I

Apresentação de Baltazar

Apresento-me: o meu nome é Baltazar Fortuna. Tenho quarenta e nove anos, mas não mereço. A idade que me calhava bem era trinta e três. Sim, trinta e três. Trinta meus e três das três mulheres com quem vivi. Na verdade, elas viveram mais do que eu. Elas, digamos, viveram contra mim.

As malditas mulheres sugaram-me o tempo, dei-lhes anos e elas devolveram-me enganos. Os amores meus, os amores que não chegaram nunca a ser meus, os amores delas que eu nunca conheci.

Me perdoem se misturo ideias e pensamentos, mas é que ando tomado por raivas antigas. A gente sempre quer viver agora e morrer mais tarde. Eu queria morrer só quando já não houvesse um resto de vida dentro de mim. Mas o que estou a ver é o contrário: quanto mais vou caminhando para velho, mais vida encontro dentro de mim. E isso, meus amigos, isso podia ser bom, mas não é: pois a vida que teima dentro de mim não a chego a sentir como minha… A culpa foram as mulheres, amores antigos… Por que foi que eu, alguma vez, me abandonei a essas fraquezas…? Amar, amar, amar… A carne é fraca, e o coração é feito de fraquezas. Coração é um nome masculino, mas no feminino: a coraçoa. Coração ou coraçoa, a verdade é que o órgão deu cabo de mim.

Porque vos digo uma coisa: não são os países que estão malgovernados. A existência humana toda ela está malgovernada. Devia haver uma repartição em que pudéssemos pedir uma segunda via da nossa vida. Reclamávamos e ganhávamos direito à emissão de uma segunda via. Era isso ou podermos ter asas e voar. Alguém já viu passarinho envelhecer? Se voássemos, haveríamos sempre de ser crianças. No céu, o tempo não passa, é uma nuvem. Era onde queria estar, numa nuvem. Às vezes, me apetece tanto ser uma nuvem.

Mas não há voo, nem nuvem, nem segunda vida, nem o raio que parta.

Falei tudo isto, todo atabalhoado, porque quero explicar a vocês por que estou aqui em Xigovia, neste lugar tão cheio de lembranças. E até me treme a voz quando, por fim, confesso a razão da minha presença: venho aqui para matar. É verdade, estou aqui para matar. Matar, sim. Matar. À vossa frente, irei matar. A palavra ainda me dá medo. Mas a gente, às vezes, tem mais medo das palavras do que dos atos. Nunca matei, nunca pisei bicho de sangue. Mas eu estou a envelhecer e vejo em cada novo dia uma hipótese de ser meu último. Antigamente, eu me portava bem, com medo de ir para o Inferno. Mas agora sei: não tenho de ter medo. Eu já estou a viver no Inferno. Mais Inferno do que isto não há.

Existem criminosos que se confessam depois do crime. Eu confesso antes. O motivo que me faz matar são as memórias. Os meus amigos dizem: recordar é viver. Pode ser verdade com eles, mas comigo é o contrário. São as lembranças que não me deixam viver. Por isso, eu as quero varrer, mas varrer tudo junto: a lembrança das pessoas e as próprias pessoas de quem me lembro.

É por isso que regresso a Xigovia, com intenção de cobras e lagartos. Venho cobrar umas contas, venho apagar uns amores que me pesam. Ou mais direto: venho matar, venho matar as mulheres que amei. Três mulheres. Três foi a conta que Deus fez. Pois é a conta que eu vou desfazer. As gajas não vão ficar por aí a rir enquanto não tenho ninguém com quem dividir a noite. E quando, por acaso de felicidade, me deito com uma gaja, em vez de dividir o corpo, eu multiplico é o escuro, cada noite uma insônia pegada.

Mulher é perigosa, desde Eva que circula em contramão. Felizmente, e dou graças ao Criador, a Mulher aprendeu a ter medo dela própria. Agora, o problema é que andam a ensinar a Mulher a deixar de ter medo. E é aí, meus amigos, é aí que vai ser o fim do mundo. Falo a sério. O meu velho pai sempre dizia que o mundo acabou mesmo antes do fim do mundo, mas ele, coitado, foi poupado desta desgraça de as mulheres andarem por aí a meter-se em tudo o que é assunto.

Não quero corrigir o mundo, mas, pelo menos, emendo a minha vida. Morro com a cabeça erguida; aliás, com tudo erguido. É por isso que venho dar cabo dessas três fulaninhas, uma por uma. As tipas vão pagar por todas as restantes mulheres deste mundo. Eram espertas, pois vão partilhar esperteza com as minhocas.