As botas

Há muitos anos viveu um homem chamado Laurids Madsen, que foi para o céu e voltou a descer, graças às suas botas.

Ele não subiu tão alto quanto a ponta do mastro de um veleiro grande; para falar a verdade, não passou da vela mestra. Quando estava lá no alto, postou-se perante os Portões do Paraíso e viu São Pedro (apesar de o guardião da entrada para o Além só ter lhe mostrado a bunda desnuda).

Laurids Madsen deveria estar morto. Mas a morte não o quis, e ele voltou mudado.

Antes da fama adquirida com a visita celestial, Laurids Madsen era mais conhecido por ter iniciado, sozinho, uma guerra. Seu pai, Rasmus, desapareceu no mar quando Laurids tinha seis anos. Ao completar catorze, ele embarcou no Anna, de Marstal, sua cidade natal, na ilha de Ærø, mas o navio se perdeu no Báltico apenas três meses depois. A tripulação foi resgatada por um brigue americano, e a partir de então Laurids Madsen passou a sonhar com a América.

Ele prestou seu exame de navegação em Flensburg quando tinha dezoito anos, e nesse mesmo ano sofreu outro naufrágio, dessa vez nas proximidades do litoral da Noruega, perto de Mandal, onde se postou em uma pedra, na qual as ondas batiam em uma noite fria de outubro, examinando com os olhos o horizonte, em busca de salvação. Nos cinco anos seguintes, navegou pelos sete mares. Foi para o sul, deu a volta no cabo Horn e ouviu pinguins berrarem no meio da noite escura como breu. Viu Valparaíso, a costa oeste da América, e Sydney, onde os cangurus pulam para lá e para cá e, no inverno, as árvores perdem a casca do tronco, não as folhas. Conheceu uma moça com olhos de uva chamada Sally Brown e era capaz de contar histórias da Foretop Street, de La Boca, da Barbary Coast e da Tiger Bay. Gabava-se de sua primeira travessia do equador, quando saudou Netuno e sentiu o solavanco na hora que o navio passou pela linha; seus companheiros marujos marcaram a ocasião obrigando-o a beber água salgada, óleo de peixe e vinagre; batizaram-no com piche, fuligem de lamparina e cola; barbearam-no com uma navalha enferrujada de lâmina dentada; e trataram dos cortes com sal e limão, para arder. Obrigaram-no a beijar a face cor de ocre com marcas de varíola de Anfitrite e forçaram seu nariz para dentro do pote de sais aromáticos dela, que tinham enchido com pedaços de unhas cortadas.

Laurids Madsen tinha visto o mundo.

Assim como muitos outros. Mas ele foi o único a voltar para Marstal com a estranha ideia de que tudo ali era pequeno demais. Para comprovar sua opinião, costumava falar em uma língua estrangeira que chamava de “americano”, a qual aprendera durante o ano em que velejara com a fragata Nuncafunda.

Givin neim belong mi Laurids Madsen – ele dizia.

 

 

Teve três filhos e uma filha com Karoline Grube, da rua Nygade: Rasmus, que ganhou o nome em homenagem ao avô, Esben e Albert. O nome da menina era Else, e ela era a mais velha. Rasmus, Esben e Else tinham puxado à mãe, que era baixinha e taciturna, ao passo que Albert se parecia com o pai: aos quatro anos, já era tão alto quanto Esben, três anos mais velho. Seu passatempo preferido era brincar com uma bala de canhão inglesa de ferro fundido, que era pesada demais para ele erguer – não que isso o impedisse de tentar. Com o rosto cheio de teimosia, dobrava os joelhos e fazia força.

Heave away, my jolly boys! Heave away, my bullies! – Laurids gritava para incentivá-lo, ao observar o filho mais novo lutando com aquilo.

A bala de canhão tinha entrado pelo telhado da casa da Korsgade durante o cerco dos ingleses a Marstal, em 1808, e deixara a mãe de Laurids tão apavorada que ela prontamente o pariu no chão da cozinha. Quando o pequeno Albert não estava ocupado com a bala de canhão, o objeto morava na cozinha, onde era usado por Karoline como pilão para triturar sementes de mostarda.

– Podia ter sido você anunciando sua chegada, meu garoto, a julgar por seu tamanho quando nasceu – o pai de Laurids lhe dissera certa vez. – Se a cegonha o tivesse largado, você teria atravessado o telhado igual a uma bala de canhão inglesa.

 

 

Finga – Laurids dizia e erguia o dedo.

Ele queria ensinar às crianças a língua americana.

“Futi” significa “pé”. E apontava para a bota. “Maus” era boca.

Esfregava a barriga quando se sentavam para comer e mostrava os dentes.

Rangri.

Todos entendiam que ele queria dizer que estava com fome.

Mãe era “missis”, pai era “papa tru”. Quando Laurids estava fora, eles diziam “mamãe” e “papai”, como crianças normais, menos Albert. Ele tinha uma conexão especial com o pai.

As crianças tinham vários nomes: picaninnies, bullies e hearties.

Lein stomak – Laurids dizia a Karoline, e apertava os lábios como se fosse beijá-la.

Ela corava e dava risada, depois ficava brava.

– Não seja assim tão tolo, Laurids – dizia.