Introdução
Introdução
Breve história externa
da língua portuguesa
“As armas e padrões portugueses postos em África e em Ásia e em tantas mil ilhas fora da repartiçam das três partes da terra, materiaes sam, e pode-as o tempo gastar: peró nã gastará doutrina, costumes, linguagem, que os portugueses nestas terras leixarem.”
(João de Barros, Diálogo em Louvor da Nossa Linguagem)
A língua portuguesa é a continuação ininterrupta, no tempo e no espaço, do latim levado à Península Ibérica pela expansão do império romano, no início do séc. III a.C., particularmente no processo de romanização dos povos do oeste e noroeste (lusitanos e galaicos), processo que encontrou tenaz resistência dos habitantes originários dessas regiões.
Depois do processo de romanização, sofreu a Península a invasão dos bárbaros germânicos, em diversos momentos e com diversidade de influências, que muito contribuíram para a fragmentação linguística da Hispânia: em 409 foi a vez dos alanos, vândalos e suevos; em 416, dos visigodos. Deste contacto encontramos como resultado a visível influência germânica, especialmente dos visigodos, no léxico e na onomástica.
No século VIII, em 711, voltou a Península a ser invadida pelos árabes, consumando a série de fatores externos que viriam a explicar a diferenciação linguística do português no mosaico dialetal que hoje conhecemos; apesar do largo contributo na cultura e na língua – especialmente no léxico –, a permanência muçulmana não teve força suficiente para apagar as indeléveis marcas de romanidade das línguas peninsulares.
O longo movimento de Reconquista anti-islâmico, começado já em 718, prolongou-se por séculos. Já no século X este processo tinha favorecido o nascimento de núcleos cristãos na parte norte e noroeste da Península, lançando os fundamentos de uma divisão linguística bem próxima da divisão administrativa: 1– Condado da Galiza (galego-português); 2– Reino de Leão e das Astúrias (ásturo-leonês); 3– Condado de Castela (castelhano); 4– Reino de Navarra (basco e navarro-aragonês); 5– Reino de Aragão e Condado de Barcelos (catalão).
Em 1095, Afonso VI concede autonomia à Província Portucalense, e, em 1139, Afonso Henriques se proclama o primeiro rei de Portugal.
Foi este falar comum à Galiza e ao território portucalense que o processo de Reconquista propagou em direção ao sul, sobrepondo-se aos dialetos moçárabes aí correntes. Já com a ajuda de cruzados ingleses, alemães, franceses e flamengos, e sob a bandeira portuguesa prossegue a reconquista de novas cidades do sul, tomadas aos muçulmanos: Santarém, em março de 1147 e Lisboa, em outubro do mesmo ano. Até o séc. XV, segundo Orlando Ribeiro, o Minho ainda não constituía limite linguístico entre o galego e o português.
O português, na sua feição originária galega, surgirá entre os séculos IX-XII, mas seus primeiros documentos datados só aparecerão no século XIII: o Testamento de Afonso II e a Notícia de torto. Curiosamente, a denominação “língua portuguesa” para substituir os antigos títulos “romance” (“romanço”), “linguagem”, só passa a correr durante os escritores da Casa de Avis, com D. João I. Foi D. Dinis que oficializou o português como língua veicular dos documentos administrativos, substituindo o latim.
Entre os séculos XV e XVI, Portugal ocupa lugar de relevo no ciclo das grandes navegações, e a língua, “companheira do império”, se espraia pelas regiões incógnitas, indo até o fim do mundo, e, na voz do Poeta, “se mais mundo houvera lá chegara” (Os Lusíadas, VII, 14).
Depois da expansão interna que, literária e culturalmente, exerce ação unificadora na diversidade dos falares regionais, mas que não elimina de todo essas diferenças refletidas nos dialetos, o português se arroja, na palavra de indômitos marinheiros, pelos mares nunca d‘antes navegados, a fim de ser o porta-voz da fé e do império. São passos dessa gigantesca expansão colonial e religiosa, cujos efeitos, além da abertura dos mares, especialmente o Atlântico e o Índico, foram, segundo afirmação de Humboldt, uma duplicação do globo terrestre.
1415 – expedição a Ceuta sob o comando do próprio Rei
1425-1439 – Madeira e Açores
1444 – Cabo Verde, com início de povoamento em 1462
1446 – Guiné
1483-1486 – Angola (primeiros contatos) e colonização de S. Tomé e Príncipe
1498 – Vasco da Gama chega à Índia e passa por Moçambique
1500 – Brasil
1511 – Malaca e Malucas
1512 – Saião e Bornéu
1515 – Ormuz
1518 – Colombo
1536 – Damão
1547 – Macau
além das ilhas de Samatra, Java e Timor.
Tomado o séc. XIII como início da fase a que Leite de Vasconcelos chamou português histórico, isto é, documentado historicamente, podemos dividi-lo em períodos linguísticos, cujas delimitações não conseguem, entre os estudiosos, concordância unânime. A dificuldade de consenso advém de vários fatores: o terem as propostas fundamento em textos escritos que, como sabemos, mascaram a realidade e as mudanças linguísticas; o não terem os fenômenos sua data de nascimento e morte; e, finalmente, constitui elemento perturbador nesta ordem de estudos a influência de fatores estético-literários que, conforme sua orientação conservadora ou progressista, atrasa ou acelera determinadas tendências linguísticas. Foi o que aconteceu com o chamado latim literário sob a influência grega; com o português europeu sob o influxo do Humanismo e Renascimento, e com o português do Brasil, sob a ação iconoclasta inicial do Modernismo.
Adotaremos aqui a seguinte proposta, incluindo na primeira fase a realidade galego-portuguesa:
a) português arcaico: séc. XIII ao final do XIV
b) português arcaico médio: 1.ª metade do séc. XV à 1.ª metade do séc. XVI
c) português moderno: 2.ª metade do séc. XVI ao final do XVII (podendo-se estender aos inícios do séc. XVIII)
d) português contemporâneo: séc. XVIII aos nossos dias
Ao primeiro período pertencem, além dos textos administrativos de leis, forais e ordenações, a poesia palaciana encerrada nos Cancioneiros medievais (Ajuda, Vaticana e Biblioteca Nacional, antigo Colocci Brancuti), as Cantigas de Santa Maria, algumas vidas de santos (Barlaão e Josafá, S. Aleixo, etc., traduções, em geral, de textos latinos, que chegaram até nós, quase sempre, em cópias mais modernas), o Livro das Aves, o Fabulário de Esopo, a Demanda do Santo Graal, Corte Imperial, entre muitas.
Ao segundo período pertencem o Livro da Montaria, de D. João I, Leal Conselheiro e Livro da Ensinança de Bem Cavalgar toda Sela de D. Duarte, as crônicas de Fernão Lopes (D. João I, D. Pedro, D. Fernando), de Zurara (Crônica dos Feitos da Guiné, Crônica da Tomada de Ceuta), a Crônica dos Frades Menores, as crônicas de Rui Pina, entre muitas outras obras.
Ao terceiro período pertencem as obras históricas de João de Barros, Diogo do Couto, Fernão Lopes de Castanheda, Damião de Góis, Gaspar Correia, o Palmeirim de Inglaterra de Francisco de Morais, a Etiópia Oriental de Frei João dos Santos, a obra literária de Sá de Miranda e o teatro clássico de Antônio Ferreira, a prosa mística da Imagem da Vida Cristã de Heitor Pinto, os Diálogos de Amador Arrais, os Trabalhos de Jesus de Tomé de Jesus e a Consolação às Tribulações de Israel, de Samuel Usque, a Peregrinação de Fernão Mendes Pinto, Pero Magalhães de Gandavo, mas a todos excede Luís de Camões que, não sendo “propriamente o criador do português moderno (...), libertou-o de alguns arcaísmos e foi um artista consumado e sem rival em burilar a frase portuguesa, descobrindo e aproveitando todos os recursos de que dispunha o idioma para representar as ideias de modo elegante, enérgico e expressivo. Reconhecida a superioridade da linguagem camoniana, a sua influência fez-se sentir na literatura de então em diante até os nossos dias” [SA.2, 4].
Com muita razão, concede Said Ali, do ponto de vista linguístico, um lugar à parte na literatura quinhentista às comédias, autos e farsas do chamado teatro de medida velha que tem em Gil Vicente seu principal representante, produções de grande importância para o conhecimento da variedade coloquial e popular da época. Pertencem a este gênero especial os Autos de Antônio Prestes, de Chiado, de Jerônimo Ribeiro, a Eufrosina e Ulissipo de Jorge Ferreira de Vasconcelos, sobrelevando-se a todos eles as obras deste genial pintor da sociedade e dos costumes do séc. XVI em Portugal, que foi Gil Vicente.
No séc. XVII assistimos ao aperfeiçoamento da prosa artística com Frei Luís de Sousa, cuja linguagem representa uma fase de transição entre os dois momentos do português moderno. É o período em que ressaltam os Sermões do Padre Antônio Vieira, os Apólogos Dialogais de Francisco Manuel de Melo, a prosa religiosa do Padre Manuel Bernardes, os quadros bucólicos de Corte na Aldeia de Rodrigues Lobo, além dos representantes da historiografia de Alcobaça.
Fig. 1 – O Mundo da Lusofonia
O século XVIII não é só o século das academias literárias, mas de todo um esforço na renovação da cultura e da instrução pública, sob o influxo dos ideais do neoclassicismo francês, que culminou na reforma pombalina da Universidade, em 1772. Assiste-se a um reflorescimento da poesia com Pedro Antônio Correia Garção, Antônio Dinis da Cruz e Silva, Filinto Elísio, Tomás Antônio Gonzaga e os poetas árcades brasileiros, e Barbosa du Bocage.
Do ponto de vista linguístico, o português contemporâneo, fixado no decorrer do séc. XVIII, chega ao século seguinte sob o influxo de novas ideias estéticas, mas sem sofrer mudanças no sistema gramatical que lhe garantam, neste sentido, nova feição e nova fase histórica.
Os escritores dos séculos XIX e XX de todos os quadrantes da Lusofonia souberam garantir este patrimônio linguístico herdado de tanta tradição literária.
Em Portugal, no Brasil, em Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, São Tomé e Príncipe, a língua portuguesa, patrimônio cultural de todas estas nações, tem sido, e esperamos seja por muito tempo, expressão da sensibilidade e da razão, do sonho e das grandes realizações.
Patrimônio de todos e elo fraterno da Lusofonia de cerca de 200 milhões de falantes espalhados por todos os continentes, continuemos a formular os votos de Antônio Ferreira, no séc. XVI:
Floresça, fale, cante, ouça-se e viva
A portuguesa língua, e já onde for,
Senhora vá de si, soberba e altiva!