Outubro

1

A ilha esvaziada

As gaivotas serão a única população indígena – havia anunciado o governo britânico.

E em 1966, cumpriu a palavra.

Todos os habitantes da ilha Diego García, a não ser as gaivotas, foram mandados ao desterro, a golpes de baioneta e a tiros.

E o governo britânico alugou a ilha esvaziada aos Estados Unidos, por meio século.

E esse paraíso de areias brancas, no meio do oceano Índico, se transformou em base militar, estação de satélites espiões, cárcere flutuante e câmara de tortura para os suspeitos de terrorismo, e plataforma de lançamento para a aniquilação dos países que merecem castigo.

Também conta com um campo de golfe.

2

Este mundo apaixonado pela morte

Hoje, Dia Internacional da Não Violência, pode ser útil recordar uma frase do general Dwight Eisenhower, que não era exatamente um militante pacifista. Em 1953, sendo presidente da nação que mais dinheiro gasta em armas, reconheceu:

Cada uma das armas fabricadas, cada navio de guerra que é posto para navegar, cada projétil que é disparado é um roubo aos famintos que não têm comida e aos despidos que não têm abrigo.

3

Para cachear o cacheado

Em 1905, o cabeleireiro alemão Karl Nessler inventou a permanente.

A experiência esteve a ponto de incinerar a cabeça da sua mulher, abnegada mártir da Ciência, até que finalmente Karl encontrou a fórmula perfeita para criar cachos e mantê-los cacheados, durante dois dias na realidade e durante algumas semanas na publicidade.

Então, ele pôs um nome francês, Charles, para outorgar fineza ao produto.

Com o passar do tempo, os cachos deixaram de ser um privilégio feminino.

Alguns homens se atreveram.

Nós, os calvos, nem pensar.

4

Dia dos Animais

Até algum tempo atrás, muitos europeus suspeitavam que os animais fossem demônios disfarçados.

As execuções dos bichos endemoniados, pela forca ou pelo fogo, eram espetáculos públicos tão exitosos como a queimação das bruxas amantes de Satã.

No dia 18 de abril de 1499, na abadia francesa de Josafat, perto de Chartres, um porco de três meses de idade foi levado a um processo criminal.

Como todos os porcos, ele não tinha alma nem razão, e havia nascido para ser comido. Mas em lugar de ser comido, comeu: foi acusado de ter almoçado um bebê.

A acusação não estava baseada em nenhuma evidência.

Na falta de provas, o porquinho passou a ser culpado quando o promotor, Jean Levoisier, formado em Direito, alcaide-mor do mosteiro de Saint Martin de Laon, revelou que a devoração tinha acontecido numa Sexta-Feira Santa.

Então, o juiz ditou a sentença. Pena capital.

5

A última viagem de Colombo

Em 1992, a República Dominicana terminou de erguer o farol mais descomunal do mundo, tão alto que suas luzes perturbavam o sono de Deus.

O farol foi erguido em homenagem a Cristóvão Colombo, o almirante que inaugurou o turismo europeu no mar do Caribe.

Nas vésperas da cerimônia, as cinzas de Colombo foram levadas da catedral de São Domingos até o mausoléu construído ao pé do farol.

Enquanto acontecia a mudança das cinzas, faleceu de morte súbita Emma Balaguer, que havia dirigido as obras, e despencou o palco onde o papa de Roma daria a bênção.

Alguns malpensantes confirmaram, assim, que Colombo dá azar.

6

As últimas viagens de Cortez

Em 1547, quando sentiu que a morte estava fazendo cócegas, Hernan Cortez mandou que o sepultassem no México, no convento de Coyoacán, que honraria sua memória. Quando morreu, o convento ainda era um vir a ser, e o defunto precisou ser alojado em diversos endereços de Sevilha.

Finalmente conseguiu lugar num navio que o levou para o México, onde encontrou residência, junto à sua mãe, na igreja de São Francisco de Texcoco. Dali passou a outra igreja, junto ao último de seus filhos, até que o vice-rei ordenou que se mudasse para o Hospital de Jesus e ficasse por lá, guardado em lugar secreto, a salvo dos patriotas mexicanos loucos de vontade de profaná-lo.

A chave da urna foi passando de mão em mão, de frei em frei, durante mais de um século e meio, até que, não faz muito tempo, os cientistas mortólogos confirmaram que aquela péssima dentadura e aqueles ossos marcados pela sífilis eram tudo o que sobrou do corpo do conquistador do México.

Da alma, ninguém sabe nada. Dizem que dizem que Cortez tinha encarregado essa tarefa a um almeiro de Usumacinta, um índio chamado Tomás, que tinha um almário onde guardava, em vidrinhos, as almas idas no último suspiro; mas isso jamais pôde ser confirmado.

7

As últimas viagens de Pizarro

Os cientistas que identificaram Hernan Cortez também confirmaram que Francisco Pizarro reside em Lima. É dele essa ossatura, crivada pelas estocadas e amassada pelos golpes, que atrai os turistas.

Pizarro, criador de porcos na Espanha e marquês na América, foi assassinado em 1541 por seus colegas conquistadores, quando heroicamente disputavam o butim do império dos incas.

Foi enterrado às escondidas, no pátio de fora da catedral.

Quatro anos mais tarde, o deixaram entrar. Encontrou lugar debaixo do altar-mor, até que se perdeu num terremoto.

E perdido andou, por muito tempo.

Em 1891, uma multidão de admiradores conseguiu contemplar sua múmia, numa urna de cristal; pouco depois, todos ficaram sabendo que aquela múmia impostora se fazia passar por Pizarro, mas não era.

Em 1977, os pedreiros que estavam reparando a cripta da catedral encontraram um crânio, que certa vez tinha sido atribuído ao herói. Sete anos mais tarde, um corpo acudiu ao encontro do crânio, e Pizarro, finalmente inteiro, foi levado com grande pompa para uma capela ardente na catedral.

E a partir de então é exibido em Lima, a cidade fundada por ele.

8

Os três

Em 1967, mil e setecentos soldados encurralaram Che Guevara e seus pouquinhos guerrilheiros na Bolívia, na Quebrada de Yuro. Che, prisioneiro, foi assassinado no dia seguinte.

Em 1919, Emiliano Zapata tinha sido crivado de balas no México.

Em 1934, mataram Augusto César Sandino na Nicarágua.

Os três tinham a mesma idade, estavam a ponto de fazer quarenta anos.

Os três caíram a tiros, a traição, em emboscadas.

Os três, latino-americanos do século XX, compartilharam o mapa e o tempo.

E os três foram castigados por se negarem a repetir a história.

9

Eu vi ele e vi que ele me via

Em 1967, quando Che Guevara jazia na escola de La Higuera, assassinado por ordem dos generais bolivianos e por seus mandantes distantes, uma mulher contou o que havia visto. Ela era uma a mais, camponesa entre muitos camponeses que entraram na escola e caminharam, lentamente, ao redor do morto:

A gente passava por ali e ele olhava para a gente – disse. – A gente passava e ele olhava. Ele sempre olhava para a gente. Era muito simpático.

10

O Padrinho

Pelo que me contaram meus amigos sicilianos, dom Genco Russo, capo dei cappi da máfia, chegou ao encontro com um estudado atraso de duas horas e meia.

Em Palermo, no hotel Sole, Frank Sinatra esperava por ele.

E naquele meio-dia de 1963, o ídolo de Hollywood prestou reverência ao monarca da Sicília: Frank Sinatra se ajoelhou diante de dom Genco e beijou sua mão direita.

No mundo inteiro, Sinatra era The Voice, A Voz, mas, na terra de seus antepassados, mais importante que a voz era o silêncio.

O alho, símbolo do silêncio, é um dos quatro elementos sagrados na missa da mesa mafiosa: os outros são o pão, símbolo da união; o sal, emblema da coragem, e o vinho, que é o sangue.

11

A dama que atravessou três séculos

Alice nasceu escrava, em 1686, e escrava viveu cento e dezesseis anos.

Quando morreu, em 1802, morreu com ela uma parte da memória dos africanos na América. Alice não sabia ler nem escrever, mas estava toda cheia de vozes que contavam e cantavam lendas vindas de longe e também histórias vividas de perto. Algumas dessas histórias vinham dos escravos que ela ajudava a fugir.

Aos noventa anos, ficou cega.

Aos cento e dois, recuperou a visão:

Foi Deus – disse. – Ele não podia me falhar.

Era chamada de Alice do Ferry Dunks. Ao serviço de seu dono, trabalhava no ferry que levava e trazia passageiros pelo rio Delaware.

Quando os passageiros, sempre brancos, debochavam daquela velha velhíssima, ela os deixava abandonados na outra margem do rio. Eles a chamavam aos gritos, mas não tinha jeito. Era surda a que havia sido cega.

12

O Descobrimento

Em 1492, os nativos descobriram que eram índios,

descobriram que viviam na América,

descobriram que estavam nus,

descobriram que deviam obediência a um rei e a uma rainha de outro mundo e a um deus de outro céu,

e que esse deus havia inventado a culpa e o vestido

e que havia mandado que fosse queimado vivo quem adorasse o Sol e a Lua e a terra e a chuva que molha essa terra.

13

Os robôs alados

Boa notícia. No dia de hoje do ano de 2011 os chefes militares do mundo informaram que os drones poderão continuar matando gente.

Esses aviões sem piloto, tripulados por ninguém, dirigidos por controle remoto, gozam de boa saúde: o vírus que os atacou não foi nada além de moléstia passageira.

Até agora, os drones jogaram suas chuvas de bombas sobre vítimas indefesas no Afeganistão, no Iraque, no Paquistão, na Líbia, no Iêmen e na Palestina, e outros países esperam pelos seus serviços.

Na era das ciberguerras, os drones são os guerreiros perfeitos. Matam sem remorso, obedecem sem chiar e jamais delatam seus chefes.

14

Uma derrota da Civilização

No ano de 2002, fecharam as portas os oito restaurantes McDonald’s na Bolívia.

Apenas cinco anos durou essa missão civilizadora.

Ninguém a proibiu. Aconteceu simplesmente que os bolivianos lhes deram as costas, ou melhor, se negaram a dar-lhes a boca. Os ingratos se negaram a reconhecer o gesto da empresa mais exitosa do planeta, que desinteressadamente honrava o país com sua presença.

O amor ao atraso impediu que a Bolívia se atualizasse com a comida de plástico e os vertiginosos ritmos da vida moderna.

As empanadas caseiras derrotaram o progresso. Os bolivianos continuam comendo sem pressa, em lentas cerimônias, teimosamente apegados aos antigos sabores nascidos no fogão familiar.

Foi-se embora, para nunca mais, a empresa que no mundo inteiro se dedica a dar felicidade para as crianças, a mandar embora os trabalhadores que se sindicalizam e a multiplicar os gordos.

15

Sem milho não há país

No ano de 2009, o governo do México autorizou o plantio, experimental e limitado, de milho transgênico.

Um clamor de protesto se ergueu dos campos. Ninguém ignorava que os ventos se ocupariam de propagar a invasão, até que o milho transgênico se transformasse em fatalidade do destino.

Alimentadas pelo milho, tinham crescido muitas das primeiras aldeias na América: o milho era gente, gente era milho, e o milho tinha, como as pessoas, todas as cores e sabores.

Poderão os filhos do milho, os que fazem o milho que os fez, resistir ao ataque da indústria química, que impõe no mundo sua venenosa ditadura? Ou terminaremos aceitando, em toda a América, esta mercadoria que diz que se chama milho mas tem uma cor só e não tem sabor nem memória?

16

Ele acreditou que a justiça era justa

O jurista inglês John Cooke defendeu aqueles de quem ninguém gostava e atacou aqueles com quem ninguém podia.

E graças a ele, pela primeira vez na história, a lei humana humilhou a divina monarquia: em 1649, o promotor Cooke acusou o rei Carlos I, e suas palavras certeiras convenceram o júri. O rei foi condenado, por delitos de tirania, e o verdugo cortou sua cabeça.

Alguns anos depois, o promotor pagou a conta. Foi acusado de regicídio, e acabou trancado na Torre de Londres. Ele se defendeu dizendo:

Eu apliquei a lei.

Esse erro lhe custou a vida. Qualquer jurista deve saber que a lei vive para cima e cospe para baixo.

No dia de hoje de 1660, Cooke foi enforcado e esquartejado na mesma sala onde havia desafiado o poder.

17

Guerras caladas

Hoje é o Dia contra a Pobreza.

A pobreza não explode como as bombas, nem ecoa como os tiros.

Dos pobres, sabemos tudo: em que não trabalham, o que não comem, quanto não pesam, quanto não medem, o que não têm, o que não pensam, em quem não votam, em que não creem.

Só nos falta saber por que os pobres são pobres.

Será por que sua nudez nos veste e sua fome nos dá de comer?

18

As mulheres são pessoas

No dia de hoje do ano de 1929, a lei reconheceu, pela primeira vez, que as mulheres do Canadá são pessoas.

Até esse dia, elas achavam que eram, mas a lei achava que não.

A definição legal de pessoa não inclui as mulheres, havia sentenciado a Suprema Corte de Justiça.

Emily Murphy, Nellie McClung, Irene Parlby, Henrietta Edwards e Louise McKinney conspiravam enquanto tomavam chá.

Elas derrotaram a Suprema Corte.

19

Invisíveis

Há dois mil e quinhentos anos, no alvorecer de um dia como hoje, Sócrates passeava com Glauco, irmão de Platão, nos arredores do Pireu.

Glauco então contou a história de um pastor do reino da Lídia, que certa vez encontrou um anel, colocou-o no dedo e num instante percebeu que ninguém o via. Aquele anel mágico o tornava invisível aos olhos dos outros.

Sócrates e Glauco filosofaram longamente sobre as derivações éticas dessa história. Mas nenhum dos dois se perguntou por que as mulheres e os escravos eram invisíveis na Grécia, embora não usassem anéis mágicos.

20

O profeta Yale

Em 1843, Linus Yale patenteou a fechadura mais invulnerável de todas, inspirada num invento egípcio que tinha quatro mil anos.

A partir daquele momento, Yale garantiu as portas e portões de todos os países, e foi o melhor guardião do direito à propriedade.

Em nossos dias, as cidades, enfermas de pânico, são fechaduras gigantescas.

As chaves estão em poucas mãos.

21

Explodi-vos uns aos outros

Lá pelo ano de 630 e pouco, um célebre médico e alquimista chinês chamado Sun Simiao misturou nitrato de potássio, salitre, enxofre, carvão de lenha, mel e arsênico. Estava procurando o elixir da vida eterna, mas encontrou um instrumento de morte.

Em 1867, o químico sueco Alfred Nobel patenteou a dinamite em seu país.

Em 1876, patenteou a gelatina explosiva.

Em 1895, criou o Prêmio Nobel da Paz. Como seu nome indica, o prêmio nasceu destinado a recompensar os militantes pacifistas. Foi financiado por uma fortuna colhida nos campos de batalha.

22

Dia da Medicina Natural

Os índios navajos curam cantando e pintando.

Essas artes medicinais, sagrado alento contra o desalento, acompanham o trabalho das ervas, da água e dos deuses.

Durante nove noites, noite após noite, o enfermo escuta o canto que espanta as sombras más que se meteram em seu corpo, enquanto os dedos do pintor pintam na areia flechas, sóis, luas, aves, arco-íris, raios, serpentes e tudo o que ajuda a curar.

Concluídas as cerimônias de cura, o paciente volta para casa, os cantos se desvanecem e a areia pintada voa.

23

Cantar

Nas noites cálidas do sul do mundo, tempo de primavera, os grilos chamam as grilas.

Chamam esfregando suas quatro asas.

Essas asas não sabem voar. Mas sabem cantar.

24

Ver

Os cientistas não o levavam a sério. Antonie van Leeuwenhoek não falava latim, não tinha estudos, e seus descobrimentos eram frutos da casualidade.

Antonie começou ensaiando combinações de lupas, para ver melhor a trama dos tecidos que vendia, e de lupa em lupa inventou um microscópio de quinhentas lentes capaz de ver, numa gota d’água, uma multidão de bichinhos que corriam a toda velocidade.

Esse mercador de tecidos descobriu, entre outras trivialidades, os glóbulos vermelhos, as bactérias, os espermatozoides, as leveduras, o ciclo vital das formigas, a vida sexual das pulgas e a anatomia dos aguilhões das abelhas.

Na mesma cidade, em Delft, haviam nascido, no mesmo mês do ano de 1632, Antonie e Vermeer, o artista pintor. E na mesma cidade se dedicaram a ver o invisível. Vermeer perseguia as luzes que nas sombras se escondiam, e Antonie espiava os segredos de nossos mais diminutos parentes no reino deste mundo.

25

Homem teimoso

Pouco valia, na Colômbia, a vida de um homem. A de um camponês, quase nada. Nada valia a vida de um índio; e a vida de um índio rebelde, menos que nada.

E no entanto, inexplicavelmente, Quintín Lame morreu de velho, em 1967.

Havia nascido nesse dia de 1880, e tinha vivido seus muitos anos preso ou lutando.

Em Tolima, um dos cenários de seus passos errantes, foi encarcerado cento e oito vezes.

Nas fotos policiais aparecia sempre com os olhos roxos, pelos cumprimentos de entrada, e a cabeça rapada, para tirar suas forças.

Os donos da terra tremiam ao escutar seu nome, e estava na cara que também a morte tinha medo dele. Homem de falar manso e gestos delicados, Quintín percorria a Colômbia sublevando os povoados indígenas:

Nós não viemos, feito porco sem coleira, nos meter em plantações alheias. Esta terra é nossa terra – dizia Quintín, e seus discursos eram lições de história. Ele contava o passado daquele presente, o porquê e o quando de tanta desdita: a partir do antes, podia-se ir inventando um outro depois.

26

Guerra a favor das drogas

Depois de vinte anos de tiros de canhão e milhares e milhares de chineses mortos, a rainha Vitória cantou vitória: a China, que proibia as drogas, abriu suas portas ao ópio que os mercadores ingleses vendiam.

Enquanto se incendiavam os palácios imperiais, o príncipe Gong assinou a rendição, em 1860.

Foi um triunfo da liberdade: da liberdade de comércio.

27

Guerra contra as drogas

Em 1986, o presidente Ronald Reagan pegou a bandeira que Richard Nixon havia erguido alguns anos antes, e a guerra contra as drogas recebeu um impulso multimilionário.

A partir de então, aumentaram seus lucros os narcotraficantes e os grandes bancos que lavam seu dinheiro;

as drogas, mais concentradas, matam o dobro de gente que antes matavam;

a cada semana se inaugura uma nova prisão nos Estados Unidos, porque os drogados se multiplicam na nação que mais drogados tem;

o Afeganistão, país invadido e ocupado pelos Estados Unidos, passou a abastecer quase toda a heroína que o mundo compra;

e a guerra contra as drogas, que fez da Colômbia uma grande base militar norte-americana, está transformando o México num enlouquecido matadouro.

28

As loucuras de Simón

Hoje nasceu em Caracas, em 1769, Simón Rodríguez.

A Igreja o batizou como párvulo expósito, filho de ninguém, mas foi o mais lúcido filho da América hispânica.

Como castigo para sua lucidez, era chamado de O Louco. Ele dizia que nossos países não são livres, embora tenham hino e bandeira, porque livres são os que criam, e não os que copiam, e livres são os que pensam, e não os que obedecem. Ensinar, dizia O Louco, é ensinar a duvidar.

29

Homem de bom coração

Em 1981, num gesto de generosidade que faz jus à sua memória, o general Augusto Pinochet vendeu a preço de presente os rios, os lagos e as águas subterrâneas do Chile.

Algumas empresas mineradoras, como a suíça Xstrata, e empresas elétricas, como a espanhola Endesa e a norte-americana AESGener, se fizeram donas, para a perpetuidade, dos rios mais caudalosos do Chile. A Endesa recebeu uma extensão de águas equivalente ao mapa da Bélgica.

Os camponeses e as comunidades indígenas perderam o direito à água, condenados a comprá-la, e a partir daí o deserto avança, comendo terras férteis, e vai se esvaziando de gente a paisagem rural.

30

Os marcianos estão chegando!

Em 1938, aterrissaram naves espaciais no litoral dos Estados Unidos, e os marcianos se lançaram ao ataque. Tinham tentáculos ferozes, enormes olhos negros que disparavam raios ardentes, e uma babante boca em forma de V.

Muitos cidadãos apavorados saíram às ruas, enrolados em toalhas molhadas para se proteger do gás venenoso que os marcianos emitiam, e muitos mais preferiram se trancar com trancas e retrancas, bem armados, à espera do combate final.

Orson Welles tinha inventado essa invasão extraterrestre, e havia transmitido tudo pelo rádio.

A invasão era mentira, mas o medo era verdade.

E o medo continuou: os marcianos foram russos, coreanos, vietnamitas, cubanos, nicaraguenses, afegãos, iraquianos, iranianos...

31

Os avós das caricaturas políticas

No ano de 1517, o monge alemão Martinho Lutero cravou suas palavras de desafio na porta da igreja do castelo de Wittenberg.

Graças a uma invenção chamada prensa, essas palavras não ficaram ali. As tesis de Lutero chegaram às ruas e às praças e entraram nas casas, nas tabernas e nos templos da Alemanha e de outros lugares.

A fé protestante estava nascendo. Lutero atacava a ostentação e o esbanjamento da Igreja de Roma, a venda de entradas ao Paraíso, a hipócrita solteirice dos sacerdotes...

Não apenas por palavras eram difundidas essas heresias. Também por imagens, que chegavam a mais gente, porque poucos sabiam ler mas todos eram capazes de ver.

As gravuras que ajudavam a difundir os protestos de Lutero, obras de Lucas Cranach, Hans Holbein e outros artistas, não eram, digamos, muito amáveis: o papa aparecia como um monstruoso bezerro de ouro, ou como um burro com tetas de mulher e rabo de Diabo, ou era um gordo muito empetecado de joias que caía de cabeça nas chamas do Inferno.

Esses afiados instrumentos de propaganda religiosa, que tanto ajudaram na difusão massiva da rebelião luterana, fundaram, sem saber, as caricaturas políticas do nosso tempo.