O Matador de Gaivotas

– Onde Albert enterrou James Cook?

Anton fazia grandes planos. Transformara-se no líder do Norte, mas isso não era suficiente para ele. Até onde era capaz de lembrar, só duas gangues tinham existido: Norte e Sul. E sempre haviam dividido a cidade entre si. Mas, agora, meninos da Niels Juelsgade e da Tordenskjoldsgade tinham começado a formar as próprias gangues. Elas ainda precisavam se separar da do Sul, mas Kristian Stærk, da Lærkestræde, já tinha executado a cisão. O sobrenome dele, que significa “Forte”, provara ser adequado, e ele batizou a gangue em homenagem a si mesmo: a Gangue Forte.

Essa tendência preocupava Anton. Ele gostava de estar à frente de tudo, e agora sentia que estava sendo “deixado de lado”, como colocou. Falou com Knud Erik sobre roubar as botas de navegação de Albert, que estavam no sótão, na Prinsegade, até que alguém construísse o museu ao qual Albert as legara. Anton teve a ideia de formar uma gangue nova, que seria batizada em homenagem a Albert, e que aceitaria apenas aqueles dentre nós que se dispusessem a jurar que estavam preparados para morrer, como Albert, com as botas calçadas. Anton tinha exigido ser o primeiro a experimentar os sapatos históricos e já bem gastos dos Madsen, mas as botas eram grandes demais para ele. Ainda assim, tinha planos de usá-las sempre que um novo integrante da gangue fizesse seu juramento de lealdade, antes de ordenar ao iniciado que se ajoelhasse e desse um beijo na ponta de cada bota.

Knud Erik e Vilhjelm reclamaram que Anton nunca iria conseguir que um homem de verdade fizesse isso, e, se fosse valer a pena entrar para a gangue, iria precisar de homens de verdade nela. Pessoalmente, os dois iriam se recusar a fazer isso. Surpreenderam até a si mesmos com esse desafio repentino. Finalmente, o líder cedeu, e, juntos, eles concordaram que, em vez dos beijos nas botas, os novos integrantes da gangue apenas iriam calçá-las para o juramento. Assim seria mais digno; até Anton era capaz de ver isso. A cabeça encolhida de James Cook seria a mascote do grupo. O conhecimento secreto de sua existência iria sedimentar todos eles como uma gangue.

Só havia um problema: a cabeça de James Cook estava no fundo do mar.

Helmer, que morava em Skovgyden e pertencia ao Norte, conseguiu permissão para usar o barco de pesca do avô. Sete meninos se apertaram a bordo, mas apenas Vilhjelm e Knud Erik sabiam qual era a missão. Anton disse ao resto de nós que estávamos indo para a parte do mar chamada Mørkedybet, a fim de caçar tesouros. Ele descreveu a caixa de madeira, mas não disse o que continha; apenas que não era uma visão para quem tinha coração fraco.

Tordenskjold pousou no banco a seu lado e ficou examinando-nos com seus olhos brilhantes e inescrutáveis. De vez em quando, a ave levantava voo, planava no céu azul e mergulhava na água sem aviso. Ao retornar ao barco, acomodava-se de novo no banco, inclinava a cabeça para trás e levantava o bico afiado. Víamos sua garganta se flexionar sob as penas, alheia à nossa presença, enquanto engolia o peixe que tinha pegado.

– Muito bem, Tordenskjold! – Anton exclamava. Sempre se dirigia à gaivota como se fosse um cachorro.

– O tesouro tem alguma coisa a ver com o inglês? – Olav perguntou. Era um garoto grande e corpulento, cujo cabelo caía em cima da testa.

– De certa maneira, sim – Anton respondeu. – Só vou dizer isso para vocês.

Knud Erik e Vilhjelm se entreolharam.

Começamos a mergulhar em Mørkedybet. Era um dia sem nuvens, na primeira semana de junho. Não havia ondas, então dava para enxergar a água bem até o fundo, mas não até o fundo do mar, que ficava escondido sob uma capa ondulante, em tons de verde e azul-escuro. Um depois do outro, mergulhamos pela lateral do barco, porém, quanto mais mergulhávamos, mais difícil ficava para enxergar qualquer coisa: o fundo do mar era uma sombra impenetrável. Era arrepiante sentir as algas acariciando nossa barriga; era como se a água tivesse adquirido dedos longos e macios e estivesse tentando pegar a gente. Uma colônia ondulante de águas-vivas nos fazia companhia, e, a certa altura, uma solha saiu inesperadamente de sua camuflagem na areia. Mas não havia sinal de nenhum tesouro. Remávamos de um lugar a outro e mergulhávamos sem parar, enquanto braços e pernas iam ficando cada vez mais frios. Anton aguentava mais do que qualquer um, mas, sempre que irrompia pelo espelho d’água, seus lábios tremiam.

Tordenskjold saiu voando e flutuou alto no céu azul, como se estivesse de olho em nós.

Era uma empreitada inútil, e logo ficou difícil imaginar que tínhamos chegado a acreditar que iríamos encontrar a cabeça de James Cook no fundo do mar. Começamos a perder o entusiasmo, juntamente com o fôlego e o calor do corpo. O sol brilhava, mas o mar continuava maculado pelo frio do inverno.

O único que não tremia de frio era Helmer. Ele estava bem aquecido e seco no banco da proa, cutucando a pele queimada de sol nos lugares em que estava descascando e olhando com ceticismo para a água.

– Bom, o barco é meu – disse. Em sua opinião, isso já era contribuição suficiente.

– Covarde! – gritamos.

Isso ofendeu seu orgulho de macho, e ele se jogou na água pela frente do barco. Mas, quando percebeu como estava fria, esqueceu tudo sobre salvar a própria honra. Pegou o estai e tentou voltar para o barco vazio, que prontamente virou.

Ninguém entrou em pânico e ninguém tentou subir na embarcação emborcada. Era pesada demais para virar; por isso, começamos a puxá-la e arrastá-la na direção de Birkholm, onde pudemos fazer isso na água rasa.

Knud Erik e Vilhjelm ficaram para trás, para recolher as roupas de todos: camisas, pulôveres e calças, que flutuavam na água feito um manto de algas. Penduraram algumas peças para secar nos poleiros que marcavam o canal; outro itens, levaram para terra firme. Apenas Anton continuou mergulhando, determinado a encontrar a cabeça de Cook. Foi só quando o resto de nós estava estirado, nus na areia em Birkholm, tentando nos aquecer, que o vimos dirigindo-se à praia. Nadava de costas e trazia algo no braço, como se estivesse salvando um homem afogado.

– Ele encontrou o tesouro! Ele encontrou o tesouro! – Helmer berrou.

Knud Erik e Vilhjelm se entreolharam. Será que realmente tinha encontrado a cabeça de James Cook?

Anton chegou à praia cambaleando. O rosto dele estava azul-claro e os dentes não paravam de bater, de modo que, nos primeiros minutos, foi incapaz de dizer qualquer coisa. Agachou-se e ficou respirando com um barulho de gorgulho, como se tivesse engolido muita água, agarrado ao tesouro durante todo esse tempo. Trocou um olhar rápido com Knud Erik e meneou a cabeça. Então, levantou-se e estendeu os braços em triunfo. Seu torso ainda tremia de frio, mas o rosto estava iluminado por um sorriso.

– Olhem o que eu encontrei! – gritou.

Todos olhamos fixamente para o objeto que trazia nas mãos. No começo, não conseguimos distinguir o que era. Então, Helmer engoliu em seco.

– É um homem morto!

Agora, os outros também enxergavam. Anton segurava uma caveira, verde por causa dos muitos anos que tinha passado na água, e coberta de algas, que se dependuravam dela feito o cabelo de um homem afogado. O maxilar inferior estava faltando. Onde deveriam estar olhos, havia dois buracos vazios que os olhavam com o fitar impenetrável dos mortos. Os dentes expostos do maxilar superior sorriam em triunfo malicioso, como se previssem o destino que nos aguardava, quando também nos tornássemos tristes restos mortais.

– Não – Anton disse. – Isto não é um homem morto. É muito melhor. É um homem que foi assassinado. – Baixou os braços e estendeu o crânio para nós. – Vejam vocês mesmos.

Formamos um círculo a seu redor. Ele virou a caveira do homem assassinado, para que pudéssemos vê-la de todos os ângulos. Na parte de trás, havia um buraco enorme.

– É um homem da Pré-História – Knud Erik disse. – Alguém acabou com ele com um machado.

– Não, este aqui não é um homem da Pré-História – Anton declarou. Olhou para nós, fazendo uma pausa entre cada um, para aumentar o suspense. – Eu sei quem ele é.

– Quem é? – perguntamos ao mesmo tempo.

– Não vou contar agora. Mas esse é o tesouro que eu pedi para encontrarem.

Knud Erik e Vilhjelm sabiam muito bem que Anton estava mentindo. Não tínhamos encontrado a cabeça de James Cook. Mas encontráramos algo, e Anton sempre sabia como usar o inesperado a seu favor.

– Quero que vocês coloquem a mão na cabeça desse homem assassinado e jurem não deixar escapar nenhuma palavra para ninguém – disse. – Ou nunca vou contar a vocês quem ele é.

Nós todos colocamos a mão na caveira. A alga escorregadia que brotava nela era nojenta ao toque, e estremecemos.

– Jurem – Anton ordenou.

E nós juramos, em uníssono, que jamais revelaríamos o segredo.

– Agora, diga quem ele é.

– Mais tarde – Anton respondeu, e fez um gesto para que nos acalmássemos, como se estivesse pedindo para não nos animarmos demais.

Remamos até os varais e recolhemos o restante das roupas. O sol e o vento as tinham secado, mas nenhum de nós se lembrou de juntar os tamancos. Achávamos que, depois que Helmer capotara o barco, a corrente os tivesse levado.

Vilhjelm também não conseguiu encontrar suas calças, e seu acanhamento fez com que a gagueira piorasse.

– Dê as suas para ele – Anton disse a Knud Erik. – Assim, sua mãe vai ficar brava de verdade.

Essa continuava sendo a receita da liberdade de Anton: irritar a mãe e o pai o máximo possível.


 

As pessoas ficaram olhando para o bando de meninos descalços e sem calças, que caminhava de volta para casa pelas ruas. Obviamente, iríamos todos apanhar.

Mas não fazia diferença para nós.

Nada seria capaz de nos afetar no dia em que encontramos a caveira do homem assassinado. Tínhamos um segredo. E um segredo significava poder.