Teoria Gramatical
A) Linguagem: suas dimensões universais
“dizer as coisas como são”
Platão
1 – Linguagem
Entende-se por linguagem qualquer sistema de signos simbólicos empregados na intercomunicação social para expressar e comunicar ideias e sentimentos, isto é, conteúdos da consciência.
A linguagem se realiza historicamente mediante sistemas de isoglossas comprovados numa comunidade de falantes, conhecidos com o nome de línguas, como veremos adiante.
Tal conceituação envolve as noções preliminares do que seja sistema, signo, símbolo e intercomunicação social.
Sistema é todo conjunto de unidades, concretas ou abstratas, reais ou imaginárias, que se encontram organizadas e que se ordenam para a realização de certa ou de certas finalidades [HCv.1, 264].
Entende-se por signo ou sinal a unidade, concreta ou abstrata, real ou imaginária, que, uma vez conhecida, leva ao conhecimento de algo diferente dele mesmo: as nuvens negras e densas no céu manifestam ou são o sinal de chuva iminente; o -s final em livros é o signo ou sinal de pluralizador, assim como em cantas é o signo de 2.ª pessoa do singular. Por isso mesmo se diz que tais unidades são simbólicas, já que se entende em geral por símbolo aquilo que, por convenção, manifesta ou leva ao conhecimento de outra coisa, a qual substitui. Assim, o cordeiro é o “símbolo” da mansidão; o macaco, da astúcia. No que toca estritamente à linguagem humana, pois só ela é a linguagem objeto da Linguística, os signos linguísticos diferem dos símbolos porque estes não constituem necessariamente sistema e podem sozinhos e sem nenhuma oposição “simbolizar”. A oposição é um princípio fundamental para a determinação da existência dos signos linguísticos, como veremos adiante.
Por fim, intercomunicação social, porque a linguagem é sempre um estar no mundo com os outros, não como um indivíduo particular, mas como parte do todo social, de uma comunidade.
2 – Dimensões Universais da Linguagem
A linguagem, entendida como atividade humana de falar, apresenta cinco dimensões universais: criatividade (ou enérgeia), materialidade, semanticidade, alteridade e historicidade.
Criatividade, porque a linguagem, forma de cultura que é, se manifesta como atividade livre e criadora, ou “do espírito”, isto é, como algo que vai mais além do aprendido, que não simplesmente repete o que já foi produzido.
Materialidade, porque a linguagem é, primeiramente, uma atividade condicionada fisiológica e psiquicamente, pois implica, em relação ao falante, a capacidade de utilizar os órgãos de fonação, produzindo signos fonéticos articulados (fonemas, grafemas, quando representados na escrita, etc.) com que estabelece diferenças de significado (por exemplo, Pala, Vala, Mala, Tala, Rala, etc.); enquanto em relação ao ouvinte, implica a capacidade de perceber tais fonemas e interpretar o percebido como referência ao conteúdo configurado pelo falante mediante os signos fonéticos articulados. É o nível biológico da linguagem.
Semanticidade, porque a cada forma corresponde um conteúdo significativo, já que na linguagem tudo significa, tudo é semântico.
Alteridade, porque o significar é originariamente e sempre um “ser com outros”, próprio da natureza político-social do homem, de indivíduos que são homens juntos a outros e, por exemplo, como falantes e ouvintes, são sempre cofalantes e coouvintes.
Historicidade, porque a linguagem se apresenta sempre sob a forma de língua, isto é, de tradição linguística de uma comunidade histórica. Não existe língua desacompanhada de sua referência histórica: só há língua portuguesa, língua francesa, língua inglesa, língua espanhola, língua latina, etc.
Geralmente se ouve que a língua é imposta ao homem, porque este é obrigado a dizer que determinado objeto conhecido por sua comunidade como livro é livro, e não lápis ou mesa. Tal fato não constitui uma limitação ou negação da liberdade do falante; é sim a dimensão histórica da linguagem, que coincide com a própria historicidade do homem. Trata-se de uma obrigação aceita livremente, e não de uma imposição. Este é o significado original da palavra latina obligatio [ECs.8, 216]. A língua não é “imposta” ao homem; este “dispõe” dela para manifestar sua liberdade expressiva. As atividades livres implicam um próprio “dever ser”, isto é, uma série de normas intrínsecas.
Destas cinco dimensões, a criatividade e a materialidade são universais de todas as formas da cultura, pois são todas atividades criadoras que se realizam no mundo de forma material, sem o que não poderiam existir nem passar ao conhecimento dos outros membros da comunidade. A semanticidade é a “differentia specifica” da linguagem em relação às outras formas de cultura. A alteridade é o traço distintivo do significar linguístico em relação aos outros tipos de “conteúdo” das formas de expressão e é, por sua vez, fundamento da historicidade da linguagem [ECs.8, 15-16].
Por fim, há de se levar em conta, na capacidade geral de expressão, a execução de atividades que acompanham e às vezes até a substituem, já que não falamos só com as unidades linguísticas, com a língua concreta. Estas são formas de expressão extralinguísticas, tais como a mímica, a entonação, o ritmo, as pausas e silêncios, os gestos, os recursos gráficos e outros. O emprego da maiúscula serve para estabelecer antíteses entre o verdadeiro e bom e o menos bom e verdadeiro, quando dizemos:
Ele é um Professor com P maiúsculo, ou a referência à forma gráfica distingue homônimos, como em:
Chegamos na hora h.
Há momentos em que expressões só são inteligíveis se acompanhadas de determinado gesto:
“Um anjo, meu pateta, um anjo sem asas. Imagina uma moça assim, desta altura, viva como um azougue, e uns olhos...” [MA.1, 92].
À mímica corporal junte-se a vocal, a entoação especial com que se proferem certas palavras ou frases inteiras, que o escritor procura reavivar na escrita com a utilização de variados recursos gráficos:
“Não vou daqui sem uma resposta definitiva, disse meu pai. De-fi-ni-ti-va! repetiu, batendo as sílabas com o dedo” [MA.1, 88].
“Os dois garotos, porém, esperneiam com a mudança de mãe: – Mentira!... Mentiiiira!... Mentiiiiiiiiiiira! – berra cada um para seu lado” [HC.1, 32].
3 – Atos Linguísticos
A linguagem humana articulada se realiza de maneira concreta por meio de formas específicas chamadas atos linguísticos, que se organizam em sistemas de isoglossas (isos = igual; glossa = língua) denominados tradicionalmente línguas. Embora o ato linguístico, por sua natureza, seja individual, está vinculado indissoluvelmente a outro indivíduo pela natureza finalística da linguagem, que é sempre um falar com os outros, consoante a dimensão alteridade, a que aludimos anteriormente.
Só de modo ideal se pensa em linguagem como um só sistema de signos; na realidade, há na linguagem diversos sistemas de signos – isto é, de línguas –, diversidade que varia entre países, entre comunidades sociais ou outros grupos de falantes.
A realidade concreta da linguagem, como dissemos, é o ato linguístico, quer dizer, é cada unidade de comunicação da linguagem humana, seja uma palavra ou uma frase. Os atos linguísticos não se realizam idênticos de falante para falante de uma mesma comunidade linguística, e até num só falante, em circunstâncias diferentes. Essa diversidade não se dá somente na forma material do ato linguístico, isto é, na sua expressão, mas também no seu significado, isto é, no seu conteúdo.
Para que se proceda a uma análise coerente e uniforme da linguagem humana, tem-se de considerar idealmente que os atos linguísticos são mais ou menos idênticos na expressão (forma material) e no conteúdo (significado), e é isto que realmente ocorre, porque, se não houvesse essa aparente identidade, não seria possível a comunicação entre os indivíduos, já que a comunicação é a finalidade fundamental da linguagem.
O conjunto sistêmico de atos linguísticos comuns considerados idênticos realizados numa comunidade linguística e por ela comprovada na consciência de seus falantes (“ele fala como eu”, “o português dele é diferente do nosso”) se acha delimitado por uma linha ideal, imaginária, isoglossa, de modo que se pode definir língua: um sistema de isoglossas comprovado numa comunidade linguística.
Esse sistema de isoglossas pode ser extensíssimo que abarque uma língua histórica de todos os falantes de uma larga comunidade, considerada no seu conjunto geográfico, social e individual (língua portuguesa, língua espanhola, língua francesa, língua latina, etc.); pode ser menos extensa, principalmente quando a língua histórica é falada por mais de um país (língua portuguesa da modalidade europeia – “português de Portugal” / língua portuguesa da modalidade americana – “português do Brasil” bem como língua portuguesa da África; língua inglesa da Inglaterra / língua inglesa dos Estados Unidos; francês da França / francês da Bélgica / francês do Canadá); pode ser ainda menos extensa do ponto de vista espacial (português do Rio de Janeiro / português de Lisboa; francês de Paris; alemão da Baviera); pode ser ainda menos extensa espacial, social e estilisticamente (português fluminense rural / português paulista familiar / português literário do Romantismo brasileiro); pode abarcar um só falante (português de Machado de Assis / português de Eça de Queirós; português de um analfabeto).
Assim, o conceito de língua, considerada como um sistema de isoglossas, varia de acordo com o entendimento mais largo ou mais estreito que se atribui à extensão do conjunto de atos linguísticos comuns.
B) Planos e níveis da linguagem como atividade cultural
1 – Planos e Níveis da Linguagem
A linguagem, como atividade humana universal do falar, que se realiza individualmente, mas sempre de acordo com tradições de comunidades históricas, pode diferenciar-se em três planos relativamente autônomos:
a) Universal ou do falar em geral, já que se apresenta como prática universalizada não determinada historicamente, isto é, todos os homens adultos e normais falam. É a referência ao plano do falar em geral, e a ele se alude, quando se diz que esta criança ainda não fala (note-se que não se quer dizer que ela ainda não fala português ou espanhol, por exemplo). Alude-se ainda a este plano quando se declara que os animais não falam. Aqui, como no exemplo anterior, não se refere a uma língua concreta, mas à capacidade de falar. O plano universal alude àquilo que faz parte de todo falar, não importa em que língua.
b) Histórico ou da língua concreta, já que, ao falar, o homem o faz mediante uma língua determinada: falar português, falar espanhol, etc. Como já se disse, não há língua sem adjetivo; só há língua portuguesa, língua espanhola, etc., onde o adjetivo pátrio aponta para uma tradição histórica determinada. Até as línguas inventadas, como o esperanto, se constroem e representam uma nova tradição do falar. Este é o plano de uma língua concreta determinada. O falante tem consciência desse saber ao afirmar, por exemplo, que alguém não fala bem o português.
c) Individual, já que é sempre um indivíduo que fala mediante uma língua determinada, e o faz, cada vez segundo uma circunstância determinada. A atividade de falar um indivíduo segundo a conveniência de uma circunstância determinada chama-se discurso. Não confundir discurso, nessa aplicação à atividade, com texto, que será entendido como produto dessa atividade, produto do discurso. O discurso – assim o texto como seu produto – está determinado por quatro fatores: o falante, o destinatário, o objeto ou tema de que se fala e a situação.
Como toda atividade cultural, a atividade real de falar pode ser considerada sob três pontos de vista diferentes [ECs.8, 88]:
a) Como a própria atividade, como falar e entender, isto é, como atividade criadora que se serve de um saber já presente para dizer algo novo e com capacidade de criar um saber linguístico. É este o sentido próprio de enérgeia. Uma língua é “forma” e “potência” de uma enérgeia.
b) Como o saber que está subjacente à atividade, isto é, como a competência ou como o que Aristóteles chamava dýnamis.
c) Como o produto criado pela atividade do falar individual, isto é, como obra ou érgon: o texto.
Como toda atividade, o falar é uma atividade que revela um saber; assim a estes três níveis correspondem três planos ou tipos de saber linguístico:
a) Ao falar em geral mediante cada língua corresponde o saber elocutivo, ou competência linguística geral, que não é saber falar uma língua particular, mas, ao falar com qualquer língua, fazê-lo segundo os princípios da congruência em relação aos padrões universais do pensamento e ao conhecimento geral que o homem tem do “mundo”, do mundo empírico. Na discutida frase “A mesa quadrada é redonda”, não há propriamente desconhecimento de língua, e sim de formulação do pensamento por desconhecer a realidade do mundo empírico, uma vez que “ser quadrado” é diferente de “ser redondo”.
b) Ao falar (em) uma língua particular corresponde o saber histórico denominado saber idiomático, ou competência linguística particular, que é falar (em) uma língua determinada de acordo com a tradição linguística historicamente determinada de uma comunidade.
c) Ao falar individual e relacionado com a maneira de elaborar textos segundo situações determinadas corresponde o chamado saber expressivo ou competência textual; é um saber técnico (gr. téchnē), isto é, um saber que se manifesta no próprio fazer, um saber fazer gramatical que se manifesta numa língua particular e que pode ir além do já criado nessa língua.
A linguagem se realiza, portanto, de acordo com um saber adquirido e se apresenta sob forma de fatos objetivos ou produtos. Mas, como bem caracterizou Humboldt em termos aristotélicos, a linguagem não é na essência érgon ‘produto’, ‘coisa feita’, mas enérgeia, ‘atividade’, atividade criadora, isto é, que vai além da técnica “aprendida”, além do seu saber (dýnamis).
Assim, também do ponto de vista do produto se distinguem esses três planos:
a) o produto do falar em geral é a “totalidade de todas as manifestações”, empiricamente infinita, o falado; não só a totalidade do que já foi dito, mas ainda a totalidade do que se pode dizer, se considerada sempre como “coisa feita”.
b) o produto do falar (em) uma língua particular é a língua particular abstrata, isto é, a língua deduzida do falar e concretizada em uma gramática e em um dicionário, ou, em outras palavras, o que no falar se reconhece como constante e que é objeto da linguística das línguas como descrição e como história.
c) o produto do falar individual é o texto, tal como pode ser anotado ou escrito.
2 – Juízos de Valor
Frequentemente se ouve um falante nativo dizer que “isso não é português” ou “isso não se diz assim em português” ou “seria melhor dizer assim em português”, o que demonstra que os aspectos de juízos de valor devem merecer especial atenção do falante nativo, bem como do linguista e do gramático normativo. Infelizmente, em vista de confusões que Coseriu procurou deslindar, o assunto tem sido mal posto em discussão e, por isso, mal resolvido, de modo que as incoerências e os desencontros são responsáveis pela ideia muito difundida, mas errada, de que o tema não é científico, e fica sujeito ao capricho de pessoas despreparadas e intransigentes.
Distinguem-se três tipos de juízos de valor referentes às conformidades do falar com o respectivo saber linguístico:
a) Ao saber elocutivo corresponde a norma da congruência, isto é, os procedimentos em consonância com os princípios do pensar, autônomos ou independentes dos juízos que se referem à língua particular e ao texto. Neste plano do falar em geral temos não só a norma da congruência e da coerência, mas ainda a norma de conduta da tolerância, já que, muitas vezes, diante de frases “desconexas”, a incongruência pode ser anulada pela tradição da língua particular e pela intenção do discurso. Assim, quando a canção diz que “Tudo em volta está deserto, tudo certo / Tudo certo, como dois e dois são cinco”, não se interpreta como falar incongruente por conhecerem os falantes o procedimento da anulação metafórica: o que a canção quer dizer metaforicamente é que nada vai bem entre os tais namorados, como a soma de dois mais dois igual a cinco não está bem.
b) Ao saber idiomático corresponde a norma da correção, isto é, a conformidade de falar (em) uma língua particular segundo as normas de falar historicamente determinado e corrente na comunidade que a pratica. Sendo uma língua histórica (todo o português) um conjunto de várias línguas comunitárias, haverá mais de uma norma de correção (o português do Brasil, o português de Portugal, o português exemplar, o português comum, o português familiar, o português popular, etc.). Por falta das distinções até aqui estabelecidas, têm-se atribuído à língua particular ou ao saber idiomático qualidades e atributos que antes pertencem ao plano do falar em geral ou saber elocutivo (“coerência”, “eficácia”, “concisão”, “clareza”, “harmonia”, etc.) ou ao plano individual ou saber expressivo (“adequado”, “apropriado”, “elegante”, “expressivo”, etc.). O juízo de valor concernente à correção é juízo de “suficiência” ou “conformidade” somente com o saber idiomático historicamente determinado para uma comunidade.
c) Ao saber expressivo corresponde a norma de adequação à constituição de textos levando em conta o falante, o destinatário, o objeto ou a situação, critério mais complexo, e independente do critério de correção em relação à língua particular e do critério de congruência em relação ao falar em geral. A adequação ao discurso e à constituição de textos pode levar em conta o objeto representado ou o tema (e aí será considerada adequada ou inadequada), o destinatário (então será considerada apropriada ou inapropriada) ou a situação ou circunstâncias (e aí será considerada oportuna ou inoportuna).
A competência ou saber não se manifesta igualmente em todos os planos do linguístico. Na língua particular ele ocorre com mais frequência; nos outros planos – no saber elocutivo e principalmente no saber expressivo – o domínio da competência só se alcança depois de cuidada educação linguística. Muitas vezes se diz que “alguém escreve mal o português”, quando, na realidade se quer fazer referência ao saber elocutivo ou ao expressivo, porque escreve sem congruência ou sem coerência, ou ainda com pouca clareza. Quando se diz que “o francês” é uma língua clara”, a rigor, não se quer fazer referência a características da língua francesa, mas à capacidade de estruturar o pensamento, o discurso ou o texto com clareza e logicidade mais do que o normal, em virtude de uma larga tradição do falar nessa comunidade, tradição que começa no ensino escolar francês, e que deveríamos cultivar entre nós.
Cabe ainda lembrar o que foi aqui antes esboçado: conforme a intenção do falante, a adequação relativa a um discurso ou a um texto pode anular a incorreção idiomática, enquanto a adequação relativa à correção idiomática pode anular a incongruência ou incoerência do saber elocutivo.
3 – Três Tipos de Conteúdo Linguístico
Aos três planos linguísticos correspondem ainda três tipos diferentes de conteúdo linguístico:
a) Ao plano linguístico geral corresponde a designação (ou referência), isto é, a referência a uma “realidade” extralinguística, a um estado de coisas extralinguístico. Assim em A porta está fechada e A porta não está aberta faz-se referência à mesma realidade extralinguística. As orações não são sinônimas; são equivalentes na referência à designação.
b) Ao plano linguístico particular corresponde o significado, isto é, o conteúdo dado linguisticamente em uma língua particular, ou, em outras palavras, a especial configuração da designação numa língua particular.
c) Ao plano do discurso corresponde o sentido, que é o “dito” por meio do texto, isto é, o especial conteúdo linguístico que se expressa mediante a designação e o significado, sentido que, num discurso individual, vai além desses outros conteúdos e que corresponde às atitudes, intenções ou suposições do falante. Por exemplo, nas expressões dar com os burros n’água ou torcer o nariz o sentido é, respectivamente, “ter insucesso” e “rejeitar”. Numa anedota, mediante a designação e o significado, atinge-se o sentido quando se “pega” o chamado “espírito da coisa”. Uma visita de cerimônia ao dizer ao dono da casa “Hoje está quente” pode ter a intenção de querer dizer “Por favor, abra a janela”, que é o verdadeiro “sentido” da sua primeira frase. Quando dizemos a uma pessoa, pela manhã, “Bom dia!” não queremos dizer-lhe que o dia está agradável, mas tão somente cumprimentá-la; esse é o “sentido” da frase. Pode até o tempo estar chuvoso ou ameaçador; porém, é assim que tradicionalmente a nossa comunidade saúda alguém pela manhã. O sentido, portanto, se manifesta no plano individual do discurso.
Assim como o significado pode coincidir com a designação, como ocorre na linguagem técnica, onde tudo o que existe na tradição linguística concernente a ela é “nomenclatura”, à medida que vai além do saber linguístico e implica um saber relativo às coisas mesmas, assim também o sentido pode coincidir com o significado, quando o texto é só informativo, e não artístico ou literário (“simbólico”). Mesmo em determinadas formas de “literatura”, os fatos designados e significados são informativos, como ocorre na novela policial, que só muito excepcionalmente se alça à literatura artística [ECs.8, 291-292].
O quadro a seguir sintetiza tudo o que vimos até aqui:
C) Língua histórica e língua funcional
1 – Língua Histórica
Quando nos referimos a língua portuguesa, língua espanhola, língua alemã ou língua latina, fazemos alusão a uma língua como produto cultural histórico, constituída como unidade ideal, reconhecida pelos falantes nativos ou por falantes de outras línguas, e praticada por todas as comunidades integrantes desse domínio linguístico. Entendido assim, esse produto cultural recebe o nome de língua histórica. Esse amplo e diversificado espaço cultural, historicamente relacionado, está presente na frase de Fernando Pessoa: Minha pátria é a língua portuguesa.
Fácil é concluir que uma língua histórica encerra em si várias tradições linguísticas, de extensão e limite variáveis, em parte análogas e em parte divergentes, mas historicamente relacionadas. São analogias e divergências fonéticas, gramaticais e léxicas; por isso se diz que uma língua histórica nunca é um sistema único, mas um conjunto de sistemas.
Os sistemas que integram a língua histórica apresentam três aspectos, fundamentais de diferenças internas:
a) No espaço geográfico, constituindo os diferentes dialetos; Essa diversidade no espaço se diz diatópica (do grego diá ‘através de’, tópos ‘lugar’), enquanto a relativa uniformidade no espaço se diz sintópica (do grego sýn ‘reunião’).
b) No nível sociocultural, constituindo os diferentes níveis de língua e estratos ou camadas socioculturais. Essa diferença no estrato sociocultural se diz diastrática (do latim stratum ‘estrato’, ‘camada’), enquanto a relativa uniformidade correspondente se diz sinestrática ou sinstrática, também conhecida por dialeto social.
c) No estilo ou aspecto expressivo, isto é, em relação a diferentes situações do falar e estilos de língua. Essa diferença se diz diafásica (do grego fásis ‘expressão’), enquanto a relativa uniformidade correspondente se diz sinfásica ou homogeneidade estilística.
As diferenças diatópicas ou os dialetos sempre mereceram as atenções dos estudiosos, o que nem sempre ocorreu com as diferenças de níveis (diastráticas) e de estilos de língua (diafásicas). Nem todas as línguas históricas têm muito marcadas as diferenças dialetais como ocorre, por exemplo, na Itália. No português essas diferenças são muito menos profundas, do que no italiano. Alguns linguistas chegam, no caso do português, a preferir falares a dialetos.
As diferenças diastráticas são mais marcadas em comunidades onde os estratos sociais se apresentam muito distanciados, como na antiga Índia, ou onde a rede escolar se encontra fragilizada ou inexistente entre as camadas populares. Nas comunidades modernas, existem diferenças diastráticas na distinção entre o nível popular (como ocorre no francês e inglês), bem afastado das formas “cultas” ou exemplares destas línguas, ou, com menos intensidade, no espanhol e no italiano populares. Menos intensa é ainda a distância entre o chamado português popular e o padrão ou culto.
As diferenças diafásicas se manifestam quando se comparam língua falada e língua escrita, língua usual e língua literária, língua corrente e língua burocrática ou oficial, etc. Nenhuma dessas variedades diafásicas se apresenta homogeneamente; até a língua literária acusa gradações, às vezes bem nítidas, como é o caso das divergências entre a prosa e a poesia (em verso), entre a poesia épica e a lírica, etc.
Incluem-se nas diferenças diafásicas as que ocorrem, num mesmo estrato sociocultural, entre grupos “biológicos” (homens, mulheres, jovens, crianças) e profissionais.
Uma língua que apresenta só um estilo já não é uma língua viva; a que apresenta um ou poucos estilos é uma língua morta e funciona como veículo de comunicação para comunidades determinadas que têm sua própria língua, e se destina a finalidades culturais e profissionais, como tem sido o caso do latim na Igreja e, desde a Idade Média, na filosofia, na filologia, na medicina e outros domínios das ciências, e de especiais praxes acadêmicas universitárias (em cerimônias na outorga do título de doutor honoris causa, por exemplo a laudatio).
Há, contudo, uma realidade linguística idealmente homogênea e unitária, isto é, que se apresenta sintópica, sinstrática e sinfásica; em outras palavras, uma língua unitária quanto ao dialeto, ao nível e ao estilo: é a língua funcional, assim chamada porque é a modalidade que de maneira imediata e efetiva funciona nos discursos e textos.
2 – Língua Funcional
É bem verdade que num discurso e texto pode aparecer mais de uma língua funcional, principalmente se se mudam as circunstâncias e fatores (destinatário, objeto, situação). Todo falante de uma língua histórica é plurilíngue, porque domina ativa ou passivamente mais de uma língua funcional, embora não consiga nunca saber toda a extensão de uma língua histórica; e o sucesso da educação linguística é transformá-lo num “poliglota” dentro de sua própria língua nacional. Mas na constituição do discurso e do texto há sempre uma língua funcional que se sobrepõe às demais. Mesmo uma língua comum o mais possível unificada e codificada com muita rigidez, como ocorre com o francês “oficial”, não corresponde exatamente a essa realidade de língua funcional, em face das diferenças estilísticas nele existentes.
Como por exigência metodológica e de coerência interna só se pode descrever uma realidade homogênea e unitária, é a língua funcional o objeto próprio da descrição estrutural e funcional. Uma gramática como produto desta descrição nunca é o espelho da língua histórica; é apenas a descrição de uma das suas línguas funcionais. Por isso não se há de exigir desta gramática o registro de fatos que pertençam a línguas funcionais diferentes: nisto consiste a diferença entre estrutura e arquitetura.
3 – Estrutura e Arquitetura
Estrutura é a descrição das oposições funcionais na expressão e no conteúdo de mesma técnica idiomática, isto é, a homogeneidade de uma língua funcional. Arquitetura é o registro da diversidade interna de uma língua histórica, onde coexistem para funções análogas formas distintas e vice-versa, isto é, diversidade de línguas funcionais. Por exemplo, a descrição do emprego dos pronomes o e lhe no português exemplar ou padrão é um fato de estrutura; a comparação do emprego de o no português padrão e do corresponde ele no português popular ou familiar ou do pronome lhe nessas modalidades é um fato de arquitetura do português do Brasil.
Para se chegar com coerência ao conceito de língua funcional e à essência do objeto próprio da descrição de uma técnica linguística é necessário fazer, além da distinção entre estrutura e arquitetura, uma série de outras, quase sempre não levadas em consideração na gramática tradicional e em algumas linguísticas modernas: 1) conhecimento da língua e conhecimento das “coisas” (incluídos aí os seres vivos); 2) linguagem e metalinguagem; 3) sincronia e diacronia; 4) técnica livre e “discurso repetido”[ECs.8, 288].
4 – Conhecimento da Língua e Conhecimento das “coisas”
No plano do saber histórico não contamos somente com fatos linguísticos, mas também com outras tradições ligadas a “coisas” ou ao mundo extralinguístico. Assim, por exemplo, diante de frases do tipo “Macaco velho não mete a mão em cumbuca” ou de expressão como “macaco velho”, não se pode dizer que macaco ou macaco velho evoca em português a ideia de ‘prudência’, ‘sagacidade’. Relativamente à língua portuguesa, macaco está relacionado a outros animais, como mico, chimpanzé, etc.; pela evocação a ‘prudência’ não é responsável a língua portuguesa, até porque em muitas comunidades lusófonas o animal macaco não está relacionado com essa ideia. A evocação resulta exclusivamente do conhecimento que temos do animal, da sua participação em histórias, especialmente do folclore brasileiro.
5 – Linguagem e Metalinguagem
A metalinguagem é um uso linguístico cujo objeto é também uma linguagem; por exemplo quando se fala de palavras e seus componentes ou de orações: “linguagem é uma palavra derivada de língua”, “linguagem é um substantivo feminino em português e masculino em espanhol e francês”. “-ção é um sufixo formador de substantivo”, “Cadeira tem três sílabas”, etc. A metalinguagem não apresenta unidades estruturais nem pode ser estruturada no nível do saber idiomático; nem por isso seu estudo deixa de merecer o cuidado da ciência.
A linguagem, também chamada linguagem primária, não é uma linguagem que tem por objeto uma linguagem.
Esta distinção tem importância especial para a gramática. Por exemplo, qualquer palavra, grupo de palavras, parte de palavras, uma oração inteira, todo um texto tomado materialmente na metalinguagem pode ser considerado uma “palavra”, um substantivo masculino por ser nome de algo: “-mente é um sufixo”, “lá marca distância do falante”, “Terrível palavra é um não”, “Não roubar é um mandamento divino”.
A metalinguagem pode manifestar uma técnica, um saber próprio em uma determinada tradição linguística. Por exemplo, na metalinguagem, em português, diz-se sem artigo “Homem é um dissílabo”, enquanto na linguagem primária se diz com artigo “O homem trabalha”.
6 – Sincronia e Diacronia
Outra distinção essencial, por sinal a primeira que se deve fazer no estudo das línguas, é a que se estabelece entre sincronia e diacronia. Por sincronia entende-se, em princípio, a referência à língua em um dado momento do seu percurso histórico, “sincronizada” sempre com seus falantes, e considerada no seu funcionamento no falar como descrição sistemática e estrutural de um só sistema linguístico (“língua funcional”), enquanto por diacronia se entende a referência à língua através do tempo, isto é, no estudo histórico das estruturas de um sistema (“gramática histórica”), e como história da língua. Todavia, neste último aspecto, sincronia e diacronia não são correlativos, pois se se levar em conta o caráter parcialmente inovador de todo ato linguístico, toda língua viva está num perpétuo devenir, já que o aspecto sincrônico, para uma língua considerada na sua totalidade, metodologicamente imposto e necessário, é apenas uma abstração científica para estudar como a língua funciona e os traços que, entre dois momentos do seu desenvolvimento, se mostram constantes. Até para fins práticos necessitamos considerar a língua como algo estável e constante. Assim, a descrição sincrônica prescinde da história, no sentido de que não a abarca, mas a diacronia não pode prescindir das sincronias. Por fim, não se pode perder de vista que a descrição da língua num momento do seu desenvolvimento é uma parte da história dessa língua. Uma língua viva nunca está plenamente feita, mas se faz continuamente graças à atividade linguística.
À sincronia corresponde não só a descrição de sistemas unitários (isto é, a disciplina “gramática” em sua acepção mais ampla, abarcando ainda a fonologia e a semântica léxica estrutural ou lexemática), mas também a descrição dos três tipos de variedade já vistos feita por três outras disciplinas (“dialetos” Õ dialetologia, “níveis” Õ sociolinguística e “estilos” Õ estilística da língua).
7 – Estado da Língua Real e Sincronia
Convém distinguir entre estado de língua real e sincronia, considerada de modo absoluto. No estado de língua também está implícita uma dimensão diacrônica, já que os falantes, principalmente de comunidades com larga tradição de língua escrita, têm consciência de que certas formas são mais antigas que outras; que algumas já não se usam e que outras são recentes. Todavia essa “diacronia dos falantes” – que pode ser bem diferente da diacronia do historiador – não importa em relação ao funcionamento da língua, porque todo fato de “diacronia” subjetiva tem de ser descrito no seu funcionamento, isto é, na sua própria sincronia [ECs.8, 296].
À história da língua compete também referir-se ao aspecto sincrônico à medida que tem de socorrer-se dos vários “estados de língua” sucessivos, pois a “gramática histórica” é a comparação entre os vários sistemas estáticos compreendidos nos limites estabelecidos para estudo. No caso de uma língua românica como o português, pode-se começar pelos diversos sistemas do latim (clássico, vulgar, etc.) e continuar pelos sistemas sucessivos do português ou fases históricas (medieval, clássico, etc.), ou então partir do próprio português como língua já estabelecida e reconhecida pelos seus falantes e pelos falantes de outras comunidades linguísticas.
Pelo que vimos até aqui, e para evitar equívocos que elas implicam, seria melhor fugir às denominações linguística sincrônica e linguística diacrônica e, em vez delas, usar descrição e história da língua, porque ambas estão compreendidas no nível histórico da linguagem e constituem juntas a linguística histórica. Desligam-se, desta maneira, as noções de sincronia e diacronia da interpretação meramente temporal, como as entendia Saussure, em cuja lição sincronia estava circunscrita a um só momento e diacronia a vários momentos [ECs.8, 281].
8 – Técnica Livre do Discurso e Discurso Repetido
Outra distinção necessária no estudo “sincrônico” de língua é a que se faz entre técnica livre do discurso e discurso repetido, porque as tradições linguísticas não só contêm técnica para falar, mas ainda linguagem já falada.
A técnica livre abarca os elementos constitutivos da língua e as regras “atuais” relativas à sua modificação e combinação, isto é, abarca as “palavras” e os instrumentos e procedimentos léxicos e gramaticais.
O discurso repetido abarca tudo aquilo que, no falar de uma comunidade, se repete mais ou menos uniformemente, como algo “já dito”: algo já fixado num discurso e que pode ser repetido noutro discurso como “expressão”, “giro”, “modismo”, frase ou locução cujos elementos constitutivos não são nem substituídos nem aceitam ser dispostos noutra ordem conforme permitem as regras de funcionamento da língua, ficando, assim, por não se submeterem a qualquer estruturação – pois só a técnica é estruturável –, fora do objeto da gramática e da lexicologia sincrônicas.
Assim, bom professor e boa semana pertencem à técnica livre do discurso, enquanto bom samaritano e bom dia (para a saudação matinal) são exemplos de discurso repetido.
D) Sistema, norma, fala e tipo linguístico
1 – Os Quatro Planos de Estruturação
Uma língua funcional apresenta diversos planos de estruturação. Distinguem-se quatro planos de estruturação: o falar (que é o plano da realização, isto é, uma técnica idiomática efetivamente realizada), e três planos de técnica ou de saber enquanto tal: a norma, o sistema e o tipo linguístico, que dizem respeito exclusivamente à estruturação de uma mesma técnica idiomática, em oposição à arquitetura, que, como já vimos, diz respeito à diversidade interna da língua histórica, com seu conjunto de línguas funcionais, em parte coincidentes e em parte diferentes umas das outras.
2 – A Norma
A norma contém tudo o que na língua não é funcional, mas que é tradicional, comum e constante, ou, em outras palavras, tudo o que se diz “assim, e não de outra maneira”. É o plano de estruturação do saber idiomático que está mais próximo das realizações concretas. O sistema e a norma de uma língua funcional refletem a sua estrutura.
3 – O Sistema
O sistema contém apenas as oposições funcionais, isto é, contém unicamente os traços distintivos necessários e indispensáveis para que uma unidade da língua (quer no plano da expressão, quer no plano do conteúdo) não se confunda com outra unidade.
Assim, no sistema dos relativos em português, que e o qual se opõem ambos a quem e cujo, por exemplo; mas a norma usual da língua prefere unicamente o qual, e não que, depois de preposição com mais de duas sílabas:
Os caminhos de que (dos quais) lhe falei...
mas:
As razões segundo as quais (e não segundo que).
O sistema verbal português marca a 1.ª pessoa do singular do presente do indicativo com o morfema -o: eu canto, vendo, parto.
Crianças e adultos que usam incorretamente a forma verbal seio (por sei) são levados a fazê-lo por força do sistema, mas desconhecem a norma.
O sistema do português conta, além de outros, com o sufixo -ção para formar substantivos, em geral denotadores de ação, oriundos de verbos: coroar Õ coroação; colocar Õ colocação.
Todavia, a norma prefere casamento a casação, livramento a livração, tomada a tomação ou tomamento, etc. Outras vezes, a norma agasalha ambas as formas possibilitadas pelo sistema.
No domínio da sintaxe também se comprova a distinção entre norma e sistema. Os chamados complementos verbais quando constituídos por substantivos normalmente se dispõem na ordem direto + indireto (Dei um livro ao primo), mas quando aparece, numa dessas funções ou nas duas, pronome pessoal, a norma é vir primeiro o indireto: (Dei-lhe um livro) / Dei-lho (lhe + o).
O falante domina o sistema de uma língua quando está em condições de criar nela. Relativamente à norma, o seu domínio é muito mais complexo e exige do falante uma aprendizagem por toda a vida.
A norma pode coincidir com o sistema quando este oferece uma só possibilidade de realização.
O distanciamento entre sistema e norma de realização se manifesta quando a “novidade” criada à luz do sistema inexiste na norma, na tradição já realizada e, por isso mesmo, não se encontra registrada nos dicionários e nas gramáticas. Foi o caso, entre nós, de imexível, nascido com procedimentos do sistema do mesmo modo que intocável, infalível, etc., mas não ainda realizado na norma. Esqueceram-se os críticos de que uma língua viva não está feita, isto é, que não só estrutura seus atos por modelos precedentes, mas faz-se e refaz-se constantemente, encerra formas feitas e tem potencialidade para criar formas novas, e está sempre a serviço das necessidades expressivas de qualquer falante. É nisto que consiste a dimensão criatividade já aludida aqui anteriormente.
Como também pode conter traços não pertinentes do ponto de vista de oposição funcional, a norma, em certo sentido, tem maior amplitude que o sistema, já que este só contém traços distintivos necessários e indispensáveis para que uma unidade da língua se diferencie de outra unidade. Por outro lado, o sistema é mais amplo do que a norma, porque propicia também possibilidades inéditas, não realizadas na norma da língua.
4 – O Tipo Linguístico
O tipo linguístico é o mais alto plano que se pode comprovar da técnica da língua. É o conjunto coerente de categorias funcionais e de tipos de procedimentos materiais que configuram um sistema ou diferentes sistemas: compreende as categorias de oposições de expressão e de conteúdo e os tipos de funções. Enquanto o sistema é sistema de possibilidades em relação à norma, o tipo é sistema de possibilidades em relação ao sistema.
No processo histórico, a norma pode modificar-se permanecendo inalterável o sistema, bem como o sistema pode modificar-se conservando no tipo seus princípios de configuração. As numerosas semelhanças que se podem apontar nas línguas românicas não se explicam somente pela origem comum e influências recíprocas, mas também porque, com exceção do francês, se configuraram em vários pontos por princípios funcionais análogos de tipo linguístico [ECs.14, 53-54].
Por fim, cabe esclarecer que a tipologia linguística está nos seus começos; alguns estudos que se têm realizado com seu nome nada mais são do que gramática contrastiva no nível dos sistemas e classificação de procedimentos idiomáticos.
No tocante às relações conceituais de fala, norma, sistema e tipo linguístico no quadro teórico de E. Coseriu e de F. de Saussure, fala corresponde mais ou menos à parole; a norma e o sistema da língua correspondem, no seu conjunto, mais ou menos à langue, enquanto o tipo linguístico não foi identificado como tal pelo linguista genebrino.
E) Propriedades dos estratos de estruturação gramatical 1
1 – Os Estratos Gramaticais
Em português, os estratos gramaticais possíveis são, pela ordem ascendente: o elemento mínimo (ou monema), a palavra gramatical, o grupo de palavras, a cláusula, a oração e o texto:
Do ponto de vista de sua função gramatical, casa- e -s são “monemas”; já casas, na oposição casa / casas, é uma “palavra gramatical” com sua função “plural”, uma vez que -s é o “pluralizador” e casa- o “pluralizado”, e o sintagma inteiro casas é o “plural”. Em português, a “explicação” e a “especificação” são funções do nível do grupo de palavras e se expressam mediante a posição do adjetivo. No grupo substantivo + adjetivo o manso boi, o vasto oceano, o adjetivo é explicativo (já que não separa classes menores dentro das classes “boi” e “oceano”; apenas expressa propriedades inerentes a estas classes); no entanto, em o boi manso, o adjetivo é “especificativo” (porque serve para opor um boi manso a outros bois não mansos). Como no exemplo anterior, manso é “explicador”e boi o termo “explicado”, e o sintagma inteiro o manso boi é um “explicativo”.
A oposição correspondente às funções “comentário” e “comentado” ocorre no estrato funcional a que Coseriu dá o nome convencional cláusula, que é o estrato que, no interior de uma só e mesma oração, estabelece a referida oposição. O chamado “advérbio de oração”, que não passa de uma cláusula “comentário”, ocorre nesse nível de estruturação. Em Eu sei certo, só temos uma oração, sem nenhum comentário, porque significa simplesmente ‘eu sei com segurança’, ‘com certeza’. Já na oração em Certamente, eu sei, há duas cláusulas: a cláusula comentário certamente e a cláusula eu sei, e o conteúdo do enunciado oracional é equivalente a ‘certamente, eu o sei’, ‘é certo que eu o sei’, ‘eu o sei, e este fato é certo’. Assim, certamente não determina o valor lexical de eu sei, mas assegura a realidade mesma do fato de saber.
O estrato gramatical da oração é caracterizado pela função “predicativa”. Nela, o “sujeito” e o “predicado” são funções sintagmáticas e puramente relacionais: o predicado é o termo “referido”, e o sujeito, o termo “referente”, a função sintagmática é a de “referência”, e a unidade resultante é a “predicação referida”, que se opõe, neste nível, à “predicação não referida”. Em O aluno estuda temos uma predicação referida; em Chove, Faz calor, uma predicação não referida. Registre-se aqui, de passagem, que a oração dita complexa não constitui um estrato superior da oração. O estrato superior da oração – simples ou complexa – é o texto.
No estrato do texto, como estrato gramatical idiomático, – e não como outras estruturas, por exemplo, o “soneto”, a “crônica”, a “novela”-, podemos ter casos como a oposição entre “pergunta não repetida” e “pergunta repetida”. Se se pergunta Você vai bem?, no nível do texto, isto significa que se faz a pergunta pela primeira vez, ou pela qual não se manifesta se ela se diz pela primeira vez ou não. Mas já em E você, como vai? ou E você vai bem? ou Que você vai bem?, trata-se, sem dúvida, de uma pergunta repetida, ou porque, depois de uma primeira pergunta, agora se quer saber acerca do nosso interlocutor, ou então porque este não compreendeu a primeira pergunta sobre como passava de saúde ou de situação. Trata-se aqui de uma oposição no nível do discurso ou do texto, e não no nível da oração.
O número dos estratos gramaticais nem sempre é igual de língua para língua. Segundo Halliday, citado por Coseriu, só dois estratos são imprescindíveis, o do monema e o da oração.
2 – Propriedades dos Estratos de Estruturação Gramatical
São quatro estas propriedades: a superordenação (ou hipertaxe), a subordinação (ou hipotaxe), a coordenação (ou parataxe) e a substituição (ou antitaxe).
Tais propriedades podem ser assim representadas graficamente:
3 – Hipertaxe ou Superordenação
A hipertaxe é a propriedade pela qual uma unidade de um estrato inferior pode funcionar por si só – isto é, combinando-se com zero – em estratos superiores, podendo chegar até ao estrato do texto e aí opor-se a unidades próprias desse novo estrato. Assim, um monema pode, em princípio, funcionar como palavra; uma palavra como grupo de palavras, e assim sucessivamente.
Tomando o exemplo casa – casas, o elemento mínimo casa funciona como “singular” no nível da palavra gramatical, por oposição a casas, por estar “combinado” com zero. Em casa – a casa, a palavra casa, já determinada como “singular”, funciona no nível do grupo de palavras como “virtual, inatual” – em oposição ao “atual” a casa. Em Certamente! Claro!, estamos diante de uma superordenação da palavra no nível da cláusula, e desta ao nível da oração e do texto.
As línguas conhecem restrições na manifestação dessa propriedade; por exemplo, a superordenação de palavras ou grupos de palavras no nível do texto é mais reduzida nas perguntas do que nas respostas. Uma resposta como Isabel é muito normal, diante da pergunta Quem acabou de sair? Por outro lado, uma pergunta como (E) Isabel? É certamente possível, mas exige um contexto especial. Salvo num caso de uma retomada de discurso anterior ou de emprego metalinguístico, as palavras morfemáticas, isto é, de significado puramente instrumental (artigos, preposições, conjunções), estão em geral impossibilitadas de se superordenar em nível de texto. Entretanto, nas retomadas de discurso anterior, e na metalinguagem, pode-se superordenar no nível da oração e do texto um monema, uma palavra morfemática ou até uma palavra, como, por exemplo, ocorre com sem na resposta à pergunta do tipo: Viajarás com ou sem teus pais? – Sem. Ou então o sufixo -ção na resposta diante da dúvida: É condenação ou condenamento? – Ção.
Na maioria dos casos reais da chamada elipse o que se tem, na verdade, é uma forma de superordenação (quase sempre combinada com uma substituição por retomada).
4 – Hipotaxe ou Subordinação
A hipotaxe é a propriedade oposta à hipertaxe: consiste na possibilidade de uma unidade correspondente a um estrato superior poder funcionar num estrato inferior, ou em estratos inferiores. É o caso de uma oração passar a funcionar como “membro” de outra oração, particularidade muito conhecida em gramática. O importante é, entretanto, verificar que este tipo de propriedade não fica só aqui, mas tem uma aplicação mais extensa. Em princípio, toda unidade superior ao estrato do monema pode ser subordinada. Um texto inteiro pode funcionar como uma oração num outro texto; uma oração como uma cláusula ou grupo de palavras; um grupo de palavras como uma palavra gramatical, e uma palavra como um elemento mínimo.
Em Verdadeiramente ele disse isso, a cláusula comentário (verdadeiramente), por hipertaxe, passa a oração (é verdade), enquanto temos hipotaxe da cláusula comentada (ele disse isso). As palavras compostas, do tipo de planalto, e as perífrases lexicais, como pé de valsa (‘exímio dançarino’) são, do ponto de vista gramatical, subordinações ou hipotaxes de grupos de palavras no nível da palavra; por outro lado, locuções do tipo por meio de, por causa de funcionam no nível de elementos mínimos (aproximadamente como com, por).
Vista pelo prisma da hipotaxe, percebe-se que a ideia de conceber as “conjunções subordinativas” como elementos que “unem” orações nasce do falso paralelismo entre subordinação (hipotaxe) e coordenação (parataxe). Na realidade, em línguas como o português, as conjunções subordinativas não são mais que morfemas de subordinação ou ainda preposições combinadas com esses morfemas. Em princípio, para subordinar orações ou cláusulas de estrutura oracional, temos necessidade de dois instrumentos: um para marcar a subordinação, isto é, para indicar que uma estrutura oracional de verbo flexionado funciona como membro de uma oração, e não como oração independente, e outro instrumento para indicar a função que esta estrutura exerce na oração complexa. No português essa marca de subordinação é que. Em se tratando de função sintagmática não marcada na oração (“sujeito”, “complemento direto”), só se emprega esta marca que. Pode-se prescindir desta marca se o sintagma oracional subordinado já se acha indicado por um pronome, um advérbio interrogativo (ou exclamativo) ou pela conjunção se da interrogação geral: É preciso que venhas. Ela espera que venhas. Ela sabe quem vem. Os alunos não sabem quando saem os resultados. O professor não sabe se haverá feriado nesta semana.
Se se trata de função sintagmática introduzida (no caso de uma palavra ou de um grupo de palavras) por preposição, a chamada conjunção subordinada é normalmente constituída por essa preposição com que: para acabar / para que acabe; antes da (de a) guerra começar / antes de que a guerra comece, etc...
Pelos exemplos, vê-se que primeiro se subordina mediante o instrumento de subordinação (que) e depois se introduz o sintagma subordinado pela preposição correspondente à função sintagmática respectiva.
5 – Parataxe ou Coordenação
Consiste a parataxe na propriedade mediante a qual duas ou mais unidades de um mesmo estrato funcional podem combinar-se nesse mesmo nível para constituir, no mesmo estrato, uma nova unidade suscetível de contrair relações sintagmáticas próprias das unidades simples deste estrato. Portanto, o que caracteriza a parataxe é a circunstância de que unidades combinadas são equivalentes do ponto de vista gramatical, isto é, uma não determina a outra, de modo que a unidade resultante da combinação é também gramaticalmente equivalente às unidades combinadas. Não sobem a estrato de estruturação superior. Assim, duas palavras combinadas persistem no nível da palavra e não constituem um “grupo de palavras”, como se passassem ao nível imediatamente superior.
Podem-se coordenar orações que apresentam uma mesma função textual, palavras e grupos de palavras de mesmas funções (tais como sujeito, complemento, adjunto) e até preposições e conjunções do estrato de monemas, como com e sem, e e ou. A única condição a ser respeitada é que se trate de unidades pertencentes ao mesmo estrato ou transpostas ao mesmo estrato em virtude de hipertaxe ou de hipotaxe. Daí que estruturas do tipo [ricos homens] e mulheres/ [ricos] homens e mulheres, conforme a ordem de operações levadas a cabo na estruturação da expressão: constituição do grupo de palavras ricos homens e depois coordenação com mulheres ou, ao contrário, primeiro coordenação de homens e mulheres, no nível da palavra, por hipotaxe, e em seguida constituição do grupo de palavras por meio da determinação com ricos.
Pode-se, outrossim, coordenar uma palavra com uma oração que funciona como membro de outra oração desde que exerçam a mesma função, como em: Ele agora sabe a verdade e que eu não lhe havia mentido. Mas para isso foi necessário que a oração subordinada passasse ao estrato de grupo de palavras e de palavra gramatical, por meio da hipotaxe, para então ser possível a coordenação no mesmo nível da palavra.
Tem a parataxe sido vista apenas em relação à coordenação de orações, especialmente a parataxe aditiva com um só verbo flexionado, como se fosse o somatório com apagamento dos elementos idênticos nas orações coordenadas. Isto realmente ocorre em casos como João e Maria leem, que corresponde a João lê e Maria lê, mas já duvidosa em João e Maria se casaram e impossível, por absurda em João e Maria se parecem, que não vale por João é parecido + Maria é parecida. Na realidade, em todos estes casos se trata apenas da ordem operacional seguida na constituição da expressão, ordem que na interpretação deve ser refeita às avessas. Assim, tem-se inicialmente a coordenação João e Maria e depois a predicação constitutiva da oração.
Outro ponto que há de merecer a nossa atenção é o fato de que, partindo dos três tipos fundamentais e opositivos de coordenação em português (a aditiva, adversativa e a alternativa), estas construções podem ainda exprimir relações internas de “dependência”, o que, à primeira vista, parece paradoxal, porque é o mesmo que dizer que “a parataxe inclui a hipotaxe” ou que “a parataxe também é hipotaxe”. Na realidade, o que temos nesses casos é, a uma só vez, parataxe e hipotaxe, mas não no mesmo nível de estruturação gramatical. No nível da oração tais construções são paratáticas; mas exprimem ao mesmo tempo relações internas de dependência no que diz ao sentido do discurso e, por isso, manifestam funções sintagmáticas no nível do texto: os segundos elementos dessas construções se acham coordenados no nível da oração, mas são subordinados aos primeiros elementos enquanto unidades textuais. É o mesmo caso que ocorre com as orações introduzidas por pois, porquanto, por isso, por conseguinte, logo, a que a gramática tradicional e escolar chama orações “conclusivas” e “causais-explicativas”. Embora exprimindo estados de coisas comparáveis aos das orações subordinadas, são consideradas, não sem razão, orações “principais” ou “independentes”. Na realidade, são independentes no nível da oração, mas são elementos subordinados do ponto de vista de unidades de conteúdo no nível superior do texto.
6 – Antitaxe ou Substituição
É a propriedade mediante a qual uma unidade de qualquer estrato gramatical já presente ou virtualmente presente (“prevista”) na cadeia falada pode ser representada – retomada ou antecipada – por outra unidade de outro ponto da cadeia falada (quer no discurso individual, quer no diálogo), podendo a unidade que substitui ser parte da unidade substituída, com idêntica função ou mesmo zero. É o fenômeno muito conhecido no domínio dos pronomes que “substituem” (= “representam”) lexemas (palavras ou grupos de palavras), inclusive lexemas inexistentes como tais na língua, como é o caso dos pronomes “neutros” (isto, isso, aquilo), que podem referir-se a um fato, a uma circunstância ou a uma situação.
O fenômeno da antitaxe, entretanto, é uma realidade de muito maior amplitude e diz respeito, em princípio, a todos os estratos gramaticais. Assim, a retomada mediante sim, não, diz respeito aos níveis da oração e do texto; e a não repetição (retomada por zero) de uma preposição na coordenação dos complementos ou do pronome sujeito na coordenação de dois ou mais verbos diz respeito ao estrato de elementos mínimos.
No interior da antitaxe, podemos distinguir, do ponto de vista constitucional (cf.) a antecipação e a retomada (ou “anáfora”, “catáfora”), isto é, a representação “antes” e “depois”, sendo esta válida até para a representação zero.
Do ponto de vista funcional, é preciso distinguir a antitaxe puramente material em que a unidade que substitui, além de representar a unidade substituída, tem também uma função particular, própria ao domínio da substituição. Assim, no português clara e duramente, temos uma antitaxe puramente material (o zero antecipador de clara tem exatamente a mesma função que -mente em duramente), enquanto na retomada por meio de sim, não, estamos diante de uma antitaxe funcional, já que tais unidades, além de representar o que foi dito pelo interlocutor (constituindo por isso “pro-orações” ou “pro-textos” e não meramente advérbios), exprimem também uma tomada de posição por parte do falante: a concordância ou a discordância com o conteúdo de consciência manifestado pelo interlocutor.
A rigor, a antitaxe é um fenômeno “transfrásico”, um fenômeno do plano do “discurso” ou do “texto”, uma parte porque concerne à constituição do discurso como tal, à estruturação material e funcional da cadeia falada, conforme as relações presentes na própria cadeia, e por outra parte, porque ela ignora as fronteiras entre as orações, funcionando independentemente dessas fronteiras tão bem numa só e mesma oração como em várias orações ao mesmo tempo e, quase sempre, além dos limites entre as orações. Daí este fenômeno pertencer ao domínio da linguística do texto. Entretanto, deve a antitaxe ser também estudada e descrita na gramática das línguas, mesmo numa “phrase-grammar”, porque a expressão substituída apresenta procedimentos, materiais e funções que lhe são próprias e porque as línguas, como sistemas paradigmáticos, apresentam uma grande diversidade a este respeito.
F) Dialeto – Língua comum – Língua exemplar. Correção e
exemplaridade. Gramáticas científicas e gramática normativa.
Divisões da gramática e disciplinas afins. Linguística do texto
1 – Língua Comum e Dialeto
Já vimos que uma língua histórica, como o português, está constituída de várias “línguas” mais ou menos próximas entre si, mais ou menos diferenciadas, mas que não chegam a perder a configuração de que se trata “do português” (e não do galego, ou do espanhol, ou do francês, etc.), quer na convicção de seus falantes nativos, quer na convicção dos falantes de outros idiomas. Há uma diversidade na unidade, e uma unidade na diversidade.
Os falantes dessas diversidades, por motivações de ordem política e cultural, tendem a procurar, graças a um largo período histórico, um veículo comum de comunicação que manifeste a unidade que envolve e sedimenta as várias comunidades em questão. Geralmente, nessas condições, se eleva um dialeto – em geral o que apresenta melhores condições políticas e culturais – como veículo de expressão e comunicação que paire sobre as variedades regionais e se apresente como espelho da unidade que deseja refletir o bloco das comunidades irmanadas.
Esta unidade linguística ideal – que nem sempre cala o prestígio de outros dialetos nem afoga localismos linguísticos – chama-se língua comum.
No caso de Portugal, o dialeto falado na região Entre Douro e Minho (dialeto interamnense) – sede do governo e da instrução superior – alçou à condição de língua comum. Como a língua comum recebe, em geral, o nome da língua histórica (isto é, daquela que engloba as variedades dialetais de que vimos falando), em nosso caso particular a língua comum é denominada língua portuguesa ou, simplesmente, português. Isto ocorre por toda a parte; assim é que o dialeto de Paris (franciano) passou a denominar-se francês, o de Florença (toscano florentino) italiano, o de Castela castelhano ou espanhol. Por isso é que se diz que entre língua e dialeto não há diferença de natureza, e sim de prestígio político e cultural, além do fato da maior extensão geográfica da língua comum. Algumas vezes a língua comum desbanca os primitivos dialetos, como ocorreu com a koiné grega.
Por motivações de ordem cultural e para conter, na medida do possível e do razoável, a força diferenciadora, centrífuga, que caracteriza o perpétuo devenir das línguas, pode-se desenvolver dentro da língua comum um tipo de outra língua comum, mais disciplinada, normatizada idealmente, mediante a eleição de usos fonético-fonológicos, gramaticais e léxicos como padrões exemplares a toda a comunidade e a toda a nação, a serem praticados em determinadas situações sociais, culturais e administrativas do intercâmbio superior. É a modalidade a que Coseriu chama língua exemplar, mais relativamente uniforme do que a língua comum, porque está normatizada intencionalmente [ECs.8, 164-165]. Esta uniformidade relativa é mais frequente quando a língua comum é usada em países diferentes. É o que acontece entre nós, onde se registra uma exemplaridade do português do Brasil ao lado de uma exemplaridade do português de Portugal, em grande parte de delineação complexa, porque a exemplaridade do português – e não fato exclusivo do nosso domínio – não está claramente fixada em suas formas, conteúdos e procedimentos [ECs.8, 35].
2 – O Exemplar e o Correto
Há de distinguir-se cuidadosamente o exemplar do correto, porque pertencem a planos conceituais diferentes. Quando se fala do exemplar, fala-se de uma forma eleita entre as várias formas de falar que constituem a língua histórica, razão por que o eleito não é nem correto nem incorreto.
Já quando se fala do correto, que é um juízo de valor, fala-se de uma conformidade com tal ou qual estrutura de uma língua funcional de qualquer variedade diatópica, diastrática ou diafásica. Por ele se deseja saber se tal fato está em conformidade com um modo de falar, isto é, com a língua funcional, com a tradição idiomática de uma comunidade, fato que pode ou não ser o modo exemplar de uma língua comunitária.
O modo exemplar pertence à arquitetura da língua histórica, enquanto o correto (ou incorreto) se situa no plano da estrutura da língua funcional. Cada língua funcional tem sua própria correção à medida que se trata de um modo de falar que existe historicamente.
3 – Gramática Descritiva e Gramática Normativa
Daí é fácil concluir que não devemos confundir dois tipos de gramática: a descritiva e a normativa.
A gramática descritiva é uma disciplina científica que registra e descreve (daí o ser descritiva, por isso não lhe cabe definir) um sistema linguístico em todos os seus aspectos (fonético-fonológico, morfossintático e léxico).
Cabe tão somente à gramática descritiva registrar como se diz numa língua funcional.
Por ser de natureza científica, não está preocupada em estabelecer o que é certo ou errado no nível do saber elocutivo, do saber idiomático e do saber expressivo.
A gramática descritiva se reveste de várias formas segundo o que examina mediante uma metodologia empregada, formas que não cabe aqui explicitar, mas tão somente enumerar: estrutural, funcional, estrutural e funcional, constrastiva, distribucional, gerativa, transformacional, estratificacional, de dependências, de valências, de usos, etc. A gramática estrutural funcional concebida por E. Coseriu aplica-se à depreensão e descrição dos paradigmas do significado gramatical, das estruturas gramaticais de uma língua particular.
Cabe à gramática normativa, que não é uma disciplina com finalidade científica e sim pedagógica, elencar os fatos recomendados como modelares da exemplaridade idiomática para serem utilizados em circunstâncias especiais do convívio social.
A gramática normativa recomenda como se deve falar e escrever segundo o uso e a autoridade dos escritores corretos e dos gramáticos e dicionaristas esclarecidos.
4 – Âmbitos de Estudo da Gramática
Como vimos, a gramática descritiva registra e descreve todos os aspectos de uma língua particular, homogênea e unitária. Por isso, aparece diversificada nos capítulos pelos quais costuma ser apresentada: fonética e fonologia, morfologia e sintaxe (melhor morfossintaxe), semântica, estilística.
4.1 – Fonética e Fonologia
A fonética e a fonologia estudam o aspecto físico-fisiológico, isto é, o aspecto fônico. A fonética se ocupa do aspecto acústico e fisiológico dos sons reais e concretos dos atos linguísticos: sua produção, articulação e variedades.
Já para a fonologia, a unidade básica não é o som, mas o fonema, visto como unidade acústica que desempenha função linguística distintiva de unidades linguísticas superiores dotadas de significado. Assim, em tinta, a fonética, levando em conta a realidade acústica na pronúncia carioca, distingue dois sons diferentes de t, enquanto a fonologia considera funcionalmente um só t, pois, apesar de articulado diferentemente nas várias realizações, o falante se considera diante de uma mesma palavra: tinta.
4.2 – Sistema gráfico
Nas línguas em que, ao lado da realidade oral, existe a representação escrita de um sistema convencional dessa oralidade chamado sistema gráfico ou ortografia, este sistema se regula, em geral, ora pela fonética, ora pela fonologia, o que conduz a uma primeira dificuldade para se chegar a um sistema ideal, que exigiria uma só unidade gráfica para um só valor fônico. Neste particular tornou-se necessário não se confundir letra com som da fala; letra é a representação gráfica com que se procura reproduzir na escrita o som, o que não significa identificá-los. O nosso sistema fonológico tem sete fonemas vocais orais tônicos para cuja representação temos apenas cinco letras (a – e – i – o – u). Costuma-se hoje chamar grafema à unidade gráfica (letra) da escrita.
Em se tratando de línguas modernas que adotaram um sistema gráfico aproveitando o alfabeto latino, como ocorre com a maioria dos idiomas modernos, três fatores contribuem para que não se alcance uma ortografia ideal, apesar de entrarem em seu socorro recursos de letras e sinais diacríticos não existentes em latim:
a) adoção de alfabeto estranho, como o latino, nem sempre capaz de atender à representação de fonemas das novas línguas;
b) mudança através do tempo de fonemas das novas línguas, depois de adotado o alfabeto latino;
c) permanente indecisão das convenções ortográficas entre a opção fonético-fonológica e a “etimológica” (este, pelo prestígio dos hábitos da escrita latina).
4.3 – Alfabeto fonético
Para fins científicos e pedagógicos (principalmente nas gramáticas e dicionários destinados a estrangeiros), usam-se alfabetos fonéticos que procuram na transcrição representar fielmente cada unidade fônica por meio de um sinal gráfico, escolhido entre as letras já existentes no alfabeto e mais sinais especiais criados para atingir a fidelidade acústica desejada.
4.4 – Gramática e Estilística
A gramática pode estudar tanto o aspecto da pura comunicação (chamada linguagem enunciativa ou intelectiva) quanto o aspecto afetivo, de exteriorização psíquica e apelo (linguagem emotiva).
De modo geral, aplica-se a gramática propriamente dita aos aspectos da linguagem intelectiva, ficando a linguagem emotiva para tarefa de uma disciplina chamada estilística, de que falaremos mais adiante.
4.5 – Morfossintaxe
A parte central da gramática pura é a morfossintaxe, também com menos rigor estudada como dois domínios relativamente autônomos: a morfologia (estudo da palavra e suas “formas”) e a sintaxe (estudo das combinações materiais ou funções sintáticas). Ocorre que, a rigor, tudo na língua se refere sempre a combinações de “formas”, ainda que seja combinação com zero ou ausência de “forma”; assim, toda essa pura gramática é na realidade sintaxe, já que a própria oração não deixa de ser uma “forma”(na lição tradicional, ela não pertence ao domínio da morfologia). Melhor seria se adotássemos a proposta de Eugenio Coseriu que já estava presente numa lição de Gabelentz; a gramática se comporia de três seções: a) “constitucional” (que descreveria a configuração material da “forma” gramatical, abrangendo por forma também o grupo de palavras, a oração e o período); b) “funcional” (que investiga as funções dos diferentes estratos de estruturação gramatical, comprovando os paradigmas que funcionam em cada estrato); c) “relacional” (que estuda as relações entre os diferentes paradigmas pelos quais se expressam funções designativas análogas) [ECs.4, 262-263].
4.6 – Lexicologia
Outro domínio dos estudos gramaticais que, pela sua especificidade e extensão também constitui uma disciplina autônoma, é a lexicologia.
É tarefa da lexicologia o estudo dos lexemas, suas estruturas e variedades e suas relações com os significantes. Entende-se por lexema a unidade linguística dotada de significado léxico, isto é, aquele significado que aponta para o que se apreende do mundo extralinguístico mediante a linguagem. Assim, em amor, amante, amar, amavelmente o significado léxico é comum a todas as palavras da série.
Levando-se em conta o plano da expressão (significante) e o plano do conteúdo (significado), a lexicologia abarcará quatro disciplinas subsidiárias [ECs.12, 46-48]:
a) lexicologia da expressão: estudo das relações entre os vários significantes léxicos enquanto tais, por exemplo, amar Ö amante, falar Ö falante ao lado de saltar Ö saltador.
b) lexicologia do conteúdo: estudo das relações entre os significados léxicos enquanto tais: salário, ordenado, provento, honorário, soldo, mesada; ou sair x chegar, etc. (sinônimos, antônimos)
c) semasiologia: estudo da relação entre os dois planos partindo da expressão para o conteúdo: o significante hóspede com os significados de ‘aquele que dá a hospedagem’ e ‘aquele que recebe a hospedagem’; nora ‘esposa de filho em relação aos pais dele’, e nora ‘aparelho para tirar água de poço, cisterna’.
Tradicionalmente é este estudo que se reconhece em geral como a disciplina semântica ou semântica lexical.
d) onomasiologia: estudo da relação dos dois planos, partindo do conteúdo: para o significado ‘dinheiro’ há os significantes prata, massa, erva, caraminguá, arame, mango (quase todos populares ou familiares).
Há disciplinas lexicológicas preocupadas com a origem dos palavras. Aí temos a etimologia (estudo da origem delas), a onomástica (estudo histórico dos nomes próprios, dividida em antroponímia – história dos nomes de pessoa – e toponímia – história dos nomes de lugares).
4.7 – Outra vez a Estilística
A seguir, temos a estilística, a qual, conforme dissemos anteriormente, é o estudo dos aspectos afetivos que envolvem e caracterizam a linguagem emotiva que perpassa todos os fatos de língua. Pode tanto aplicar-se àqueles usos da esfera afetiva e emotiva generalizados na língua, por exemplo, os diminutivos, os aumentativos, as hipérboles, etc. (a chamada estilística da língua de Charles Bally), ou então às criações estéticas originais e inéditas de um autor ou de uma obra (a chamada estilística da fala da escola idealista alemã de Karl Vossler, Leo Spitzer e seguidores).
4.8 – Outros tipos de Gramática
Além da gramática descritiva, são também gramáticas científicas, isto é, sem finalidade prescritiva ou normativa, e com objeto e metodologia próprios:
a) gramática geral (mais impropriamente chamada gramática universal): estudo dos fundamentos teóricos dos conceitos gramaticais (e por isso mesmo lhe cabe a definição desses conceitos), ou, noutro sentido, procura os fatos gramaticais comuns e gerais a vários sistemas linguísticos. Também é denominada teoria gramatical. Esta gramática investiga o plano universal da linguagem e, por isso, não tem como objeto uma língua particular, como as gramáticas seguintes, que investigam o plano histórico da linguagem, uma vez que estudam línguas históricas, isto é, técnicas (saberes) historicamente determinadas.
b) gramática comparada: estudo comparado de línguas pertencentes a um tronco ou “família” procedente de uma fonte comum primitiva, com vista a estabelecer os fatos manifestados pela relação de “parentesco”.
c) gramática histórica (considerada em sentido estrito): estudo diacrônico de um só sistema idealmente homogêneo.
d) história interna da língua: estudo diacrônico de uma língua histórica.
Citem-se mais as seguintes disciplinas linguísticas:
1) dialetologia: estudo das diferenças regionais de uma língua; sua aplicação, mediante método particular para cada uma, se faz com duas subdisciplinas: geografia linguística e paleontologia linguística.
2) sociolinguística: estudo da variedade e variação da linguagem em relação com a estrutura social das comunidades.
3) etnolinguística: estudo da variedade e variação da linguagem em relação com a civilização e a cultura [ECs.15, 29].
4) psicolinguística: estuda o aspecto psíquico da atividade linguística.
Até aqui, as gramáticas e disciplinas que investigam os fatos de uma língua ou de línguas particulares são disciplinas que se aplicam ao plano idiomático da linguagem.
Por fim, cabe aludir à linguística do texto, campo recente de estudo, que visa a examinar o sentido do texto considerado como entidade autônoma da linguagem. Investiga o plano individual da linguagem. É o estudo da hermenêutica do sentido. Para Coseriu, enquanto as disciplinas que estudam a língua se aplicam ao exame da estrutura do significante e à descrição da estrutura do significado, a pura linguística do texto se aplica à interpretação do significante e do significado da língua como expressão do sentido [ECs.3].
1 E. Coseriu [ECs.15, 22; ECs.4, 172].