No começo dos anos 1970, o campo artístico-cultural protagonizado pela esquerda viveu um momento paradoxal. Por um lado, estava cerceado pela censura rigorosa às artes, sofrendo com a repressão direta a artistas engajados. Por outro, passava por um momento criativo e prestigiado socialmente, estimulado pelo crescimento do mercado e pelo papel político que assumiu como lugar da resistência e da afirmação de valores antiautoritários. Os meios de comunicação e a indústria da cultura como um todo conheciam uma época de expansão sem precedentes. Com o crescimento econômico, os bens culturais passaram a ser consumidos em escala industrial: telenovelas, noticiários, coleções de livros e fascículos sobre temas diversos, revistas, sinalizavam para a nova tendência “industrial” e “massiva” do consumo cultural, que se consolidaria na segunda metade da década de 1970. Pelas bancas de jornais e pela televisão, a cultura escrita chegava aos segmentos mais pobres da população (sobretudo operários qualificados, pequenos funcionários públicos e classe média baixa, como um todo). Mas nem só de “crítica” vivia a cultura brasileira dos anos 1970. Os novos tempos de repressão e censura, aliados a uma certa facilidade de produção e consumo, estimularam o crescimento de um mercado cultural marcado pela difusão de produtos de entretenimento, sobretudo na música popular e na televisão.
Os artistas mais prestigiados pela crítica e pela classe média intelectualizada estavam no exílio, forçado ou voluntário, como Gilberto Gil, Caetano Veloso, Chico Buarque, Augusto Boal, José Celso Martinez (depois de 1973), Geraldo Vandré. A repressão atingira todas as correntes estéticas e ideológicas que haviam se digladiado na cena cultural no final dos anos 1960: tropicalistas da vanguarda, comunistas ligados ao campo nacional-popular,242 revolucionários ligados à luta armada. A primavera cultural da segunda metade dos anos 1960 parecia subitamente encerrada, literalmente, por decreto. A canção dos Secos & Molhados, grupo de grande sucesso no início dos anos 1970, poderia resumir o projeto cultural de oposição nos “anos de chumbo”: “Quem não vacila mesmo derrotado / Quem já perdido nunca desespera / E envolto em tempestade, decepado / Entre os dentes segura a primavera”.243
Segurar a primavera (cultural) nos dentes significava manter a vida cultural dentro de sua vocação crítica, partilhar de uma comunidade de leitores, espectadores e ouvintes que se viam como uma reserva de consciência libertária em tempos sombrios. Essa era a senha para a vida cultural partilhada, sobretudo, pela juventude secundarista ou universitária, pelos setores da classe média intelectualizada e ativistas dos movimentos sociais.
Enquanto o circuito universitário de cultura garantia aos artistas que ficaram no país uma alternativa de trabalho, as “comunidades” contraculturais protagonizavam uma nova forma, não comercial, de viver a cultura, baseada na prática do artesanato, na diluição das fronteiras entre vida e arte e na busca de novos valores morais e de um novo comportamento sexual, com base no chamado “sexo livre”, fora dos padrões monogâmicos.244 Para este segundo grupo, o uso das drogas, sobretudo a maconha e as drogas alucinógenas como o LSD, faziam parte da utopia de uma libertação individual e interior, ajudando a “expandir a mente”, muitas vezes levando os jovens à dependência e, em alguns casos, à morte. Para os jovens politicamente engajados, na clandestinidade ou não, o problema era outro: não se tratava de buscar a libertação individual, mas a libertação “coletiva”, a resolução dos problemas políticos e sociais do país. Expandir a mente era informar-se, intelectualizar-se, encarar a dura realidade do país.
Para a grande maioria dos jovens brasileiros de classe média e mesmo alguns das classes populares, o início dos anos 1970 representou a abertura de um grande mercado de trabalho, com novas possibilidades de consumo (por exemplo, a compra do automóvel, um dos ícones da juventude “alienada”). Longe de alternativas radicais de recusa ao sistema, politizada ou “desbundada”, o jovem brasileiro “médio” queria apenas comprar o seu “Corcel 73” e tentar aproveitar o “milagre”, conforme a ironia de Raul Seixas: “Eu devia estar contente porque eu tenho um emprego / Sou o dito cidadão respeitado / Ganho 4 mil cruzeiros por mês / Eu devia estar contente porque eu consegui comprar um Corcel 73 [...]”.245
Mesmo os circuitos de consumo cultural de massa foram ocupados por um espírito crítico, ainda que sutil, e convivendo com produtos culturais despolitizados. Engana-se quem pensa que os produtos culturais engajados, criados por artistas de esquerda, estivessem destinados a pequenos círculos de consumo artesanal. Uma das marcas da década de 1970 foi o convívio de projetos culturais voltados para grupos sociais que se consideravam “alternativos”, à margem, com a ocupação crescente do grande mercado pela arte de esquerda. Em muitos momentos, as fronteiras entre estes dois projetos ficaram diluídas. No teatro, na música popular e na teledramaturgia, a arte engajada de esquerda reestruturou o próprio mercado, entrando no coração da indústria cultural. Este processo não seria vivido sem dilemas e impasses, mas, sem dúvida, é uma das marcas mais singulares da resistência cultural ao regime militar.
Apesar de a repressão atingir a todas as correntes estéticas e ideológicas de oposição, sugerindo uma solidariedade em meio ao cataclismo, as lutas culturais dentro do campo da oposição não cessaram. O objetivo de todas elas era chegar às massas populares. Mas as linguagens, os caminhos e objetivos variavam.
No começo dos anos 1970, a vertente nacional-popular ligada à tradição de engajamento comunista ampliou sua estratégia de ocupação dos circuitos culturais, restritos ou massivos. Os artistas e intelectuais ligados a essa tradição denunciavam o “vazio cultural”,246 analisando como produto não apenas da censura e da repressão, mas também pelos desvios estéticos e ideológicos produzidos pelas vanguardas que confundiam choque de valores com consciência crítica. O alvo das acusações eram os tropicalistas, os grupos de teatro de vanguarda, como o Oficina, e os realizadores do cinema marginal. Para os comunistas e simpatizantes, não se tratava de “chocar a burguesia” agredindo seus valores, mas de conquistar seus corações e mentes para uma grande aliança contra o regime militar. A cultura e as artes deveriam ser o cimento dessa aliança, e não uma artilharia contra tudo e contra todos.
Em contrapartida, a vanguarda contracultural, já sem o ímpeto do final da década de 1960, sobretudo no teatro e na música popular, insistia que a crítica ao autoritarismo passava pela crítica radical aos valores burgueses, comportamentais e políticos a um só tempo. Para os jovens adeptos da contracultura, os militantes comunistas eram “caretas”. Para os comunistas e simpatizantes do PCB, os artistas de vanguarda eram “desbundados”. Os primeiros queriam ampliar o público. Os segundos, reinventá-lo.
O nacional-popular almejava a construção de um novo gosto para as massas, “consequente e crítico”, a partir de valores preexistentes. Em áreas em que o mercado já era forte, como na música ou na televisão, a “corrente da hegemonia”, nome dado aos artistas filiados ao nacional-popular de esquerda, impôs uma linguagem padrão para as suas obras que se confundiam com o gosto médio do público escolarizado. O grande sucesso da MPB no mercado fonográfico e da teledramaturgia feita por autores comunistas empregados pela Rede Globo são os exemplos mais paradoxais de uma linguagem artística tributária do nacional-popular triunfante na indústria cultural, ao mesmo tempo que vigiada pela censura estatal.247
Uma boa parte dos dramaturgos ligados ao Partido Comunista Brasileiro (PCB), como Dias Gomes, Oduvaldo Vianna Filho e Paulo Pontes, contribuiu para a revolução das novelas na telinha. Após 1970, estes e outros nomes foram contratados pela Rede Globo, com razoável liberdade de criação, para diversificar o estilo, a temática, a linguagem das telenovelas, aprofundando a tendência “realista” e “sociológica” já anunciada por Beto Rockfeller, em 1968. Estrategicamente, a televisão reservava um horário mais avançado, às dez horas da noite, para estes produtos, quando a maioria dos trabalhadores já tinha desligado a TV. Nessa faixa de horário, Dias Gomes, filiado ao PCB, veiculou novelas como O Bem Amado, Bandeira 2 e Saramandaia (esta última muito próxima ao chamado “realismo fantástico” da literatura latino-americana). Não podemos nos esquecer duas experiências inovadoras na teledramaturgia dos anos 1970, levadas ao ar em formato diferente das novelas diárias: os Casos Especiais e o seriado semanal A Grande Família (uma família de classe média cheia de dificuldades em pleno ufanismo do milagre econômico), escritos e dirigidos pelos grandes dramaturgos também comunistas Oduvaldo Vianna Filho e Paulo Pontes. Por outro lado, o sucesso estrondoso de Escrava Isaura, em 1976, consolidou o horário das seis da tarde como a faixa das novelas com temas históricos, mais ligadas à tradição do folhetim histórico, com alguma pitada de crítica social.
No final dos anos 1970, sob o impacto dos novos movimentos sociais, o ímpeto participativo de artistas e intelectuais de esquerda renovava-se, passando de uma fase de “resistência” para uma fase mais crítica e agressiva, na medida em que as massas voltavam ao primeiro plano da vida nacional e, com isso, mudando completamente a correlação de forças entre a sociedade civil “democrática” e o Estado, dominado por um regime autoritário e coercitivo. Com a revogação oficial do AI-5, em 1º de janeiro de 1979, e o consequente fim da censura prévia, abriu-se uma nova era para a cultura brasileira. Músicas, peças de teatro e, sobretudo, livros de ficção, reportagem e ensaios históricos puderam ser publicados.
Nas artes, cujo debate muitas vezes era acompanhado pela imprensa mais engajada, o crescimento do interesse pela política gerou um grande debate público entre artistas de várias áreas, que ficou conhecido como o caso das “patrulhas ideológicas”.248 O termo foi cunhado por Cacá Diegues, ao sentir-se policiado pela crítica cinematográfica de esquerda, que reclamava um posicionamento político mais definido nas produções do cineasta, acusado de fazer filmes escapistas (como Xica da Silva, uma leitura carnavalizante da escravidão, e Chuvas de Verão, uma visão lírica da velhice nos subúrbios cariocas). O debate explodiu em 1978, e logo outros artistas, como Caetano Veloso e Gilberto Gil, se utilizaram da expressão para contra-atacar os críticos e o público de esquerda ortodoxa, que exigiam uma arte mais pedagógica, realista, exortativa e comprometida com a luta contra o regime militar. Esses artistas reconheciam a necessidade de realizar obras críticas, mas, para eles, o principal compromisso da arte deveria ser o de representar as diversas facetas da condição humana e da sociedade, sem se prender a uma linha político-partidária específica, considerada mais justa e correta do que as outras.
A música popular brasileira entrava nos anos 1970 com seus compositores mais prestigiados e emblemáticos fora do país, resultado dos efeitos do AI-5 no campo artístico. Artistas que, até então, eram verdadeiros ídolos, como Geraldo Vandré, Chico Buarque de Hollanda Caetano Veloso, foram duramente perseguidos. Este último, juntamente com Gilberto Gil, chegou a ser preso, assim permanecendo por três meses. Em julho de 1969, os dois baianos foram “convidados” a deixar o país, exilando-se em Londres durante três anos. Chico Buarque, vivendo uma fase de grande popularidade, foi poupado da prisão, mas também foi convidado a deixar o país em 1969, indo para a Itália. Quanto ao destino de Vandré, os primeiros boatos diziam que ele havia sido preso, torturado e sofrera “lavagem cerebral”, passando a fazer músicas de apoio à ditadura. Em entrevista no ano de 1995 o próprio Vandré desmentiu essa versão249 dizendo que, a partir da decretação do AI-5, ele ficou foragido e conseguiu sair do Brasil, dando início a um verdadeiro périplo por vários países do mundo, fixando-se em Paris até meados da década de 1970, quando voltou para o Brasil. Depois de uma breve detenção, Vandré declarou “morto” o seu personagem, tornando-se apenas um discreto advogado.
A grande tendência do mercado, com a crise dos festivais da canção e cerceado pela censura, era a música jovem, o pop e o rock, que garantiam um espaço maior na preferência de uma boa parte da juventude. A partir do Tropicalismo, diga-se, o pop e o rock passaram a fazer parte, inclusive, dos vários idiomas musicais que caracterizavam a música brasileira. A sigla MPB se tornava quase um conceito estético e, sobretudo, político, traduzindo uma música engajada, com letra sofisticada, de “bom nível” e, de preferência, inspirada nos gêneros mais populares, como o samba, constituindo assim um mainstream que ligava esses gêneros à Bossa Nova, às canções de festivais e ao Tropicalismo.250
O período que vai de 1969 a 1974 não foi dos melhores para a MPB, mais em função dos problemas políticos do que por uma crise de criatividade ou de mercado. O cerco da censura e o clima de repressão policial dificultavam a criação, a gravação das músicas e a performance para grandes plateias, sobretudo as plateias estudantis. Ainda assim, um considerável circuito de shows em campi universitários levava inúmeros artistas ao contato com o público mais aficionado da MPB. Alguns artistas já eram consagrados, como Elis Regina; outros nem tanto, como Taiguara, Gonzaguinha, Ivan Lins (membros do chamado Movimento Artístico Universitário – mau –, que tentava renovar o time de compositores dentro do campo da MPB “sofisticada”).
Mas a música brasileira não era só a MPB “universitária”, como se dizia. Para suprir um mercado em crescimento, as gravadoras apostaram na música jovem internacional (sobretudo a black music americana, então em voga) e nas músicas compostas em inglês por brasileiros. Outro fenômeno de vendas foram as trilhas sonoras de novelas, sobretudo as da Rede Globo, que inventou até uma gravadora, a Som Livre, para comercializar este tipo de coletânea.251 Foi também a época do chamado “sambão joia”, feito por nomes como Os Originais do Samba, Luiz Airão, Benito di Paula, entre outros, uma música considerada pasteurizada e comercial, mas que tinha uma grande aceitação do público, parte da grande família da música dita “cafona”, que, apesar do preconceito da classe média, considerando-a alienada e de mau gosto, chegou a ser censurada pelo regime.252 Entre 1970 e 1974, o território do samba ainda consagraria nomes como Martinho da Vila, Paulinho da Viola e Clara Nunes (intérprete muito popular na época). O artista mais popular do Brasil era, indubitavelmente, o cantor Roberto Carlos, que entre 1969 e 1972 passava pela sua fase mais criativa, reforçando seu estilo romântico.253 Para a opinião pública mais crítica, de esquerda, Roberto Carlos era sinônimo de alienação política, contraponto do engajamento musical que dominava a MPB mais valorizada.
Com a volta dos ídolos da MPB que estavam no exterior, como Chico Buarque em 1971 e Caetano Veloso em 1972, o cenário musical se animou. Chico gravou um álbum histórico, considerado um marco de qualidade poética na canção popular brasileira, chamado Construção. O long playing teve grande aceitação de público e crítica e recolocava Chico no primeiro plano da mídia e da cultura brasileiras. Caetano, depois de lançar o belo e melancólico London, London (cujas canções retratavam, em inglês, seu estado de espírito no exílio londrino), gravou Transa e o álbum experimental Araçá Azul, cheios de ruídos, arranjos e entonações inusitadas. Este, aliás, foi o maior encalhe da indústria fonográfica brasileira. Mas o exílio de Caetano o havia resgatado para a juventude universitária engajada, depois dos embates entre estes e o compositor baiano ao longo de 1968. Em 1972, os dois astros, Chico e Caetano, que até então representavam as duas grandes tendências estéticas e políticas da MPB, gravaram um álbum ao vivo, num histórico show em Salvador, lançado em LP com o título Chico e Caetano, Juntos e Ao Vivo. O show foi um verdadeiro ato de resistência contra a ditadura e a sua censura, sofrendo inúmeras sabotagens técnicas. Esse encontro, altamente simbólico, de dois grandes astros que dividiam as plateias dos anos 1960 foi complementado em 1974 por outro encontro artístico, entre Elis Regina e Tom Jobim, que também não eram lá muito amigos em meados dos anos 1960.
Em 1972, explodia outro fenômeno musical, já conhecido como compositor há algum tempo: Milton Nascimento (que trouxe junto consigo todo o Clube da Esquina, um conjunto de compositores, instrumentistas e intérpretes das Minas Gerais, que fundiam gêneros e estilos locais com o rock). O álbum Clube da Esquina 1, de Milton Nascimento e Lô Borges, era uma verdadeira coleção de clássicos da canção que apresentavam uma visão mais sutil, porém não menos crítica, do momento social e político. O Trem Azul, San Vicente, Nada Será como Antes, Paisagem na Janela, entre outras, retratavam a busca por liberdade individual e coletiva através de imagens poéticas sutis e músicas sofisticadas, fora das fórmulas que se conheciam até então.
A grande novidade musical de 1973 foi a renovação do rock brasileiro, que parecia encontrar um idioma próprio. Neste campo, destacaram-se Raul Seixas, com sua crítica ácida ao milagre e aos valores sociais (Ouro de Tolo, Sociedade Alternativa, Mosca na Sopa, Metrô Linha 743), e o meteórico conjunto Secos & Molhados, que revelou o cantor Ney Matogrosso, fundindo o melhor da poesia da MPB com a ousadia cênica e o clima instrumental do rock anglo-americano. Rita Lee, ex-Mutantes, iniciava uma trajetória própria e original, com letras criativas e críticas. Uma das experiências mais originais da música jovem brasileira de qualidade, no início dos anos 1970, foi o conjunto Novos Baianos, que ao mesmo tempo era uma comunidade hippie. Baby Consuelo (vocal), Pepeu Gomes (guitarra), Moraes Moreira (que seguiria uma carreira solo de sucesso) e Paulinho Boca de Cantor mesclavam samba, chorinho, frevo e rock, criando um idioma musical próprio e bem-aceito pelo público de rock e MPB.
A partir de 1972, a música brasileira parecia retomar certa ofensiva cultural e política contra o regime e galvanizar as massas populares em grandes eventos, através de espetáculos ao vivo. Mas os tempos continuavam difíceis para quem se propunha a fazer uma arte que fosse algo mais do que lazer. Além de Chico e Caetano, Juntos e Ao Vivo, o impactante Phono 73 foi uma tentativa da gravadora Phonogram/Philips de retomar o clima dos festivais, organizando três noites de música ao vivo, com todo o seu elenco de estrelas da MPB e do rock brasileiro. Num destes shows, ocorreu o famoso episódio do desligamento do sistema de som, por ordens da censura, quando Chico e Gilberto Gil iriam cantar Cálice, um claro manifesto contra a censura e a repressão. As palavras “cálice” e “cale-se” se fundiam numa alusão direta à censura, e o “vinho tinto de sangue” remetia aos porões da tortura. Obviamente, a censura não gostou.
Pai... Afasta de mim este cálice, pai
Afasta de mim este cálice, pai
De vinho tinto de sangue...
Em 1972, a Rede Globo resolveu valorizar o seu criticado e esvaziado Festival Internacional da Canção (FIC). Contratou Solano Ribeiro, produtor dos grandes festivais da Record, deu certa liberdade à comissão de seleção das músicas e colocou para presidir o júri a prestigiada (e oposicionista do regime) cantora Nara Leão. O cenário para mais um conflito com o regime estava armado e explodiu no manifesto do júri contra a censura. Alegando um problema na condução dos trabalhos, mas na verdade pressionada pelo governo, a Rede Globo destituiu a presidência do júri, e quando dois jurados (Roberto Freire e Rogério Duprat) tentaram subir ao palco para ler um manifesto contra a censura foram presos pelo Dops (a polícia política do regime) e chegaram a ser agredidos. A vencedora foi Fio Maravilha, de Jorge Ben(jor), interpretada pela cantora Maria Alcina, cuja letra falava de um ídolo do futebol e o ritmo dançante empolgava a plateia, deixando em segundo plano, para o grande o público, os incidentes e pressões políticas que marcaram o último festival da canção da “era dos festivais”.
Nessa edição do FIC e na outra tentativa da Rede Globo de reeditar o gênero (Festival Abertura, 1974), consolidou-se uma tendência bastante peculiar da MPB dos anos 1970, a dos chamados “malditos”. Famosos por praticarem certas ousadias musicais, happenings e declarações nada simpáticas ao gosto do público, nomes como Jorge Mautner, Jards Macalé, Luiz Melodia, Walter Franco, entre outros, desafiavam as fórmulas do mercado fonográfico, buscando linguagens e performances mais ousadas e provocativas. O nome “malditos” se consagrou como uma espécie de estigma que perseguia esses artistas: eram respeitados pela crítica e pelos músicos, mas não se enquadravam nas leis de mercado das gravadoras nem se submetiam às suas demandas comerciais, vendendo muito pouco e sendo quase esquecidos pelas emissoras de rádio mais populares.
Por volta de 1976, a MPB consolidou sua vocação oposicionista de resistência ao regime militar e de eixo do mercado fonográfico a um só tempo. Além disso, seus principais compositores foram muito beneficiados pelo abrandamento da censura, podendo compor canções com letras críticas, que tinham grande aceitação entre os ouvintes. Consolidava-se o fenômeno da “rede de recados”, desempenhado pela canção popular na época da ditadura, que fazia circular mensagens de liberdade e justiça social, ainda que se utilizando de uma linguagem sutil e simbólica, numa época marcada pela repressão e pela violência.254 Não é exagero dizer que a MPB foi uma espécie de “trilha sonora” da abertura, estando no centro de várias manifestações e lutas da sociedade civil na segunda metade dos anos 1970.255
A MPB se transformou no carro-chefe da indústria fonográfica brasileira, passando a ser consumida por amplos segmentos da classe média e chegando, em alguns casos, a ter uma boa penetração nos setores populares (sobretudo no final da década de 1970). Do ponto de vista comercial, a MPB era importante para a indústria fonográfica na medida em que seus ouvintes mais fiéis se concentravam nas faixas de consumo mais ricas e informadas da população. Geralmente, os artistas de MPB tinham maior liberdade de criação e podiam contar com maiores recursos das gravadoras para gravar seus LPs, pois, mesmo vendendo menos do que as ditas canções e os gêneros mais “populares”, geravam muito lucro às gravadoras, uma vez que eram produtos mais caros e sofisticados, sendo vendidos a um preço maior. Além disso, a MPB movimentava um importante mercado de shows ao vivo. O interesse crescente pelos principais compositores e intérpretes da MPB, que já vinha dos anos 1960, garantia às rádios uma audiência mais sofisticada e com um maior poder aquisitivo, atraindo, consequentemente, anunciantes mais qualificados. Todos esses fatores faziam a máquina comercial funcionar em torno desse gênero, para além das suas virtudes propriamente estéticas ou políticas. Podemos dizer que, entre 1975 e 1980, a MPB viveu seu auge de público e crítica, com uma ampla penetração social e lugar destacado no mercado fonográfico.
O primeiro grande fenômeno de público desse boom de Música Popular Brasileira foi o show Falso Brilhante, no recém-inaugurado Teatro Bandeirantes, estrelado pela consagrada Elis Regina.256 A partir de setembro de 1975, ao longo de 14 meses, com uma incrível média de 1.500 pessoas por noite, a cantora encantava a plateia com músicas que fundiam o lírico e o político, num conjunto harmônico de música, teatro e poesia. O LP homônimo foi um dos principais marcos de vendagem da carreira de Elis, que, ao lado de Chico Buarque de Hollanda, conseguiu executar uma difícil missão na área da cultura, conciliando qualidade e popularidade. Até sua morte precoce, em 1982, Elis seguiu uma trajetória de consagração artística e sucesso popular, cujo auge pode ser considerado a música O Bêbado e a Equilibrista (João Bosco/Aldir Blanc), considerado o hino da luta pela anistia aos presos e exilados pelo regime, conseguida em 1979. Do ponto de vista pessoal, a cantora se reconciliava com o público de esquerda depois do polêmico episódio de sua participação na convocatória para o Encontro Cívico Nacional, um evento oficial do regime militar, em 1972.257
Outro nome fundamental para a MPB dos anos 1970 foi Chico Buarque de Hollanda, a “unanimidade nacional” segundo a crítica. O compositor passou por uma fase difícil, entre 1973 e 1975, quando o seu projeto teatral e musical Calabar foi totalmente proibido e Chico teve que inventar um pseudônimo para conseguir driblar a censura, o impagável “Julinho da Adelaide” (um fictício “sambista de morro”). Mas, a partir de Meus Caros Amigos, lançado no final de 1976, Chico reencontra o sucesso popular e os aplausos da crítica musical. São desse disco algumas canções antológicas como Meu Caro Amigo, O Que Será, Mulheres de Atenas, verdadeiros documentos poético-musicais para entender aquele momento histórico.
Caetano Veloso e Gilberto Gil lançam discos antológicos, como Refazenda (1975) e Refavela (1976), de Gil, e Joia (1975), Qualquer Coisa (1976), Bicho (1977) e Muito (1978), de Caetano. Este último, por sinal, um grande sucesso popular, puxado pela faixa Sampa, cuja letra propunha uma leitura totalmente nova da vida urbana e das contradições da modernidade brasileira. Caetano e Gil consolidaram sua vocação de “ídolos” da juventude mais intelectualizada e libertária, embora suas declarações políticas e comportamentais, bem como o visual hippie e andrógino, provocassem algum desconforto na juventude de esquerda, mais ortodoxa em termos de comportamento. Por exemplo, a música Odara, do LP Bicho, provocou uma grande polêmica entre Caetano e a esquerda nacionalista (mais uma, aliás...), pois a música era um apelo ao prazer e à dança, utilizando-se inclusive de uma batida discotéque (a grande moda pop da época), quando a esquerda achava que a música popular deveria cantar as agruras dos trabalhadores sob a tutela do regime militar.
Milton Nascimento marcou época com os LP Minas (1975), Gerais (1976) e Clube da Esquina 2 (1978). A composição O Cio da Terra, feita em parceria com Chico Buarque, foi um grande sucesso popular nas vozes do Quarteto em Cy e do MPB4, tornou-se um dos hinos da luta pela reforma agrária, falando da vida camponesa e da busca pela dignidade humana de uma maneira sutil e poética. João Bosco e Aldir Blanc também se consagraram a partir de 1975, sendo responsáveis por verdadeiros clássicos da MPB, como O Mestre-Sala dos Mares, Kid Cavaquinho, Plataforma e O Bêbado e a Equilibrista. Em suas músicas, Bosco e Blanc falavam do povo brasileiro e da resistência à ditadura de uma maneira ora bem-humorada (Siri Recheado), ora muito dramática (Tiro de Misericórdia), trabalhando com questões cotidianas, numa abordagem muito próxima à crônica jornalística. Gonzaguinha e Ivan Lins fechavam o primeiro escalão dos compositores engajados consagrados ao longo dos anos 1970. A eles juntavam-se novos nomes como Fagner (que explodiu para o sucesso em 1976) e Belchior (autor de dois grandes sucessos na voz de Elis, Velha Roupa Colorida e Como Nossos Pais).
A MPB, o samba e o rock acabaram formando uma espécie de frente ampla contra a ditadura, cada qual desenvolvendo um tipo de crítica, atitude e crônica social que forneciam referências diversas para a ideia de resistência cultural. A MPB, com suas letras engajadas e elaboradas; o samba, com sua capacidade de expressar uma vertente da cultura popular urbana ameaçada pela modernização conservadora capitalista; e o rock, com seu apelo a novos comportamentos e liberdades para o jovem das grandes cidades. Não foi por acaso que ocorreram muitas parcerias, de shows e discos, entre os artistas desses três gêneros.
Entre 1969 e 1971, os três mais importantes grupos teatrais brasileiros – o Arena, o Opinião e o Oficina –, desarticularam-se ou foram extintos. O Oficina encenou ainda três peças importantes: Galileu (B. Brecht), Na Selva das Cidades (B. Brecht) e Gracias Señor (criação coletiva). Nessas três montagens, evidenciou-se a desagregação interna do grupo: os conflitos de personalidade, os conflitos de gerações (entre atores “velhos” e “jovens”), as diferentes concepções de função social e estética teatral. Nesta última montagem, o Oficina absorvia de uma vez por todas a estética da contracultura, radicalizando as experiências de improvisação cênica e textual, de diluição de fronteiras entre arte e vida e público e obra. Em 1973, o último remanescente do Oficina original, o diretor José Celso Martinez Corrêa, saiu do Brasil.
No anticlímax que sofreu a classe teatral a partir do AI-5, depois de quatro anos sendo um dos eixos do debate estético e ideológico na sociedade brasileira, duas peças marcaram época: Cemitério de Automóveis (Fernando Arrabal) e O Balcão (Jean Genet), ambas dirigidas por Victor Garcia e produzidas por Ruth Escobar. Esta se firmava como produtora independente e personalidade crítica, desafiando o cerceamento cultural imposto pelo regime militar e pela censura. Além disso, as duas peças apontavam para uma nova concepção de uso do espaço cênico do teatro. Mais pela concepção cênica e pela atuação dos atores do que pelo texto em si, foram uma espécie de manifesto contra a ditadura, estilizando a violência e a crueldade das instituições oficiais e conservadoras contra o indivíduo (como o Exército, a Igreja, a Justiça) e fazendo o público experimentar, esteticamente, a mesma violência que derrotara as revoluções populares e o direito de manifestar a crítica social e política. No caso de O Balcão, por exemplo, os espectadores tinham que se movimentar, para cima e para baixo, dentro de estruturas cilíndricas de metal que lembravam um cárcere.
O teatro, ao seu modo, refletiu também a contracultura no Brasil, manifestação de recusa global ao sistema e à sociedade estabelecida, característica da geração AI-5.258 A estética da marginalidade, a opção pela transgressão aos costumes morais e sexuais, a crítica radical às instituições, tidas como base do sistema autoritário, apareciam em diversas peças contraculturais (Gracias Señor, Hoje É Dia de Rock, Gente Computada Igual a Você). Uma encenação irracionalista, antipedagógica, antiemocional, caracterizava essas peças, além do uso do humor, às vezes debochado e grotesco.
Duas importantes peças que estrearam entre 1973 e 1974 procuravam fazer uma reflexão sobre o papel do teatro na nova conjuntura repressiva do país, dentro de uma cultura de esquerda mais ortodoxa, sem as ousadias do “desbunde” da contracultura jovem, perfazendo uma espécie de contra-ataque da corrente dramatúrgica ligada ao PCB: Um Grito Parado no Ar (G. Guarnieri) e Pano na Boca (Fauzi Arap) encenavam a história de grupos teatrais em busca de sua identidade e de sua inserção na sociedade, procurando diagnosticar problemas, impasses e soluções para a vida teatral brasileira, dentro de contradições sociais mais amplas. Ainda dentro dessa tendência, Paulo Pontes se firmou como um autor cada vez mais reconhecido (Um Edifício Chamado 200 e Gota d’Água, entre outros), assim como Oduvaldo Vianna Filho (Corpo a Corpo, sucesso de 1971, e Longa Noite de Cristal, de 1972). Corpo a corpo era um monólogo de um publicitário que, à beira da falência, se vê na iminência de se transformar em “povo”, caindo na hierarquia socioeconômica.
O recrudescimento da censura, entre 1973 e 1975, prejudicou algumas peças com amplo potencial de público, como Calabar, de Chico Buarque e Ruy Guerra, e Rasga Coração, de Oduvaldo Vianna Filho. No caso de Calabar, o consagrado compositor Chico Buarque investiu muito dinheiro na produção, e a proibição da peça foi um duro golpe financeiro na sua carreira. O texto propunha uma revisão da figura de Domingos Fernandes Calabar a partir da ótica da sua viúva, Bárbara, colocando uma questão crucial: o que é ser um traidor da “pátria” (como a história oficial apresentava a figura de Calabar) quando, na verdade, se vive numa colônia, dominada por um governo antipopular e repressivo. Obviamente, o foco da crítica de Chico e Ruy Guerra era a conjuntura repressiva e “entreguista” (como eram qualificados aqueles que “entregavam” o país às multinacionais do capitalismo) em que o Brasil vivia após o golpe militar. Como resultado dessa ousadia crítica, a peça foi totalmente proibida, o mesmo acontecendo com o LP (as letras das faixas e a capa, com o nome “Calabar” pichado num muro, foram proibidas). Chico ainda retornaria ao teatro em 1975, com Gota d’Água, escrita com Paulo Pontes, uma adaptação da tragédia Medeia, de Eurípedes, para o subúrbio carioca. Como a crítica social e política era inserida num contexto de vida privada, a censura liberou a peça, que acabou sendo um grande sucesso de público e crítica.
A partir de 1976, sob o clima da distensão, a vertente nacional-popular do teatro iniciou uma espécie de reconciliação com o público, mas por um caminho diferente. Gota d’Água (que estreou em dezembro de 1975, direção de Gianni Ratto) e o Último Carro259 (março de 1976, texto e direção de João das Neves) foram grandes fenômenos teatrais, sinalizando o triunfo da corrente nacional-popular que se propunha a examinar as condições de vida do povo brasileiro sob a modernização conservadora a partir de linguagem e encenação realistas. Último Carro era ambientada em um vagão de trem de subúrbio, que parece estar em uma louca corrida sem motorneiro, vários operários e lumpens tentam tomar o controle da situação. A partir deste mote, surgem individualidades em choque na formação de uma coletividade capaz de controlar o trem e evitar a tragédia que se anuncia. Gota d’Água também se debruçava sobre os efeitos da modernização, com o canto de sereia da ascensão social impactando a relação amorosa de Joana e Jasão, culminado no assassinato dos filhos do casal pela mãe suicida.260 A ingenuidade da arte nacional-popular de esquerda nos anos 1960, que via o povo como um ente orgânico e sem divisões internas, era substituída em ambas as peças por uma visão mais crítica, explorando o sentido dramático e político das divisões internas das classes populares e dos seus impasses diante da modernização capitalista.
Na segunda metade dos anos 1970, surgiram novos grupos que marcaram época.261 Os mais importantes foram: Asdrubal Trouxe o Trombone (RJ), Pau-Brasil (embrião do Centro de Pesquisas Teatrais, com o apoio do Sesc de São Paulo), Mambembe (SP) e Teatro do Ornitorrinco (SP). As produções e as trajetórias dos membros desses grupos (autores, diretores e atores) sinalizavam novas tendências na dramaturgia brasileira: a fusão entre linguagens diversas (mímica, música, circo, dança); a incorporação do deboche, da paródia e do humor corrosivo; a renovação dos recursos cênicos; linguagem cênica despojada (poucos objetos de palco, utilização dos espaços vazios, cenário econômico e valorização dos efeitos de iluminação). Os grupos foram os responsáveis por grandes sucessos de público e crítica no final da década de 1980: Asdrubal protagonizou o impagável Trate-me Leão (1978), inaugurando o teatro do “besteirol”, no qual piadas nonsense, situações surrealistas, imitação de tipos sociais e crítica de costumes se fundiam num espetáculo leve e bem-humorado, sem cair na banalidade. O Teatro do Ornitorrinco deslanchou para o sucesso propondo outra leitura do dramaturgo alemão Bertolt Brecht (Ornitorrinco Canta Brecht-Weil, 1977, e Mahagonny, 1982), a partir de uma ótica bem-humorada, enfatizando o clima de cabaré dos espetáculos brechtianos. Pau-Brasil, dirigido por Antunes Filho, marcou época no teatro brasileiro com uma leitura carnavalesca e criativa de Macunaíma (1978), a partir da obra de Mário de Andrade. A peça trabalhava com um despojamento radical do palco, dando espaço para uma elaborada técnica gestual dos atores, articulados por um texto provocativo, ágil e bem-humorado.
A “abertura” e o abrandamento da repressão trouxeram de volta diretores e autores consagrados, exilados ou proibidos pela censura. Voltam ao país para agitar ainda mais o cenário teatral: José Celso Martinez Corrêa em 1978, criando seu novo grupo Uzyna-Uzona; Augusto Boal, com o sucesso Murro em Ponta de Faca (1978), fez um balanço dramático da experiência do exílio. Com o fim da censura prévia, em 1979, muitos textos proibidos foram encenados. Entre eles, destacam-se Rasga Coração (sob a direção de José Renato, 1979), de Oduvaldo Vianna Filho, que trata do conflito de gerações entre pai e filho, ambos militantes de esquerda, e Barrela (1980), de Plínio Marcos, sobre a vida no seio da marginalidade.
Na área do cinema, o final da década de 1960 e a primeira metade da década de 1970 também configuravam uma crise estética e política. Cercado pela indústria cinematográfica norte-americana (embora naquele momento Hollywood também não vivesse seus melhores dias) e pela tendência mais intelectualizada dos realizadores ligados ao Cinema Novo, o cinema brasileiro dependia cada vez mais do apoio oficial para realizar filmes que fossem além da demanda por lazer, marca principal do gosto popular pelo cinema. O Cinema Novo tinha conseguido um reconhecimento inédito para o cinema brasileiro, consagrado em festivais considerados “artísticos”, como os de Veneza e Cannes, mas carecia de uma penetração maior no público mais amplo de classe média no Brasil, embora agradasse plateias estudantis e intelectualizadas.
Os impasses em torno da função social e estética do cinema, já anunciados em Terra em Transe de Glauber Rocha, foram radicalizados pelo chamado “cinema marginal”,262 cujos marcos foram os filmes O Bandido da Luz Vermelha, de Rogério Sganzerla, Matou a Família e Foi ao Cinema, de Júlio Bressane, e A Margem, de Ozualdo Candeias.
Assim como no teatro, o cinema “marginal” pode ser enquadrado com uma variante da contracultura brasileira, propondo a transgressão comportamental e a destruição de qualquer discurso lógico e linear como as bases da sua criação. Nesses filmes, a linguagem do humor e do grotesco era utilizada como base das alegorias sobre o Brasil, considerado um país absurdo, sem perspectivas políticas e culturais. Por outro lado, o cinema marginal também radicalizou uma tendência que se anunciava no movimento tropicalista: o estranhamento diante da outrora figura heroica do povo. As figuras simbólicas das classes populares são mostradas como grotescas e de “mau gosto”, vitimizadas pela desumanização da sociedade e sugadas pelo sistema. O herói não era mais o operário consciente, o camponês lutador ou o militante abnegado de classe média, mas o “marginal”, o pária social, o artista maldito, o transgressor de todas as regras.
Mas as principais figuras do cinema brasileiro tentavam reciclar suas carreiras, diante da nova conjuntura e da derrota iminente da última tentativa da esquerda em confrontar diretamente o regime (a “luta armada”). Glauber Rocha, considerado o maior diretor brasileiro, percorreu vários países a partir do final dos anos 1960, fixando-se em Cuba por alguns anos. Em 1969, ganhou o prêmio de melhor direção em Cannes com O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro, retomando a temática de Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964) a partir de uma narrativa mais acessível. Depois do agônico Cabezas Cortadas, Glauber mergulha numa profunda crise criativa. Nelson Pereira dos Santos, outro diretor consagrado, conseguiu realizar um dos mais importantes filmes da década, chamado Como Era Gostoso o Meu Francês (1971). O filme é uma releitura da “antropofagia” cultural, tema em voga naquele momento. Se Macunaíma (Joaquim Pedro de Andrade), sucesso de 1969, era uma leitura tropicalista do anti-herói de Mário de Andrade, o filme de Nelson Pereira, sutilmente, retoma um viés crítico em relação à tendência de abertura da cultura brasileira em relação às influências externas. Além disso, o filme contém uma série de alusões à situação política, como a censura, a tortura e a guerrilha. Inspirado na saga de Hans Staden, que passou quase um ano entre os tupinambás, no século XVI, o filme inverte o destino do personagem (neste caso, um “francês”, e não um alemão). Na vida real, Staden escapou de ser devorado pelos índios, enquanto no filme, o “herói” civilizador estrangeiro é comido, mas, antes de morrer, profere uma espécie de maldição contra os “brasileiros” que o devoraram. Santos ainda faria outros filmes marcantes nos anos 1970, sobre a cultura afro-brasileira, intitulados O Amuleto de Ogum (1975) e Tenda dos Milagres (1978), fundindo o misticismo afro-brasileiro à critica à opressão social e política que sempre caracterizou sua obra.
O filme histórico também foi utilizado em chaves diferenciadas, aproveitando-se da boa vontade do regime com esse gênero, considerado “educativo”. Os filmes Independência ou Morte, de Carlos Coimbra, e Os Inconfidentes, de Joaquim Pedro de Andrade, mostravam leituras diferentes dos eventos e personagens históricos “oficiais”. Enquanto o primeiro filme assumia a história oficial, narrando os fatos consagrados de maneira linear e simplista, enfatizando os amores do imperador e tentando imitar o luxo das produções estrangeiras, Os Inconfidentes foi realizado dentro de uma concepção “cinema de autor”, de produção barata, despojada e utilizando-se do tema da Inconfidência Mineira para, na verdade, discutir a crise na esquerda brasileira, o lugar do intelectual no processo histórico e sua fracassada opção pela luta armada contra o regime militar.263 Os revolucionários/inconfidentes no filme se perdiam em ilusões de conquista do poder, projetos utópicos e discursos vazios, ao mesmo tempo que se isolavam da população e dos trabalhadores (no caso, simbolizados pelos escravos). O curioso é que o filme praticamente não tem diálogos próprios, sendo uma colagem de textos retirados dos Autos da Devassa, do Romanceiro da Inconfidência (de Cecília Meireles) e dos poemas de Claudio Manoel da Costa, Tomás Antônio Gonzaga e Alvarenga Peixoto. Enquanto Independência ou Morte tornou-se um grande sucesso de público (motivado, sobretudo, pela presença do casal nº 1 das novelas da época, Tarcísio Meira e Glória Meneses), o filme de Joaquim Pedro não agradava as plateias mais desatentas, embora não tenha chegado a ser um fracasso de bilheteria completo. Independentemente da qualidade de um ou outro, ambos são documentos importantes para se compreender a complexa configuração cultural do início da década de 1970, oscilando entre o ufanismo oficial, partilhado por muitos setores da sociedade, e a crítica velada, exercitada por poucos mas influentes atores sociais.
Numa outra perspectiva, Toda Nudez será Castigada, de Arnaldo Jabor, baseado na peça de Nelson Rodrigues, foi um grande sucesso de 1973, consagrando o jovem diretor revelado pelo Cinema Novo. De longe, o filme foi a melhor adaptação cinematográfica das polêmicas peças do dramaturgo, que mostra as tensões entre personagens divididos entre uma moral rigorosa e um impulso para a transgressão, gerando culpas, expiações e autopunições. No mesmo ano, São Bernardo, de Leon Hirszman, adaptava o livro homônimo de Graciliano Ramos, retomando a investigação sobre a mentalidade autoritária da elite rural brasileira, como metáfora dos tempos de repressão, conservadorismo e modernização excludente.264
Trabalhando com o tema da sexualidade de uma forma mais questionável, do ponto de vista estético e dramático, surgiu no início dos anos 1970 o gênero cinematográfico que ficou conhecido como “pornochanchada”. Geralmente, eram produções muito baratas, feitas em estúdios improvisados, com atores e atrizes desconhecidos, a maioria deles sem talento dramático, mas com alguma beleza física. As histórias eram variações dentro do mesmo tema: a traição conjugal, as estratégias de conquista amorosa, as moças do interior que se “perdiam” na cidade grande, as relações entre patrões e empregadas ou entre chefes e secretárias. A partir desses motes, os filmes abusavam das cenas de nudez (feminina) e de simulações malfeitas de cenas de sexo. Independentemente da sua baixa qualidade, esse gênero foi o responsável por levar aos cinemas milhões de pessoas que nunca viam filmes brasileiros, geralmente oriundas das classes populares. Parte da juventude cinéfila passou a ver na pornochanchada uma estética válida para criticar o “bom gosto” imposto pela censura do regime e compartilhado até por setores de esquerda, notadamente a comunista.265
A partir de 1976, o cinema brasileiro conheceu sua maior consagração de público, conciliando certo reconhecimento da crítica com um amplo reconhecimento popular (inclusive da classe média, que resistia aos padrões estéticos do nosso cinema). A partir de então, o cinema brasileiro, apoiado pela Embrafilme, conseguiu uma razoável penetração no mercado nacional e, até, no internacional. Uma interessante conjugação entre um tipo de cinema “de autor” (linguagem mais pessoal e artesanal) e um cinema mais “industrial” (filmes tecnicamente bem-feitos com grande esquema de encenação) foi exercitada em várias produções, que pareciam reverter a tendência à “falta de público” crônica que o nosso cinema sofria. Neste sentido, os filmes de Cacá Diegues, como Xica da Silva (1976), e Bruno Barreto, diretor de Dona Flor e Seus Dois Maridos (1976), foram os principais referenciais da época. Este último, aliás, se tornou o filme brasileiro mais visto de todos os tempos. Mesclando humor, erotismo e figurinos luxuosos, tornaram-se grandes sucessos de bilheteria até pelo fato de sugerirem uma abordagem mais leve da história, dos problemas e dos costumes brasileiros. Nesse sentido, sinalizavam outro caminho para o cinema, diferente do Cinema Novo e retomando, num nível de produção mais sofisticada, a tradição do humor e da chanchada carnavalesca dos anos 1950. O naturalismo temperado pelo melodrama social foi a principal linguagem de crítica social no cinema do final dos anos 1970. Nesse sentido, os filmes de Hector Babenco, argentino radicado no Brasil, são exemplares: Lúcio Flávio, o Passageiro da Agonia (1978) e Pixote, a Lei do Mais Fraco (1980). Mergulhando na vida de marginais, adultos e mirins, Babenco construiu uma denúncia hiper-realista sobre o sistema carcerário e sobre a lógica de exclusão e violência entre os menores abandonados, produzida pela desigualdade socioeconômica aliada à falta de cidadania. Cacá Diegues realizou, no final da década, Bye-Bye, Brasil (1979), que procurava conciliar crítica social e política com uma linguagem mais leve e bem-humorada. O filme, sucesso de público e de crítica, contava a história de uma caravana de artistas pobres, a “Caravana Rolidei”, que percorria o interior do Brasil. A partir desse tema, Diegues apresentava um balanço crítico da modernização conservadora brasileira dos anos 1970, plena de disparidades regionais e sociais e dos efeitos da indústria cultural no “Brasil profundo”.
Em meados da década de 1970, o regime militar percebeu que estava perdendo a batalha da cultura. Os vetustos membros do Conselho Federal de Cultura não tinham o mesmo prestígio dos intelectuais conservadores dos anos 1940 e 1950.266 A censura só era aplaudida por uma pequena burguesia ignorante e sem capacidade de construir hegemonias e de influenciar os “formadores de opinião”, ligados aos segmentos mais escolarizados da classe média. Os intelectuais, liberais e de esquerda, cristalizaram a ideia de um regime anticultural, repressor das liberdades e da criatividade.
Era preciso construir uma política cultural proativa, que não necessariamente significava abrir mão dos instrumentos repressivos. Em outras palavras, o regime militar tentou combinar repressão seletiva, regulamentação da vida cultural e mecenato que não era vedado aos artistas de oposição. Neste processo, valores conservadores, folcloristas, nacionalistas e autoritários se combinavam com defesa do patrimônio, construção de um mercado de bens simbólicos e valorização de temas que tinham muitos pontos em contato com o nacional popular de esquerda. Sem contar com intelectuais orgânicos valorizados pela classe média intelectualizada, o regime evitou se pautar por um estrito controle de conteúdo nos produtos e obras de arte. Estava mais preocupado com o que não deveria ser dito do que com a construção de uma estética e de um temário oficiais. Lançou um canto de sereias a artistas de oposição, sobretudo no teatro e no cinema, que não ficaram indiferentes, mesmo sabendo dos riscos políticos de dialogar com um governo que prendia, censurava, torturava e matava.
Em que pese esses esforços para construir uma política cultural positiva e proativa, o regime militar brasileiro passou para a história como um regime que cerceou e controlou a expressão artística e cultural. Se existiu uma “política cultural” que perpassou os governos militares, ela pode ser resumida numa palavra: censura. Como os artistas, jornalistas e intelectuais foram os únicos atores sociais que mantiveram algum espaço de liberdade de expressão após o golpe, a nova onda autoritária, pós-AI-5, recaiu com especial vigor sobre eles. Na verdade, no caso particular do teatro, a atuação dos censores era constante desde 1964.267
A ação da censura e seus efeitos eram diferenciados conforme a área de expressão e a natureza da obra censurada. Entre 1969 e 1979, quando a censura foi mais rigorosa, o teatro foi uma das áreas mais afetadas, e, como já dissemos, não precisou esperar o AI-5 para sofrer os rigores da censura. Foram cerca de 450 peças interditadas, total ou parcialmente.268 No cinema, foram cerca de 500 filmes (muitos estrangeiros).269 Na música popular, alguns compositores foram particularmente perseguidos, como Chico Buarque, Gonzaguinha, Taiguara, entre outros, mas, mesmo com a “abertura”, a censura de tipo “comportamental” não arrefeceu.270 Na literatura propriamente dita, a censura foi mais atuante a partir de 1975, contradizendo a própria tendência de “abertura” do regime militar. Até porque o mercado editorial no Brasil conheceu uma grande expansão a partir da segunda metade dos anos 1970. No total, cerca de 200 obras literárias foram proibidas.271
Paralelamente a esses procedimentos de vigilância e silenciamento das vozes da oposição cultural e política, o regime militar desenvolveu um conjunto de políticas de incentivo à produção cultural, chegando, em algumas áreas, a apoiar financeiramente a produção e a distribuição das obras, como no caso do cinema. Essa tendência se incrementou a partir da segunda metade dos anos 1970, mas já se esboçava, timidamente, no final da década anterior. Algumas agências oficiais se destacaram nessa política de promoção e distribuição da cultura. A Embrafilme, surgida em 1969, e o Concine (Conselho Superior de Cinema), em 1975. A primeira, a princípio, tinha a função de ajudar na distribuição de filmes brasileiros e com o tempo passou a apoiar também a produção. Lembramos que a distribuição dos filmes (a chegada das cópias nas salas de cinema do Brasil e do mundo) era o grande problema do cinema brasileiro, desde os anos 1950. Com o mercado dominado por Hollywood e suas distribuidoras, muitos filmes com um bom potencial de público simplesmente não conseguiam competir com o cinema norte-americano porque sequer eram exibidos na maioria das salas de cinema ou promovidos de maneira eficaz. Quanto ao Concine, sua principal tarefa era normatizar e fiscalizar o mercado, criando leis de incentivo e obrigatoriedade de exibição de um percentual de filmes brasileiros. O mecenato oficial causou muita tensão no meio cinematográfico, sobretudo depois da adesão do grupo oriundo do Cinema Novo à política cultural do regime, informado pela defesa do “cinema brasileiro” e de um projeto de nação.272
Outra agência oficial que se destacou nos anos 1970 e realizou um importante trabalho de divulgação cultural foi o SNT (Serviço Nacional de Teatro). Com inúmeras campanhas de popularização (barateamento do ingresso) e apoio direto à produção, o SNT, paradoxalmente, contribuiu para divulgar uma das áreas mais perseguidas pela censura. E não se pense que apenas “peças oficiais” eram apoiadas. Muitas peças de conteúdo crítico e atores ligados à oposição tinham o apoio do SNT. O caso mais famoso foi Patética, alegoria sobre a morte do jornalista Vladimir Herzog nas dependências do II Exército em São Paulo. A peça foi premiada pelo SNT, mas a censura vetou a entrega do prêmio e a montagem. A própria nomeação de Orlando Miranda, empresário teatral que tinha o apoio de setores da classe artística, para a direção do SNT em 1975 representou uma complexa e longa negociação entre profissionais de teatro e o Governo Federal, a partir de 1973.273
A princípio, pode parecer estranha e irracional a política cultural do regime militar. Por um lado, censura e perseguição aos artistas e, por outro, apoio direto à produção cultural nacional. Nesse sentido, alguns pontos devem ser esclarecidos.
Em primeiro lugar, o apoio direto à cultura “nacional” cresceu à medida que a censura ficou mais branda (a partir de 1975), sugerindo, com isso, uma espécie de corolário da política de abertura “lenta, gradual e segura” do governo Geisel (1974-1979). Lembramos que esse governo tinha uma política de “distensão” em relação aos artistas e jornalistas, como forma de diminuir o isolamento junto à opinião pública de classe média das grandes cidades brasileiras, leitora de jornais e consumidora de produtos culturais. A derrota surpreendente do partido oficial, a Arena (Aliança Renovadora Nacional), nas eleições de 1974 havia deixado o governo perplexo com o comportamento do eleitorado das grandes cidades, e a aproximação com a imprensa e os artistas era um canal importante de comunicação entre Estado e sociedade.
Em segundo lugar, devemos ter em mente que alguns governos militares, como o do general Geisel, apesar de, em linhas gerais, aprofundar os elos econômicos com o capitalismo internacional, desenvolviam uma política nacionalista em vários setores. A cultura era um deles, pois era vista pelos militares como um meio de “integração nacional”, independentemente do conteúdo das obras. O fato de uma produção nacional, na música, no teatro, no cinema, conseguir formar um público representava a manutenção de um espaço importante perante a “invasão cultural estrangeira”, sobretudo norte-americana, cuja força econômica era avassaladora. Apesar de toda a perseguição, setores da esquerda nacionalista, ligada ao PCB, vislumbraram elementos positivos nesta política cultural nacionalista.
Em terceiro lugar, havia uma contradição entre os diversos órgãos e agências do governo. Enquanto os órgãos militares e de segurança mantinham uma lógica de controle, repressão e vigilância, muitos órgãos da cultura eram dirigidos por pessoas ligadas às artes e ao meio intelectual, sobretudo após 1975, como Roberto Farias (na Embrafilme) e Orlando Miranda (no SNT). Esses nomes eram elos entre o Estado e a classe artística, desempenhando um papel de mediadores das tensões entre um e outro. Além disso, o mecenato cultural era um importante dispositivo do governo para tentar “cooptar” opositores e mantê-los sob controle, mesmo permitindo certa liberdade de expressão em suas obras.
A tentativa de dotar de maior organicidade a política cultural do regime militar e sistematizar a aproximação com os artistas e intelectuais ficou clara no documento intitulado “Política nacional de cultura”, publicado pelo Ministério da Educação e Cultura (MEC), em 1975, e elaborado sob a coordenação de Afonso Arinos de Melo Franco, a pedido do ministro Ney Braga. Esse documento revela as várias faces, muitas vezes paradoxais, da relação do regime militar com a cultura. Por um lado, mantém o papel de vigilante do Estado, que deveria “zelar” pelo “bom gosto” na programação dos meios de comunicação e na produção artística, palavras que facilmente derivavam para a censura pura e simples. Por outro, enfatizava a necessidade de “proteger a cultura nacional” do “colonialismo” disseminado pela indústria cultural, que ameaçava descaracterizar o “homem brasileiro”. Curiosamente, essa mesma indústria cultural crescia a passos largos, favorecida pela política de desenvolvimento econômico e pela expansão do mercado realizada pelo próprio regime.
Além disso, o tom nacionalista e crítico em relação à cultura de massa acabou por agradar alguns setores da esquerda, que, apesar de inimigos ideológicos do regime, aplaudiram a preocupação do governo Geisel em relação a estes pontos. Sobretudo os artistas que não tinham espaço no mercado acabaram por vislumbrar uma possibilidade de o Estado contrabalançar a supremacia das empresas privadas nacionais e multinacionais na área cultural. Artistas conhecidos pela sua verve crítica ao poder chegaram a elogiar o governo militar. Os casos que mais geraram polêmica na opinião pública foram as declarações elogiosas a Geisel e Golbery do Couto e Silva (o estrategista da abertura) feitas por Glauber Rocha e Jards Macalé.
Ao lado da criação da Funarte, em 1975, uma fundação de incentivo à produção artística e à conservação do patrimônio cultural nacional (folclórico e histórico), a “Política nacional de cultura” foi o grande acontecimento da política cultural de 1975. Isso não significa que a censura implacável, a cargo do Departamento de Polícia Federal (DPF), tivesse acabado. Embora mais branda do que no final do governo Médici (1972 até o início de 1974), a censura oficial prévia se fez presente até 1979, quando foi praticamente extinta como parte da agenda de abertura do regime e de transição para o governo civil.
Um movimento cultural significativo na cultura brasileira, gestado fora das correntes consagradas nos anos 1960, foi protagonizado pelos chamados “independentes” ou “alternativos”. A rigor, o uso da expressão “movimento” era mais aplicável em relação aos músicos. Estes, no final da década de 1970, e sobretudo a partir de 1979, conseguiram ocupar a mídia e chamar a atenção da crítica musical com sua palavra de ordem “Contra todas as ditaduras: a ditadura política e a ditadura do mercado”. Mas, além do campo musical, podemos localizar, entre 1977 e 1985, o auge de uma significativa cultura independente e alternativa, que reprocessou o legado da contracultura do final dos anos 1960 e se manifestava não só nas artes, mas em posturas comportamentais diante da nova conjuntura social e cultural que o país atravessava, marcada por alguns elementos básicos: o clima de abertura política, a presença avassaladora de uma indústria cultural cada vez mais sofisticada e as novas perspectivas libertárias e antiautoritárias abertas pelo Partido dos Trabalhadores, partido de esquerda fundado em 1980, com grande poder de atração junto à juventude universitária.
O meio social universitário era a base da cultura alternativa e sofrera, nos anos 1970, uma grande expansão, incluindo cada vez mais jovens da classe média baixa, bastante influenciados pela indústria cultural. Essa nova juventude universitária era marcada por um conjunto de atitudes ambíguas e até contraditórias: recusa e, ao mesmo tempo, aceitação dos produtos e linguagens da cultura de massa; uma atitude política oscilando entre a vontade de participar e discutir os temas nacionais e certo descompromisso em nome da liberdade comportamental e existencial; o culto à individualidade e as relações privadas e afetivas em detrimento das imposições coletivistas (que até então marcavam a cultura de esquerda); o recurso ao humor e ao deboche como formas de crítica social; a perda de referenciais de mudança revolucionária da realidade social em nome de uma “revolução individual”, que muitas vezes caía num vago “autoconhecimento” psicologizante ou num esoterismo místico. Outra marca dessa geração era a busca por novos espaços e formas de participação política, como os movimentos de minoria, o movimento ecológico e os movimentos culturais.
O movimento independente e alternativo tinha inúmeras facetas, e é até arriscado propor uma interpretação histórica muito panorâmica. Mas, efetivamente, parece ter ocorrido uma convergência de características culturais e comportamentais que marcou uma geração de jovens do final dos anos 1970 e início dos anos 1980, que havia crescido sob a ditadura, sob o AI-5, e, mesmo possuindo o natural desejo de participação (até porque a ditadura ainda era uma realidade contundente), viam seus caminhos cerceados e limitados, seja por fatores políticos, seja por fatores econômicos. O movimento foi particularmente forte em São Paulo, onde até um bairro inteiro se notabilizou como o centro geográfico da vida “independente e alternativa”, a Vila Madalena. Ao lado do tradicional bairro do Bixiga, eram os centros da boêmia alternativa. A “Vila” concentrava a população estudantil de São Paulo, dada a sua proximidade com a Cidade Universitária e por causa dos seus (outrora) aluguéis baratos. Bares, escolas, livrarias, repúblicas estudantis e de artistas dividiam espaço com famílias de classe média e velhos moradores criando uma paisagem urbana acolhedora e aconchegante, numa época em que a cidade passava por mudanças profundas, com bairros inteiros sendo destruídos pela especulação imobiliária. Em outras capitais, como Rio de Janeiro, Belo Horizonte e Curitiba, os movimentos de música, teatro e poesia “alternativos” também tinham um espaço significativo da vida cultural e urbana.
Culturalmente falando, os “independentes” seguiam a tradição dos “malditos” e do “desbunde”, marcas da cultura jovem underground do início dos anos 1970. A abertura para o humor, as ousadias formais e recusa dos grandes esquemas de produção e distribuição do produto cultural foram incorporadas como heranças do início da década. Na música, por exemplo, os cantores e instrumentistas optavam por gravar discos à própria custa em pequenos estúdios e distribuí-los em lojas pequenas ou de “porta em porta”. Na poesia, essa atitude de despojamento e recusa viu-se traduzida pela “geração mimeógrafo”, que, sem dinheiro para imprimir seus livros em gráficas industriais, utilizava-se dessa engenhoca barata e caseira para rodar seus romances e poemas e distribuí-los pela cidade. Grupos de teatro amador ocupavam os espaços dos campi universitários, dos teatros decadentes dos centros urbanos ou realizavam happenings em bares e nas ruas. Em todas as áreas, algumas características eram comuns: a busca da linguagem despojada e espontânea; a recusa ao esquema comercial de gravadoras e editoras; uma postura política; o recurso ao deboche e à linguagem do kitsch (“mau gosto”); a tentativa de romper as fronteiras entre estilo de vida, autoconhecimento e experiência estética.
Na poesia, nomes como Paulo Leminski e Alice Ruiz (PR), Cacaso, Chacal e Ana Cristina César (RJ), entre outros, encarnaram o “jovem poeta dos anos 1970”. Com uma produção já destacada desde o início da década, sob a inspiração de Torquato Neto (companheiro dos tropicalistas em 1968) e de Wally Salomão (Me Segura que Eu Vou Dar Um Troço, 1972), a “poesia jovem” ganhou a mídia e as ruas na segunda metade da década. Os sinais de vitalidade e presença da poesia jovem brasileira274 eram muitos: dezenas de revistas literárias artesanais em praticamente todos os estados brasileiros, pequenas editoras caseiras, feiras poéticas e outros eventos, grupos especializados em happening e declamação (como o Nuvem Cigana, no Rio de Janeiro, e o Poetasia, em São Paulo). No início dos anos 1980, essa febre de poesia e literatura jovem e alternativa chegou às grandes editoras. Em São Paulo, a Brasiliense saiu na frente, organizando coleções de poesia e prosa (Cantadas Literárias) e traduzindo clássicos da literatura jovem, como os beatniks norte-americanos dos anos 1950 e 1960.
Na música, a febre “independente” e “alternativa” foi maior ainda. Desde as polêmicas participações do músico Arrigo Barnabé e a banda Sabor de Veneno no Festival Universitário da TV Cultura (1978) e no Festival de MPB da TV Tupi de São Paulo (1979), a música independente ganha destaque na mídia. Propondo uma linguagem poética e musical anticonvencional e mesclando música erudita de vanguarda, rock e MPB, a nova música (também conhecida como “vanguarda paulista”) parecia retomar as experiências mais radicais do Tropicalismo que a MPB mais aceita no mercado tinha deixado de lado. Arrigo era o mais destacado e cultuado artista do movimento, compondo e interpretando peças individuais e “óperas” pops (como o antológico long play Clara Crocodilo), sem tema melódico reconhecível (consideradas pela crítica beirando o atonalismo, sem eixo harmônico central), trabalhadas a partir de arranjos ousados e inovadores, com letras inspiradas em histórias em quadrinhos e programas de rádio. Numa outra perspectiva, esteticamente tão inovador quanto Arrigo Barnabé, desenvolvendo uma proposta de fusão entre palavra falada e melodia, o Grupo Rumo (Luis Tatit, Ná Ozetti e Hélio Ziskind) também marcou época, realizando um dos trabalhos mais originais da MPB, embora tenha permanecido pouco conhecido do grande público. Vindos de Mato Grosso, Tetê (Espíndola) e o Lírio Selvagem e Almir Sater traziam a contribuição da música pantaneira para o cenário da vanguarda paulista. Na virada da década, Itamar Assumpção, autor de letras criativas, colocadas em músicas que fundiam o samba, o pop e o reggae, seguiria uma carreira bastante aclamada pela crítica musical.
No Rio de Janeiro, a música independente aglutinou grupos e músicos individuais importantes. O pioneiro foi Antonio Adolfo, que produziu o primeiro LP “independente” da história, propriamente chamado Feito em Casa (1977); Luli e Lucina, dupla de cantoras, compositoras e instrumentistas; os grupos Antena Coletiva e A Barca do Sol, que revelaram os talentos da cantora Olívia Byngton e do violoncelista Jacques Morelembaum, e o grupo de maior sucesso do movimento independente, o Boca Livre (Zé Renato, Cláudio Nucci, Maurício Maestro, David Tygel), formado em 1978 e que explodiu em 1980 com um LP que vendeu mais de 80 mil cópias (feito notável para um álbum que não teve o apoio de uma grande gravadora e distribuído de “porta em porta”).
Mas a música “independente” não foi privilégio de Rio de Janeiro e São Paulo.275 Nomes importantes surgiram em Minas Gerais (com destaque para a cantora Titane, de Belo Horizonte, e artistas ligados ao vigoroso movimento cultural do Vale do Jequitinhonha), no Ceará (Marlui Miranda tornou-se referência na coleta e gravação de cantos indígenas), na Bahia (onde a música de carnaval sempre teve um vigor próprio e independente, antes de ser “descoberta” pelo Brasil), entre outros estados. Em Pernambuco e na Paraíba, o Movimento Armorial, criado em 1970 por Ariano Suassuna, atravessava a década mesclando o folclore musical com a música erudita, somando-se a inúmeras iniciativas culturais locais (no teatro, na poesia, no artesanato e na música popular, sobretudo) que marcavam a vida daqueles dois estados desde o início da década de 1960.
A primavera cultural brasileira não sucumbiu aos tempos invernais do AI-5. Involuntariamente, a censura, a repressão e o controle social e político acabaram por dar uma importância renovada à vida cultural, espaço no qual a expressão crítica, mesmo que alegórica ou metafórica, ainda era possível. Convivendo com o mercado, à sombra dele ou completamente inserida nas grandes estruturas de produção, a cultura brasileira de viés crítico e esquerdista foi uma espécie de “educação sentimental” dos jovens, sobretudo na direção de valores democráticos e libertários. Se não fez a revolução nem derrubou a ditadura com a força das canções, filmes e peças, alimentou a pequena utopia democrática que ganharia as ruas e daria o tom das lutas civis a partir de meados dos anos 1970.