Herman tinha ido embora, mas os óculos de armação de chifre ainda se encontravam bem no meio do rosto de Anton, e ele continuava sem futuro. O Estrangeiro só iria voltar para casa no verão, e, neste ínterim, a crisma dos meninos estava chegando. Sem discutir o assunto com a mãe, Anton abordou sua professora, senhorita Katballe, e informou-lhe que, depois de sete anos, iria abandonar a escola. Aquele era o melhor dia de sua vida, ela respondeu. Com educação inesperada, ele fez uma mesura, agradeceu e disse:
– Igualmente.
Foi crismado e jurou publicamente denunciar o diabo e toda a sua obra. Não sabia se o Inferno representava o chamuscado do fogo ou a mastigação de vermes. Sabia somente que já estava lá, porque, para ele, inferno era a vida fora do mar e o mundo que oferecia. Nunca iria descobrir se as moças francesas eram as mais animadas, nem se as portuguesas realmente fediam a alho, nem mesmo o que era alho. Durante o culto, permaneceu sob a peça de altar do pintor de marinhas, que retratava Jesus salvando seus discípulos da tempestade feroz. No entanto, Anton não buscava salvação no mar, mas acesso a ele.
Quando o pastor Abildgaard colocou a mão na cabeça de Anton, o garoto fechou os olhos com força atrás dos óculos. Estava no Inferno e, no entanto, não queria ir para o céu. Sentiu-se sem lar.
Regnar voltou para casa e deu uma olhada no filho.
– Por que diabos ainda está aqui? – perguntou. – Por que não foi para o mar? Eu até comprei um saco de viagem de marinheiro para você.
Anton não disse nada. Só ficou esperando a gozação começar.
– É por causa dos óculos? – o pai perguntou. – É coisa de família. Sou tão míope que mal enxergo além de minha barriga de cerveja. Só que ninguém reparou. – Soltou uma risada ruidosa.
– Você não pode ir para o mar se usa óculos – Anton disse com paciência, como se estivesse falando com uma criancinha.
– Não – o pai respondeu, sem se perturbar. – Não se quiser desperdiçar a vida a bordo como um fracote em uma escuna. Mas, se quiser ser um marinheiro de verdade, arrume um emprego de maquinista em um vapor. Ninguém se incomoda com óculos por lá.
Então, Anton se tornou aprendiz de Hans Baldrian Ulriksen, o ferrador de Ommel. Aprendeu a diferença entre os diversos tipos de martelos e marretas. Sabia que tipo de ferradura cada cavalo precisava. Cuidava dos cascos dos cavalos da mesma maneira que costumava cuidar da caveira e das botas de Albert. Começaram a chamá-lo de Amigo dos Cavalos. Montou a própria bicicleta para poder pedalar os três quilômetros até Marstal, todas as noites, a fim de estudar na faculdade técnica. Arrumou uma namorada, ruiva como ele. Seu nome era Marie, e ela cortava o próprio cabelo toda semana, para não ficar comprido demais. Um dia, ele a vira fazer o nariz de um menino sangrar por caçoar do cabelo ruivo dela, e depois ele, com todo o cavalheirismo, ensinara-lhe como fechar o punho ao bater em alguém, com o polegar do lado de fora, não recolhido. Quando caçoava de Jens Estrelado, um homem imundo que morava perto da área de comércio, a garota jogava uma pedra na porta dele, igual a todo o mundo. Mas a envolvia em uma folha de ruibarbo antes, para não estragar a pintura.
E Anton fez uma descoberta. Percebeu que o estranho arroubo de excitação que sentia, quando era líder da gangue Albert e saía do campo de batalha com os machucados e os cortes de sempre por causa das flechas, porretes e lanças, estava disponível a ele mais uma vez, agora com a ação de ferrar um cavalo. Sentia-se uma vela majestosa, cheia de vento e estalando dentro da escuridão não mapeada de sua mente. Quando começara a usar óculos, achara que nunca mais iria sentir o triunfo de ter poder sobre outros. Mas, agora, o poder sobre pessoas tinha sido substituído pelo poder sobre objetos. Quando viu os resultados de seu trabalho manual, sentiu um novo tipo de triunfo. Ele se sentia o dono do mundo.
– A precisão é a alma da mecânica, e aquele que domina a mecânica domina muito além disso – o ferrador disse. Era um homem de muita leitura e gostava de se expressar em termos filosóficos.
Anton tinha encontrado uma nova rota pela qual navegar.
Finalmente, chegou a vez de Knud Erik e Vilhjelm se postarem na igreja e serem crismados. Ao abrirem a boca para cantar, focaram olhando para as miniaturas de barcos dependuradas no teto, com os cascos pintados de preto. Era o futuro deles que estava lá em cima. Tal como gerações tinham feito antes deles, cantaram o velho hino dedicado à profissão de navegar, que o pastor Abildgaard lhes tinha ensinado com lealdade: um hino sobre a própria fragilidade, a fragilidade das madeiras de um navio, e o poder divino.
O mar cruel pode ser nossa cova
Se não estiver do nosso lado.
Como o vento louco, a furiosa chuva
E a espada reluzente do relâmpago,
Sua palavra pode acalmar a maré brava.
Venha para bordo conosco, logo!
Knud Erik deu uma olhada furtiva em Vilhjelm. Não esperava que ele fosse cantar. Mal abrira a boca durante as aulas de crisma. Mas agora estava cantando, e sua gagueira tinha desaparecido, como se, de algum modo, o hino o levasse consigo até pelas palavras mais difíceis. Ele não parecia estar ciente do que estava acontecendo, mas Knud Erik reparou, e isso mudou o conceito dele a respeito de hinos.
Mas, se Deus tivesse operado um milagre, este não era permanente. No caminho de volta da igreja, Vilhjelm gaguejava tanto quanto sempre.
Nós não sabíamos, mas tínhamos sido os últimos. Nossos filhos jamais iriam se postar na igreja para cantar aquele hino, ou se postar no convés de uma escuna, à mercê dos elementos. Eles viajariam por todos os cantos do mundo, mas raramente veriam uma vela. Tudo estava acontecendo pela última vez, nesses dias. As velas seriam içadas pela última vez. O porto ficaria lotado de navios pela última vez. E então as previsões de Frederik Isaksen iriam se tornar realidade: para nós, só sobrariam as piores viagens, os litorais mais inóspitos e os mares mais bravios.
Mas éramos jovens. Não sabíamos disso. Para nós, tudo acontecia pela primeira vez.