Primeiro Ato

Cena um

CENÁRIO: Adro do Palácio de Amenhotep III.

A fachada do Palácio é adornada com mastros exibindo tufos de flâmulas multicoloridas. A entrada fica ao centro e, sobre a entrada, encontra-se uma ampla varanda cerimonial com colunas e degraus descendo para um dos lados. Em geral é muito bem pintado com cores brilhantes. Há uma pequena entrada para os aposentos menores CE. A entrada principal vindo da rua fica à DB. Dois soldados fazem a guarda no pátio.

HORA: É meio-dia, e o pátio é banhado pelo sol fulgurante.

Um murmúrio é ouvido fora de cena à direita e aumenta à medida que a multidão se aproxima. Gritos e urros passam a ser ouvidos, além do som de conversas animadas. Há uma comoção do lado de fora, e dois ou três integrantes da MULTIDÃO são empurrados para o adro. Estão animados e falantes, esticando o pescoço para trás a fim de enxergar.

Mulher: Estão vindo para cá...

Homem: Quem?

Segunda Mulher: Os estrangeiros. Os sírios.

Primeira Mulher: Como são horrorosos!

Homem: Veja o cabelo deles... E os chapéus.

Mulher: São muito feios! Como são nojentos os estrangeiros! Parecem tão sujos.

Homem: Bom, como se diz, o mundo é feito de todo tipo de gente.

Segundo Homem: O que foi? O que está acontecendo?

Segunda Mulher: (ansiosa) Estão trazendo a deusa Ishtar para curar a doença de nosso rei.

Primeiro Homem: Ishtar de Nineveh é muito poderosa.

Velha: Já ouvi falar de acontecerem milagres.

Primeira Mulher: Sabe-se lá, a passagem dela pode me trazer sorte. Posso engravidar de um menino.

Multidão: (lá de fora) Ishtar, Ishtar. Ishtar de Nineveh.

Guardas: Para fora, vocês.

(Eles saem do pátio. O Sumo Sacerdote de Amon, um homem alto e imponente de grande dignidade surge na entrada central. Tem a cabeça raspada e veste um manto de linho. Com ele está Horemheb, um jovem oficial.)

Sumo Sacerdote: (erguendo a mão com autoridade) Paz. Que tumulto é este?

Soldado da Guarda: É a comitiva de Mitanni, Vossa Santidade.

Sumo Sacerdote: Deixe que entrem.

(Um Enviado entra seguido por quatro outros carregando o santuário da deusa.)

Enviado: Saudações a Vossa Santidade e a seu senhor, Sua Majestade Real do Egito, de Dushratta, Rei de Mitanni. Meu amo, Dushratta, está com dor no coração por saber da condição de seu querido irmão e genro, o Rei do Egito, filho de Rá, rei e imperador. Ele envia, portanto, a estátua de Ishtar, para que ela, a deusa dos milagres, possa exorcizar o espírito malévolo que está causando a enfermidade do rei, como ela já fez outras vezes.

Sumo Sacerdote: Que a paz de Amon esteja com Vossa Senhoria. Entre e será levado à presença da Grande Rainha, a esposa real.

Enviado: Muito obrigado.

Sumo Sacerdote: (para o Soldado da Guarda) Leve os nobres servos de Dushratta onde há comida e bebida à espera deles. (A Missão sai pela porta pequena à E.)

(para o Segundo Soldado) Vá participar à Grande Rainha a notícia da chegada de Ishtar.

(Todos saem, exceto o Sumo Sacerdote e Horemheb, que espera respeitosamente por suas ordens. Ele se comporta como um soldado e é definitivamente um honrado cavalheiro. É simples e direto.)

Horemheb: Pois não, Santidade?

Sumo Sacerdote: Qual é sua opinião sobre os sírios, Horemheb?

Horemheb: São cavaleiros de primeira. Montam tão bem que parecem uma extensão do cavalo. Alguns também são bons atletas.

Sumo Sacerdote: Sim, uns camaradas selvagens, mas nada antipáticos.

Horemheb: (condescendente) É evidente que são uns bárbaros completos. (Faz-se silêncio. O Sumo Sacerdote está perdido em pensamentos.) (Tímido.) É verdade, Santidade, que essa Ishtar de Nineveh já fora enviada antes para o Grande Rei?

Sumo Sacerdote: É verdade, filho.

Horemheb: E ela operou uma cura?

Sumo Sacerdote: (indulgente) Os bárbaros sírios pensam que sim.

Horemheb: Esses deuses e deusas estrangeiros me parecem um lote meio bronco.

Sumo Sacerdote: Nós que estamos embebidos da sabedoria de Amon sabemos que Ishtar de Nineveh é apenas outra manifestação de nossa própria deusa egípcia Hathor.

Horemheb: É mesmo? Receio que eu seja muito ignorante. Há tantas coisas que não sei.

Sumo Sacerdote: Não é necessário que saiba. O Egito precisa de diferentes dons de cada um de seus filhos. Dos sacerdotes, esta terra pede sabedoria e cultura. Dos soldados (põe a mão sobre o ombro do outro), um braço direito bem forte.

Horemheb: (melancólico) Meu braço anda pouco ocupado e não parece que vá se ocupar tão cedo! O Egito conquistou o mundo. Por todo o império se encontra paz.

Sumo Sacerdote: E isso não está bom para você, filho?

Horemheb: É que temos de pensar na carreira.

Sumo Sacerdote: Só pode haver paz onde há força. Lembre-se disso, filho. Temos um grande império, mas só o mantemos assim pela vigilância constante. Ao primeiro sinal de fraqueza, vamos nos incomodar com esses sírios turbulentos e outros da mesma laia.

Horemheb: São bons lutadores. Isso posso dizer deles.

Sumo Sacerdote: (com ar de aprovação) Faz bem, meu filho. Sábio é o conquistador que não desdenha o conquistado.

Horemheb: Uma luta justa sem sentimento de rancor. É a maior sorte que se pode ter em uma guerra, é o que digo. E nunca chute um homem que está por baixo.

Sumo Sacerdote: (com ar de aprovação) Foram esses sentimentos que engrandeceram o Egito. Nunca esqueça que governamos esses povos para o próprio bem deles. Sem nossa mão firme, destruiriam uns aos outros em uma centena de brigas tribais mesquinhas.

Horemheb: São irremediavelmente truculentos, claro. Até os príncipes que foram educados no Egito logo recaem em seus velhos hábitos nativos ao retornarem. Não acha, meu senhor, que algumas vezes... (Hesita.)

Sumo Sacerdote: Fale, meu filho.

Horemheb: Bem, acaba de me ocorrer, não acha que toda essa educação seja um equívoco? A gente às vezes se pergunta se tem alguma utilidade tentar civilizá-los. Poderiam ser – quem sabe – mais felizes sem isso?

Sumo Sacerdote: (sentencioso) É nosso objetivo aprimorar todos os súditos sob nossos cuidados. O grande império de Amenhotep III deve ser da cultura e do progresso.

Horemheb: Claro, Santidade, claro. Tem razão. (Pausa.) Sabe, não vejo por que nosso império não deveria se estender ainda mais, para além da terra dos Dois Rios.

Sumo Sacerdote: (suspirando) Você é jovem. Olha para o futuro com confiança.

Horemheb: Estou errado?

Sumo Sacerdote: Vejo nuvens chegando. O Grande Rei Amenhotep se aproxima da morte. Quando for para junto de Osíris, uma mulher vai reinar.

Horemheb: (respeitoso) A Grande Rainha.

Sumo Sacerdote: A Rainha Tyi é uma Grande Rainha. É consorte do Deus, Divina Consorte de Amon. (Pausa.) É a primeira rainha que não teve nascimento real.

Horemheb: Verdade.

Sumo Sacerdote: Yuan, pai dela, era um nobre sábio e visionário. Tinha grande poder neste território. Um homem menos ambicioso poderia ter ficado satisfeito em ver sua filha casada com o faraó, mas a filha de Yuan não seria apenas uma esposa. Foi proclamada Grande Rainha, Esposa Real. Foi associada ao rei nos documentos públicos. Isso nunca ninguém fizera antes.

Horemheb: (remói aquilo) É verdade. Essas inovações são bem perigosas... Não sei se gosto delas.

Sumo Sacerdote: É mais fácil derrubar do que construir. Romper com uma tradição não é inteligente.

Horemheb: (pensativo) As mulheres... nunca se sabe o que se passa com as mulheres.

Sumo Sacerdote: Elas podem causar grandes estragos.

Horemheb: Ainda assim, Santidade, a rainha vai governar junto com seu filho, o príncipe.

Sumo Sacerdote: O jovem príncipe é adoentado. Sonha muito e tem visões. É amado por Rá Harakte, que é o senhor das visões. Temo que o príncipe vá sonhar e não governar. O poder sempre ficará nas mãos de sua mãe. Já é ela quem vem governando o Egito nos últimos seis anos.

Horemheb: Quando Sua Alteza Real tornar-se um homem...

Sumo Sacerdote: (aborrecido) Não sei... ele é tão esquisito às vezes nos seus modos. Ele me olha... a mim, Meriptah, o Sumo Sacerdote de Amon, como se, como se eu não estivesse ali. Ri, às vezes, sem motivo, como se visse graça em algo que ninguém mais percebeu. Pode ser que sua mente esteja afetada. (Em dúvida.) Filho, essas questões de que falo são muito sigilosas. Precisam ser guardadas por uma boca bem fechada.

Horemheb: Vossa Santidade pode confiar em mim.

Sumo Sacerdote: Nisso eu acredito. Você é jovem e ainda desconhecido, mas se for fiel a Amon, pode ir longe. Acredito na juventude. (Sorri simpático para Horemheb.) Amon precisa de sangue jovem, precisa de soldados além de seus sacerdotes, e já me disseram que você tem todas as características de um excelente soldado.

Horemheb: (ruborizando de felicidade) É muita gentileza sua, meu senhor. Fique tranquilo, minha lealdade à coroa e a Amon não vai titubear. Quando o Grande Rei for para junto de Osíris, vou lutar por Sua Alteza Real, o príncipe, com o mesmo entusiasmo.

Sumo Sacerdote: Falei essas coisas por acreditar que teremos dias problemáticos adiante. Quando Tyi governar...

Horemheb: (rapidamente) O império ficará inquieto, vai buscar sinais de fraqueza em nós, mas se não encontrar nenhum, Santidade?

Sumo Sacerdote: Fala como um verdadeiro soldado deve falar.

Horemheb: O que temos, seguramos. Não vai haver nenhuma fraqueza.

(Um Arauto aparece na porta.)

Arauto: A Grande Rainha, Divina Consorte de Amon, Esposa Real do Grande Rei, saúda os mensageiros do Rei de Mitanni.

(As palavras têm seu efeito. A procissão da Missão Representativa entra pela E.

O Sumo Sacerdote sai pela porta central.

Horemheb vai à boca de cena e observa os eventos com interesse. A Missão Representativa para e aguarda. Por fim, com a devida cerimônia, a Rainha Tyi surge na varanda. Subordinados ricamente vestidos estão com ela. Tyi é uma mulher de meia-idade de semblante gracioso e marcante. Está vestida de forma magnífica e usa uma peruca com decoração elaborada. Todos se prostram diante dela. O Sumo Sacerdote, Meriptah, para de um lado, Akhenaton do outro. Ele é um menino de aparência frágil com olhos inteligentes. Em contraste à mãe, suas vestimentas são simples. Tem um pássaro pousado no pulso ao qual ele dá mais atenção do que à cena formal do entorno.)

Rainha Tyi: Saudações aos enviados de Dushratta, nosso irmão de Mitanni. Aproximem-se. Meu filho e eu lhes damos as boas-vindas.

Enviado: (prostrando-se) Saudações à Grande Rainha, Esposa Real, Divina Consorte do Deus Amon. Assim diz Dushratta, Rei de Mitanni, destruidor de leões. Permita que Ishtar, a Grande Deusa, mais uma vez exorcize o espírito maléfico que causa a doença de seu irmão, o Grande Rei do Egito.

Rainha Tyi: O Grande Rei aguarda a chegada de Ishtar. Que o relicário da deusa seja levado à presença de Sua Majestade.

Sumo Sacerdote: (erguendo a mão) Em nome de Amon, seja bem-vinda a deusa das maravilhas.

(A Missão Representativa passa devagar pelo grande portal. A Rainha e o Sumo Sacerdote retornam ao palácio. Akhenaton desce os degraus até o pátio. Horemheb observa a Missão da boca de cena. Está interessado nos estrangeiros. Todos saem exceto Horemheb, Akhenaton e os Soldados da guarda. Akhenaton repara em Horemheb, o examina e, quando a procissão termina de sair, vai até ele.)

Akhenaton: Quem é você?

Horemheb: (dando meia-volta e batendo continência) Vossa Alteza!

Akhenaton: Quem é você?

Horemheb: Meu nome é Horemheb, Alteza. Cheguei com o Sumo Sacerdote de Amon.

Akhenaton: Você é sacerdote?

Horemheb: Não, sou um soldado.

Akhenaton: (com ironia) Claro. Se não é um sacerdote, tem de ser um soldado.

Horemheb: (perplexo) Alteza?

Akhenaton: Estudei nossos últimos relatórios do censo. Existem apenas quatro divisões de classes. Sacerdotes, soldados, servos reais e, claro, os artesãos. Todas as outras classes sociais foram abolidas.

Horemheb: Existiam outras classes então?

Akhenaton: Não é um estudante de história. (Sua voz se altera.) Por que seria? É forte. (Toca nele com um dedo, percorrendo a musculatura do ombro.) Seu corpo é um prazer para você. Mas eu... eu não sou forte. Então leio e reflito sobre o passado. Li sobre o tempo em que o Egito era livre, feliz e glorioso.

Horemheb: (assombrado) Na era das trevas? É verdade, as grandes pirâmides foram construídas naquela época, mas veja todas as invenções e descobertas desde então. Até os cavalos e carruagens nos eram desconhecidos. Mas agora somos avançados. O Egito lidera o mundo no progresso, no esclarecimento. Temos um império...

Akhenaton: No qual o sol jamais se põe! É o ditado do momento, não é? De modo geral, entre todas nossas descobertas e aquisições, prefiro o cavalo.

Horemheb: O cavalo é um animal nobre.

Akhenaton: É mais que nobre, é belo. (Sua expressão se transforma. Então, com ironia) Já parou para pensar sobre a beleza?

Horemheb: (assustado) A beleza?

Akhenaton: Vejo que nunca pensou!

Horemheb: Sou apenas um mero soldado, não sei nada de arte. Mas sei que os templos construídos para Amon são muito bonitos.

Akhenaton: (com intensa amargura) Para Amon!

Horemheb: (com assombro) São a maravilha do universo!

Akhenaton: Construídos por escravos estrangeiros, homens exilados longe de suas terras.

Horemheb: (não percebendo a implicação) Trabalham de maneira muito inteligente, creio.

Akhenaton: (examinando o outro) É dedicado a servir Amon? É um protegido do Sumo Sacerdote. De que família você vem?

Horemheb: Da casa monárquica de Alabastronópolis.

Akhenaton: Uma de nossas melhores famílias! Deveria ter adivinhado!

Horemheb: Meriptah, o Sumo Sacerdote de Amon, é bom para mim. Ele se digna a se interessar por minha carreira.

Akhenaton: Sim, de fato. Amon sabe como recompensar aqueles que o servem! Um soldado não poderia ter uma aliança mais benéfica. Não foi um certo nobre nos tempos antigos que estava no templo no dia do festival do Deus, quando os sacerdotes carregavam a imagem de Amon entre gritos do populacho? O Deus parou diante do jovem nobre, levantou-o e o levou até a posição do rei no templo, indicando assim que o escolhia como faraó.

Horemheb: (reverente) Esse foi o grande Tutmósis III.

Akhenaton: Sim. Então, vê, é inteligente servir Amon. Quem sabe onde você pode ir parar?

Horemheb: Sou um soldado, não um sacerdote.

Akhenaton: (meditativo) Quatro divisões de classes. Sacerdotes, soldados, servos reais... e, quase como um adendo, os artesãos. Mas acima de todos: os sacerdotes! Sabe que de todas as pessoas que foram enterradas em Abidos ano passado, um quarto delas, um quarto, repare bem, eram sacerdotes. Muito em breve todo o Egito será composto de sacerdotes. Então não vai restar ninguém para comprar deles as indulgências e os amuletos de escaravelho, e a renda dos templos vai cair.

Horemheb: Não seria possível termos apenas sacerdotes. É necessário que sempre haja servos.

Akhenaton: Verdade. A terra deve ser arada, as vinhas plantadas, o mel colhido, e o gado levado para pastar... (Sua expressão se ilumina.) É um poeta?

Horemheb: Oh, não, Alteza.

Akhenaton: Eu gostaria de compor coisas em palavras... belas palavras. Eis um poema que fiz para Rá Harakte, o Deus Sol.

Todo o gado descansa na relva

Todas as árvores e plantas florescem

Os pássaros se alvoroçam nos brejos

Suas asas erguidas em adoração a Vós

Todas as ovelhas dançam sobre as patas

Todos os seres alados revoam

Vivem quando Vós brilhais sobre eles...

(Levanta a cabeça para o sol.) Como é lindo o sol, Horemheb. Dá a vida... (Abrupto.) Mas esqueci. Você prefere a destruição!

Horemheb: Meu senhor! Vossa Alteza! Destruo apenas os inimigos do Egito.

Akhenaton: (irônico) Esta é a música, não é mesmo, que fizeram para Tutmósis III? (Recita com selvageria.)

Eu vim te trazendo para aniquilar aqueles que estão no brejo

As terras dos Mitanni tremem de medo de ti

Fiz com que vissem tua majestade como um crocodilo

Senhor do temor na água inacessível

Vim te trazendo para destruir aqueles que estão nas ilhas

Aqueles que estão no meio do grande mar escutam teus bramidos

Fiz com que vissem tua majestade como um vingador

Erguendo-se pelas costas de sua vítima assassinada

Vim te trazer para destruir os líbios

As ilhas dos utentes pertencem ao poder de tua proeza

Eu fiz com que vissem tua majestade como um leão de olhos ferozes

Enquanto tu fazes deles cadáveres em seus vales.

(Repete lentamente.) Cadáveres em seus vales...

Horemheb: (bem seguro do que diz) Tutmósis III foi um Grande Rei, um conquistador grandioso e poderoso.

Akhenaton: (depois de olhar para ele um instante) Gosto de você Horemheb... (pausa) Adoro você. Tem um coração simples, sem maldade. Acredita no que ouviu desde pequeno. É como uma árvore. (Toca em seu braço.) Como é forte seu braço. (Olha afetuoso para Horemheb.) Como tem um porte firme. Sim, como uma árvore. E eu, sou soprado por qualquer vento do céu. (Selvagem.) Quem sou eu? O que sou eu? (Vê que Horemheb tem o olhar fixo nele.) Vejo, meu bom Horemheb, que pensa que sou louco!

Horemheb: (constrangido) Não, de fato, Alteza. Entendo que tem grandes pensamentos, complicados demais para minha compreensão.

Akhenaton: Você é muito modesto. Se o pensamento não for traduzido em ação, de que serve o pensamento? (Áspero.) O Sumo Sacerdote de Amon lhe falou sobre mim? O que disse?

Horemheb: Disse, Alteza, que és muito amado por Rá Harakte.

Akhenaton: (reflexivo) Um sonhador... Sim, é verdade. Sonho com o passado... Às vezes sonho com o futuro, mas o passado é mais seguro. Antes dos dias de Hyksos, Horemheb, o Egito era muito diferente. Havia gente que naquele tempo vivia!

Horemheb: (perplexo) Vivia?

Akhenaton: Foi o que eu disse. As pessoas tinham casas, jardins, caminhavam, conversavam e trocavam ideias umas com as outras.

Horemheb: (desdenhoso) Uma vida ociosa.

Akhenaton: Não tinham medo de serem ociosos. O lazer não os preenchia de desânimo. Tinham pensamentos nas cabeças e se davam ao trabalho de expressá-los.

Horemheb: Mas, Alteza, não se pode ficar eternamente pensando e falando. Deve haver ação.

Akhenaton: (de repente se fecha) Grande verdade! A gente deve matar os estrangeiros. Ou fazer escaravelhos nos templos para colocar no peito dos mortos para enganar Osíris. A venda deles aumenta a renda dos templos e agrada muito a Amon. (Amargurado.) Amon. Amon. Amon...

(Horemheb o observa com surpresa.)

Horemheb: Amon é bom para os pobres.

Akhenaton: Sim, sim, é um de seus títulos, “Vizir dos pobres que não aceitam as propinas dos culpados”. Uma ideia engraçada... e os pobres acreditam! Ha, ha, ha!

Horemheb: (grave) Meu senhor, não o compreendo.

Akhenaton: (aproximando-se) É verdade... você parece confuso.

Horemheb: Fala como se... como se...

Akhenaton: Prossiga.

Horemheb: Não.

Akhenaton: Você é sábio, talvez. Sempre é sábio ficar em silêncio... até chegar a hora. Falei demais para você.

Horemheb: Não, não.

Akhenaton: Sim, pois serve a Amon.

Horemheb: Não, eu sirvo ao Egito.

Akhenaton: Meu pai é o Egito.

Horemheb: Sim, Alteza.

Akhenaton: E logo, quem sabe, eu serei o Egito!

Horemheb: Sim, Alteza.

Akhenaton: Vai servir a mim então, Horemheb?

Horemheb: Vou servi-lo.

Akhenaton: Será sincero?

Horemheb: Juro. (Com profunda emoção.) Colocarei minha vida ao seu dispor, Alteza.

Akhenaton: Mas não é isso que eu quero. Não é minha vontade que meus servos morram por mim. Preferiria que vivessem!

Horemheb: Que assim seja feito. Mas um homem deve estar sempre preparado para morrer!

Akhenaton: Pelo quê?

Horemheb: Por seu país, por seu rei, pelos deuses...

Akhenaton: (num frenesi) A morte, a morte, sempre a morte... Não quero que homens morram por mim!

Horemheb: No entanto, se houver a necessidade, estarão dispostos a isso.

Akhenaton: Que necessidade?

Horemheb: A necessidade de seu grandioso legado, Alteza.

Akhenaton: (irônico) O império?

Horemheb: Sim.

Akhenaton: Tutmósis III, Tutmósis IV, Amenhotep III. Esses são os seus heróis. E o que foram todos eles?

Horemheb: (reverente) Foram grandes conquistadores.

Akhenaton: (num frenesi) Conquistadores, conquistadores, sabe o que essa palavra significa para mim? (Devagar, como se diante de uma visão.) Ouço os gemidos de homens morrendo. Vejo uma pilha de cadáveres putrefatos. Vejo mulheres que choram e soluçam por seus maridos mortos... e crianças órfãs de pai. E os murmúrios dos moribundos, o fedor dos cadáveres em putrefação, os xingamentos das mulheres e soluços das crianças subindo aos céus chegam a Rá dizendo: “Por que, por que fazem essas coisas?”. E a resposta que vem, escute, Horemheb, escute, a resposta é muito simples. É para que um rei possa gravar uma placa comemorativa com a lista de suas conquistas!

Horemheb: (em voz baixa e muito sério) Mas, Alteza, governamos bem e com sabedoria o território conquistado. Não oprimimos o povo ou forçamos as pessoas a se sujeitaram a nós. É na verdade melhor para elas.

Akhenaton: Que crença mais confortável!

Horemheb: Essa gente não tem condições de se autogovernar.

Akhenaton: Vejo que você terá uma carreira de muito sucesso!

Horemheb: (humilde) Não compreende a guerra, Alteza. Jamais matei um homem por raiva.

Akhenaton: Não... apenas a serviço de seu país. Isso é o pior.

Horemheb: Mas a gente não vê dessa forma. É guerra.

Akhenaton: Está relacionado a Amenhotep II, que, quando retornou depois da conquista da Síria e se aproximava de Tebas, tinha consigo os sete reis de Takshi que ele pendurou de cabeça para baixo na proa da barcaça real. Ele pessoalmente os sacrificou na presença de Amon, pendurando seis deles nas muralhas da cidade, reservando o corpo do sétimo rei, que ele enviou para a Núbia e pendurou nas muralhas de Napatha como um aviso. O que acha disso?

Horemheb: É provável que tenha tido um efeito salutar.

Akhenaton: Pensar nessa crueldade sem sentido não lhe enche de horror?

Horemheb: Não compreende as necessidades da guerra.

Akhenaton: É você que eu não compreendo! Seu olhar é doce. É um sujeito simples e despretensioso. Não tem um pingo de crueldade. E, no entanto (cismado), tenho medo de você.

Horemheb: Medo de mim? Meu senhor!

Akhenaton: Estamos tão distantes um do outro, você e eu.

Horemheb: Sois um grande príncipe, e sou apenas um dentre mil soldados.

Akhenaton: Não foi isso que eu quis dizer. Falamos idiomas diferentes, nós dois. E ainda assim, ainda assim, existe uma ligação entre nós.

Horemheb: É muito afável, Alteza.

Akhenaton: Entre sua força e minha fraqueza, entre sua mente simples e direta e minhas visões conflitantes. Aceitar, assim como você faz... quisera eu fazê-lo. (Pausa.) Vai ser meu amigo, Horemheb.

Horemheb: Meu senhor, estou completamente ao seu dispor.

Akhenaton: Quando eu receber meu reino, vai me ajudar a governar.

Horemheb: (com entusiasmo) Vou torná-lo o maior rei de toda a história.

Akhenaton: E o que posso fazer que seja ainda maior do que aqueles que me antecederam?

Horemheb: Obter um império ainda mais vasto, um império que se estenda além da terra dos Dois Rios.

Akhenaton: Mais terras, mais povos como súditos, maiores palácios, templos ainda mais grandiosos para Amon, milhares de lindas mulheres quando meu pai já tinha centenas? Não, Horemheb, ouça o meu sonho. Um reino onde os homens vivem em paz e irmandade, países estrangeiros são devolvidos para que sejam governados por sua própria gente, menos sacerdotes, menos sacrifícios. Em vez de várias mulheres, uma mulher. Uma mulher tão linda que milhares de anos depois os homens ainda falarão de sua beleza... (Uma pausa. Bem baixinho.) Esse é meu sonho...

(Ouve-se uma comoção, vozes se erguem em lamúrias. O Sumo Sacerdote de Amon aparece na porta central.)

Sumo Sacerdote: Alteza!

Akhenaton: Meu senhor.

Sumo Sacerdote: O Grande Rei, Filho de Rá, amado por Amon, partiu para junto de Osíris.

Akhenaton: (atordoado) Meu pai morreu? (Ele anda devagar, como se devaneasse, na direção do Sumo Sacerdote. Antes de alcançá-lo, para e vira devagar, erguendo a cabeça. O sol brilha sobre ele. Devagar, levanta as mãos acima da cabeça como se buscasse os raios solares.) Quem é meu pai? Meu pai é Rá, vós sois meu pai, a quem chamamos de Aton. Oh, sol, quando levantais no horizonte a escuridão é banida. Quando enviais teus raios, as terras despertam. Embora estejais tão distante, vossos raios estão na terra, embora estejais no alto, vossas pegadas formam cada dia. Vossa alvorada é bela no horizonte do paraíso. Ó Aton vivo, princípio da vida.


CAI O PANO