IV – Noções elementares de Estilística

IV – Noções elementares de Estilística

Estilística

Estilística – A Estilística é a parte dos estudos da linguagem que se preocupa com o estilo.

 

Que é estilo nesta conceituação

Que é estilo nesta conceituação – Entende-se por estilo o conjunto de processos que fazem da língua representativa um meio de exteriorização psíquica e apelo.

“O estilo, que é a solução para se fazer a língua da representação intelectiva servir às funções não intelectivas da manifestação psíquica e do apelo, é naturalmente levado a “deformar” os fatos gramaticais quando por eles aquelas funções não poderiam figurar”.179

 

Estilística e Gramática

Estilística e Gramática – A compreensão deste conceito de estilo se fundamenta na lição de Charles Bally, segundo a qual o que caracteriza o estilo não é a oposição entre o individual e o coletivo, mas o contraste entre o emocional e o intelectivo. É neste sentido que diferem Estilística (que estuda a língua afetiva) e Gramática (que trabalha no campo da língua intelectiva). Baralhá-las, de modo que a Estilística se “dissolva” na Gramática, é pôr em perigo duas importantes disciplinas por confundir os seus objetos de estudo.

Uma não é a negação da outra, nem uma tem por missão destruir o que a outra, com orientação científica, tem podido construir. Ambas se completam no estudo dos processos do material de que o gênero humano se utiliza na exteriorização das ideias e sentimentos ou do conteúdo do pensamento designado.

 

Estilística e a Retórica

Estilística e a Retórica – Tem-se apresentado a Estilística também como – a negação da antiga Retórica que predomina ainda na crítica tradicional do estilo com suas múltiplas indagações literárias, históricas, sociais, filosóficas e tantos outros domínios que na obra se espalham através do temperamento e atitude do escritor. Cabe aqui recordar as justas considerações de Amado Alonso:180 “ ... a estilística não pretende petulantemente declarar caduca a crítica tradicional; reconhece seu alto valor e aprende nela; sabe que na análise de obras de arte nem tudo termina com o prazer estético e que há valores culturais, sociais, ideológicos, morais, enfim, valores históricos que não pode nem quer desprezar. E com a mesma se vê o que pretende e o seu valor: completar os estudos da crítica tradicional fazendo agora entrar um aspecto que estava menosprezado. E não apenas mais um aspecto, senão o aspecto básico e específico da obra de arte, o que dá valor a todos os outros. Por isso a estilística, sobre estudar temas novos, continua estudando com igual amor todos os velhos, apenas o faz do seu ponto de vista. Por exemplo, sempre se estudaram as fontes de um autor ou de uma obra, ou – o que vale o mesmo – a origem das ideias dominantes em um período literário. Porém realizou-se isso por interesse histórico, para fixar procedências. Este é o ponto de chegada da crítica tradicional. Para a estilística é o ponto de partida, e a si pergunta: que fez meu autor ou minha época com estas fontes? Para usar a velha comparação: estudando o mel, a crítica tradicional estabelece em que flores e de que campos extraiu a abelha; a estilística se pergunta: como resultou este produto heterogêneo com todas as suas procedências, qual é a alquimia, que originais e triunfantes intenções lhe insuflaram vida nova? Ou voltando à comparação da estátua: a crítica tradicional estuda as canteiras donde procede o mármore; a estilística, que é que o artista fez com ele’’.

 

Análise literária e análise estilística

Análise literária e análise estilística – Da lição de Amado Alonso se patenteia que não se há de confundir análise literária com análise estilística, pois que, trabalhando num mesmo trecho, tem preocupações diferentes e utilizam ferramentas também diversas. Em que pese à autoridade de nossos programas oficiais para ensino de Língua Portuguesa, o que deve ser, primordialmente, objeto da tarefa do professor de língua é a análise estilística (ainda que elementar, como reza a letra deste mesmo programa), e não a análise literária, que é da alçada do professor de Literatura. Ensinando-se a língua portuguesa, nada mais natural do que, num texto literário ou não, ressaltar o sistema expressivo e sua eficácia estética no idioma ou nas particularidades idiomáticas de um autor literário ou de um simples falante. Para a estilística, interessa tanto a depreensão dos traços estilísticos da língua oral como da escrita, do falante comum e do literato. Com razão disse Vossler que na linguagem de um mendigo vagabundo há gotinhas estilísticas da mesma natureza que todo o mundo expressional de um Shakespeare.

 

Traços estilísticos

Traços estilísticos – O conjunto de particularidades do sistema expressivo para eficácia estética recebe o nome de traços estilísticos. São numerosos os traços estilísticos – e há um avultado número deles cujo valor ainda está para ser analisado – em todos os compartimentos de um idioma.

Cabe-nos agora indagar quando uma particularidade linguística se nos apresenta como traço estilístico. “Já sabemos – ensina-nos J. Mattoso Câmara Jr.181 – que o traço estilístico não se trata de uma maneira de dizer necessariamente pessoal; nem pelo fato de ser pessoal se tem necessariamente um traço estilístico. Esta dupla consideração é tão importante que hão de me relevar insistir um pouco mais. Para isso, peço desculpas de me citar a mim mesmo e me reportar a um pequeno artigo que publiquei há tempos na Revista do Livro sobre “A Coroa do Rubião”: diz-nos Machado de Assis, no Quincas Borba, que Rubião, demente, julgando-se “imperador dos franceses” no momento da agonia, cingiu a “coroa”, que não era sequer uma bacia, “onde se pudesse palpar a ilusão”, “ele pegou nada, ergueu nada e cingiu nada”. O emprego de nada depois do verbo sem se completar com um não antes do verbo, é uma maneira anômala de expressar a negação verbal em português. E é um traço estilístico: não porque seja exclusivamente pessoal de Machado de Assis (quem nos garante que outrem já não tinha feito isto? – nem o escritor faz isto sistematicamente), mas porque nesse dado contexto o emprego de nada nessas condições tem um valor “estético”, fazendo-nos ver dolorosamente o gesto do pobre louco, mercê do tratamento de nada, não como mera partícula negativa, mas como um substantivo negativo – o oposto de alguma coisa: a emoção do escritor e o seu apelo à nossa simpatia se comunicam através desse emprego de nada, que é, pois, um emprego estilístico. Ao contrário, quando José de Alencar acentuava a preposição simples a, exibia um uso pessoal da língua literária (que era um erro do ponto de vista de norma social vigente), mas não um traço estilístico, pois se circunscrevia ao domínio intelectivo (o escritor achava que assim devia escrever por um raciocínio gramatical em falso); seria, ao contrário, um traço estilístico se uma ou outra vez, apenas, aparecesse em seus textos como recurso para insistir na preposição, dando-lhe uma tonicidade excepcional.

Daí o erro dos que, pensando escrever bem, enxameiam suas páginas das chamadas figuras de linguagem (pleonasmos, hipérboles, anacolutos, metáforas, etc.). Essas figuras não se impõem “à outrance” às circunstâncias; estas é que favorecem o aparecimento daquelas para fins estéticos. Terá falhado na pesquisa estilística quem se contentar em dizer que há anacoluto no derradeiro terceto desta conhecida joia de Machado de Assis, que é o soneto à Carolina:

“que eu, se tenho nos olhos malferidos
pensamentos de vida formulados,
são pensamentos idos e vividos”.

O anacoluto ultrapassa os limites de uma simples figura, para ser um eficaz recurso estético que põe diante de nossos olhos a profunda dor do esposo que, pensando na companheira que se foi, não tem a paz interior necessária para estruturar racionalmente, intelectivamente, todo o tumulto de ideias que lhe vai n’alma.

Em suma, a Estilística é o passo mais decisivo, no estudo de uma língua, para a educação do sentimento estético e manifestação da competência expressiva.

 

Traço estilístico e erro gramatical

Traço estilístico e erro gramatical – Não se há de entender que o estilo seja sempre uma deformação da norma linguística. Isto nos leva à distinção entre traço estilístico e erro gramatical.

O traço estilístico pode ser um desvio ocasional de norma gramatical vigente, mas se impõe pela sua intenção estético-expressiva.

O erro gramatical é o desvio sem intenção estética.

 

Campo da Estilística

Campo da Estilística – O estudo da Estilística abarca, semelhante à Gramática, todos os domínios do idioma. Lembremos a lição de Bally: “Todos os fenômenos linguísticos, desde os sons até as combinações sintáticas mais complexas, podem revelar algum caráter fundamental da língua estudada. Todos os fatos linguísticos, sejam quais forem, podem manifestar alguma parcela da ida do espírito e algum movimento da sensibilidade. A estilística não é o estudo de uma parte da linguagem, mas o é da linguagem inteira, observada de um ângulo particular. Nunca pretendi (isto é para responder a umas críticas que me fizeram) que a linguagem afetiva existe independentemente da linguagem intelectual, nem que a estilística deva estudar a primeira excluindo a segunda; o que faz é estudá-las ambas em suas relações recíprocas, e examinar em que proporção se aliam para compor este ou aquele tipo de expressão”.182

Teremos assim os seguintes campos da Estilística:

 

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A Estilística Fônica procura indagar o emprego do valor expressivo dos sons: a harmonia imitativa, no amplo sentido do termo. É a fonética expressiva de que falamos na parte inicial deste livro.

A Estilística Morfológica sonda o uso expressivo das formas gramaticais. Entre os usos expressivos deste campo lembraremos:

1) o plural de convite: põe-se o verbo no plural como que se quisesse incentivar uma pessoa a praticar uma ação trabalhosa ou desagradável. É o caso da mãe que diz à filhinha que insiste em não tomar o remédio:

Olha, filhinha, vamos tomar o remedinho.

 

2) o plural de modéstia: o autor, falando de si mesmo, poderá dizer:

Nós, ao escrevermos este livro, tivemos em mira dar novos horizontes ao ensino do idioma.

 

3) o emprego expressivo dos sufixos (mormente os de gradação):

paizinho, mãezinha, poetastro, padreco, politicalha

 

4) o emprego de tempos e modos verbais, como, por exemplo:

a) o presente pelo futuro para indicar desejo firme, fato categórico:

Amanhã eu vou ao cinema.

 

b) o imperfeito para traduzir pedido:

Eu queria um quilo de queijo (em vez do categórico e, às vezes, ameaçador quero).

 

c) o presente pelo pretérito para emprestar à narração o ar de novidade e poder comover o ouvinte:

Aí César invade a Gália.

 

5) a mudança de tratamento, de um período para outro, para indicar mudança da situação psicológica entre falante e ouvinte, ou entre escritor e leitor. No soneto Última Folha, Casimiro de Abreu chama a Deus por Meu Pai e ora o trata por tu, ora por vós. É que em Meu Pai o poeta vê Deus como seu íntimo, ligado a ele tão intimamente que lhe cabe o tratamento tu. Mas ao poeta Deus se apresentava também como o criador de todas as coisas, o poder supremo a quem só podia caber a fórmula respeitosa e cerimoniosa assumida por vós.

 

A Estilística Sintática procura explicar o valor expressivo das construções:

1) na regência, como, por exemplo, o emprego do posvérbio;

2) na concordância, como, por exemplo, na atração, na silepse, no infinitivo flexionado para realce da pessoa sobre a ação mesma;

3) na colocação dos termos na oração, na colocação de pronomes, etc.

4) no emprego expressivo das chamadas figuras de sintaxe.

 

A Estilística Semântica pesquisa:

1) a significação ocasional e expressiva de certas palavras:

Você é um abacaxi.

Aquele aluno é um monstro.

Ele tem uns bons sessenta anos.

2) no emprego expressivo das chamadas figuras de palavras ou tropos (metáfora, metonímia, etc.) e figuras de pensamento e sentimento (antítese, eufemismo, hipérbole, etc.).

 

Apêndice

Apêndice

Dois exemplos de análise estilística

dois exemplos de análise estilística

 

A título de meras sugestões aos leitores ainda não familiarizados com as técnicas da análise estilística, temos a satisfação de transcrever aqui dois excertos assinados, um por excelente mestre brasileiro, J. Mattoso Câmara Jr., e outro pelo não menos distinto estudioso português, Jacinto do Prado Coelho. Outras interessantes amostras pode o leitor curioso ver nos estudos de Augusto Meyer, Othon Moacyr Garcia e uma plêiade de patrícios onde está indicada farta bibliografia especializada.

 

1) Um soneto de Antônio Nobre

1) Um soneto de Antônio Nobre

O comentário de poemas será ainda, em grande parte, criação, inventiva, uma série de desdobramentos psicológicos, evocações, associações de imagens, que mostram a personalidade do leitor a colaborar com simpatia na obra do comentário. A visão de conjunto originária iluminará todo o comentário. A linguagem será encarada, segundo quer Spitzer, como floração da substância espiritual do poema. A divisão metodológica em comentário ideológico e comentário de forma não me parece justa. O poema deve ser olhado como um todo. A consideração das formas linguísticas conduzirá ao psicológico, e acompanhará o comentário da substância do princípio ao fim. O que se pretende, em primeiro lugar, é que o eu do leitor comungue no eu do poeta (e Berdiaeff mostrou muito bem a impossibilidade desta comunicação por meios que não sejam de natureza afetiva; pensar é objetivar, é separar). É claro que sem objetivação não há crítica. Mas no comentário de poemas a crítica aos pormenores deve incluir-se num estado de adesão que permaneça durante o comentário.

Tudo isto, eu sei, é muito difícil; nunca consegui realizá-lo satisfatoriamente. Dou, todavia, com exemplo, o comentário dum soneto que tentei fazer segundo a orientação exposta. Começo pela introdução à leitura:

“Antônio Nobre, não só pela concepção que teve da poesia, como pela estranha riqueza da sua personalidade, é verdadeiramente um poeta moderno. Se ainda vivesse, teria setenta e cinco anos. Talvez a sua presença nos impedisse o convívio estreito com esse rapaz triste que escreveu o , o livro mais triste que há em Portugal. A sua presença física torná-lo-ia, porventura, mais distante. Assim, porque morreu aos trinta e dois anos, ficou sempre rapaz na nossa lembrança, de olhos doces, pálido, feições finas, embrulhado numa capa de estudante, absorto como é sina dos poetas.

Quando ouvimos o tom lastimoso da sua voz, quando o sentimos tão perto, os nossos braços procuram estender-se através da bruma que separa as almas, para lhe darem finalmente, com piedade fraterna, o carinho que pediu sem receber. Continua vivo a nosso lado, continua conversando, obriga-nos, pelo tom das suas palavras, a ver o mundo como ele via, sentir como ele sentia.

Mas não era assim, pela vida subjetiva, que Nobre queria viver. Nobre foi um homem de desejo. Emigrou para um país diferente, recolheu-se no sonho da infância, chegou a bem-dizer a velha, a senhora Morte, apenas pela força do seu destino.

Antônio Nobre queria viver a nossa vida, queria ser como os outros saudável e contente. Ambicionava uma purinha de cabelo negro e boca vermelha. Confessou-nos o seu “ideal de parisiense”: casa defronte do mar, sardinha ao lume, economias no mealheiro, sendo possível, e mulher e filhos. Nobre fora feito para este mundo, e só a doença o afastou dele. O seu desespero dissolveu-se numa resignação de menino suave e obediente, que se entretém com brinquedos de luxo. O seu brinquedo foi a arte. Mas não somente um brinquedo: um meio de confissão, de transmissão da sua humanidade confrangida. Por isso (pensando que ele queria viver, e que morreu tão novo, tão triste, tão só) ouviremos sempre com piedade a voz do seu lamento, e choro de quem já não espera nada, nem mesmo o ópio do regresso, pela memória, aos tempos de criança:

Tombou da haste a flor da minha infância alada,

Murchou na jarra de oiro o pudico jasmim:

Voou aos altos céus a pomba enamorada

Que dantes estendia as asas sobre mim.

 

Julguei que fosse eterna a luz dessa alvorada,

E que era sempre dia, e nunca tinha fim

Essa visão de luar que vivia encantada

Num castelo ideal com torres de marfim!

 

Mas hoje as pombas de oiro, aves da minha infância,

Que me enchiam de lua o coração, outrora,

Partiram e no céu evoam-se a distância!

 

Debalde clamo e choro, erguendo aos céus meus ais:

Voltam na asa do vento os ais que a alma chora,

Elas, porém, Senhor! elas não voltam mais...

De leitura deste soneto fica-nos o travo da desilusão, a amargura de perder o que nunca mais se recupera. As metáforas, cuja finura e cuja riqueza nos impressionam, vêm transmitir uma visão encantada dos anos da meninice. Segundo o poeta, a infância é alada, tem asas, talvez porque o pensamento infantil voa a cada instante para o reino da fantasia, talvez porque a criança é um anjo, pela sua pureza, ainda visível da sua divisa.

Nobre escolheu uma flor, “um pudico jasmim”, para simbolizar essa candura perdida. O jasmim é branco, de perfume penetrante, mas suave. Também as crianças têm a graça, o perfume, a brancura da alma. O adjetivo “pudico” estabeleceu, no espírito do poeta, a ligação entre a flor e a criança: ambos possuem a pudicícia, a castidade, a inocência.

Vejam em tudo isto a delicadeza da arte de Antônio Nobre. Ele pôs de lado os processos declamatórios, a eloquência romântica, os meios diretos e demasiado conhecidos. Para nos dizer que terminou o sonho da sua meninice, a alegria da visão imaculada, Nobre fala-nos da flor que também tombou da haste, do jasmim que murchou num vaso de oiro, da pomba enamorada que se sumiu no azul e nunca mais voltou (lembramos aqui as lindas asas brancas de Garrett, que ele batia para voar ao céu).

Todo o soneto é construído sobre estas metáforas brilhantes, desde as pombas de oiro às torres de marfim. Somos levados a aludir ao simbolismo de Antônio Nobre, à preferência pela magia das insinuações indiretas. Na verdade o simbolismo não passou, a princípio, duma reação contra o processo parnasiano de mostrar as coisas, francamente, inteiramente, dando-as pelo nome próprio, sem rodeio nem véu. Isso tirava ao leitor o prazer de participar na criação.

“Nomear um objeto – escrevia Mallarmé em 1891 – é suprimir três quartos do gozo do poema, que consiste na delícia de adivinhar pouco a pouco; o sonho é sugerir o objeto. O uso perfeito deste mistério constitui o símbolo: evocar lentamente um objeto para mostrar um estado de alma, ou, inversamente, escolher um objeto e tirar dele um estado de alma por uma série de decifrações”. Estas palavras de Mallarmé (que foi o maior dos poetas simbolistas franceses) quadra à poesia de Antônio Nobre; notamos, porém, que, no soneto que hoje comentamos, não há imagens tão ousadas ou alucinantes que revoltem o senso comum; pelo contrário, é bem compreensível que se represente a candura da infância por uma flor branca, o mundo fantástico e hermético das crianças por um castelo de marfim.

O que parece estranho é não ser uma dor humana, dilacerante como a de Antônio Nobre, transmitida sem rodeios, no seu ímpeto de expansão, desalinhada e convulsiva. Não há dúvida de que Nobre foi sempre sincero. Desde pequeno, começou a meditar na morte, porque a esperava. Os prenúncios da tuberculose vieram pouco depois dos vinte anos. E ele, que já em criança pedia que, depois de morto, o embrulhassem num cobertor, “porque tinha medo do frio do jazigo”, depois começou a ver em todas as coisas o riso macabro da morte:

Em tudo via a Velha, em tudo via a Morte;

Um berço que dormia era um caixão pr‘a cova:

Via a Foice no Céu quando era Lua Nova...

Antônio Nobre foi, portanto, um poeta espontâneo. Escreveu com o sangue das suas veias. Mas não foi apenas um homem que sofreu, porque fez dos pedaços da sua dor filigranas de beleza e harmonia. Ele próprio disse uma vez: “A dor que dura sempre produz o prazer que não dura mais que um momento”. Esse momento de que fala Nobre é, sem dúvida, o momento da criação poética, o momento da graça. O poeta depôs no altar da Arte a sua humanidade passageira, que sangrava. Contempla-se na própria imagem, acriançado e um pouco dândi, saboreando as palavras, procurando ritmos.

É notar como a palavra “lua” tem na sua poesia um halo especial de associações de imagens. As palavras recebem das outras mais próximas uma incidência de estímulos psicológicos que muitas vezes transfiguram.

Por isso “lua”, nos versos de Nobre (“...aves na minha infância que me enchiam de lua o coração outrora”) sugere-nos o mundo saudoso e feminino do poeta, com as graças pálidas e os seus fantasmas adormecidos.

No último terceto, Nobre lança uma queixa dolorida e todavia humilde e resignada:

Debalde clamo e choro, erguendo aos céus meu ais:

Voltam na asa do vento os ais que a alma chora.

Elas, porém, Senhor! elas não voltam mais...

Nobre não renega o Senhor, embora tenha clamado antes de chorar. A rapidez saltitante do segundo verso, composto por palavras todas muito curtas, parece trazer o eco dos ais do poeta, vindos nas asas do vento. Voltam os ais que redobram a sua dor, mas não voltam as pombas de oiro da sua infância alada. O último verso, mais de que a chave racional do soneto, à maneira clássica, é uma frase sentimental: a primeira parte, ascendente, é um grito de alma (“elas, porém, Senhor!”); a segunda parte, descendente, é um suspiro de aceitação (“elas não voltam mais”).

Antônio Nobre conformou-se, acabou por amar a sua cruz. Conseguiu tornar-se criança meiga e obediente, de olhos muito abertos, de sorriso tão triste. O sorriso de quem fala de ir viajar, sequinho, para o sol-posto; o sorriso de quem pede que componham com jeito o travesseiro, de modo que lhe faça bom encosto no caixão:

De modo que me faça bom encosto,

O travesseiro comporá com jeito,

E eu, tão feliz! Por não estar afeito,

Talvez este sorriso derive duma atitude premeditada, um último “coquetismo” de moribundo que compõe o lençol, manda abrir a janela e diz qualquer coisa infantil para distrair os outros da sua desgraça. Talvez seja a última defesa de quem teve de entregar-se todo, esfarrapado e sangrando, aos olhos da multidão compadecida”.

Jacinto do Prado Coelho (A Educação
do Sentimento Poético
, pág. 65-71).

 

 

2) Um soneto de Machado de Assis:

2) Um soneto de Machado de Assis:

A Carolina

 

...O estilo tem um cunho nitidamente quinhentista.

Sugere-o a formulação global, linguística e rítmica, e sublinham-no certos dados concretos, como, por exemplo, o qualificativo “malferidos”, aconselhado por Mário Barreto justamente por se casar ao seu ideal de restauração da linguagem clássica183, a já citada locução de “pensamentos idos e vividos”, e a pobreza das rimas dos tercetos em -ados e -idos, onde se alinham fácil e espontâneamente particípios da 1.a conjugação e da 2.a e 3.a:

Trago-te flores, – restos arrancados

Da terra que nos viu passar unidos

E ora mortos nos deixa e separados

Que eu, se tenho nos olhos malferidos

Pensamentos de vida formulados,

São pensamentos idos e vividos.

O que, entretanto, mais aí nos deve interessar é a “forma interna”, isto é, o plano formal imanente no desdobramento das frases.

Para o soneto, a forma interna, assim concebida, se processa pela concatenação de ideias, ascendentes em amplitude e intensidade, até o coroamento de uma larga e culminante expressão final. É o que naturalmente estava prefigurando no microcosmo da copla esparsa, de que vimos provavelmente ter evoluído o soneto.

Em Bocage, esta estruturação chega muitas vezes ao uso de um único período, que só na parte final apresenta as suas orações capitais. Um bom exemplo é o soneto sobre a existência de Deus184 onde vão-se anunciando os fatos da natureza comprobatórios, até se chegar à afirmação dessa existência na base desses fatos –

tudo que há a confessar me obriga

– acrescentando-se o conceito de que tal existência se impõe à Razão, e não apenas à Fé, pela evidência física e pela necessidade no plano moral, o que tinha de ser o capital argumento para o iluminismo oitocentista:

E para crer num braço autor de tudo,

Que recompensa os bons, que os maus castiga,

Não só da Fé mas da Razão me ajudo.

Esse plano formal interno pode, é verdade, oferecer a variante do chamado “soneto elisabetano” (que praticou Shakespeare)185 onde a três estrofes de quatro versos, independentes entre si quanto à rima, se adjunge um dístico final, que resume o pensamento anteriormente desenvolvido. Neste particular, Antônio Nobre nos ilustra uma forma interna de soneto elisabetano moldado na forma externa italiana, quando disjunge pela ideia os dois versos finais do último terceto, neles resumindo todo o teor da poesia, cujo pensamento se concluíra no décimo segundo verso:

Ó virgem que passais ao sol poente,

Pelas estradas ermas a cantar,

Eu quero ouvir uma canção ardente

Que me transporte ao meu perdido lar.

Cantai-me nessa voz onipotente

O sol que venha aureolando o mar,

A fartura da seara reluzente,

O vinho, a graça, a formosura, o luar.

Cantai, cantai, as límpidas cantigas

Do fundo do meu lar desaterrai

Todas aquelas ilusões antigas,

Que eu vi morrer num sonho como um ai!...

Ó suaves e frescas raparigas,

Adormecei-me nessa voz... Cantai! 186

Voltando, entretanto, a “A Carolina” de Machado de Assis, examinemos-lhe a forma interna na base das considerações acima feitas.

Não temos aí, em verdade, um desdobramento de ideias cada vez mais amplas e intensas até um clímax de versos finais.

O poeta combina pensamentos cognatos e paralelos: um nos quartetos, outro no primeiro terceto, enquanto um terceiro pensamento, que é a essência do pequeno poema, se consubstancia finalmente no último terceto.

Recitemos a produção, comparando-a com o esquema assim depreendido:

A) Visita à sepultura com as ideias que acompanham esse gesto de saudade e carinho: a evocação da felicidade e a afirmação de uma lembrança e um afeto que não mais se apaga ou sequer desfalece:

Querida, ao pé do leito derradeiro

Em que descansas dessa longa vida,

Aqui venho e virei, pobre querida,

Trazer-te o coração de companheiro.

Pulsa-lhe aquele afeto verdadeiro

Que, a despeito de toda a humana lida,

Fez a nossa existência apetecida

E num recanto pôs o mundo inteiro.

B) Oferta de flores, como símbolo dessa saudade, que assim se concretiza num gesto ritual:

Trago-te flores, restos arrancados

Da terra que nos viu passar unidos

E ora mortos nos deixa e separados.

C) Finalmente, o conceito de que o poeta está morto para o mundo, e a sua vida física se prolonga automaticamente pelo impulso adquirido de uma força vital que desapareceu:

Que, se eu tenho nos olhos malferidos

Pensamentos de vida formulados,

São pensamentos idos e vividos.

Mas não é tudo. Não se resume nesta análise o plano complexo do soneto.

O poeta articulou sutilmente a parte C com a parte B, tirando-a da expressão, aparentemente secundária, de que ele está tão morto quanto a sua Carolina.

Digo “aparentemente secundária”, porque o termo está colocado em meio de frase e como primeiro elemento de um conjugado copulativo, em que predomina formalmente, portanto, o segundo qualificativo separados.

Há a intenção de provocar a perplexidade a posteriori do leitor, cuja atenção desliza até separados e, depois de aceitar essa ideia self-evident, há de retornar, sem querer, para o paradoxal adjetivo mortos, que o antecede. “Mortos, por quê?” Assim concentrado num novo conceito, que obviamente tem de intrigá-lo, está ele preparado para receber o impacto de pensamento final, introduzido ao último terceto por um que de valor causal.

Temos, assim, – não um desdobramento que regularmente vai ascendendo para uma ideia ápice –, mas um primeiro pensamento concluso (a evocação da felicidade perdida e a lembrança perene da mulher amada), um segundo que o ilustra numa concretização simbólica, e, saindo de um elemento aí lançado quase ao acaso, um pensamento final, que transfigura o poema e lhe dá a substância definitiva.

É nesta forma interna e no seu contraste com o plano natural de um soneto, que me parece estar, estilisticamente, a significação da pequena joia poética que acabamos de rapidamente apreciar.

Joaquim Mattoso Câmara Jr. (Revista
do Livro
, no. 5, p. 71-73)

 

 

179 J. Mattoso Câmara Jr., “Noções de Estilística” in Littera, n.º 2, 91.

180 Matéria y Forma en Poesia, 103-104.

181 No artigo citado.

182 Le Langage et la Vie, 100.

183 Mário Barreto, Novos Estudos da Língua Portuguesa. Rio, 1921; p. 364.

184 Obras Poéticas de Bocage, ed. Tavares Cardoso e Irmão. Lisboa 1902, vol. I, 234.

185 Sobre o soneto na literatura inglesa, consultar Enid Hammer, The Meters of English Poetry, London, 1954; p. 186 ss.

186 Antônio Nobre, , 3.a. ed. (Aillaud e Bertrand)., 1913, p. 120.