressionava com ajudantes de cabine rebeldes, por mais altos que fossem, ou por mais que berrassem.
– Não me incomodo nem um pouco com quem é o dono do navio – rosnou, em um tom selvagem e grave que era mais aterrador do que qualquer grito. – Você vai ser marinheiro quando tiver idade suficiente e não antes, seu filhotinho arrogante! – Empinou o queixo com barba por fazer. Tinha navegado em um navio americano quando era jovem e usava expressões ameaçadoras como “você é carne morta, colega” e “já virou história”. Nunca soubemos com muita certeza o que elas significavam, mas apreendíamos o sentido quando cerrava os dentes e cuspia mais xingamentos americanos como se fossem cartilagem. Agora, olhava fixamente para Herman, mexendo a mandíbula. – Não sei o que fez com o meu irmão, mas, se olhar do jeito errado para mim, pode se despedir com um beijo da sua bunda gorda.
Herman tinha seu orgulho. Se não lhe fosse permitido navegar como marinheiro em um navio que considerava seu, não queria estar a bordo dele. Percorreu o porto todo, mas ninguém quis contratá-lo como marinheiro, nem como nenhuma outra coisa. Por isso, foi para Copenhague e arrumou serviço por lá.
Passamos alguns anos sem ter notícias suas. Então ele voltou, e tudo mudou.