Sumário: 3.1. A estrutura da relação jurídica de consumo. Visão geral – 3.2. Os elementos subjetivos da relação de consumo: 3.2.1. O fornecedor de produtos e o prestador de serviços. O conceito de fornecedor equiparado; 3.2.2. O consumidor. Teorias existentes. O consumidor equiparado ou bystander – 3.3. Elementos objetivos da relação de consumo: 3.3.1. Produto; 3.3.2. Serviço – 3.4. Exemplos de outras relações jurídicas contemporâneas e o seu enquadramento como relações de consumo: 3.4.1. O contrato de transporte e a incidência do Código do Consumidor; 3.4.2. Os serviços públicos e o Código de Defesa do Consumidor; 3.4.3. O condomínio edilício e o Código de Defesa do Consumidor; 3.4.4. A incidência do Código do Consumidor para os contratos de locação urbana; 3.4.5. A Lei 8.078/1990 e a Previdência Privada Complementar; 3.4.6. Prestação de serviços educacionais como serviço de consumo; 3.4.7. As atividades notariais e registrais e a Lei 8.078/1990; 3.4.8. As relações entre advogados e clientes e o Código de Defesa do Consumidor.
Para justificar a incidência do Código de Defesa do Consumidor, é preciso estudar a estrutura da relação jurídica de consumo, na perspectiva de seus elementos subjetivos e objetivos, ou seja, das partes relacionadas e o seu conteúdo.
Sobre o tema da relação jurídica em sentido amplo, como bem aponta Maria Helena Diniz, citando Del Vecchio, “a relação jurídica consiste num vínculo entre pessoas, em razão do qual uma pode pretender um bem a que outra é obrigada. Tal relação só existirá quando certas ações dos sujeitos, que constituem o âmbito pessoal de determinadas normas, forem relevantes no que atina ao caráter deôntico das normas aplicáveis à situação. Só haverá relação jurídica se o vínculo entre pessoas estiver normado, isto é, regulado por norma jurídica, que tem por escopo protegê-lo”.1 Desse modo, na esteira das lições dos juristas, constata-se que são elementos da relação jurídica, adaptados para a relação de consumo:2
a) Existência de uma relação entre sujeitos jurídicos, substancialmente entre um sujeito ativo – titular de um direito – e um sujeito passivo – que tem um dever jurídico. Na relação de consumo, tais elementos são o fornecedor de produtos e o prestador de serviços – de um lado – e o consumidor – do outro lado. Na grande maioria das vezes, as partes são credoras e devedoras entre si, eis que prevalecem nas relações de consumo as hipóteses em que há proporcionalidade das prestações (sinalagma). Isso ocorre, por exemplo, na compra e venda de consumo e na prestação de serviços, principais situações negociais típicas de consumo.
b) Presença do poder do sujeito ativo sobre o objeto imediato, que é a prestação, e sobre o objeto mediato da relação, que é o bem jurídico tutelado (coisa, tarefa ou abstenção). Na relação de consumo, o consumidor pode exigir a entrega do produto ou a prestação de serviço, nos termos do que foi convencionado e do disciplinado na Lei Consumerista. Nos termos do art. 3º do CDC, constata-se que os elementos objetivos, que formam a prestação da relação de consumo, são o produto e o serviço.
c) Evidência na prática de um fato ou acontecimento propulsor, capaz de gerar consequências para o plano jurídico. De acordo com Maria Helena Diniz, “pode ser um acontecimento, dependente ou não da vontade humana, a que a norma jurídica dá a função de criar, modificar ou extinguir direitos. É ele que tem o condão de vincular os sujeitos e de submeter o objeto ao poder da pessoa concretizando a relação”.3 No plano do Direito do Consumidor, esse fato é substancialmente um negócio jurídico, guiado pela autonomia privada, que é o direito que a pessoa tem de se autorregulamentar no plano contratual.
Superada essa análise estrutural, que embaralha o direito clássico ao contemporâneo, vejamos, de forma detalhada, os elementos da relação jurídica de consumo, retirados dos arts. 2º e 3º da Lei 8.078/1990.
A englobar tanto o fornecedor de produtos quanto o prestador de serviços, estabelece o art. 3º, caput, da Lei 8.078/1990 que “Fornecedor é toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desenvolvem atividade de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços”. A palavra fornecedor está em sentido amplo, a englobar o fornecedor de produtos – em sentido estrito – e o prestador de serviços.
Nota-se que o dispositivo amplia de forma considerável o número das pessoas que podem ser fornecedoras de produtos e prestadoras de serviços. Pode ela ser uma pessoa natural ou física, caso, por exemplo, de um empresário individual que desenvolve uma atividade de subsistência. Cite-se a hipótese de uma senhora que fabrica chocolates em sua casa e os vende pelas ruas de uma cidade, com o intuito de lucro direto. Pode ainda ser uma pessoa jurídica, o que acontece na grande maioria das vezes com as empresas que atuam no mercado de consumo. Enuncia o comando em análise que o fornecedor pode ser ainda um ente despersonalizado ou despersonificado, caso da massa falida, de uma sociedade irregular ou de uma sociedade de fato. Entre os últimos, Rizzatto Nunes cita o exemplo das pessoas jurídicas de fato, caso de um camelô.4
A respeito da finalidade lucrativa ou não da pessoa jurídica fornecedora, é interessante reproduzir o entendimento do Superior Tribunal de Justiça, no sentido de que “Para o fim de aplicação do Código de Defesa do Consumidor, o reconhecimento de uma pessoa física ou jurídica ou de um entre despersonalizado como fornecedor de serviços atende aos critérios puramente objetivos, sendo irrelevantes a sua natureza jurídica, a espécie dos serviços que prestam e até mesmo o fato de se tratar de uma sociedade civil, sem fins lucrativos, de caráter beneficente e filantrópico, bastando que desempenhem determinada atividade no mercado de consumo mediante remuneração” (STJ – REsp 519.310/SP – Terceira Turma – Rel. Min. Nancy Andrighi – j. 20.04.2004). Desse modo, entidades beneficentes podem perfeitamente ser enquadradas como fornecedoras ou prestadoras, sem qualquer entrave material.
Os fornecedores ou prestadores podem ser pessoas jurídicas de Direito Público ou de Direito Privado. Entre as primeiras, merecem relevo os serviços públicos que estão abrangidos pelo CDC, inclusive com tratamento específico no seu art. 22, tema que ainda será abordado no presente capítulo. Entre as últimas, os grandes fornecedores e prestadores são empresas privadas, inclusive com atuação em vários países (empresas multi ou transnacionais). Nesse contexto, a dicção legal estabelece que o fornecedor pode ser uma pessoa nacional ou estrangeira, sendo irrelevante qualquer tipo de limitação.
Na verdade, o que interessa mesmo na caracterização do fornecedor ou prestador é o fato de ele desenvolver uma atividade, que vem a ser a soma de atos coordenados para uma finalidade específica, como bem pontua Antonio Junqueira de Azevedo:
“‘Atividade’, noção pouco trabalhada pela doutrina, não é ato, e sim conjunto de atos. ‘Atividade’ foi definida por Túlio Ascarelli como a ‘série de atos coordenáveis entre si, em relação a uma finalidade comum’ (Corso di diritto commerciale. 3. ed. Milano: Giuffrè, 1962. p. 147). Para que haja atividade, há necessidade: (i) de uma pluralidade de atos; (ii) de uma finalidade comum que dirige e coordena os atos; (iii) de uma dimensão temporal, já que a atividade necessariamente se prolonga no tempo. A atividade, ao contrário do ato, não possui destinatário específico, mas se dirige ad incertam personam (ao mercado ou à coletividade, por exemplo), e sua apreciação é autônoma em relação aos atos que a compõem”.5
A par dessa construção, se alguém atuar de forma isolada, em um ato único, não poderá se enquadrar como fornecedor ou prestador, como na hipótese de quem vende bens pela primeira vez, ou esporadicamente, com ou sem o intuito concreto de lucro. Como bem observa José Fernando Simão, há, na relação de consumo, o requisito da habitualidade, retirado do conceito de atividade, sendo interessante a ilustração do jurista:
“O sujeito que, após anos de uso do carro, resolve vendê-lo, certamente não será fornecedor nos termos do Código de Defesa do Consumidor. Entretanto, se o mesmo sujeito tiver dezenas de carros em seu nome e habitualmente os vender ao público, estaremos diante de uma relação de consumo e ele será considerado fornecedor”.6
Pelo mesmo raciocínio, não pode ser tido como fornecedor aquele que vende esporadicamente uma casa, a fim de comprar outra, para a mudança de seu endereço. Do mesmo modo, alguém que vende coisas usadas, de forma isolada, visando apenas desfazer-se delas.
Ainda, para a visualização da atividade do fornecedor, pode servir como amparo o art. 966 do Código Civil, que aponta os requisitos para a caracterização do empresário, in verbis: “Considera-se empresário quem exerce profissionalmente atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços.” Na doutrina empresarial, merecem atenção os comentários no sentido de que não se pode falar em atividade quando há o ato ocasional de alguém, mas, sim, em relação àquele que atua “de modo sazonal ou mesmo periódico, porquanto, neste caso, a regularidade dos intervalos temporais permite que se entreveja configurada a habitualidade”.7 A mesma conclusão serve para a relação de consumo, visando a caracterizar o fornecedor de produtos ou prestador de serviços, em um mais um diálogo de complementaridade entre o CDC e o CC/2002.
Ato contínuo de estudo, a atividade desenvolvida deve ser tipicamente profissional, com intuito de lucro direto ou vantagens indiretas.8 A norma descreve algumas dessas atividades, em rol meramente exemplificativo (numerus apertus), eis que a Lei Consumerista adotou um modelo aberto como regra dos seus preceitos. Vejamos, com as devidas exemplificações:
– Atividade de produção – caso dos fabricantes de gêneros alimentícios industrializados.
– Atividade de montagem – hipótese das montadoras de automóveis nacionais ou estrangeiras.
– Atividade de criação – situação de um autor de obra intelectual que coloca produtos no mercado.
– Atividade de construção – caso de uma construtora e incorporadora imobiliária.
– Atividade de transformação – comum na panificação das padarias, supermercados e afins.
– Atividade de importação – como no caso das empresas que trazem veículos fabricados em outros países para vender no Brasil.
– Atividade de exportação – caso de uma empresa nacional que fabrica calçados e vende seus produtos no exterior.
– Atividades de distribuição e comercialização – de produtos e serviços de terceiros ou próprios, desenvolvidas, por exemplo, pelas empresas de telefonia e pelas grandes lojas de eletrodomésticos.
Por fim, em um sentido de ampliação ainda maior, a doutrina construiu a ideia do fornecedor equiparado. A partir da tese de Leonardo Bessa, tal figura seria um intermediário na relação de consumo, com posição de auxílio ao lado do fornecedor de produtos ou prestador de serviços, caso das empresas que mantêm e administram bancos de dados dos consumidores.9 A nova categoria conta com o apoio da nossa melhor doutrina, caso de Claudia Lima Marques, que cita o seu exemplo do estipulante profissional ou empregador dos seguros de vida em grupo e leciona:
“A figura do fornecedor equiparado, aquele que não é fornecedor do contrato principal de consumo, mas é intermediário, antigo terceiro, ou estipulante, hoje é o ‘dono’ da relação conexa (e principal) de consumo, por deter uma posição de poder na relação outra com o consumidor. É realmente uma interessante teoria, que será muito usada no futuro, ampliando – e com justiça – o campo de aplicação do CDC”.10
A construção, do mesmo modo, conta com a adesão deste autor, sendo certo que há decisão do Tribunal Mineiro que equiparou o órgão que mantém o cadastro à instituição financeira em relação de consumo:
“Indenização. Fornecedor. Contratação de empréstimo e financiamento. Fraude. Negligência. Injusta negativação. Dano moral. Montante indenizatório. Razoabilidade e proporcionalidade. Prequestionamento. Age negligentemente o fornecedor, equiparado à instituição financeira, que não prova ter tomado todos os cuidados necessários, a fim de evitar as possíveis fraudes cometidas por terceiro na contratação de empréstimos e financiamentos. (...)” (TJMG – Apelação cível 1.0024.08.958371-0/0021, Belo Horizonte – Nona Câmara Cível – Rel. Des. José Antônio Braga – j. 03.11.2009 – DJEMG 23.11.2009).
Com tal interessante conceito, que deve ser incrementado nos próximos anos, encerra-se o estudo do fornecedor como elemento subjetivo da relação de consumo.
Enuncia expressamente o art. 2º da Lei 8.078/1990 que “Consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final”. Vislumbrando-se o seu enquadramento inicial, o consumidor pode ser, pelo texto expresso, uma pessoa natural ou jurídica, sem qualquer distinção. A questão da pessoa jurídica como consumidora pode gerar perplexidades.11 Porém, na opinião do presente autor, foi correta a opção do legislador consumerista.
A respeito da pessoa jurídica consumidora, como bem aponta José Geraldo Brito Filomeno, apesar de resistências pessoais, “Prevaleceu, entretanto, como de resto em algumas legislações alienígenas inspiradas na nossa, a inclusão das pessoas jurídicas igualmente como ‘consumidores’ de produtos e serviços, embora com a ressalva de que assim são entendidas aquelas como destinatárias finais dos produtos e serviços que adquirem, e não como insumos necessários ao desempenho de sua atividade lucrativa”.12 Na opinião deste autor, estando configurados os elementos da relação de consumo, não se cogita qualquer discussão a respeito de tal enquadramento, uma vez que, conforme outrora exposto, a vulnerabilidade é elemento posto da relação de consumo. Em outras palavras, é irrelevante ser a pessoa jurídica forte ou não economicamente, pois tal constatação acaba confundindo a hipossuficiência com a vulnerabilidade. De toda sorte, a jurisprudência do STJ já concluiu pela possibilidade de se mitigar a vulnerabilidade da pessoa jurídica, afastando-se a subsunção do CDC, pela presença de uma presunção relativa, tese à qual o presente autor não se filia:
“Processo civil e consumidor. (...). Relação de consumo. Caracterização. Destinação final fática e econômica do produto ou serviço. Atividade empresarial. Mitigação da regra. Vulnerabilidade da pessoa jurídica. Presunção relativa. (...). Ao encampar a pessoa jurídica no conceito de consumidor, a intenção do legislador foi conferir proteção à empresa nas hipóteses em que, participando de uma relação jurídica na qualidade de consumidora, sua condição ordinária de fornecedora não lhe proporcione uma posição de igualdade frente à parte contrária. Em outras palavras, a pessoa jurídica deve contar com o mesmo grau de vulnerabilidade que qualquer pessoa comum se encontraria ao celebrar aquele negócio, de sorte a manter o desequilíbrio da relação de consumo. A ‘paridade de armas’ entre a empresa-fornecedora e a empresa-consumidora afasta a presunção de fragilidade desta. Tal consideração se mostra de extrema relevância, pois uma mesma pessoa jurídica, enquanto consumidora, pode se mostrar vulnerável em determinadas relações de consumo e em outras não. Recurso provido” (STJ – RMS 27.512/BA – Terceira Turma – Rel. Min. Nancy Andrighi – j. 20.08.2009 – DJe 23.09.2009).
O consumidor pode ser ainda um ente despersonalizado, mesmo não constando expressamente menção a ele na Lei Consumerista. Incide a equivalência das posições jurídicas, uma vez que tais entes podem ser fornecedores, como antes exposto, cabendo, do mesmo modo, a sua qualificação como consumidores. A título de exemplo, cite-se julgado do Tribunal Paulista, que considerou o condomínio edilício – tratado como ente despersonalizado – consumidor de uma prestação de serviços:
“Contrato. Prestação de serviços. Relação de consumo. Condomínio e prestadora de serviços de engenharia e manutenção. Código de Defesa do Consumidor. Aplicabilidade. Condomínio, ente despersonalizado, com capacidade processual, pode ser considerado consumidor final dos serviços prestados pela agravada. Recurso provido nesse aspecto” (TJSP – Agravo de Instrumento 1.009.340-00/1, Santos – Trigésima Segunda Câmara de Direito Privado – Rel. Des. Orlando Pistoresi – j. 26.01.2005).
Apesar de a conclusão final da decisão ser perfeita, deve ser feita a ressalva de que este autor segue o entendimento segundo o qual o condomínio edilício pode ser considerado pessoa jurídica, conforme consta do Enunciado 90, do Conselho da Justiça Federal, da I Jornada de Direito Civil, que sintetiza o pensamento da melhor doutrina contemporânea.13 Ainda no tocante aos entes despersonalizados, vejamos decisão do Tribunal Fluminense que tratou o espólio como consumidor, em caso envolvendo a prestação de serviços de telefonia:
“Cessão do direito ao uso de linha telefônica. Morte do titular. Art. 1.572. Código Civil de 1916. Obrigação de fazer. Ação de obrigação de fazer. Uso de linha telefônica. Indevida rescisão do contrato. Com o falecimento do titular do direito de uso de linha telefônica, este se transmite aos herdeiros, na forma do art. 1.572 do Código Civil, integrando o acervo hereditário. Desta forma, é possível o espólio pleitear em ação de obrigação de fazer a instalação de linha telefônica, desde que esteja em dia com pagamentos. Os serviços interrompidos, com afronta ao disposto na Lei 9.472/1997 e no Código de Defesa do Consumidor, merecem ser restabelecidos. Afasta-se a possibilidade de indenização por dano moral, uma vez que o espólio é ente despersonalizado, sendo-lhe conferida apenas capacidade processual, como parte formal. Recurso provido em parte” (TJRJ – Acórdão 14.509/2002, Rio de Janeiro – Décima Quarta Câmara Cível – Rel. Des. Walter D’ Agostino – j. 17.12.2002).
Mais uma vez, diante da equivalência das posições jurídicas, o consumidor pode ser pessoa de Direito Privado ou de Direito Público. Entre as primeiras, cite-se uma pessoa natural ou uma empresa que adquire um eletrodoméstico em uma loja de departamentos. Entre as últimas, consigne-se a hipótese de uma prefeitura como consumidora, conforme o entendimento jurisprudencial:
“Administrativo. Serviço de telefonia. Falta de pagamento. Bloqueio parcial das linhas da Prefeitura. Município como consumidor. 1. A relação jurídica, na hipótese de serviço público prestado por concessionária, tem natureza de Direito Privado, pois o pagamento é feito sob a modalidade de tarifa, que não se classifica como taxa. 2. Nas condições indicadas, o pagamento é contraprestação, aplicável o CDC, e o serviço pode ser interrompido em caso de inadimplemento, desde que antecedido por aviso. 3. A continuidade do serviço, sem o efetivo pagamento, quebra o princípio da isonomia e ocasiona o enriquecimento sem causa de uma das partes, repudiado pelo Direito (interpretação conjunta dos arts. 42 e 71 do CDC). 4. Quando o consumidor é pessoa jurídica de direito público, a mesma regra deve lhe ser estendida, com a preservação apenas das unidades públicas cuja paralisação é inadmissível. 5. Recurso especial provido” (STJ – REsp 742.640/MG – Segunda Turma – Rel. Min. Eliana Calmon – j. 06.09.2007 – DJ 26.09.2007, p. 203).
Admite-se que o consumidor seja pessoa nacional ou estrangeira. Em relação ao último, imagine-se o caso de um turista, em férias no Brasil, que fica intoxicado com um alimento consumido na praia ou em um restaurante, podendo demandar os agentes causadores do dano com base na responsabilidade objetiva prevista pela Lei 8.078/1990.
Pois bem, vistas tais elucidações inaugurais, o principal qualificador da condição de consumidor é que deve ele ser destinatário final do produto ou serviço. Tal elemento é o que desperta as maiores dúvidas a respeito da matéria, surgindo teorias divergentes no que toca a essa qualificação. Vejamos tais teorias, de forma detalhada.
a) Teoria finalista
Na essência, a teoria finalista ou subjetiva foi a adotada expressamente pelo art. 2º do Código Brasileiro de Defesa do Consumidor para a qualificação do consumidor, pela presença do elemento da destinação final do produto ou do serviço. Tem prevalecido no Brasil a ideia de que o consumidor deve ser destinatário final fático e econômico, conforme as preciosas lições de Claudia Lima Marques:
“Destinatário final seria aquele destinatário fático e econômico do bem ou serviço, seja ele pessoa jurídica ou física. Logo, segundo essa interpretação teleológica, não basta ser destinatário fático do produto, retirá-lo da cadeia de produção, levá-lo para o escritório ou residência – é necessário ser destinatário econômico do bem, não adquiri-lo para revenda, não adquiri-lo para uso profissional, pois o bem seria novamente um instrumento de produção, cujo preço será incluído no preço final do profissional para adquiri-lo. Nesse caso, não haveria exigida ‘destinação final’ do produto ou do serviço, ou, como afirma o STJ, haveria consumo intermediário, ainda dentro das cadeias de produção e de distribuição. Essa interpretação restringe a figura do consumidor àquele que adquire (utiliza) um produto para uso próprio e de sua família, consumidor seria o não profissional, pois o fim do CDC é tutelar de maneira especial um grupo da sociedade que é mais vulnerável”.14
Resumindo tal entendimento a respeito dos requisitos da destinação final, pode-se dizer que:
1º Destinação final fática – o consumidor é o último da cadeia de consumo, ou seja, depois dele, não há ninguém na transmissão do produto ou do serviço.
2º Destinação final econômica – o consumidor não utiliza o produto ou o serviço para o lucro, repasse ou transmissão onerosa.
Como destacado pela própria Claudia Lima Marques no trecho transcrito, vários julgados do Superior Tribunal de Justiça adotam tal posicionamento categórico. A ilustrar, por todos:
“Conflito de competência. Sociedade empresária. Consumidor. Destinatário final econômico. Não ocorrência. Foro de eleição. Validade. Relação de consumo e hipossuficiência. Não caracterização. 1. A jurisprudência desta Corte sedimenta-se no sentido da adoção da teoria finalista ou subjetiva para fins de caracterização da pessoa jurídica como consumidora em eventual relação de consumo, devendo, portanto, ser destinatária final econômica do bem ou serviço adquirido (REsp 541.867/BA). 2. Para que o consumidor seja considerado destinatário econômico final, o produto ou serviço adquirido ou utilizado não pode guardar qualquer conexão, direta ou indireta, com a atividade econômica por ele desenvolvida; o produto ou serviço deve ser utilizado para o atendimento de uma necessidade própria, pessoal do consumidor. 2. No caso em tela, não se verifica tal circunstância, porquanto o serviço de crédito tomado pela pessoa jurídica junto à instituição financeira decerto foi utilizado para o fomento da atividade empresarial, no desenvolvimento da atividade lucrativa, de forma que a sua circulação econômica não se encerra nas mãos da pessoa jurídica, sociedade empresária, motivo pelo qual não resta caracterizada, in casu, relação de consumo entre as partes. 3. Cláusula de eleição de foro legal e válida, devendo, portanto, ser respeitada, pois não há qualquer circunstância que evidencie situação de hipossuficiência da autora da demanda que possa dificultar a propositura da ação no foro eleito. 4. Conflito de competência conhecido para declarar competente o Juízo Federal da 12ª Vara da Seção Judiciária do Estado de São Paulo” (STJ – CC 92.519/SP – Segunda Seção – Rel. Min. Fernando Gonçalves – j. 16.02.2009 – DJe 04.03.2009).
“Competência. Relação de consumo. Utilização de equipamento e de serviços de crédito prestado por empresa administradora de cartão de crédito. Destinação final inexistente. A aquisição de bens ou a utilização de serviços, por pessoa natural ou jurídica, com o escopo de implementar ou incrementar a sua atividade negocial, não se reputa como relação de consumo e, sim, como uma atividade de consumo intermediária. Recurso especial conhecido e provido para reconhecer a incompetência absoluta da Vara Especializada de Defesa do Consumidor, para decretar a nulidade dos atos praticados e, por conseguinte, para determinar a remessa do feito a uma das Varas Cíveis da Comarca” (STJ – REsp 541.867/BA – Segunda Seção – Rel. Min. Antônio de Pádua Ribeiro – Rel. p/Acórdão Min. Barros Monteiro – j. 10.11.2004 – DJ 16.05.2005, p. 227).
Adotando tais premissas, na I Jornada de Direito Comercial, promovida pelo Conselho da Justiça Federal em outubro de 2012, foi aprovado enunciado doutrinário no sentido de que não se aplica o Código de Defesa do Consumidor nos contratos entre empresários que tenham por objetivo o suprimento de insumos para as suas atividades de produção, comércio ou prestação de serviços (Enunciado 20).
Todavia, a verdade é que existem outras teorias a respeito da caracterização do consumidor. Uma delas, como se verá, até se justifica, eis que a aplicação cega e literal da teoria finalista pode gerar situações de injustiça.
b) Teoria maximalista
A teoria maximalista ou objetiva procura ampliar sobremaneira o conceito de consumidor e daí a construção da relação jurídica de consumo. Como bem apresenta Claudia Lima Marques, “os maximalistas viam nas normas do CDC o novo regulamento do mercado de consumo brasileiro, e não normas orientadas para proteger somente o consumidor não profissional. O CDC seria um código geral sobre o consumo, um código para a sociedade de consumo, que institui normas e princípios para todos os agentes do mercado, os quais podem assumir os papéis ora de fornecedores, ora de consumidores. A definição do art. 2º deve ser interpretada o mais extensivamente possível, segundo esta corrente, para que as normas do CDC possam ser aplicadas a um número cada vez maior de relações de consumo”.15
Entre os maximalistas, destaca-se o trabalho muito bem articulado de Alinne Arquette Leite Novaes, que lhe valeu o título de mestre em Direito Civil pela Faculdade de Direito da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, sob a orientação do Professor Gustavo Tepedino. Nessa obra, a partir de uma interpretação do art. 29 do Código de Defesa do Consumidor – que traz o conceito de consumidor por equiparação ou bystander –, a doutrinadora defende que o Código Consumerista deve ser aplicado a todos os contratos de adesão, aqueles com conteúdo imposto por uma das partes. Vale transcrever as suas palavras finais, conclusivas do citado trabalho:
“Concluímos, então, dizendo que o Código de Defesa do Consumidor é totalmente aplicável aos contratos de adesão, em virtude da extensão do conceito de consumidor, equiparando a este todas as pessoas expostas às práticas previstas nos seus Capítulos V e VI, estando, como é sabido, os contratos de adesão disciplinados dentro desse último. E isso ocorre porque a intenção do legislador, ao elaborar o Código de Defesa do Consumidor, foi garantir justiça e equidade aos contratos realizados sob sua égide, para equilibrar partes contratuais em posições diferentes, tutelando de modo especial o partícipe contratual, que julgou ser vulnerável. Assim, entendeu o legislador que a simples exposição às práticas por ele previstas no CDC era suficiente para gerar uma situação de insegurança e de vulnerabilidade, considerando, portanto, que o simples fato de se submeter a um contrato de adesão colocava o aderente em posição inferior, se equiparando ao consumidor”.16
Com todo o respeito que merece, não se filia a tal forma de pensar, eis que, conforme o Enunciado 171 CJF/STJ, aprovado na III Jornada de Direito Civil, o contrato de adesão, mencionado pelos arts. 423 e 424 do CC, não se confunde com o contrato de consumo. Ora, para a caracterização do contrato de adesão, leva-se em conta a forma de contratação, havendo uma imposição, por uma das partes da relação negocial. Por outra via, o contrato de consumo tem como conteúdo os elementos subjetivos e objetivos que aqui estão sendo expostos.
Na prática, é comum que o contrato de consumo seja de adesão, e vice-versa. Mas não necessariamente, pois o contrato pode ser de adesão sem ser de consumo. Cite-se, por exemplo, o contrato de franquia ou franchising, na relação franqueador e franqueado. Para o último é imposto, na grande maioria das situações, o conteúdo de todo o negócio, por meio do manual do franqueado. Porém, o franqueado não é consumidor, pois não é destinatário final fático e econômico dos produtos ou serviços (nesse sentido, por todos: TJRS – Apelação Cível 70031345077, Porto Alegre – Décima Oitava Câmara Cível – Rel. Des. Pedro Celso Dal Prá – j. 10.09.2009 – DJERS 18.09.2009, p. 103; e TJSP, Agravo de Instrumento 7343481-2 – Acórdão n. 3616551, São Paulo – Vigésima Quarta Câmara de Direito Privado – Rel. Des. Salles Vieira – j. 23.04.2009 – DJESP 01.06.2009).
A rebater a visão maximalista, do ponto de vista organizacional e metodológico do sistema jurídico, o Código Civil de 2002 não pode perder total prestígio diante do CDC, como lei central do Direito Privado. Ademais, diante da aplicação da teoria do diálogo das fontes, a tese maximalista perde sua razão de ser, em certo sentido. Não se pode esquecer, ademais, que muitos dos preceitos que constam da codificação civil privada estão em harmonia com as regras da Lei Consumerista.
De toda sorte, em algumas situações de patente discrepância, hipossuficiência ou vulnerabilidade, justifica-se a ampliação do conceito de consumidor e da relação de consumo. Surge, nesse contexto, o que é denominado como teoria finalista aprofundada, uma variante da teoria maximalista que se justifica plenamente. Deve ficar claro que, por tudo o que já foi aqui exposto, prefere-se o termo “hipossuficiente” para justificar a incidência da teoria. Porém, tanto doutrina quanto jurisprudência utilizam também o conceito de vulnerabilidade para tal conclusão.
c) Teoria finalista aprofundada
Mais uma vez, a teoria é fruto do trabalho de criação de Claudia Lima Marques, a maior doutrinadora brasileira sobre o tema Direito do Consumidor. Nesse ínterim, cumpre colacionar seus ensinamentos:
“Realmente, depois da entrada em vigor do CC/2002 a visão maximalista diminuiu em força, tendo sido muito importante para isto a atuação do STJ. Desde a entrada em vigor do CC/2002, parece-me crescer uma tendência nova da jurisprudência, concentrada na noção de consumidor final imediato (Endverbraucher), e de vulnerabilidade (art. 4º, I), que poderíamos denominar aqui de finalismo aprofundado.
É uma interpretação finalista mais aprofundada e madura, que deve ser saudada. Em casos difíceis envolvendo pequenas empresas que utilizam insumos para a sua produção, mas não em sua área de expertise ou com uma utilização mista, principalmente na área de serviços, provada a vulnerabilidade, conclui-se pela destinação final de consumo prevalente. Essa nova linha, em especial do STJ, tem utilizado, sob o critério finalista e subjetivo, expressamente a equiparação do art. 29 do CDC, em se tratando de pessoa jurídica que comprove ser vulnerável e atue fora do âmbito de sua especialidade, como hotel que compra gás. Isso porque o CDC conhece outras definições de consumidor. O conceito-chave aqui é o de vulnerabilidade”.17
Há, portanto, um tempero na teoria maximalista (teoria maximalista temperada), conjugando-a com a teoria finalista, segundo as lições de Claudia Lima Marques. De toda sorte, alguns juristas continuam entendendo tratar-se de aplicação da teoria maximalista, corrente a que está filiado o presente autor, o que está de acordo com uma visão mais simplificada da matéria.18
De fato, em muitas situações envolvendo pessoas notadamente hiperssuficientes – seja a disparidade econômica, financeira, política, social, técnica ou informacional –, a teoria maximalista justifica-se plenamente. É possível ainda afirmar, na esteira das lições de Claudia Lima Marques, que, pela ampliação categórica, a vulnerabilidade passa a ser elemento pressuposto da relação jurídica de consumo e não um elemento posto, como no capítulo anterior foi demonstrado.
Nesse contexto, vejamos algumas pontuações baseadas em exemplos de Luiz Antonio Rizzatto Nunes.19 Imaginem-se duas relações jurídicas continuadas, entre uma montadora de veículos e uma concessionária de automóveis, bem como entre a última e uma pessoa que adquire um veículo para uso próprio:
No esquema acima, a primeira relação entre a montadora e a concessionária não é uma relação de consumo, mas uma relação civil pura, eis que a concessionária não é destinatária final fática, pois após tal sujeito há a pessoa que adquire o veículo e o utiliza para uso próprio. Além disso, não é a concessionária destinatária final econômica, pois utiliza o veículo para sua atividade lucrativa primordial. Por outra via, há relação de consumo, regida pelo CDC, entre a concessionária e a pessoa que adquire o veículo para uso próprio, sendo o último destinatário final fático e econômico do bem.
Em mais uma concretização, a última pessoa é substituída por uma grande empresa que adquire uma frota de veículos para sua atividade primordial, que vem a ser a entrega de mercadorias. Vejamos o diagrama:
No que concerne à primeira relação jurídica (montadora e concessionária), nada muda, mantendo-se a relação civil, regida substancialmente pelo Código Civil de 2002. Porém, a relação estabelecida entre a empresa especializada em entregas e a concessionária não é uma relação de consumo pela teoria finalista. Isso porque tal empresa até pode ser destinatária final fática dos veículos, mas não é destinatária final econômica, por utilizar tais bens em sua atividade econômica predominante.
Por fim, a empresa especializada em entregas rápidas será substituída por um taxista ou um caminhoneiro, que adquire o veículo para sua manutenção profissional:
Mantendo-se mais uma vez a conclusão de que a primeira relação é civil, surge dúvida atroz a respeito da segunda relação, diante da patente disparidade que atinge o taxista e o caminhoneiro. Lembre-se de que, pela teoria finalista, ambos não seriam consumidores, já que retiram do veículo adquirido a sua atividade lucrativa primordial. Não haveria, portanto, a destinação econômica exigida para a caracterização do consumidor. Em casos como esse é que a doutrina e a jurisprudência têm reconhecido a aplicação da teoria maximalista mitigada ou da teoria finalista aprofundada.
Elucide-se com o exemplo de Rizzatto Nunes a respeito das canetas adquiridas pelo aluno e pelo professor para uma aula que será ministrada.20 Se o aluno tiver um problema com a caneta (v.g., a caneta estourou e manchou sua camisa), poderá fazer uso do CDC em face do comerciante e do fabricante, por ser destinatário final fático e econômico do bem adquirido. Por outra via, o professor não poderia fazer uso do CDC, por ser destinatário final do objeto, mas não destinatário final econômico, uma vez que utiliza a caneta em sua atividade profissional direta. Como bem observa o jurista, “Isso não só seria ilógico como feriria o princípio da isonomia constitucional; além do mais, não está de acordo com o sistema do CDC”.21
No contexto de ampliação do conceito de consumidor, vejamos os acórdãos relativos ao taxista pronunciados pelo STJ:
“Direito civil. Vício do produto. Aquisição de veículo zero quilômetro para uso profissional. Responsabilidade solidária. Há responsabilidade solidária da concessionária (fornecedor) e do fabricante por vício em veículo zero quilômetro. A aquisição de veículo zero quilômetro para uso profissional como táxi, por si só, não afasta a possibilidade de aplicação das normas protetivas do CDC. Todos os que participam da introdução do produto ou serviço no mercado respondem solidariamente por eventual vício do produto ou de adequação, ou seja, imputa-se a toda a cadeia de fornecimento a responsabilidade pela garantia de qualidade e adequação do referido produto ou serviço (arts. 14 e 18 do CDC). Ao contrário do que ocorre na responsabilidade pelo fato do produto, no vício do produto a responsabilidade é solidária entre todos os fornecedores, inclusive o comerciante, a teor do que preconiza o art. 18 do mencionado Codex” (STJ – REsp 611.872/RJ – Rel. Min. Antonio Carlos Ferreira – j. 02.10.2012, publicado no Informativo 505).
“Civil. Processual civil. Recurso especial. Direito do consumidor. Veículo com defeito. Responsabilidade do fornecedor. Indenização. Danos morais. Valor indenizatório. Redução do quantum. Precedentes desta Corte. 1. Aplicável à hipótese a legislação consumerista. O fato de o recorrido adquirir o veículo para uso comercial – taxi – não afasta a sua condição de hipossuficiente na relação com a empresa-recorrente, ensejando a aplicação das normas protetivas do CDC. 2. Verifica-se, in casu, que se trata de defeito relativo à falha na segurança, de caso em que o produto traz um vício intrínseco que potencializa um acidente de consumo, sujeitando-se o consumidor a um perigo iminente (defeito na mangueira de alimentação de combustível do veículo, propiciando vazamento causador do incêndio). Aplicação da regra do art. 27 do CDC. 3. O Tribunal a quo, com base no conjunto fático-probatório trazido aos autos, entendeu que o defeito fora publicamente reconhecido pela recorrente, ao proceder ao recall com vistas à substituição da mangueira de alimentação do combustível. A pretendida reversão do decisum recorrido demanda reexame de provas analisadas nas instâncias ordinárias. Óbice da Súmula 7/STJ. 4. Esta Corte tem entendimento firmado no sentido de que ‘quanto ao dano moral, não há que se falar em prova, deve-se, sim, comprovar o fato que gerou a dor, o sofrimento, sentimentos íntimos que o ensejam. Provado o fato, impõe-se a condenação’ (Cf. AGA 356.447-RJ, DJ 11.06.2001). 5. Consideradas as peculiaridades do caso em questão e os princípios de moderação e da razoabilidade, o valor fixado pelo Tribunal a quo, a titulo de danos morais, em 100 (cem) salários-mínimos, mostra-se excessivo, não se limitando à compensação dos prejuízos advindos do evento danoso, pelo que se impõe a respectiva redução à quantia certa de R$ 5.000,00 (cinco mil reais). 6. Recurso conhecido parcialmente e, nesta parte, provido” (STJ – REsp 575.469/RJ – Quarta Turma – Rel. Min. Jorge Scartezzini – j. 18.11.2004 – DJ 06.12.2004, p. 325).
“Consumidor. Taxista. Código de Defesa do Consumidor. Financiamento para aquisição de automóvel. Aplicação do CDC. O CDC incide sobre contrato de financiamento celebrado entre a CEF e o taxista para aquisição de veículo. A multa é calculada sobre o valor das prestações vencidas, não sobre o total do financiamento (art. 52, § 1º, do CDC). Recurso não conhecido” (STJ – REsp 231.208/PE – Quarta Turma – Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar – j. 07.12.2000 – DJ 19.03.2001, p. 114).
Pelo mesmo raciocínio, a decisão mais recente do STJ a respeito do caminhoneiro:
“Civil. Relação de consumo. Destinatário final. A expressão destinatário final, de que trata o art. 2º, caput, do Código de Defesa do Consumidor abrange quem adquire mercadorias para fins não econômicos, e também aqueles que, destinando-os a fins econômicos, enfrentam o mercado de consumo em condições de vulnerabilidade; espécie em que caminhoneiro reclama a proteção do Código de Defesa do Consumidor porque o veículo adquirido, utilizado para prestar serviços que lhe possibilitariam sua mantença e a da família, apresentou defeitos de fabricação. Recurso especial não conhecido” (STJ – REsp 716.877/SP – Terceira Turma – Rel. Min. Ari Pargendler – j. 21.03.2007 – DJ 23.04.2007, p. 257).
Outros acórdãos mais recentes fazem incidir as mesmas premissas, confirmando as palavras expostas por Claudia Lima Marques. Vejamos decisão publicada em 2010 no Informativo 441 do Superior Tribunal de Justiça, a respeito da aquisição da aquisição de máquina de bordar para pequena produção de subsistência:
“A jurisprudência do STJ adota o conceito subjetivo ou finalista de consumidor, restrito à pessoa física ou jurídica que adquire o produto no mercado a fim de consumi-lo. Contudo, a teoria finalista pode ser abrandada a ponto de autorizar a aplicação das regras do CDC para resguardar, como consumidores (art. 2º daquele Código), determinados profissionais (microempresas e empresários individuais) que adquirem o bem para usá-lo no exercício de sua profissão. Para tanto, há que demonstrar sua vulnerabilidade técnica, jurídica ou econômica (hipossuficiência). No caso, cuida-se do contrato para a aquisição de uma máquina de bordar entabulado entre a empresa fabricante e a pessoa física que utiliza o bem para sua sobrevivência e de sua família, o que demonstra sua vulnerabilidade econômica. Destarte, correta a aplicação das regras de proteção do consumidor, a impor a nulidade da cláusula de eleição de foro que dificulta o livre acesso do hipossuficiente ao Judiciário. Precedentes citados: REsp 541.867-BA, DJ 16.05.2005; REsp 1.080.719-MG, DJe 17.08.2009; REsp 660.026-RJ, DJ 27.06.2005; REsp 684.613-SP, DJ 1º.07.2005; REsp 669.990-CE, DJ 11.09.2006, e CC 48.647-RS, DJ 05.12.2005” (STJ – REsp 1.010.834-GO – Rel. Min. Nancy Andrighi – j. 03.08.2010).
Deve ficar claro que, para o Superior Tribunal de Justiça, a hipossuficiência ou vulnerabilidade (a última, conforme as decisões) deve ser devidamente demonstrada para que se mitigue a teoria finalista. Nesse sentido, decisão extraída do seu Informativo 236:
“Em ação de indenização por danos morais e materiais, a empresa alega a suspensão indevida do fornecimento de energia elétrica pela concessionária. Por outro lado, a ré sustentou preliminares de ilegitimidade ativa, incompetência da vara de defesa do consumidor por não existir relação de consumo e inépcia da inicial. O Tribunal a quo manteve a decisão agravada que rejeitou as preliminares. Daí o REsp da concessionária ré. A Turma, em princípio, examinou a questão relativa à admissibilidade e processamento desse REsp e reconheceu que, como a discussão versa sobre competência, poderia influenciar todo o curso processual, justificando, pela excepcionalidade, o julgamento do REsp, sem que ele permanecesse retido, conforme tem admitido a jurisprudência. A Turma também reconheceu a legitimidade ativa da recorrida, pois cabe à locatária, no caso a empresa, o pagamento das despesas de luz (art. 23 da Lei do Inquilinato). Mas proveu o recurso quanto à inexistência de consumo e a consequente incompetência da vara especializada em Direito do Consumidor. Argumentou-se que a pessoa jurídica com fins lucrativos caracteriza-se, na hipótese, como consumidora intermediária e a uniformização infraconstitucional da Segunda Seção deste Superior Tribunal perfilhou-se à orientação doutrinária finalista ou subjetiva, na qual o consumidor requer a proteção da lei. O Min. Relator ressaltou que existe um certo abrandamento na interpretação finalista a determinados consumidores profissionais, como pequenas empresas e profissionais liberais, tendo em vista a hipossuficiência. Entretanto, no caso concreto, a questão da hipossuficiência da empresa recorrida em momento algum restou reconhecida nas instâncias ordinárias. Isso posto, a Turma reconheceu a nulidade dos atos processuais praticados e determinou a distribuição do processo a um dos juízos cíveis da comarca. Precedente citado: REsp 541.867-BA” (STJ – REsp 661.145-ES – Rel. Min. Jorge Scartezzini – j. 22.02.2005).
Do mesmo modo, julgado mais recente, que afastou a aplicação do CDC à relação contratual para aquisição de insumos para a agricultura, por se tratar de grande produtor rural. Como reconhece o próprio acórdão, a conclusão deve ser pela existência da relação consumerista no caso de pequena agricultura de subsistência:
“Direito civil. Produtor rural de grande porte. Compra e venda de insumos agrícolas. Revisão de contrato. Código de Defesa do Consumidor. Não aplicação. Destinação final inexistente. Inversão do ônus da prova. Impossibilidade. Precedentes. Recurso especial parcialmente provido. I. Tratando-se de grande produtor rural e o contrato referindo-se, na sua origem, à compra de insumos agrícolas, não se aplica o Código de Defesa do Consumidor, pois não se trata de destinatário final, conforme bem estabelece o art. 2º do CDC, in verbis: ‘Consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final’. II. Não havendo relação de consumo, torna-se inaplicável a inversão do ônus da prova prevista no inc. VIII do art. 6º, do CDC, a qual, mesmo nas relações de consumo, não é automática ou compulsória, pois depende de criteriosa análise do julgador a fim de preservar o contraditório e oferecer à parte contrária oportunidade de provar fatos que afastem o alegado contra si. III. O grande produtor rural é um empresário rural e, quando adquire sementes, insumos ou defensivos agrícolas para o implemento de sua atividade produtiva, não o faz como destinatário final, como acontece nos casos da agricultura de subsistência, em que a relação de consumo e a hipossuficiência ficam bem delineadas. IV. De qualquer forma, embora não seja aplicável o CDC no caso dos autos, nada impede o prosseguimento da ação com vista a se verificar a existência de eventual violação legal, contratual ou injustiça a ser reparada, agora com base na legislação comum. V. Recurso especial parcialmente provido” (STJ – REsp 914.384/MT – Terceira Turma – Rel. Min. Massami Uyeda – j. 02.09.2010 – DJe 01.10.2010).
Como se pode notar, o enquadramento do consumidor dependerá da presença de uma parte qualificada como grande ou pequena, forte ou fraca. Assim, ainda ilustrando, se um advogado adquire insumos para seu escritório, haverá relação de consumo, mesmo sendo os bens utilizados para sua pequena produção. Por outra via, se um grande escritório adquire tais insumos, não haverá relação de consumo. Do mesmo modo, o raciocínio serve para o médico que adquire seringas (pela relação de consumo) e para o hospital que faz o mesmo (pela não existência da relação de consumo). Fica então a dúvida a respeito da situação em que o adquirente tem um porte médio. Em casos tais, tudo dependerá do julgador, se ele é um jurista maximalista ou não. Na verdade, no último caso, pode-se falar em um posicionamento minimalista, pouco explorado pela doutrina, mas existente.
A encerrar a exposição a respeito da teoria em questão, didático julgamento do ano de 2012 expõe muito bem quais os limites do finalista aprofundado. De acordo com a publicação constante do Informativo n. 510 do STJ, “a determinação da qualidade de consumidor deve, em regra, ser feita mediante aplicação da teoria finalista, que, numa exegese restritiva do art. 2º do CDC, considera destinatário final tão somente o destinatário fático e econômico do bem ou serviço, seja ele pessoa física ou jurídica. Dessa forma, fica excluído da proteção do CDC o consumo intermediário, assim entendido como aquele cujo produto retorna para as cadeias de produção e distribuição, compondo o custo (e, portanto, o preço final) de um novo bem ou serviço. Vale dizer, só pode ser considerado consumidor, para fins de tutela pelo CDC, aquele que exaure a função econômica do bem ou serviço, excluindo-o de forma definitiva do mercado de consumo. Todavia, a jurisprudência do STJ, tomando por base o conceito de consumidor por equiparação previsto no art. 29 do CDC, tem evoluído para uma aplicação temperada da teoria finalista frente às pessoas jurídicas, num processo que a doutrina vem denominando ‘finalismo aprofundado’. Assim, tem se admitido que, em determinadas hipóteses, a pessoa jurídica adquirente de um produto ou serviço possa ser equiparada à condição de consumidora, por apresentar frente ao fornecedor alguma vulnerabilidade, que constitui o princípio-motor da política nacional das relações de consumo, premissa expressamente fixada no art. 4º, I, do CDC, que legitima toda a proteção conferida ao consumidor. A doutrina tradicionalmente aponta a existência de três modalidades de vulnerabilidade: técnica (ausência de conhecimento específico acerca do produto ou serviço objeto de consumo), jurídica (falta de conhecimento jurídico, contábil ou econômico e de seus reflexos na relação de consumo) e fática (situações em que a insuficiência econômica, física ou até mesmo psicológica do consumidor o coloca em pé de desigualdade frente ao fornecedor). Mais recentemente, tem se incluído também a vulnerabilidade informacional (dados insuficientes sobre o produto ou serviço capazes de influenciar no processo decisório de compra). Além disso, a casuística poderá apresentar novas formas de vulnerabilidade aptas a atrair a incidência do CDC à relação de consumo. Numa relação interempresarial, para além das hipóteses de vulnerabilidade já consagradas pela doutrina e pela jurisprudência, a relação de dependência de uma das partes frente à outra pode, conforme o caso, caracterizar uma vulnerabilidade legitimadora da aplicação do CDC, mitigando os rigores da teoria finalista e autorizando a equiparação da pessoa jurídica compradora à condição de consumidora” (STJ – REsp 1.195.642/RJ – Rel. Min. Nancy Andrighi – j. 13.11.2012).
O julgamento é louvável, por também considerar a dependência econômica nas relações interempresariais como um critério ampliador das relações de consumo. Lamenta-se apenas a utilização do termo “vulnerabilidade”, pois, na opinio deste autor, o que há de ser considerado é a hipossuficiência – conceito fático –, e não a vulnerabilidade – conceito jurídico decorrente de uma presunção absoluta da condição de consumidor.
d) Teoria minimalista
A par das teorias relativas ao consumidor, pode ser exposta uma corrente chamada de minimalista, que não vê a existência da relação de consumo em casos em que ela pode ser claramente percebida. Entre os adeptos dessa corrente, podem ser citados aqueles que entendem que não haveria uma relação de consumo entre banco e correntista, o que pode ser claramente percebido da leitura do art. 3º, § 2º, da Lei 8.078/1990, segundo o qual o serviço de crédito é abrangido pelo Código de Defesa do Consumido. Dessa forma se posicionavam os juristas Ives Gandra da Silva Martins e Arnoldo Wald, signatários da petição inicial da ADIn 2.591, que pretendia afastar a incidência das normas consumeristas para os contratos bancários.
Para o bem, o Supremo Tribunal Federal acabou por entender de forma contrária ao pedido, confirmando o que já constava da Súmula 297 do Superior Tribunal de Justiça, in verbis: “O Código de Defesa do Consumidor é aplicável às instituições financeiras”. A corrente minimalista restou, assim, totalmente derrotada no âmbito dos nossos Tribunais.
De toda sorte, anote-se que alguns julgados apontam ser a teoria minimalista sinônima da teoria finalista, em questões envolvendo justamente os contratos bancários:
“Contrato bancário. Relação de consumo. Destinatário final. Art. 2º do CDC. Não caracterização. Teoria minimalista ou finalista. Não caracterizada a condição de destinatário final, não há que se falar em aplicação das regras contidas na Lei do Consumidor. Negócios jurídicos bancários que tinham por finalidade fomentar as atividades empresariais desenvolvidas pela empresa coapelante. Inexistência de relação de consumo. Negócios bancários que não foram celebrados por empresa na qualidade de destinatária final. Juros remuneratórios. Não demonstração de efetiva contratação. Limitação dos juros remuneratórios à taxa média do mercado à época da contratação. Precedentes do STJ. Comissão de permanência. Possibilidade de cobrança desde que não cumulada com outros encargos. Renovação automática do contrato. Possibilidade. Autores que não demonstraram a intenção de impedir a renovação da avença. Sentença mantida. Recursos não providos” (TJSP – Apelação 0008514-82.2008.8.26.0576 – Acórdão 4981658, São José do Rio Preto – Trigésima Sétima Câmara de Direito Privado – Rel. Des. Roberto Nussinkis Mac Cracken – j. 10.02.2011 – DJESP 16.03.2011).
“Cédula de credito bancário. Alegação de necessidade de perícia. A matéria discutida em juízo depende de interpretação de cláusula de negócio jurídico bancário. Desnecessária a produção de outras provas, além daquelas já existentes nos autos. Preliminar afastada. Cédula de crédito bancário. Relação de consumo. Destinatário final. Art. 2º do CDC. Não caracterização. Teoria minimalista ou finalista. Não caracterizada a condição de destinatário final, não há que se falar em aplicação das regras contidas na Lei do Consumidor. Cédula de crédito bancário de capital de giro que tem por finalidade fomentar as atividades empresariais desenvolvidas pela empresa coapelante. Inexistência de relação de consumo. Negócio bancário que não foi celebrado por empresa na qualidade de destinatária final. Se não impugnado ou discutido no momento apropriado não autoriza ao julgador seu conhecimento de ofício. Súmula 381 do STJ. Recurso não provido” (TJSP – Apelação Cível 990.10.164057-0 – Acórdão 4821431, Bragança Paulista – Trigésima Sétima Câmara de Direito Privado – Rel. Des. Roberto Nussinkis Mac Cracken – j. 11.11.2010 – DJESP 14.12.2010).
A conclusão da comparação das teorias finalista e minimalista parece representar um engano. Além disso, diante dos julgados transcritos, deve ser feita a ressalva de que algumas decisões aplicam a teoria maximalista – ou a teoria finalista aprofundada – nas hipóteses em que pequenas empresas ou empresários individuais celebram contratos de empréstimos para obter capital para a sua atividade. Vejamos:
“Contrato. CDC. Pessoa jurídica. Crédito rotativo (cheque especial). Aplicabilidade. Contrato. Abertura de crédito em conta corrente. Juros contratuais. Admissibilidade. Norma constitucional que os fixou em limite não superior a 12% ao ano não é regra autoaplicável. Tipo de operação bancária pactuada não segue a limitação do Decreto 22.626/1933. Anatocismo. Inadmissibilidade. Súmulas 121 do STF e 93 do STJ. A cobrança de juros capitalizados somente é viável quando houver permissão legal, como é o caso das cédulas de crédito comercial, industrial e rural. Exclusão. Cabimento. Comissão de permanência, quando pactuada, não pode ultrapassar o limite dos juros contratuais, de 6,50% ao mês, não podendo haver cobrança cumulativa das duas verbas. Honorários de advogado. Sucumbência. Reciprocidade. Ocorrência. Ação revisional parcialmente procedente. Recurso provido em parte” (TJSP – Apelação Cível 1278319200, São Carlos – Vigésima Câmara de Direito Privado – Rel. Des. Álvaro Torres Júnior – j. 11.08.2008 – Data de registro 20.08.2008).
“Código de Defesa do Consumidor. Lei 8.078, de 11.09.1990. Empréstimo bancário. Aplicabilidade. Inversão do ônus da prova determinada, ex officio. Possibilidade. O tomador de empréstimo é consumidor para os efeitos do Código de Defesa do Consumidor. Súmula 297 do Colendo Superior Tribunal de Justiça. Recurso parcialmente provido. Monitória. Contrato. Abertura de crédito rotativo em conta corrente. Pessoa jurídica. Cheque empresa. Valor de R$ 13.000,00, firmado em 02.07.2003. A comissão de permanência e a correção monetária não são cumuláveis (Súmula 30, do STJ). Pactuaram-se juros remuneratórios ou compensatórios à taxa de 8,95% ao mês ou de 111,71% ao ano no caso de impontualidade. Comissão de permanência à taxa vigente no mercado financeiro, juros de mora de 12% ao ano e multa de 2% (cláusula 6ª do contrato). Com a edição da MP 1.963-17, de 30.03.2000, atualmente reeditada sob o n. 2.170-26/2001, passou-se a admitir a capitalização mensal nos contratos firmados posteriormente à sua entrada em vigor, desde que houvesse previsão contratual. Vedada a comissão de permanência cumulada com os juros moratórios e com a multa contratual, ademais de não permitir sua cumulação com a correção monetária e com os juros remuneratórios, a teor das Súmulas 30, 294 e 296, do Colendo Superior Tribunal de Justiça. A comissão de permanência é permitida à base da taxa média dos juros de mercado apurada pelo Banco Central do Brasil, mas não pode ultrapassar o que foi pactuado (Súmula 296 do Colendo Superior Tribunal de Justiça). Recurso parcialmente provido” (TJSP – Apelação Cível 7193448-8 – Acórdão 2632182, Ourinhos – Décima Nona Câmara de Direito Privado – Rel. Des. Paulo Hatanaka – j. 29.04.2008 – DJESP 23.06.2008).
Ato contínuo, o Superior Tribunal de Justiça já entendeu da mesma forma em hipótese de empréstimo de dinheiro, para a aquisição de máquina produtiva por uma pequena empresa:
“Contratos bancários. Contrato de repasse de empréstimo externo para compra de colheitadeira. Agricultor. Destinatário final. Incidência. Código de Defesa do Consumidor. Comprovação. Captação de recursos. Matéria de prova. Prequestionamento. Ausência. I. O agricultor que adquire bem móvel com a finalidade de utilizá-lo em sua atividade produtiva deve ser considerado destinatário final, para os fins do art. 2º do Código de Defesa do Consumidor. II. Aplica-se o Código de Defesa do Consumidor às relações jurídicas originadas dos pactos firmados entre os agentes econômicos, as instituições financeiras e os usuários de seus produtos e serviços. III. Afirmado pelo acórdão recorrido que não ficou provada a captação de recursos externos, rever esse entendimento encontra óbice no enunciado n. 7 da Súmula desta Corte. IV. Ausente o prequestionamento da questão federal suscitada, é inviável o recurso especial (Súmulas 282 e 356/STF). Recurso especial não conhecido, com ressalvas quanto à terminologia” (STJ – REsp 445.854/MS – Terceira Turma – Rel. Min. Castro Filho – j. 02.12.2003 – DJ 19.12.2003, p. 453).
O raciocínio deve ser o mesmo nos casos de contratos de “factoring” celebrados por pequenas empresas, visando o incremento de sua atividade pelo crédito obtido. De qualquer forma, destaque-se acórdão do STJ, do ano de 2012, segundo o qual tal relação jurídica não se enquadraria, como regra, nos elementos da relação de consumo, salvo os casos de patente vulnerabilidade ou hipossuficiência: “A atividade de factoring não se submete às regras do CDC quando não for evidente a situação de vulnerabilidade da pessoa jurídica contratante. Isso porque as empresas de factoring não são instituições financeiras nos termos do art. 17 da Lei n. 4.595/1964, pois os recursos envolvidos não foram captados de terceiros. Assim, ausente o trinômio inerente às atividades das instituições financeiras: coleta, intermediação e aplicação de recursos. Além disso, a empresa contratante não está em situação de vulnerabilidade, o que afasta a possibilidade de considerá-la consumidora por equiparação (art. 29 do CDC). Por fim, conforme a jurisprudência do STJ, a obtenção de capital de giro não está submetida às regras do CDC. Precedentes citados: REsp 836.823-PR, DJe 23.08.2010; AgRg no Ag 1.071.538-SP, DJe 18.02.2009; REsp 468.887-MG, DJe 17.05.2010; AgRg no Ag 1.316.667-RO, DJe 11.03.2011, e AgRg no REsp 956.201-SP, DJe 24.08.2011” (STJ – REsp 938.979-DF – Rel. Min. Luis Felipe Salomão – j. 19.06.2012, publicação no seu Informativo 500).
A encerrar o presente tópico, cumpre analisar o conceito de consumidor equiparado ou bystander, tão difundido pela doutrina e pela jurisprudência, retirado dos arts. 2º, parágrafo único, 17 e 29 da Lei 8.078/1990. Como se nota, três são as variantes legais da construção.
Deve ficar claro que os requisitos até o presente momento abordados se referem ao consumidor padrão (stander) ou em sentido estrito (stricto sensu). Entretanto, há um sentido de ampliação natural pela Lei Consumerista, ao considerar como consumidor a coletividade de pessoas, ainda que indetermináveis, que haja intervindo nas relações de consumo. Esse é o primeiro conceito de consumidor equiparado ou por equiparação, retirado do art. 2º, parágrafo único, do CDC. Como bem pondera José Geraldo Brito Filomeno, “é a universalidade, conjunto de consumidores de produtos e serviços, ou mesmo grupo, classe ou categoria deles, e desde que relacionados a um determinado produto ou serviço, perspectiva essa extremamente relevante e realista, porquanto é natural que se previna, por exemplo, o consumo de produtos e serviços perigosos ou então nocivos, beneficiando-se, assim, abstratamente as referidas universalidades e categorias de potenciais consumidores. Ou, então, se já provocado o dano efetivo pelo consumo de tais produtos ou serviços, o que se pretende é conferir à universalidade ou grupo de consumidores os devidos instrumentos jurídico-processuais para que possa obter a justa e mais completa possível reparação dos responsáveis”.22
Subsumindo a última ideia, colaciona-se interessante julgado do Tribunal Fluminense, em situação envolvendo a emissão de poluentes acima do aceitável por uma empresa, a causar danos potenciais à coletividade:
“Responsabilidade civil. Dano moral. Vazamento de substância química (catalisador) de unidade de refino de petróleo. Princípio da precaução. A Lei Consumerista identifica, além do consumidor stricto sensu (standard), como definido no art. 2º do CDC, o terceiro que não participa diretamente da relação de consumo, ou seja, todo aquele que se encontre na condição de consumidor equiparado, ou, segundo a indicação alienígena, bystander. O Código passa a ter, assim, múltiplos conceitos de consumidor: um geral (art. 2º, caput) e três outros por equiparação (arts. 2º, parágrafo único, 17 e 29). São, pois, equiparados ao consumidor standard: a coletividade de pessoas, ainda que indetermináveis, que haja intervindo nas relações de consumo (parágrafo único do art. 2º), todas as vítimas do evento (art. 17) e todas as pessoas, determináveis ou não, expostas às práticas nele previstas (art. 29). Portanto, a situação prevista em que a coletividade se encontra, potencialmente, na iminência de sofrer dano não provocado, deixa evidenciada a incidência das normas protetivas do Código de Defesa do Consumidor. Os diversos desastres tecnológicos de que os homens são responsáveis, como a contaminação das águas, do ar e a ameaça à camada de ozônio, assim como os problemas ocorridos no âmbito da saúde e segurança alimentar, têm chamado a atenção de todos acerca da necessidade de ser adotada uma atitude de maior prudência no uso das tecnologias hoje disponibilizadas. Os sentimentos e frustrações experimentados pelo autor durante todo o período que se seguiu a divulgação de que tal nuvem não tinha qualquer toxidade, pelo menos é o que ainda se presume, foram, sem qualquer dúvida, a causa direta do dano moral reclamado. Viveu o autor dias muito angustiantes, amargando sofrimentos e inquietações, que foram além do âmbito familiar. Evidente, portanto, que o dano moral injusto causado ao autor, independentemente de qualquer lesão física, gerou a dor e o sofrimento, vinculando o responsável ao dever de indenizar. Provimento do recurso” (TJRJ – Acórdão 2006.001.69259 – Primeira Câmara Cível – Rel. Des. Maldonado de Carvalho – j. 13.03.2007).
Como se extrai da ementa da decisão, há ainda outros dois conceitos de consumidor equiparado. De início, para os fins de responsabilidade civil, o art. 17 do CDC considera como consumidor qualquer vítima da relação de consumo. O tema ainda será aprofundado no próximo capítulo da obra. Todavia, de imediato, interessante expor uma ilustração, envolvendo julgado do STJ que considerou consumidor equiparado o proprietário de uma residência sobre a qual caiu um avião:
“Código de Defesa do Consumidor. Acidente aéreo. Transporte de malotes. Relação de consumo. Caracterização. Responsabilidade pelo fato do serviço. Vítima do evento. Equiparação a consumidor. Art. 17 do CDC. I. Resta caracterizada relação de consumo se a aeronave que caiu sobre a casa das vítimas realizava serviço de transporte de malotes para um destinatário final, ainda que pessoa jurídica, uma vez que o art. 2º do Código de Defesa do Consumidor não faz tal distinção, definindo como consumidor, para os fins protetivos da lei, ‘... toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final’. Abrandamento do rigor técnico do critério finalista. II. Em decorrência, pela aplicação conjugada com o art. 17 do mesmo diploma legal, cabível, por equiparação, o enquadramento do autor, atingido em terra, no conceito de consumidor. Logo, em tese, admissível a inversão do ônus da prova em seu favor. Recurso especial provido” (STJ – REsp 540.235/TO – Terceira Turma – Rel. Min. Castro Filho – DJ 06.03.2006).
Do mesmo Superior Tribunal de Justiça, cite-se ementa do ano de 2012, que concluiu ser consumidor equiparado o sujeito que foi vítima de um anúncio sexual realizado pela internet. Vejamos a publicação no Informativo 500 daquela Corte: “Responsabilidade civil. Provedor de Internet. Anúncio erótico. O recorrente ajuizou ação de indenização por danos morais contra a primeira recorrida por ter-se utilizado do seu sítio eletrônico, na rede mundial de computadores, para veicular anúncio erótico no qual aquele ofereceria serviços sexuais, constando para contato o seu nome e endereço de trabalho. A primeira recorrida, em contestação, alegou que não disseminou o anúncio, pois assinara contrato de fornecimento de conteúdo com a segunda recorrida, empresa de publicidade, no qual ficou estipulado que aquela hospedaria, no seu sítio eletrônico, o site desta, entabulando cláusula de isenção de responsabilidade sobre todas as informações divulgadas. Para a Turma, o recorrente deve ser considerado consumidor por equiparação, art. 17 do CDC, tendo em vista se tratar de terceiro atingido pela relação de consumo estabelecida entre o provedor de internet e os seus usuários. Segundo o CDC, existe solidariedade entre todos os fornecedores que participaram da cadeia de prestação de serviço, comprovando-se a responsabilidade da segunda recorrida, que divulgou o anúncio de cunho erótico e homossexual, também está configurada a responsabilidade da primeira recorrida, site hospedeiro, por imputação legal decorrente da cadeia de consumo ou pela culpa in eligendo, em razão da parceria comercial. Ademais, é inócua a limitação de responsabilidade civil prevista contratualmente, pois não possui força de revogar lei em sentido formal” (STJ – REsp 997.993-MG – Rel. Min. Luis Felipe Salomão – j. 21.06.2012).
Como se conclui pela análise dos julgados, o sentido de ampliação de incidência da Lei Consumerista é bem considerável, dedução retirada também do art. 29 do CDC, segundo o qual se equiparam aos consumidores todas as pessoas, determináveis ou não, expostas às práticas comerciais e empresariais nele previstas. O último dispositivo, que consagra o último conceito de consumidor equiparado, tem incidência para as relações contratuais, conforme detalhamentos constantes do Capítulo 5 deste livro.
Expostos os elementos subjetivos da relação de consumo, vejamos os seus elementos objetivos, que formam o seu conteúdo ou a sua prestação.
Nos termos literais do art. 3º, § 1º, da Lei 8.078/1990, produto é qualquer bem móvel ou imóvel material ou imaterial colocado no mercado de consumo (mass consumption society). Como bem demonstra Luiz Antonio Rizzatto Nunes, o Código de Defesa do Consumidor não adentrou na grande divergência existente entre os civilistas, a respeito dos conceitos de bens e coisas, preferindo utilizar o termo produto. São suas palavras:
“Esse conceito de produto é universal nos dias atuais e está estreitamente ligado à ideia de bem, resultado da produção no mercado de consumo das sociedades capitalistas contemporâneas. É vantajoso o seu uso, pois o conceito passa a valer no meio jurídico e já era usado por todos os demais agentes do mercado (econômico, financeiro, de comunicações etc.)”.23
Apesar da pontuação do jurista, contata-se que a Lei 8.078/1990 utilizou o termo bem, no sentido de ser uma coisa – algo que não é humano –, com interesse econômico e/ou jurídico, construção que é seguida por este autor.24 De acordo com a Lei Consumerista, o produto pode ser um bem móvel ou imóvel, diferenciação clássica do Direito Privado, que consta entre os arts. 79 e 84 do Código Civil Brasileiro.
O bem móvel é aquele que pode ser transportado sem prejuízo de sua integridade, caso de um automóvel, que pode ser o conteúdo de uma relação de consumo, como na aquisição de automóvel para uso próprio em uma concessionária de veículos, seja ele novo ou usado. Por outra via, o bem imóvel é aquele cujo transporte ou remoção implica em destruição ou deterioração considerável, hipótese de um apartamento, que, do mesmo modo, pode ser o objeto de uma relação de consumo, como presente em negócios de incorporação imobiliária (nesse sentido: STJ – REsp 334.829/DF – Terceira Turma – Rel. Min. Nancy Andrighi – j. 06.11.2001 – DJ 04.02.2002, p. 354). E isso ocorre inclusive se a incorporação for realizada por cooperativas especializadas (por todos: STJ – REsp 403.189/DF – Quarta Turma – Rel. Min. Aldir Passarinho Junior – j. 26.05.2003 – DJ 01.09.2003, p. 291).
O produto pode ser um bem material (corpóreo ou tangível) ou imaterial (incorpóreo ou intangível). Como ilustração do primeiro, vejam-se as hipóteses agora há pouco mencionadas, de aquisição do veículo e do apartamento. Como bem imaterial, destaque-se o exemplo do lazer, que envolve uma plêiade de situações contemporâneas.
De início, quanto ao lazer, consigne-se a ilustração de Nelson Nery Jr. e Rosa Maria de Andrade Nery a respeito do jogo de futebol, com citação de julgado do Tribunal Paulista nesse sentido.25 Não se olvide que o Estatuto de Defesa do Torcedor (Lei 10.671/2003) segue a principiologia consumerista, enunciando o seu art. 40 que “A defesa dos interesses e direitos dos torcedores em juízo observará, no que couber, a mesma disciplina da defesa dos consumidores em juízo de que trata o Título III da Lei 8.078, de 11 de setembro de 1990”. Ainda a título exemplificativo, seguindo a sistemática de subsunção do CDC, em episódio bem conhecido:
“Civil. Consumidor. Acidente em estádio de futebol em jogo de decisão da Taça João Havelange com características de Campeonato Brasileiro da 1ª Divisão. Queda do alambrado com dezenas de torcedores feridos no Estádio de S. Januário. Convincente a afirmação de que o autor foi acidentado quando cedeu o alambrado do estádio do Vasco da Gama, por sinal mal conservado e quando havia excesso de torcedores, certo de estar o autor na primeira relação de vítimas do B.O. Policial. Mas não provadas as suas lesões urge ordenar a sua indenização por dano morais, mas em moderada estipulação. Precedente: Apelo 9.818/05, 14ª Cível” (TJRJ – Acórdão 2005.001.49550 – Décima Quarta Câmara Cível – Rel. Des. Rudi Loewenkron – j. 17.01.2006).
Ainda a respeito do lazer, as casas noturnas e de espetáculos estão abrangidas pela Lei Consumerista, conforme julgados a seguir, relativos às conhecidas agressões praticadas nos seus interiores:
“Ação de indenização. Agressão em casa noturna. Relação de consumo. Responsabilidade subjetiva. Julgamento extra petita. Honorários de advogado. 1. Há relação de consumo entre o cliente e a casa noturna. 2. Desnecessário enfrentar a questão da responsabilidade objetiva prevista no Código de Defesa do Consumidor quando o pedido veio também amparado na responsabilidade subjetiva e as instâncias ordinárias identificaram a negligência da casa noturna que ensejou o ato lesivo. 3. A valoração da prova diz com o erro de direito quanto ao valor de determinada prova, abstratamente considerada, não sendo o caso dos autos em que houve exame detalhado de todas as provas produzidas, incluída a pericial, sendo certo que o fato de testemunhas terem amizade com o autor por si só não as desqualifica quando se sabe que também estavam no local em que ocorreu o evento danoso. 4. Não existe decisão extra petita quando o pedido, embora sem a melhor técnica, menciona a perda da capacidade profissional da vítima, reconhecida nas instâncias ordinárias. 5. A exclusão do pedido de lucros cessantes justifica o reconhecimento da sucumbência recíproca, não se podendo falar em decaimento mínimo, aplicando-se o art. 21 do Código de Processo Civil com a redução do percentual sobre o valor da condenação. 6. Recurso especial conhecido e provido, em parte” (STJ – REsp 695.000/RJ – Terceira Turma – Rel. Min. Carlos Alberto Menezes Direito – j. 03.04.2007 – DJU 21.05.2007, p. 571).
“Apelação cível. Responsabilidade civil. Agressões físicas sofridas em casa noturna. Dever de segurança. Falha do serviço. Stuttgart. Relação de consumo. Dano moral caracterizado. Hipótese em que um cliente foi agredido por um dos frequentadores da danceteria, que adentrou armado nas dependências da casa noturna. A responsabilidade objetiva consagrada pelo Código de Defesa do Consumidor somente pode ser elidida caso reste comprovada culpa exclusiva da vítima ou inexistência de defeito no serviço prestado. Na espécie, o defeito na prestação do serviço é evidente, haja vista que a revista realizada pela segurança da cervejaria foi falha, pois permitiu que um frequentador adentrasse armado na casa noturna e agredisse involuntariamente o autor, causando lesões corporais com estocadas de arma branca. Os estabelecimentos comerciais são responsáveis pela incolumidade física dos seus frequentadores. Tendo em vista que a prestadora de serviço atua no setor de entretenimento e diversão, ela tem a obrigação de oferecer instalações adequadas, bem como propiciar um ambiente seguro e saudável aos seus clientes, porque, havendo qualquer dano aos seus frequentadores, decorrentes da má conservação e manutenção das instalações e equipamento ou de falhas na prestação dos seus serviços, especialmente segurança, a casa noturna deverá responder pelo adimplemento dos prejuízos suportados. (...)” (TJRS – Acórdão 70035309707, Porto Alegre – Nona Câmara Cível – Rel. Des. Tasso Caubi Soares Delabary – j. 21.07.2010 – DJERS 06.08.2010).
Festas populares, do mesmo modo, estão abrangidas pela Lei 8.078/1990, pela sistemática da questão do lazer. Assim, o caso dos rodeios, festas típicas do interior do País (TJMT – Apelação 69.465/2009, Várzea Grande – Terceira Câmara Cível – Rel. Des. Evandro Stábile – j. 14.12.2009 – DJMT 13.01.2010, p. 11). Citem-se, nesse contexto, as festas carnavalescas que são exploradas por profissionais da área, caso das micaretas, que são os carnavais fora de época e que reproduzem o carnaval de Salvador, em que foliões acompanham os trios elétricos, dentro das cordas, e pagando pelos abadás. O emblemático acórdão a seguir, do Superior Tribunal de Justiça, publicado no seu Informativo 370, analisa muito bem a incidência do Código de Defesa do Consumidor em situações tais:
“Dano moral. Morte. Micareta. Os recorridos buscaram da sociedade promotora de eventos a indenização por danos morais decorrentes do falecimento de seu filho, vítima de disparo de arma de fogo ocorrido no interior de bloco carnavalesco em que desfilava durante uma micareta (réplica em escala menor do carnaval de Salvador). Alegam que a morte do jovem estaria diretamente ligada à má prestação de serviços pela recorrente, visto que deixara de fornecer a segurança adequada ao evento, prometida quando da comercialização dos abadás (camisolões folgados que identificam o integrante do bloco). Nesse contexto, ao sopesar as razões recursais, não há como afastar a relação de causalidade entre o falecimento e a má prestação do serviço. O principal serviço que faz o consumidor pagar vultosa soma ao optar por um bloco e não aderir à dita ‘pipoca’ (o cordão de populares que fica à margem dos blocos fechados) é justamente a segurança. Esse serviço, se não oferecido da maneira esperada, tal como na hipótese dos autos, apresenta-se claramente defeituoso nos termos do art. 14, § 1º, do CDC. Diante da falha no serviço de segurança do bloco, enquanto não diligenciou impossibilitar o ingresso de pessoa portadora de arma de fogo na área delimitada por cordão de isolamento aos integrantes do bloco, não há como constatar a alegada excludente de culpa exclusiva de terceiro (art. 14, § 3º, II, do mesmo Código). Daí que se mantém incólume a condenação imposta ao recorrente de reparar os danos morais no valor de sessenta mil reais” (STJ – REsp 878.265-PB – Rel. Min. Nancy Andrighi – j. 02.10.2008).
A encerrar o presente tópico, atente-se ao fato de que os produtos digitais também podem ser englobados pela Lei Protetiva do consumidor, caso de programas de computador ou softwares. Para concretizar, vejamos decisão do Tribunal de Minas Gerais, em que se discutiu a aplicação do CDC para a aquisição de programas de computador por escritório de advocacia, prevalecendo, ao final, a teoria finalista aprofundada ou maximalista:
“Direito do consumidor. Programa de computador. Software. Consumidor. Relação entre sociedade de advogados e empresa de software. Aplicação do Código de Defesa do Consumidor. Teoria finalista mitigada. Da responsabilidade pelo fato do produto e do serviço. Inadimplemento total da obrigação. Prescrição quinquenal. Voto vencido. O consumidor intermediário, por adquirir produto ou usufruir de serviço com o fim de, direta ou indiretamente, dinamizar ou instrumentalizar seu próprio negócio lucrativo, não se enquadra na definição constante no art. 2º do CDC, permitindo-se, entretanto, a mitigação à aplicação daquela teoria, na medida em que se admite, excepcionalmente, a aplicação das normas consumeristas a determinados consumidores profissionais, desde que demonstrada, in concreto, a vulnerabilidade técnica, jurídica ou econômica. Nas hipóteses de inadimplemento absoluto, não se estaria no âmbito do art. 18 (e, consequentemente, do art. 26 do CDC), mas no âmbito do art. 14, que, quanto à prescrição, leva à aplicação do art. 27, com prazo de cinco anos para o exercício da pretensão do consumidor. Como a prescrição é a perda da pretensão por ausência de seu exercício pelo titular, em determinado lapso de tempo, para se verificar se houve ou não prescrição é necessário constatar se nasceu ou não a pretensão respectiva, porquanto o prazo prescricional só começa a fluir no momento em que nasce a pretensão, ou seja, quando se constata de forma inequívoca o inadimplemento total da obrigação. Recurso provido. Voto vencido: A norma consumerista somente tem aplicação quando o contratante puder ser caracterizado como destinatário final. Quando a aquisição de bens ou a utilização de serviços, por pessoa natural ou jurídica, possui o escopo de implementar ou incrementar a sua atividade-fim não se reputa como relação de consumo e, sim, como uma atividade de consumo intermediária, razão pela qual não se submete às normas do Código de Defesa do Consumidor. A partir da vigência do novo Código Civil, o prazo prescricional das ações de reparação de danos que não houver atingido a metade do tempo previsto no Código Civil de 1916 fluirá por inteiro, nos termos da nova Lei (art. 206) (Des. Electra Benevides)” (TJMG – Apelação Cível 1.0024.06.207799-5/0011, Belo Horizonte – Décima Câmara Cível – Rel. Des. Cabral da Silva – j. 02.06.2009 – DJEMG 23.06.2009).
Estabelece o art. 3º, § 2º, que o serviço é qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária, salvo as decorrentes das relações de caráter trabalhista.
De início, cumpre esclarecer que, apesar de a lei mencionar expressamente a remuneração, dando um caráter oneroso ao negócio, admite-se que o prestador tenha vantagens indiretas, sem que isso prejudique a qualificação da relação consumerista. Como primeiro exemplo, invoca-se o caso do estacionamento gratuito em lojas, shoppings centers, supermercados e afins, respondendo a empresa que é beneficiada pelo serviço, que serve como atrativo aos consumidores. Dessa forma, concluindo pela presença de responsabilidades, da jurisprudência:
“Indenização por danos materiais. Furto em estacionamento. Legitimidade passiva do supermercado. Terceirização do estacionamento. Irrelevância. Exoneração de responsabilidades estabelecida entre o supermercado e a empresa terceirizada não pode ser oposta ao consumidor. Solidariedade decorrente de lei. Furto Comprovado. A disponibilização de estacionamento visa angariar a clientela, ensejando a configuração de depósito irregular e consequente dever de guarda e vigilância, pouco importando tratar-se de estacionamento gratuito. Lucros cessantes afastados. Dano material correspondente ao valor do veículo furtado. Sentença parcialmente procedente. Recurso não provido” (TJSP – Apelação 0097300-21.2007.8.26.0000 – Acórdão 4895504, São Paulo – Décima Câmara de Direito Privado – Rel. Des. Antonio Manssur – j. 18.11.2010 – DJESP 24.02.2011).
“Civil. Apelação. Ação de indenização. Furto de motocicleta em supermercado. Responsabilidade civil da empresa configurada. Dever de guarda e vigilância. Dano material. Arts. 14 e 29 do CDC. Aplicação. Indenização cabível. Súmula 130 do STJ. Dever de indenizar. Responsabilidade civil do Estado. Não configuração. Recurso conhecido e não provido. O estabelecimento que permite, mesmo a título gratuito, o estacionamento de veículo em seu pátio, tem responsabilidade pela guarda e vigilância do bem, e responde por qualquer dano causado. Nos termos do art. 14 do CDC, o fornecedor de serviços ou de produtos responde para com o consumidor em caso de dano, independentemente de culpa. A teor do art. 29 do CDC, equiparam-se aos consumidores todas as pessoas determináveis ou não, expostas às práticas nele previstas. O furto de veículo em estacionamento privativo de empresa gera a obrigação de indenizar conforme prevê a Súmula 130 do STJ. Não há como imputar ao Estado a responsabilidade por prejuízo sofrido pelo furto ocorrido em estacionamento privado de supermercado. Recurso conhecido e não provido” (TJMG – Apelação Cível 1.0702.06.285022-8/0011, Uberlândia – Décima Sétima Câmara Cível – Rel. Des. Márcia de Paoli Balbino – j. 24.04.2008 – DJEMG 09.05.2008).
Como se retira da última ementa, o conceito de consumidor equiparado pode ser utilizado para se chegar à mesma dedução de responsabilidade. Ademais, não faz a jurisprudência distinção a respeito de ter ou não o consumidor efetuado compras no local, havendo sempre a responsabilidade da empresa, nos termos da Súmula 130 do STJ. Nesse sentido:
“Direito civil. Responsabilidade civil. Furto em estacionamento. Shopping center. Veículo pertencente a possível locador de unidade comercial. Existência de vigilância no local. Obrigação de guarda. Indenização devida. Precedentes. Recurso provido. I. Nos termos do enunciado n. 130/STJ, ‘a empresa responde, perante o cliente, pela reparação de dano ou furto de veículo ocorridos em seu estacionamento’. II. A jurisprudência deste Tribunal não faz distinção entre o consumidor que efetua compra e aquele que apenas vai ao local sem nada despender. Em ambos os casos, entende-se pelo cabimento da indenização em decorrência do furto de veículo. A responsabilidade pela indenização não decorre de contrato de depósito, mas da obrigação de zelar pela guarda e segurança dos veículos estacionados no local, presumivelmente seguro” (STJ – REsp 437.649/SP – Quarta Turma – Rel. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira – j. 06.02.2003 – DJ 24.02.2003, p. 242).
Outro exemplo que envolve as vantagens indiretas ao prestador é o sistema de milhagens ou de pontuação em companhias áreas, que igualmente serve como um atrativo aos consumidores, ou até mesmo como uma publicidade (nesse sentido: TJPE – Apelação 0188732-5, Recife – Sexta Câmara Cível – Rel. Des. Eduardo Augusto Paura Peres – j. 11.03.2010 – DJEPE 05.05.2010). Fornecendo amparo doutrinário a essa forma de pensar, na VI Jornada de Direito Civil, em 2013, foi aprovado o Enunciado n. 559 CJF/STJ, segundo o qual “no transporte aéreo, nacional e internacional, a responsabilidade do transportador em relação aos passageiros gratuitos, que viajarem por cortesia, é objetiva, devendo atender à integral reparação de danos patrimoniais e extrapatrimoniais”. A menção à reparação integral segue a linha exposta neste livro, de afastar qualquer tarifação da indenização nas relações de consumo.
Voltando à análise efetiva do conceito de serviço, a norma expressa que os serviços bancários, financeiros e de crédito são abrangidos pela norma consumerista. Por isso, os contratos celebrados entre bancos e correntistas para administração e transmissão de capitais financeiros são, em regra, de consumo, na esteira da Súmula 297 do STJ. Nessa mesma linha posicionou-se o Supremo Tribunal Federal na Ação Declaratória de Inconstitucionalidade 2.591, conhecida como “Adin dos Bancos”, cuja longa ementa merece transcrição:
“Código de Defesa do Consumidor. Art. 5º, XXXII, da CF/1988. Art. 170, V, da CF/1988. Instituições financeiras. Sujeição delas ao Código de Defesa do Consumidor, excluídas de sua abrangência a definição do custo das operações ativas e a remuneração das operações passivas praticadas na exploração da intermediação de dinheiro na economia [art. 3º, § 2º, do CDC]. Moeda e taxa de juros. Dever-poder do Banco Central do Brasil. Sujeição ao Código Civil. 1. As instituições financeiras estão, todas elas, alcançadas pela incidência das normas veiculadas pelo Código de Defesa do Consumidor. 2. ‘Consumidor’, para os efeitos do Código de Defesa do Consumidor, é toda pessoa física ou jurídica que utiliza, como destinatário final, atividade bancária, financeira e de crédito. 3. O preceito veiculado pelo art. 3º, § 2º, do Código de Defesa do Consumidor deve ser interpretado em coerência com a Constituição, o que importa em que o custo das operações ativas e a remuneração das operações passivas praticadas por instituições financeiras na exploração da intermediação de dinheiro na economia estejam excluídos da sua abrangência. 4. Ao Conselho Monetário Nacional incumbe a fixação, desde a perspectiva macroeconômica, da taxa-base de juros praticável no mercado financeiro. 5. O Banco Central do Brasil está vinculado pelo dever-poder de fiscalizar as instituições financeiras, em especial na estipulação contratual das taxas de juros por elas praticadas no desempenho da intermediação de dinheiro na economia. 6. Ação direta julgada improcedente, afastando-se a exegese que submete às normas do Código de Defesa do Consumidor [Lei 8.078/1990] a definição do custo das operações ativas e da remuneração das operações passivas praticadas por instituições financeiras no desempenho da intermediação de dinheiro na economia, sem prejuízo do controle, pelo Banco Central do Brasil, e do controle e revisão, pelo Poder Judiciário, nos termos do disposto no Código Civil, em cada caso, de eventual abusividade, onerosidade excessiva ou outras distorções na composição contratual da taxa de juros. Art. 192 da CF/1988. Norma-objetivo. Exigência de lei complementar exclusivamente para a regulamentação do Sistema Financeiro. 7. O preceito veiculado pelo art. 192 da Constituição do Brasil consubstancia norma-objetivo que estabelece os fins a serem perseguidos pelo sistema financeiro nacional, a promoção do desenvolvimento equilibrado do País e a realização dos interesses da coletividade. 8. A exigência de lei complementar veiculada pelo art. 192 da Constituição abrange exclusivamente a regulamentação da estrutura do sistema financeiro. Conselho Monetário Nacional. Art. 4º, VIII, da Lei 4.595/1964. Capacidade normativa atinente à Constituição, funcionamento e fiscalização das instituições financeiras. Ilegalidade de resoluções que excedem essa matéria. 9. O Conselho Monetário Nacional é titular de capacidade normativa – a chamada capacidade normativa de conjuntura – no exercício da qual lhe incumbe regular, além da constituição e fiscalização, o funcionamento das instituições financeiras, isto é, o desempenho de suas atividades no plano do sistema financeiro. 10. Tudo o quanto exceda esse desempenho não pode ser objeto de regulação por ato normativo produzido pelo Conselho Monetário Nacional. 11. A produção de atos normativos pelo Conselho Monetário Nacional, quando não respeitem ao funcionamento das instituições financeiras, é abusiva, consubstanciando afronta à legalidade” (STF – ADI 2.591/DF – Tribunal Pleno – Rel. Min. Carlos Velloso – Rel. p/Acórdão Min. Eros Grau – j. 07.06.2006).
Podem ser citados, assim, os contratos de conta-corrente, conta poupança, depósito bancário de quantias e bens e mútuo bancário. Deve ser feita a ressalta de que, se uma grande empresa adquire valores para fomentar sua atividade produtiva, não haveria, na esteira de julgados já transcritos, uma relação de consumo. Tratando-se de uma pequena empresa ou de um empresário individual de pequeno ou médio porte, justifica-se a incidência do CDC pela patente vulnerabilidade ou hipossuficiência, incidindo a teoria finalista aprofundada ou a teoria maximalista. Decisões nessa linha de pensamento aqui já foram transcritas.
Consigne-se, no contexto de negócios financeiros contemporâneos, que o contrato de cartão de crédito também é abrangido pela Lei 8.078/1990, nas relações entre o titular do cartão e a empresa que explora o serviço, surgindo uma quantidade considerável de demandas relativas, principalmente, à responsabilidade civil, que ainda serão estudadas (ver, por exemplo: STJ – REsp 1061500/RS – Terceira Turma – Rel. Min. Sidnei Beneti – j. 04.11.2008 – DJe 20.11.2008; e STJ – REsp 81.269/SP – Segunda Turma – Rel. Min. Castro Filho – j. 08.05.2001 – DJ 25.06.2001, p. 150). Nas relações entre comerciantes e empresas de cartão de crédito, em regra e pela teoria finalista, não há relação de consumo, uma vez que o serviço é contratado com os fins de facilitação da atuação dos primeiros (STJ – REsp 910.799/RS – Terceira Turma – Rel. Min. Sidnei Beneti – j. 24.08.2010 – DJe 12.11.2010). No caso de se tratar de comerciante de pequeno porte, pode-se sustentar perfeitamente a incidência da teoria finalista aprofundada ou da teoria maximalista, na esteira do que foi antes exposto.
Cumpre destacar que, também nos contratos com emissão de cédula de crédito rural, incide a Lei 8.078/1990, com as mesmas ressalvas feitas por último (entre os mais recentes acórdãos: STJ – AgRg no Ag 1.064.081/SE – Quarta Turma – Rel. Min. Luis Felipe Salomão – j. 15.03.2011 – DJe 18.03.2011; e STJ – REsp 302.265/RS – Quarta Turma – Rel. Min. Luis Felipe Salomão – j. 18.03.2010 – DJe 12.04.2010).
Os contratos para aquisição de bens de consumo por meio de arrendamento mercantil ou leasing igualmente são abrangidos pelo Código Consumerista, conforme remansosa jurisprudência. Um dos principais precedentes dessa incidência é o Agravo Regimental no Recurso Especial 374.351/RS, da Terceira Turma do STJ, de relatoria da Ministra Nancy Andrighi, que debateu a revisão desses negócios diante da desvalorização do real frente ao dólar (julgado em 30.04.2002). O tema ainda será aprofundado quando da abordagem da revisão contratual consagrada pela Lei 8.078/1990.
Voltando ao conteúdo do art. 3º, § 2º, do CDC, está expresso que os serviços securitários são abrangidos pela Lei Protetiva, caso dos seguros em geral. Ilustrando, o seguro de automóvel, em regra, é um contrato de consumo, a não ser se contratado no interesse patrimonial de alguém (por todos: STJ – REsp 1097758/MG – Terceira Turma – Rel. Min. Massami Uyeda – j. 10.02.2009 – DJe 27.02.2009). Do mesmo modo, o contrato de seguro de vida, celebrado no interesse de uma pessoa ou de uma família (entre os julgados mais recentes: REsp 1.077.342/MG – Terceira Turma – Rel. Min. Massami Uyeda – j. 22.06.2010 – DJe 03.09.2010). No tocante ao contrato de seguro-saúde, é clara a Súmula 469 do STJ, incidente para tais negócios: “Aplica-se o Código de Defesa do Consumidor aos contratos de plano de saúde”. Na mesma linha e com tom de ampliação, a Súmula 100 do Tribunal de Justiça de São Paulo, do ano de 2013: “O contrato de plano/seguro saúde submete-se aos ditames do Código de Defesa do Consumidor e da Lei n. 9.656/1998 ainda que a avença tenha sido celebrada antes da vigência desses diplomas legais”.
Continuando no estudo da norma, estão excluídas as relações de caráter trabalhista, regidas pela legislação especial, no caso a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). Por tais relações são compreendidas as relações de emprego, com os elementos que lhe são peculiares, tais como a pessoalidade, a subordinação jurídica, a onerosidade, a habitualidade ou não eventualidade, a alienidade e a exclusividade.26 Sendo assim, imagine-se que um produto explode dentro de uma fábrica, vindo a atingir um de seus empregados. Logicamente, o empregado demandará o empregador, e não o fabricante do produto, com base no acidente de trabalho e não no acidente de consumo. Em suma, incide a CLT na situação descrita e não o CDC. Em outras palavras, o protecionismo do empregado prevalece sobre o protecionismo do consumidor.
Entretanto, deve ficar claro que o Código de Defesa do Consumidor incide sobre algumas relações de trabalho individual, caso de um jardineiro, de um dentista, de um advogado, de um médico, de um empreiteiro, todos prestando serviços eventuais. Em casos tais, é bem possível estarmos diante de uma relação de consumo que também é uma relação de trabalho, e não necessariamente uma relação de emprego, diga-se de passagem. Imagine-se o singelo exemplo de um jardineiro individual que presta seu serviço para alguém. O jardineiro é um trabalhador, sem ser um empregado. Na outra ponta da relação há um consumidor, destinatário final de um produto ou serviço. Restam, então, duas dúvidas. Quem merecerá proteção nessa hipótese? Qual a justiça competente para apreciar eventual dilema contratual entre as partes: a Justiça do Trabalho ou a Justiça Comum Estadual?
No caso descrito, sabe-se que ambos os envolvidos têm proteção constitucional. O consumidor está protegido no art. 5º, inc. XXII, da Constituição Federal, como antes exposto. Por outra via, o trabalhador – e não mais empregado – tem o amparo do art. 7º da Constituição, alterado pela Emenda Constitucional 45/2004. Um consumerista diria que o direito do consumidor prevalece. Já um trabalhista afirmaria o contrário, como se ouve quando a questão é levada a debate em ambientes diferenciados. Surge o grande dilema, eis que ambos os vulneráveis têm o seu próprio princípio do protecionismo. Na hipótese descrita, acredita-se que a solução está na aplicação da técnica de ponderação, fazendo-se um juízo de razoabilidade de acordo com o caso concreto.27 Há, assim, uma espécie de ponderação meritória, favorável à proteção que deve prevalecer naquela situação concreta. Eis aqui a solução para esse problema, que envolve um diálogo das fontes entre as normas consumeristas e trabalhistas, sob o prisma constitucional, eis que tanto os consumidores quanto os trabalhadores estão protegidos pelo Texto Maior.
Outras normas podem auxiliar na solução desse problema. Imagine-se que a questão de conflito é o contrato escrito e celebrado entre as partes, que traz dois valores para o serviço prestado pelo jardineiro. Adotando-se uma interpretação pro consumidor, valeria o preço menor (art. 47 do CDC). Com uma interpretação pro trabalhador, o preço maior deve prevalecer. Ora, o Código Civil de 2002 pode auxiliar na definição do direito tutelado. Se o contrato foi imposto pelo trabalhador, o que geralmente ocorre, o consumidor será aderente, adotando-se uma interpretação que lhe seja mais favorável (art. 423 do CC). No caso de ter o consumidor estipulado o contrato, o aderente será o trabalhador.
Entende-se que tais soluções devem ser adotadas também para a fixação da Justiça competente para apreciar a questão, de acordo com o pedido e a causa de pedir (solução processual). Se quem merecer a proteção for o consumidor, a competência será da Justiça Comum Estadual, melhor habituada com a principiologia consumerista. Caso contrário, a competência será da Justiça do Trabalho, até porque o art. 114, inc. I, da Constituição Federal, alterado pela EC 45/2004, fixa a competência dessa justiça especializada para apreciar as ações oriundas da relação de trabalho. Houve clara ampliação da competência, uma vez que não se menciona mais a relação de emprego, com aqueles elementos fixos e tradicionais já conhecidos.
O presente autor não se filia, portanto, a soluções simplistas que, cegamente e por preferências ideológicas, conduzem a uma ou outra competência específica. De toda sorte, tem prevalecido o entendimento de competência da Justiça Comum Estadual para os casos envolvendo dilemas envolvendo profissionais liberais, notadamente cobrança de valores. Nessa linha, a Súmula 363 do STJ: “Compete à Justiça estadual processar e julgar a ação de cobrança ajuizada por profissional liberal contra cliente”. A controvérsia envolve também a competência para cobrança de honorários advocatícios, sendo majoritária a tese de competência, mais uma vez, da Justiça Comum. Por todos os numerosos julgados do TST, entre os mais recentes:
“Recurso de revista. 1. Honorários advocatícios. Ação de cobrança. Ente público. Incompetência da Justiça do Trabalho. Precedentes. Esta colenda Corte Superior tem entendido que a Justiça do Trabalho é incompetente para julgar ações de cobrança de honorários de advogado, por se tratar de relação de consumo, hipótese que não se enquadra no art. 114 da Constituição Federal, mesmo após a ampliação da competência desta justiça especializada. Precedentes da SBDI-1. Na hipótese dos autos, a competência da Justiça Comum encontra-se reforçada pela presença do ente público no polo passivo da demanda, haja vista que o Supremo Tribunal Federal decidiu, mediante reiterados julgados, ser a Justiça do Trabalho incompetente para processar e julgar causas que envolvam o poder público e servidores vinculados a ele por relação jurídico-administrativa, uma vez que essas ações não se reputam oriundas da relação de trabalho referida no art. 114, I, da Constituição Federal. Recurso de revista não conhecido” (TST – Recurso de Revista 907.800-78.2006.5.12.0036 – Segunda Turma – Rel. Min. Guilherme Augusto Caputo Bastos – DEJT 11.03.2011, p. 357).
“Recurso de revista. Ação de cobrança. Contrato de mandato de honorários advocatícios. Reclamação trabalhista. Advogado destituído. Relação cliente x advogado. Incompetência da Justiça do Trabalho. Em razão do contrato de honorários advocatícios decorrer do mandato, cujo objeto decorre exatamente de um contrato de resultado, resta claro que a lide versa sobre relação de consumo, a afastar a competência da Justiça do Trabalho. In casu, o trabalho não é o cerne do contrato, mas sim um bem de consumo que se traduziu nele, que é o resultado esperado diante de um contrato realizado entre as partes, qual seja o provimento favorável na ação trabalhista ajuizada. Assim, a competência da Justiça do Trabalho estará assegurada apenas quando não houver, pela natureza dos serviços realizados, relação contratual de consumo. A natureza da pretensão deduzida em juízo encontra-se fora do âmbito das matérias a serem apreciadas na Justiça do Trabalho. Recurso de revista conhecido e desprovido” (TST – Recurso de Revista 91.600-29.2008.5.15.0051 – Sexta Turma – Rel. Min. Aloysio Corrêa da Veiga – DEJT 04.06.2010, p. 842).
De toda sorte, essa forma de pensar não é pacífica no próprio Tribunal Superior do Trabalho, pois existem outras ementas que concluem pela competência da Justiça do Trabalho para julgar demandas relativas a profissionais liberais, com clara presença da relação de consumo. Vejamos uma dessas decisões:
“Agravo de instrumento. Competência material. Justiça do Trabalho. Ação de cobrança de honorários advocatícios. Constatada possível ofensa ao art. 114, I, da Constituição. Merece ser provido o apelo para determinar o processamento do recurso denegado. Agravo de instrumento a que se dá provimento. II. Recurso de revista. Competência material. Justiça do Trabalho. Ação de cobrança de honorários advocatícios. Emenda Constitucional 45/2004. 1. A reforma do Judiciário, mediante a edição da Emenda Constitucional 45/2004, alargou a competência desta justiça especializada, que deixou de apreciar apenas os dissídios oriundos das relações de emprego para passar a conciliar e julgar controvérsias provenientes de relações de trabalho. Nesta, encontram-se mitigados alguns dos elementos necessários para a caracterização daquela, mormente a subordinação. 2. Como consequência da alteração do texto constitucional, o Tribunal Superior do Trabalho cancelou a Orientação Jurisprudencial 138 da SBDI-2, abrindo espaço para que esta especializada processe e julgue as ações de cobrança de honorários advocatícios ajuizadas pelos causídicos em face da prestação de serviços a particulares. Precedente. Recurso de revista conhecido e provido” (TST – RR 363/2007-771-04-40.7 – Oitava Turma – Rel. Min. Maria Cristina Irigoyen Peduzzi – DEJT 26.06.2009, p. 1.746).
Apesar de estar o primeiro entendimento quase que consolidado, propõe-se a análise dos problemas envolvendo as relações de trabalho versus relações de consumo caso a caso, na esteira da tese da ponderação dos direitos dos vulneráveis envolvidos, antes exposta (ponderação meritória).
A encerrar o estudo do serviço abrangido pelo Código de Defesa do Consumidor, anote-se que os serviços oferecidos pela internet também podem (e devem) ser objeto das relações de consumo. Aliás, há proposta de alteração da Lei 8.078/1990, em curso no Congresso Nacional, para inclusão de dispositivos expressos nesse sentido, o que vem em boa hora, para que não resista qualquer dúvida a respeito da questão (PLS 281/2012). O texto inicial do Projeto pretende, dentre outras alterações, introduzir os arts. 44-A a 44-E ao CDC, incluindo a Seção VII ao Capítulo V (“Das Práticas Comerciais”), para tratar do comércio eletrônico. Estabelece a primeira norma que “Esta seção dispõe sobre normas gerais de proteção do consumidor no comércio eletrônico, visando a fortalecer a sua confiança e assegurar tutela efetiva, com a diminuição da assimetria de informações, a preservação da segurança nas transações, a proteção da autodeterminação e da privacidade dos dados pessoais. Parágrafo único. As normas desta Seção aplicam-se às atividades desenvolvidas pelos fornecedores de produtos ou serviços por meio eletrônico ou similar”.
Na mesma linha de incidência da Lei Consumerista para tais negócios, foi editado, em março de 2013, o Decreto 7.962, que regulamenta a Lei 8.078/1990 para dispor sobre a contratação no comércio eletrônico. A norma trata das informações claras a respeito do produto, serviço e do fornecedor; do atendimento facilitado ao consumidor e do respeito ao direito de arrependimento em tais negócios digitais.
Estabelece o seu art. 2º, em prol da transparência dessas relações contratuais, que os sítios eletrônicos ou demais meios eletrônicos utilizados para oferta ou conclusão de contrato de consumo devem disponibilizar, em local de destaque e de fácil visualização, as seguintes informações: a) nome empresarial e número de inscrição do fornecedor, quando houver, no Cadastro Nacional de Pessoas Físicas ou no Cadastro Nacional de Pessoas Jurídicas do Ministério da Fazenda; b) endereço físico e eletrônico, e demais informações necessárias para sua localização e contato; c) características essenciais do produto ou do serviço, incluídos os riscos à saúde e à segurança dos consumidores; d) discriminação, no preço, de quaisquer despesas adicionais ou acessórias, tais como as de entrega ou seguros; e) condições integrais da oferta, incluídas modalidades de pagamento, disponibilidade, forma e prazo da execução do serviço ou da entrega ou disponibilização do produto; e f) informações claras e ostensivas a respeito de quaisquer restrições à fruição da oferta.
Em complemento, os sítios eletrônicos ou demais meios eletrônicos utilizados para ofertas de compras coletivas ou modalidades análogas de contratação deverão conter, além dessas informações, as seguintes: I – quantidade mínima de consumidores para a efetivação do contrato; II – prazo para utilização da oferta pelo consumidor; e III – identificação do fornecedor responsável pelo sítio eletrônico e do fornecedor do produto ou serviço ofertado (art. 3º do Decreto).
Nos termos do seu art. 4º, para garantir o atendimento facilitado ao consumidor no comércio eletrônico, o fornecedor deverá apresentar sumário do contrato antes da contratação, com as informações necessárias ao pleno exercício do direito de escolha do consumidor, enfatizadas as cláusulas que limitem direitos. Deve, ainda, fornecer ferramentas eficazes ao consumidor para identificação e correção imediata de erros ocorridos nas etapas anteriores à finalização da contratação. Há também o dever de confirmar imediatamente o recebimento da aceitação da oferta, bem como de disponibilizar o contrato ao consumidor em meio que permita sua conservação e reprodução, imediatamente após a contratação. Impõe-se, na sequência, o dever do fornecedor em manter serviço adequado e eficaz de atendimento em meio eletrônico, que possibilite ao consumidor a resolução de demandas referentes à informação, dúvida, reclamação, suspensão ou cancelamento do contrato. Em caso tais, deve o fornecedor confirmar imediatamente o recebimento das demandas do consumidor, pelo mesmo meio empregado pelo consumidor e utilizar mecanismos de segurança eficazes para pagamento e para tratamento de dados do consumidor.
Diante da boa-fé objetiva, o fornecedor deve informar, de forma clara e ostensiva, os meios adequados e eficazes para o exercício do direito de arrependimento pelo consumidor, o que pode ser efetivado pela mesma ferramenta utilizada para a contratação, sem prejuízo de outros meios disponibilizados. O exercício do direito de arrependimento implica a rescisão dos contratos acessórios, sem qualquer ônus para o consumidor, devendo ser comunicado imediatamente pelo fornecedor à instituição financeira ou à administradora do cartão de crédito ou similar, para que o negócio seja desfeito e os valores sejam devolvidos (art. 5º do Decreto 7.962/2013).
As contratações no comércio eletrônico deverão observar o cumprimento das condições da oferta, com a entrega dos produtos e serviços contratados, observados prazos, quantidade, qualidade e adequação (art. 6º). O desrespeito a qualquer uma dessas regras enseja o fornecedor a penalidades administrativas tratadas pelo Código de Defesa do Consumidor (art. 7º).
Por derradeiro, sem prejuízo de todas essas normas, a ilustrar a já subsunção da Lei Consumerista a serviços dessa natureza, em debate sobre a existência ou não de remuneração direta, da jurisprudência superior: “Direito do consumidor e responsabilidade civil. Recurso especial. Indenização. Art. 159 do CC/1916 e arts. 6º, VI, e 14, da Lei 8.078/1990. Deficiência na fundamentação. Súmula 284/STF. Provedor da internet. Divulgação de matéria não autorizada. Responsabilidade da empresa prestadora de serviço. Relação de consumo. Remuneração indireta. Danos morais. Quantum razoável. Valor mantido. 1. Não tendo a recorrente explicitado de que forma o v. acórdão recorrido teria violado determinados dispositivos legais (art. 159 do Código Civil de 1916 e arts. 6º, VI, e 14, ambos da Lei 8.078/1990), não se conhece do recurso especial, neste aspecto, porquanto deficiente a sua fundamentação. Incidência da Súmula 284/STF. 2. Inexiste violação ao art. 3º, § 2º, do Código de Defesa do Consumidor, porquanto, para a caracterização da relação de consumo, o serviço pode ser prestado pelo fornecedor mediante remuneração obtida de forma indireta. 3. Quanto ao dissídio jurisprudencial, consideradas as peculiaridades do caso em questão, quais sejam, psicóloga, funcionária de empresa comercial de porte, inserida, equivocadamente e sem sua autorização, em site de encontros na internet, pertencente à empresa-recorrente, como ‘pessoa que se propõe a participar de programas de caráter afetivo e sexual’, inclusive com indicação de seu nome completo e número de telefone do trabalho, o valor fixado pelo Tribunal a quo a título de danos morais mostra-se razoável, limitando-se à compensação do sofrimento advindo do evento danoso. Valor indenizatório mantido em 200 (duzentos) salários mínimos, passível de correção monetária a contar desta data. 4. Recurso não conhecido” (STJ – REsp 566.468/RJ – Quarta Turma – Rel. Min. Jorge Scartezzini – j. 23.11.2004 – DJ 17.12.2004, p. 561).
Superada a análise dos elementos da relação de consumo, com a ilustração de várias situações concretas atuais, cumpre abordar outras relações jurídicas contemporâneas, a fim de esclarecer os limites concretos do campo de subsunção da Lei Consumerista. Vejamos, de forma detalhada e pontual.
O contrato de transporte é um dos negócios jurídicos com maior aplicação na realidade, diante do conhecido interesse do ser humano em se deslocar de um local para outro. A categoria é definida pelo art. 730 do Código Civil de 2002, in verbis: “Pelo contrato de transporte alguém se obriga, mediante retribuição, a transportar, de um lugar para outro, pessoas ou coisas”. Desse modo, duas são as modalidades básicas tratadas pela codificação privada: o transporte de pessoas e o transporte de coisas.
Na grande maioria das vezes, haverá relação de consumo no transporte de pessoas ou coisas. Cite-se, a propósito, o transporte coletivo por meio de ônibus, seja municipal, intermunicipal ou interestadual (veja-se debate em: STJ – REsp 402.227/RJ – Quarta Turma – Rel. Min. Aldir Passarinho Junior – j. 07.12.2004 – DJ 11.04.2005, p. 305; e STJ – REsp 418.395/MA – Quarta Turma – Rel. Min. Barros Monteiro – j. 28.05.2002 – DJ 16.09.2002, p. 195). Do mesmo modo, conforme visto no Capítulo 1 desta obra, a jurisprudência superior tem entendido que o transporte aéreo, seja nacional ou internacional, é abrangido pela Lei 8.078/1990 (por todos: STJ – AgRg no Ag 1.297.315/SP – Quarta Turma – Rel. Min. Aldir Passarinho Junior – j. 09.11.2010 – DJe 23.11.2010). E isso, inclusive nos casos de extravios de mercadoria transportada (STJ – AgRg no Ag 1.035.077/SP – Terceira Turma – Rel. Min. Massami Uyeda – j. 22.06.2010 – DJe 01.07.2010).
Deve ser esclarecido o teor do art. 732 do CC, segundo o qual “Aos contratos de transporte, em geral, são aplicáveis, quando couber, desde que não contrariem as disposições deste Código, os preceitos constantes da legislação especial e de tratados e convenções internacionais”. Compreendendo o teor do comando, não pode ele trazer a conclusão de que o Código Civil exclui a incidência do CDC, presentes no contrato de transporte os elementos da relação de consumo. Nesse sentido, vejamos o teor do Enunciado 369 CJF/STJ, aprovado na IV Jornada de Direito Civil:
“Diante do preceito constante no art. 732 do Código Civil, teleologicamente e em uma visão constitucional de unidade do sistema, quando o contrato de transporte constituir uma relação de consumo, aplicam-se as normas do Código de Defesa do Consumidor que forem mais benéficas a este”.
Sem prejuízo de todos os casos apontados, nas hipóteses em que o transporte for utilizado com intuito direto de lucro, dentro da máquina produtiva de uma empresa, não haverá relação de consumo. Nessa linha, vejamos publicação constante do Informativo 442 do STJ:
“A Turma negou provimento ao recurso especial, mantendo a decisão do tribunal a quo, que entendeu inexistir, na espécie, relação de consumo entre, de um lado, revendedora de máquinas e equipamentos e, do outro, transportadora. Cuidou-se, na origem, de ação indenizatória ajuizada pela ora recorrente sob a alegação de que um gerador de energia, objeto do contrato de transporte firmado com a empresa recorrida, teria sofrido avarias durante o trajeto. O STJ aplica ao caso a teoria finalista, segundo a qual se considera consumidor aquele que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final. Na espécie, ressaltou-se que o produto não seria destinado à recorrida, mas a cliente da revendedora, motivo pelo qual foi afastada a regra especial de competência do art. 101, I, do CDC para fazer incidir a do art. 100, IV, a, do CPC” (STJ – REsp 836.823-PR – Rel. Min. Sidnei Beneti – j. 12.08.2010).
A decisão merece ser ressalvada para as hipóteses envolvendo pessoas vulneráveis ou hipossuficientes, situações a que o CDC pode se subsumir, diante da incidência da teoria finalista aprofundada ou maximalista, na esteira do antes exposto.
O caput do art. 22 do Código de Defesa do Consumidor é bem claro no sentido de abranger os serviços públicos, enunciando que “Os órgãos públicos, por si ou suas empresas, concessionárias, permissionárias ou sob qualquer outra forma de empreendimento, são obrigados a fornecer serviços adequados, eficientes, seguros e, quanto aos essenciais, contínuos”. Como se depreende da simples leitura do comando, o CDC abrange todos os serviços públicos, sejam eles prestados diretamente pelo Estado ou por empresas privadas. Desse modo, a título de exemplo, aplica-se a Lei 8.078/1990 nas seguintes situações concretas:
– Serviços de transporte público: STJ – REsp 976.836/RS – Primeira Seção – Rel. Min. Luiz Fux – j. 25.08.2010 – DJe 05.10.2010.
– Prestação de serviços rodoviários, por meio de empresas concessionárias: STJ – AgRg no Ag 1067391/SP – Quarta Turma – Rel. Min. Luis Felipe Salomão – j. 25.05.2010 – DJe 17.06.2010; e STJ – REsp 647.710/RJ – Terceira Turma – Rel. Min. Castro Filho – j. 20.06.2006 – DJ 30.06.2006, p. 216.
– Serviços públicos de educação: TJRS – Acórdão 70022516512, Encantado – Nona Câmara Cível – Rel. Des. Odone Sanguiné – j. 16.04.2008 – DOERS 23.09.2008, p. 27; e TJMT – Apelação 63396/2009, Capital – Terceira Câmara Cível – Rel. Des. José Tadeu Cury – j. 23.02.2010 – DJMT 03.03.2010, p. 26 (julgados relacionados a agressões e acidente ocorridos no interior de escolas públicas).
– Serviços de telefonia fixa ou móvel: STJ – AgRg no AgRg no REsp 1.032.454/RJ – Primeira Turma – Rel. Min. Luiz Fux – j. 06.10.2009 – DJe 16.10.2009.
– Serviços públicos de fornecimento de água e esgoto, luz (energia elétrica) e gás, respectivamente: STJ – AgRg no REsp 1.151.496/SP – Primeira Turma – Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima – j. 23.11.2010 – DJe 02.12.2010; STJ – AgRg no REsp 1.016.463/MA – Primeira Turma – Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima – j. 14.12.2010 – DJe 02.02.2011; STJ – REsp 661.145/ES – Quarta Turma – Rel. Min. Jorge Scartezzini – j. 22.02.2005 – DJ 28.03.2005, p. 286.
Como bem observa Luiz Antonio Rizzatto Nunes, a existência do art. 22 do CDC, “por si só, é de fundamental importância para impedir que prestadores de serviços públicos pudessem construir ‘teorias’, para tentar dizer que não estariam submetidos às normas do CDC. Aliás, mesmo com a expressa redação do art. 22, ainda assim há prestadores de serviços que lutam na Justiça ‘fundamentados’ no argumento de que não estão submetidos às regras da Lei 8.078/1990”.28 Feito tal esclarecimento contundente, ao qual o presente autor está filiado, ainda será exposto no presente trabalho o debate acerca da interrupção de serviços públicos essenciais, o que envolve o citado comando consumerista.
Questão que sempre surge reside em saber se o Código de Defesa do Consumidor é aplicado às relações existentes entre condôminos e condomínio edilício, tratadas pelo Código Civil de 2002 entre os seus arts. 1.331 e 1.358. De início, é preciso ter em mente que tal relação jurídica é, essencialmente, uma relação dominial, estabelecida substancialmente entre bens, e não entre pessoas. Por isso é que o condomínio é estudado no livro dedicado ao Direito das Coisas. Não havendo uma relação direta entre sujeitos, isso exclui por si só a incidência da Lei 8.078/1990, pois não se preenche os requisitos mínimos de alteridade previstos entre os seus arts. 2º e 3º. Nessa linha, já concluiu o Superior Tribunal de Justiça, mesmo que indiretamente, em decisão publicada no seu Informativo 297:
“Segundo a jurisprudência, não há relação de consumo entre condômino e condomínio para litígios envolvendo cobrança de taxas, muito menos poderíamos cogitar da existência de tal relação entre o profissional contratado pelo condomínio para controlar tais cobranças e um dos condôminos, tal como no caso. O réu, contador, foi contratado pelo condomínio, para prestar serviços, cabendo ao contratante a publicidade ou não do rol de inadimplentes fornecida por ele. Por simples análise do caso, conclui-se inexistir relação de consumo entre o condômino e o contador, há entre o condomínio e seu contratado, o contador. Apenas o condomínio, nesta condição, pode ser caracterizado como consumidor, pois a prestação do serviço de contadoria fora destinada àquele como um fim em si mesmo, e não, individualmente, a cada um dos condôminos. Não há, portanto, como se vislumbrar qualquer relação de consumo entre o contador e o condômino, ou qualquer responsabilidade do contador em relação direta ao condômino, pela publicidade do seu nome no rol dos inadimplentes, publicação que, segundo se afirma, sequer chegou a acontecer” (STJ – REsp 441.873-DF – Rel. Min. Castro Filho – j. 19.09.2006).
Na mesma forma de pensar, concluindo pela inexistência das figuras de fornecedor e consumidor, do Tribunal de Minas Gerais, em acórdão relacionado à discussão das taxas condominiais, para ilustrar:
“Apelação cível. Cerceamento de defesa. Decisão proferida em audiência. Preclusão. Discussão sobre questão já decidida. Coisa julgada. Conhecer parcialmente do recurso. Ação de cobrança. Taxa de condomínio. Inaplicabilidade do CDC. Revelia. Provimento da pretensão. Manutenção. 1. Contra as decisões interlocutórias proferidas na audiência de instrução e julgamento caberá agravo na forma retida, devendo ser interposto oral e imediatamente, conforme disposto no § 3º, do art. 522, do CPC; embora não se submetam as decisões interlocutórias ao fenômeno da coisa julgada material, estão elas sujeitas ao fenômeno da preclusão. 2. As questões que já foram decididas e transitaram em julgado através de acórdão proferido não podem ser novamente discutidas, sob pena de ser violado o princípio da coisa julgada. 3. Em razão da ausência das figuras do fornecedor e do consumidor, não se aplicam as disposições do Código de Defesa do Consumidor à relação entre condômino e condomínio. 4. Sendo decretada a revelia, reputam-se verdadeiros o valor e o período exigidos pela parte autora na ação de cobrança” (TJMG – Apelação cível n. 1.0687.08.062715-5/0021, Timóteo – Nona Câmara Cível – Rel. Des. Pedro Bernardes – j. 10.11.2009 – DJEMG 01.03.2010).
Por fim, quanto ao tema, pelo caminho da existência de uma obrigação própria da coisa ou ambulatória (propter rem), e não de uma interação puramente pessoal, como ocorre nas relações de consumo, do Tribunal Paulista:
“Consumidor. Ação de cobrança. Valor do débito. Incidência de juros de 1% a partir da citação. Multa de 2% a partir da vigência do atual Código Civil, não havendo falar em vinculação ao Código de Defesa do Consumidor. Recurso desprovido. 1. A relação jurídica estabelecida entre condomínio e condômino não é regida pelas normas do Código de Defesa do Consumidor, pois se trata de obrigação propter rem, regida pelas normas do Código Civil. 2. Em se tratando de ilícito contratual. Não pagamento de despesas condominiais. Os juros moratórios incidem, a partir da vigência do Código Civil em vigor, no percentual de 1% ao mês, contado da citação, nos termos do art. 406 do Código Civil de 2002 cumulado com o art. 161, § 1º, do CTN” (TJSP – Apelação n. 992.08.068926-3 – Acórdão n. 4239916, São Paulo – Vigésima Nona Câmara de Direito Privado – Rel. Des. Reinaldo Caldas – j. 09.12.2009 – DJESP 26.02.2010).
Prevalece em sede doutrinária e jurisprudencial, no Brasil, o afastamento da locação imobiliária como contrato de consumo. Como uma das principais justificativas, argumenta-se pela existência de um estatuto jurídico próprio a regulamentar a relação jurídica estabelecida entre locador e locatário, no caso a Lei de Locação (Lei 8.245/1991). Ademais, é sustentado que o locador não pode ser tido como fornecedor ou prestador, pela ausência de uma atividade descrita no CDC e da profissionalidade própria dessas qualificações. Nessa linha de conclusão, vejamos recente decisão do STJ, relativa a cláusulas abusivas introduzidas por imobiliárias em contratos de locação:
“Locação. Ação civil pública proposta em face de apenas uma administradora de imóvel. Cláusula contratual abusiva. Ilegitimidade ativa do Ministério Público Estadual. Direito individual privado. Código de Defesa do Consumidor. Inaplicabilidade. 1. Nos termos do art. 129, inc. III, da Constituição Federal e do art. 25, inc. IV, letra a, da Lei 8.625/1993, possui o Ministério Público, como função institucional, a defesa dos interesses difusos, coletivos e individuais indisponíveis e homogêneos. 2. No caso dos autos, a falta de configuração de interesse coletivo afasta a legitimidade ativa ad causam do Ministério Público para ajuizar ação civil pública objetivando a declaração de nulidade de cláusulas abusivas constantes de contratos de locação realizados com apenas uma administradora do ramo imobiliário. 3. É pacífica e remansosa a jurisprudência, nesta Corte, no sentido de que o Código de Defesa do Consumidor não é aplicável aos contratos locatícios, que são reguladas por legislação própria. Precedentes. 4. Recurso especial desprovido” (STJ – REsp 605.295/MG – Quinta Turma – Rel. Min. Laurita Vaz – j. 20.10.2009 – DJe 02.08.2010).
Do mesmo modo, em outro debate, daquela superior instância:
“Administrativo. Agravo regimental no agravo de instrumento contra decisão que indeferiu o processamento do recurso especial. Art. 535 do CPC. Omissão que não se verifica. Contrato de locação. Aplicação do Código de Defesa do Consumidor. Impossibilidade. Incidência das Súmulas 5 e 7 do STJ. Agravo regimental desprovido. 1. Não há falar em omissão quando o Tribunal de origem se manifesta fundamentadamente a respeito de todas as questões postas à sua apreciação, decidindo, entretanto, contrariamente aos interesses da agravante. Ademais, o magistrado não está obrigado a rebater, um a um, os argumentos apresentados pela parte. 2. A jurisprudência desta Corte é firme quanto à impossibilidade de aplicação do Código de Defesa do Consumidor nas relações locatícias, regidas pela Lei 8.245/1991. Precedentes. 3. O reexame de provas e cláusulas contratuais, imprescindível para eventual alteração do exame do julgado a quo quanto à natureza do contrato firmado entre as partes, encontra óbice nas Súmulas 5 e 7 desta Corte. 4. Agravo regimental desprovido” (STJ – AgRg-Ag 1.089.413/SP – Quinta Turma – Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho – j. 08.06.2010 – DJE 28.06.2010).
Não tem sido outra a conclusão dos Tribunais Estaduais, sendo pertinente destacar apenas algumas das numerosas ementas que afastam a subsunção do CDC às relações locatícias, na linha do exposto anteriormente:
“Locação de imóveis. Ação de despejo por falta de pagamento cumulada com rescisão contratual e cobrança. Débito confessado. Recusa da locadora no recebimento dos aluguéis que deveria ensejar ação de consignação em pagamento, o que não ocorreu. Multa fixada no contrato. Código de Defesa do Consumidor. Inaplicabilidade. Sentença mantida. Apelação improvida” (TJSP – Apelação n. 0161257-53.2008.8.26.0002 – Acórdão n. 5009862, São Paulo – Trigésima Sexta Câmara de Direito Privado – Rel. Des. Jayme de Queiroz Lopes – j. 17.03.2011 – DJESP 29.03.2011).
“Embargos à execução. Locação predial urbana. Multa pactuada em 20% (vinte por cento), sobre o débito apurado (vencimento antecipado de parcelas). Abusividade inocorrente. Inaplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor. Relação de consumo. Inexistência. Exequente que decaiu de parte mínima do pedido. Ausência de sucumbência recíproca. Impossibilidade de condenação nos ônus sucumbenciais. Inteligência do art. 21, parágrafo único, do Código de Processo Civil. Verba honorária. Majoração. Art. 20, § 4º, do CPC” (TJMG – Apelação cível n. 5009106-74.2009.8.13.0024, Belo Horizonte – Nona Câmara Cível – Rel. Des. Tarcisio Martins Costa – j. 14.12.2010 – DJEMG 24.01.2011).
“Apelação cível. Locação. Ação de despejo cumulada com cobrança. Purga da mora. Necessidade de depósito do valor integral. Multa moratória. Inaplicabilidade das regras do CDC. ausência de abusividade no contrato. Caso em que a autora comprova o fato constitutivo de seu direito e não tendo o réu demonstrado o cumprimento integral de sua obrigação ou comprovado fato impeditivo, a manutenção da sentença é medida que se impõe. Ausência de comprovação da integral quitação do débito, sendo que a purga da mora deve atender aos requisitos dispostos no art. 62, inc. II, da Lei do Inquilinato. A multa moratória pactuada no contrato de locação (20%) não é ilegal, pois o Código de Defesa do Consumidor não incide nos contratos de locação de imóvel por não se tratar de relação de consumo e nem prestação de serviço, caracterizando-se, objetivamente, como uma cessão de uso remunerado. Apelo desprovido” (TJRS – Apelação Cível 70033045204, São Leopoldo – Décima Sexta Câmara Cível – Rel. Des. Marco Aurélio dos Santos Caminha – j. 27.01.2011 – DJERS 09.02.2011).
Ressalve-se a opinião pessoal do presente autor – a partir das lições expostas por Claudia Lima Marques quando da IV Jornada de Direito Civil (2006) – no sentido de possibilidade de subsunção do CDC para as hipóteses em que o locador é um profissional na atividade locatícia, sendo viável juridicamente qualificá-lo como prestador de serviços de moradia. Anote-se que a tese da existência de um estatuto jurídico próprio a disciplinar a matéria não afasta totalmente a incidência possível da Lei Consumerista, servindo como substrato bastante para tanto a festejada tese do diálogo das fontes. Tal entendimento, por certo, ainda é minoritário na doutrina, não havendo ainda julgado conhecido a aplicá-lo. A propósito, vejamos as palavras de Sérgio Cavalieri Filho sobre tal problemática:
“A Mestre Claudia Lima Marques mantém-se firme em seu entendimento de que a aplicação das normas protetivas do CDC deveria ser a regra na locação residencial. Em que pese a autoridade dos seus argumentos, a maioria da doutrina e da jurisprudência inclina-se pela não incidência do CDC nas relações residenciais. De regra, o locador não faz da locação uma atividade habitual, profissional, de modo a caracteriza-lo como fornecedor, salvo em se tratando de empresa proprietária de muitos imóveis destinados à locação”.29
Como se pode notar, o próprio jurista abre margem para outra interpretação. Consigne-se que a questão foi recentemente debatida em sede de acórdão prolatado pelo Tribunal Paulista. Vejamos:
“Locação. Despejo por falta de pagamento cumulado com cobrança de alugueres e encargos. Ação julgada parcialmente procedente. Não incidência do Código de Defesa do Consumidor. Irrelevância de que locador não seja proprietário do imóvel. Vínculo de natureza pessoal. Responsabilidade até a entrega das chaves ao locador e não da lavratura do auto de imissão na posse. Exclusão, ademais, da multa compensatória e que não se confunde com aquela moratória. Recurso provido em parte. Não há relação de consumo entre dois particulares que deliberam contratar a locação de imóvel, nada existindo que possa enquadrar o autor como sendo ‘locador profissional’. (...)” (TJSP – Apelação 992.08.027721-6 – Acórdão 4340494, Avaré – Trigésima Segunda Câmara de Direito Privado – Rel. Des. Kioitsi Chicuta – j. 25.02.2010 – DJESP 23.03.2010).
A tendência de comunicação entre as normas parece indicar uma possível aplicação do CDC para os casos de locadores profissionais no futuro, o que viria em boa hora. Ato contínuo, já se aplica a Lei 8.078/1990 às relações jurídicas estabelecidas entre locadores e locatários e imobiliárias que lhes prestam serviços. Nessa linha correta de raciocínio, do Superior Tribunal de Justiça e do Tribunal do Distrito Federal, em demandas coletivas:
“Processo civil. Ação civil pública. Locação. Cláusulas abusivas. Administradoras de imóveis. Legitimidade passiva ad causam. Interesses individuais homogêneos. As administradoras de imóveis são legitimadas para figurarem no polo passivo em ações civis coletivas propostas pelo Ministério Público com objetivo de declarar nulidade e modificação de cláusulas abusivas, contidas em contratos de locação elaboradas por aquelas. (Precedentes). Recurso especial provido” (STJ – REsp 614.981/MG – Quinta Turma – Rel. Min. Felix Fischer – j. 09.08.2005 – DJ 26.09.2005, p. 439).
“Processo civil. Ação civil pública. Ministério Público. Legitimidade. 1. O Ministério Público Federal está legitimado a recorrer à instância especial nas ações ajuizadas pelo Ministério Público Estadual. 2. O MP está legitimado a defender direitos individuais homogêneos, quando tais direitos têm repercussão no interesse público. 3. Questão referente a contrato de locação, formulado como contrato de adesão pelas empresas locadoras, com exigência da Taxa Imobiliária para inquilinos, é de interesse público pela repercussão das locações na sociedade. 4. Embargos de divergência conhecidos e recebidos” (STJ – EREsp 114.908/SP – Corte Especial – Rel. Min. Eliana Calmon – j. 07.11.2001 – DJ 20.05.2002, p. 95).
“Apelação cível. Ação civil pública. Cabimento. Locação. Contrato de adesão. Cobrança de juros de mora abusivos. relação havida entre inquilinos e administradora de imóveis. Código de Defesa do Consumidor. Aplicabilidade. Interesses individuais homogêneos. Interesse público. Propriedade da via eleita. Sentença cassada. I. Diferentemente da existente entre locador e locatário, a relação jurídica havida entre este e a imobiliária, prestadora do serviço de intermediação de locação de móveis, qualifica-se como de consumo, nos estritos moldes do art. 14 do Código de Defesa do Consumidor. II. A questão referente a contrato de locação, formulado como de adesão pelas empresas administradoras de imóveis, é de interesse público pela repercussão das locações na sociedade. Precedentes do egrégio Superior Tribunal de Justiça. III. A cobrança de encargos abusivos em contratos locatícios de adesão, firmados entre locatários e a imobiliária que administra os imóveis respectivos, perfaz-se liame hábil a caracterizar o interesse individual homogêneo que autoriza a defesa por meio de ação coletiva. IV. Apelo provido para cassar a sentença” (TJDF – Recurso 2009.04.1.012604-6 – Acórdão n. 481.411 – Primeira Turma Cível – Rel. Des. Nivio Geraldo Gonçalves – DJDFTE 23.02.2011, p. 114).
Mais recentemente, do Superior Tribunal de Justiça, merece destaque outro julgado a respeito das imobiliárias, que traz corretas deduções a respeito da vulnerabilidade do aderente: “Direito do consumidor. Aplicabilidade do CDC aos contratos de administração imobiliária. É possível a aplicação do CDC à relação entre proprietário de imóvel e a imobiliária contratada por ele para administrar o bem. Isso porque o proprietário do imóvel é, de fato, destinatário final fático e também econômico do serviço prestado. Revela-se, ainda, a presunção da sua vulnerabilidade, seja porque o contrato firmado é de adesão, seja porque é uma atividade complexa e especializada ou, ainda, porque os mercados se comportam de forma diferenciada e específica em cada lugar e período. No cenário caracterizado pela presença da administradora na atividade de locação imobiliária sobressaem pelo menos duas relações jurídicas distintas: a de prestação de serviços, estabelecida entre o proprietário de um ou mais imóveis e a administradora; e a de locação propriamente dita, em que a imobiliária atua como intermediária de um contrato de locação. Nas duas situações, evidencia-se a destinação final econômica do serviço prestado ao contratante, devendo a relação jurídica estabelecida ser regida pelas disposições do diploma consumerista” (REsp 509.304/PR – Rel. Min. Villas Bôas Cueva – j. 16.05.2013, publicado no seu Informativo n. 523).
Ainda a ilustrar, e com tom ainda mais ampliativo, o Tribunal de Justiça do Distrito Federal admitiu a figura do locatário consumidor por equiparação ou bystander, incidindo os arts. 17 e 29 do CDC. Na hipótese, um falsário celebrou contrato de locação em nome de outrem, que foi prejudicado pela relação jurídica estabelecida, diante da sua inscrição em cadastro de inadimplentes. De toda sorte, o julgado afastou o dever de indenizar do locador, pela presença da culpa exclusiva de terceiro, uma das excludentes da responsabilidade objetiva do fornecedor. Vejamos a ementa da decisão:
“Civil e direito do consumidor. Contratos de locação. Celebração mediante fraude. Falsificação impassível de ser aferida. Cautelas observadas pela locadora. Exibição de todos os documentos pessoais, comprovante de residência e de propriedade de imóvel. Inserção do nome do consumidor vitimado pela fraude em cadastro de devedores inadimplentes. Fatos decorrentes da culpa de terceiro. Causa excludente de responsabilidade (CDC, art. 14, § 3º, II). Responsabilização da fornecedora. Impossibilidade. 1 – Conquanto não tenha concertado nenhum vínculo obrigacional nem mantido relacionamento comercial com a empresa especializada na locação e administração de imóveis, o autor, em tendo experimentado as consequências derivadas da celebração de contratos de locação em seu nome pelo falsário que se passara por sua pessoa, equipara-se ao consumidor ante o enquadramento do havido na conceituação que está impregnada no artigo 17 do Código de Defesa do Consumidor. 2 – Emoldurado o relacionamento havido como sendo de consumo, a responsabilidade da fornecedora de serviços é de natureza objetiva, prescindindo sua caracterização da comprovação de que tenha agido com culpa, bastando tão somente a comprovação de que ocorrera o ilícito e que dele tenha emergido efeitos materiais afetando o consumidor para que sua obrigação emirja, sendo-lhe ressalvado, contudo, o direito de se eximir da sua responsabilização se evidenciar que o havido derivara da culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro, qualificando-se essas ocorrências como causas excludentes de responsabilidade (CDC, art. 14, § 3º, II). 3 – Aferido que as celebrações dos contratos que foram concertados de forma fraudulenta em nome do consumidor foram precedidas de todas as cautelas possíveis e passíveis de serem exigidas da fornecedora, pois lhe foram exibidos todos os documentos pessoais daquele com quem contratara, comprovantes de residência e de que possuía imóvel e as assinaturas apostas nos instrumentos pelo falsário reconhecidas por notário público, não lhe pode ser debitada nenhuma responsabilidade pelo havido e pelas consequências que dele germinaram ante a circunstância de que derivara de fato de terceiro, ensejando a caracterização da excludente de responsabilidade apta a alforriá-la da responsabilização pelo ilícito e pelos efeitos que irradiaram, afetando sua pessoa, e do alcançado diretamente pela fraude. 4 – Recurso conhecido e improvido. Unânime” (TJDF – Apelação Cível 740007019988070001 – Rel. Des. Teófilo Caetano – j. 01.08.2007 – 2ª Turma Cível – Data de Publicação: 11.09.2007).
Apesar da conclusão final, a última decisio representa um firme caminhar para a incidência do CDC às relações locatícias, o que parece ser tendência para o futuro. Em suma, os acórdãos transcritos delineiam o destino de ampliação da incidência da Lei 8.078/1990, o que foi paulatinamente conquistado nos seus mais de vinte anos de vigência no Brasil. O que se pretende, agora, é alargar ainda mais a sua subsunção, por ser uma importante norma de interesse público e social.
Diante de sérios problemas estruturais que acometem o sistema de previdência pública em nosso País, tornou-se comum no Brasil a celebração de contratos que têm por objeto planos de previdência privada complementar (fundos de pensão), administrados por empresas financeiras. Como se extrai do site do Banco Central do Brasil, tais entidades são fiscalizadas pela Superintendência Nacional de Previdência Complementar (PREVIC), que é uma autarquia vinculada ao Ministério da Previdência Social: “A PREVIC atua como entidade de fiscalização e de supervisão das atividades das entidades fechadas de previdência complementar e de execução das políticas para o regime de previdência complementar operado pelas entidades fechadas de previdência complementar, observando, inclusive, as diretrizes estabelecidas pelo Conselho Monetário Nacional e pelo Conselho Nacional de Previdência Complementar”.30
Ora, não há dúvidas que o Código de Defesa do Consumidor é plenamente aplicável a tais negócios de investimentos financeiros, visando uma aposentadoria posterior. Não deixa dúvidas o teor da Súmula 321 do STJ, in verbis: “O Código de Defesa do Consumidor é aplicável à relação jurídica entre a entidade de previdência privada e seus participantes”. Consigne-se que, em hipóteses tais, a jurisprudência superior tem entendido pela devolução dos valores pagos em casos de desistência por parte do associado do plano:
“Previdência complementar. Restituição das contribuições pessoais. Integralidade. Correção monetária do saldo de poupança. Índices. Recomposição da real desvalorização da moeda. Súmula 289/STJ. Código de Defesa do Consumidor. Aplicação a entidades fechadas de previdência. Cabimento. 1. ‘Consoante entendimento pacificado do STJ, é devida a restituição integral das contribuições vertidas pelo ex-associado à entidade de previdência complementar, por ocasião de seu desligamento’. 2. ‘A restituição das parcelas pagas a plano de previdência privada deve ser objeto de correção plena, por índice que recomponha a efetiva desvalorização da moeda (Súmula 289/STJ)’. 3. ‘O CDC é aplicável à relação jurídica entre a entidade de previdência privada e seus participantes’ (Súmula 321/STJ). 4. Agravo regimental desprovido” (STJ – AgRg no Ag 766.447/RN – Terceira Turma – Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino – j. 28.09.2010 – DJe 06.10.2010).
Destaque-se, a propósito, que, para o mesmo STJ, pelo teor de sua Súmula 291, “A ação de cobrança de parcelas de complementação de aposentadoria pela previdência privada prescreve em cinco anos”. O exemplo típico de aplicação de todos esses entendimentos envolve a tão conhecida Caixa de Previdência dos Funcionários do Banco do Brasil – PREVI (ver: STJ – AgRg no REsp 734.136/DF – Quarta Turma – Rel. Min. Hélio Quaglia Barbosa – j. 18.09.2007 – DJ 08.10.2007, p. 290; e STJ, AgRg no REsp 801.588/DF – Rel. Min. Aldir Passarinho Junior – j. 16.03.2006 – DJ 24.04.2006, p. 410).
A prestação de serviços educacionais, obviamente, está submetida à incidência do Código do Consumidor, notadamente nos casos envolvendo escolas privadas, do ensino médio ao ensino superior, ou até mesmo na pós-graduação. A propósito dessa incidência, a jurisprudência superior já entendeu pela subsunção da multa moratória de 2% sobre o valor da dívida para os casos de inadimplência, nos termos do art. 52, § 1º, do CDC (STJ – AgRg no Ag 572.088/SP – Terceira Turma – Rel. Min. Humberto Gomes de Barros – j. 09.05.2006 – DJ 29.05.2006, p. 230; e STJ – AgRg no Ag 460.768/SP – Quarta Turma – Rel. Min. Aldir Passarinho Junior – j. 06.03.2003 – DJ 19.05.2003, p. 237).
Ainda no contexto de ilustração, diante do sistema consumerista, o Superior Tribunal de Justiça tem concluído que a exigência antecipada de mensalidades escolares referentes a um semestre inteiro do curso constitui prática ou cláusula abusiva que não pode ser admitida: “É abusiva a cláusula contratual que prevê o pagamento integral da semestralidade, independentemente do número de disciplinas que o aluno irá cursar no período, pois consiste em contraprestação sem relação com os serviços educacionais efetivamente prestados. (...)” (STJ – AgRg no Ag 774.257/MG – Terceira Turma – Rel. Min. Humberto Gomes de Barros – j. 19.09.2006 – DJ 16.10.2006, p. 368).
Não obstante, várias situações concretas podem envolver atos praticados no interior de escolas, como é o caso de atos de agressão continuada ou “bullying”, gerando responsabilidade objetiva pela ótica consumerista. Exemplificando, vejamos acórdãos do Tribunal do Distrito Federal:
“Civil. Direito do consumidor. Dano moral. Dano moral configurado. Fixação do quantum indenizatório de acordo com os parâmetros da proporcionalidade e razoabilidade. Recurso improvido. Sentença mantida pelos próprios fundamentos. 1. A empresa prestadora de serviços educacionais responde de forma objetiva pela incolumidade física e moral dos alunos, só se exonerando nas hipóteses de inexistência do defeito na prestação do serviço, culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro e caso fortuito e a força maior, eis que estes rompem o nexo causal, sem o qual não há se falar em responsabilidade. O nexo causal, in casu, se verifica porque a escola tem o dever de guarda e vigilância dos seus alunos. Ao receber o aluno em seu estabelecimento, assume o compromisso de velar pela preservação de sua integridade física e moral. Restando comprovada a ocorrência de violência sexual de aluna em um dos banheiros disponíveis aos alunos no mesmo andar das suas dependências, deve a instituição de ensino responder objetivamente, nos termos do art. 14 do Código de Defesa do Consumidor. A circunstância de a lesão à integridade moral da aluna ter ocorrido fora do horário das aulas não afasta o dever de indenizar, porque o estabelecimento de ensino permite o acesso dos alunos antes do horário regulamentar. A prestação de segurança à integridade física do consumidor é inerente à atividade comercial desenvolvida pelo estabelecimento de ensino, principalmente quando instalado em shopping center, porquanto a principal diferença existente entre estes estabelecimentos e os centros tradicionais reside justamente na criação de um ambiente seguro para a realização de compras e afins, capaz de atrair alunos a tais praças privilegiadas. O dever de segurança é extensivo aos banheiros existentes no andar onde a instituição de ensino está estabelecida, porque ali os alunos não comparecem como frequentadores do shopping. Não há fato de terceiro se a empresa prestadora de serviços educacionais tem o dever de evitar o dano. É irrelevante o fato de o ofensor ter conhecido a vítima fora de suas dependências, porque foi ali que encontrou ambiente propício para o seu desiderato criminoso, por falta de vigilância da instituição de ensino. Por ser a prestação de segurança ínsita à atividade dos estabelecimentos de ensino, a responsabilidade civil desses por danos causados aos bens ou à integridade física do aluno não admite a excludente de força maior derivada de qualquer meio irresistível de violência. 2. O dano moral é inconteste e decorre da simples violência suportada pela aluna independentemente de qualquer outro efeito em relação à vítima. 3. O arbitramento do valor devido a título de indenização por danos morais se sujeita à decisão judicial, informada pelos critérios apontados pela doutrina e jurisprudência e condensados pelos princípios da proporcionalidade, razoabilidade e adequação. Observados tais parâmetros, e considerando a capacidade financeira da empresa requerida, o valor fixado na sentença não merece reparo. (...)” (TJDF – Recurso 2008.03.1.010538-8 – Acórdão 346.402 – Primeira Turma Recursal dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais – Rel. Juíza Maria de Fátima Rafael de Aguiar Ramos – DJDFTE 16.03.2009, p. 208).
“Direito civil. Indenização. Danos morais. Abalos psicológicos decorrentes de violência escolar. Bullying. Ofensa ao princípio da dignidade da pessoa. Sentença reformada. Condenação do colégio. Valor módico, atendendo-se às peculiaridades do caso. 1. Cuida-se de recurso de apelação interposto de sentença que julgou improcedente pedido de indenização por danos morais por entender que não restou configurado o nexo causal entre a conduta do colégio e eventual dano moral alegado pelo autor. Este pretende receber indenização sob o argumento de haver estudado no estabelecimento de ensino em 2005 e ali teria sido alvo de várias agressões físicas que o deixaram com traumas que refletem em sua conduta e na dificuldade de aprendizado. 2. Na espécie, restou demonstrado nos autos que o recorrente sofreu agressões físicas e verbais de alguns colegas de turma que iam muito além de pequenos atritos entre crianças daquela idade, no interior do estabelecimento réu, durante todo o ano letivo de 2005. É certo que tais agressões, por si só, configuram dano moral cuja responsabilidade de indenização seria do Colégio em razão de sua responsabilidade objetiva. Com efeito, o Colégio réu tomou algumas medidas na tentativa de contornar a situação, contudo, tais providências foram inócuas para solucionar o problema, tendo em vista que as agressões se perpetuaram pelo ano letivo. Talvez porque o estabelecimento de ensino apelado não atentou para o papel da escola como instrumento de inclusão social, sobretudo no caso de crianças tidas como ‘diferentes’. Nesse ponto, vale registrar que o ingresso no mundo adulto requer a apropriação de conhecimentos socialmente produzidos. A interiorização de tais conhecimentos e experiências vividas se processa, primeiro, no interior da família e do grupo em que este indivíduo se insere, e, depois, em instituições como a escola. No dizer de Helder Baruffi, ‘Neste processo de socialização ou de inserção do indivíduo na sociedade, a educação tem papel estratégico, principalmente na construção da cidadania’” (TJDF – Recurso 2006.03.1.008331-2 – Acórdão 317.276 – Segunda Turma Cível – Rel. Des. Waldir Leôncio Júnior – DJDFTE 25.08.2008, p. 70).
Por certo, como há nesses ambientes, muitas vezes, uma troca de agressividades, a tendência é que se amplie a incidência do CDC, o que vem em boa hora, a partir da ideia de que a Lei Consumerista é importante norma de interesse público e social.
Debate-se nos meios jurídicos a possibilidade de incidência da Lei 8.078/1990 para as atividades de notários e registradores. Como é notório, tais atividades são exercidas por delegação do Poder Público, nos termos do art. 236 da Constituição Federal, o que seria um suposto entrave para a subsunção da Norma Consumerista. Com o devido respeito, a tese não convence, eis que, como visto, os serviços públicos, diretos ou indiretos, podem ser abrangidos pelo art. 22 do Código do Consumidor.
Também se argumenta pela existência de estatutos normativos próprios, a afastar a Lei Consumerista, caso da Lei 6.015/1973 (Lei de Registros Públicos) e da Lei 8.935/1994 (Lei dos Serviços Notariais e de Registro). Mais uma vez, a premissa de interação legislativa apregoada pela festejada teoria do diálogo das fontes afasta mansamente tal assertiva teórica. Todavia, conhecido acórdão do Superior Tribunal de Justiça, por maioria de votos, acabou afastando a subsunção da Lei do Consumidor às atividade notariais, pelos argumentos de declinação acima expostos:
“Processual. Administrativo. Constitucional. Responsabilidade civil. Tabelionato de Notas. Foro competente. Serviços notariais. A atividade notarial não é regida pelo CDC. (Vencidos a Ministra Nancy Andrighi e o Ministro Castro Filho.) O foro competente a ser aplicado em ação de reparação de danos, em que figure no polo passivo da demanda pessoa jurídica que presta serviço notarial, é o do domicílio do autor. Tal conclusão é possível seja pelo art. 101, I, do CDC, ou pelo art. 100, parágrafo único do CPC, bem como segundo a regra geral de competência prevista no CPC. Recurso especial conhecido e provido” (STJ – REsp 625.144/SP – Terceira Turma – Rel. Min. Nancy Andrighi – j. 14.03.2006 – DJ 29.05.2006, p. 232).
Cumpre ressalvar que a questão não é pacífica no próprio STJ, havendo julgado posterior com o seguinte teor da ementa: “O Código de Defesa do Consumidor aplica-se à atividade notarial” (STJ – REsp 1.163.652/PE – Segunda Turma – Rel. Min. Herman Benjamin – j. 01.06.2010 – DJe 01.07.2010). As mesmas premissas de debate valem para o registro público delegado pelo Estado, entendendo o presente autor que é perfeitamente possível enquadrar a atividade como sendo de consumo.
Para finalizar o presente capítulo, vejamos o intrincado e apaixonado debate acerca da incidência do Código de Defesa do Consumidor às relações estabelecidas entre advogados e clientes. Como é notório, prevalece em larga escala, em sede de Superior Tribunal de Justiça, o entendimento de não aplicação da Lei 8.078/1990. Primeiro – e mais uma vez –, pela existência de uma lei especifica, no caso o Estatuto da Advocacia (Lei 8.906/1994). Segundo, porque as atividades do advogado encontram fortes limitações éticas, não sendo possível enquadrá-las como atividade fornecida no mercado do consumo, conforme consta do art. 3º, § 2º, do CDC – tese defendida pelo Conselho Federal da OAB, conforme relata Claudia Lima Marques.31 Concluindo desse modo, por todos, vejamos ementa de acórdão que menciona outras duas decisões:
“Civil e processual civil. Contrato de prestação de serviços advocatícios. Foro de eleição. Possibilidade. Precedentes. Exceção de competência. Efeito suspensivo. Decisão definitiva do Tribunal de origem. Precedentes. Recurso especial não conhecido. 1. As relações contratuais entre clientes e advogados são regidas pelo Estatuto da OAB, aprovado pela Lei 8.906/1994, a elas não se aplicando o Código de Defesa do Consumidor. Precedentes (REsp 539077/MS – Quarta Turma – Rel. Min. Aldir Passarinho Junior – j. 26.04.2005 – DJ 30.05.2005, p. 383; REsp 914105/GO – Quarta Turma – Rel. Min. Fernando Gonçalves – j. 09.09.2008 – DJe 22.09.2008). 2. O Superior Tribunal de Justiça entende que a exceção de competência suspende o curso do processo até a decisão definitiva na origem, subsistindo, somente, o efeito devolutivo ao recurso especial. 3. Recurso especial não conhecido” (STJ – REsp 1.134.889/PE – Quarta Turma – Rel. Min. Honildo Amaral de Mello Castro (Desembargador Convocado do TJAP) – j. 23.03.2010 – DJe 08.04.2010).
Por outra via, afastando todo o raciocínio antes desenvolvido, há decisões da mesma Corte Superior que concluem pela subsunção do Código de Defesa do Consumidor às relações entre advogados e clientes:
“Código de Defesa do Consumidor. Incidência na relação entre advogado e cliente. Precedentes da Corte. 1. Ressalvada a posição do Relator, a Turma já decidiu pela incidência do Código de Defesa do Consumidor na relação entre advogado e cliente. 2. Recurso especial conhecido, mas desprovido” (STJ – REsp 651.278/RS – Terceira Turma – Rel. Min. Carlos Alberto Menezes Direito – j. 28.10.2004 – DJ 17.12.2004, p. 544 – REPDJ 01.02.2005, p. 559).
“Prestação de serviços advocatícios. Código de Defesa do Consumidor. Aplicabilidade. I. Aplica-se o Código de Defesa do Consumidor aos serviços prestados por profissionais liberais, com as ressalvas nele contidas. II. Caracterizada a sucumbência recíproca devem ser os ônus distribuídos conforme determina o art. 21 do CPC. III. Recursos especiais não conhecidos” (STJ – REsp 364.168/SE – Terceira Turma – Rel. Min. Antônio de Pádua Ribeiro – j. 20.04.2004 – DJ 21.06.2004, p. 215).
A polêmica, por óbvio, se repete em sede de Tribunais Estaduais (constata-se a oscilação em: TJDF – Recurso 2010.00.2.006496-3 – Acórdão 431.834 – Primeira Turma Cível – Rel. Des. Lécio Resende – DJDFTE 07.07.2010, p. 46; TJRS – Recurso Cível 71002742492, Triunfo – Primeira Turma Recursal Cível – Rel. Des. Ricardo Torres Hermann – j. 28.10.2010 – DJERS 05.11.2010; TJMG – Embargos Infringentes 1.0024.03.985985-5/0041, Belo Horizonte – Décima Primeira Câmara Cível – Rel. Des. Duarte de Paula – j. 25.03.2009 – DJEMG 18.05.2009; TJPR – Apelação Cível 356945-9 – Acórdão n. 6422, Curitiba – Sétima Câmara Cível – Rel. Des. José Mauricio Pinto de Almeida – j. 26.09.2006 – DJPR 20.10.2006; 2º TAC-SP – Agravo de Instrumento 873.636-00/4 – Sexta Câmara – Rel. Des. Andrade Neto – j. 23.02.2005).
Na opinião do presente autor, a relação entre advogado e cliente é, sim, uma relação de consumo, pela presença de uma prestação de serviços realizada a um destinatário final fático e econômico, que é o cliente. Ademais, trata-se também de uma relação de trabalho, quando prestado por pessoa individual, servindo como luva a tese antes exposta a respeito da ponderação meritória – concluindo-se favoravelmente ao direito que merece proteção no caso concreto –, inclusive quanto à fixação da Justiça Competente.
A tese de existência de uma lei específica é afastada pela teoria do diálogo das fontes, na esteira dos argumentos também utilizados para as relações locatícias e as atividades notariais e registrais. Repise-se que não se pode conceber o sistema jurídico como algo inerente e fechado, mas em constante interação.
Por fim, enquadrar a atividade do advogado como sendo oferecida no mercado de consumo não a torna uma atividade mercantil, o que é vedado pelo Estatuto da Advocacia em vários de seus preceitos. O sentido de mercado de consumo é aquele da sociedade de consumo em massa (mass consumption society), sem que haja efetivamente um fim comercial de lucro direto, na trilha de exemplos antes demonstrados. Ainda a título de argumentação, o Estado, do mesmo modo, presta tais serviços, de forma direta ou indireta, sem que esteja presente o intuito de lucro. Isso também ocorre com pessoas jurídicas ou naturais prestadoras de serviços públicos por concessão e delegação, na esteira de ilustrações antes expostas neste livro.
Não se olvide que a atividade do advogado é essencial e indispensável à administração da Justiça, como expressa o art. 133 da Constituição Federal. Eventual enquadramento de sua atividade como de consumo não representa qualquer lesão quanto ao objeto do comando superior. Na verdade, só há um reforço da norma, eis que as responsabilidades do advogado são aumentadas, pela incidência dos justos preceitos consumeristas.
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1 DINIZ, Maria Helena. Compêndio de introdução à ciência do Direito. 21. ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 515.
2 DINIZ, Maria Helena. Compêndio de introdução à ciência do Direito. 21. ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 516-517.
3 DINIZ, Maria Helena. Compêndio de introdução à ciência do Direito. 21. ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 517.
4 RIZZATTO NUNES, Luiz Antonio. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 111.
5 AZEVEDO, Antonio Junqueira de. (Parecer). Responsabilidade civil ambiental. Reestruturação societária do grupo integrado pela sociedade causadora do dano. Obrigação solidária do causador indireto do prejuízo e do controlador de sociedade anônima. Limites objetivos dos contratos de garantia e de transação. Competência internacional e conflito de leis no espaço. Prescrição na responsabilidade civil ambiental e nas ações de regresso. Novos pareceres e estudos de direito privado. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 400.
6 SIMÃO, José Fernando. Vícios do produto no novo Código Civil e no Código de Defesa do Consumidor. São Paulo: Atlas, 2003. p. 38.
7 FONSECA, Priscila M. P. Corrêa da; SZTAJN, Rachel. In: AZEVEDO, Álvaro Villaça (Coord.). Código Civil comentado. São Paulo: Atlas, 2008. t. XI, p. 84.
8 Por todos a respeito dessa conclusão: MARQUES, Claudia Lima; BENJAMIN, Antonio Herman V.; MIRAGEM, Bruno. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor. 3. ed. São Paulo: RT, 2010. p. 156.
9 BESSA, Leonardo. Fornecedor equiparado. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo: RT, v. 61, p. 127, jan.-mar. 2007.
10 MARQUES, Claudia Lima; BENJAMIN, Antonio Herman V.; BESSA, Leonardo Roscoe. Manual de Direito do Consumidor. 3. ed. São Paulo: RT, 2010. p. 105.
11 Sobre o tema: MORATO, Antonio Carlos. A pessoa jurídica como consumidora. São Paulo: RT, 2008.
12 FILOMENO, José Geraldo Brito. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor comentado pelos autores do anteprojeto. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004. p. 32.
13 Por todos, esse é o entendimento de: LIMA, Frederico Viegas de. Condomínio em edificações. São Paulo: Saraiva, 2010. Trata-se de tese de pós-doutoramento defendida na Suíça. A posição do presente autor pode ser encontrada em: TARTUCE, Flávio. Direito Civil. Lei de Introdução e Parte Geral. 7. ed. São Paulo: GEN/Método, 2011. vol. 1; TARTUCE, Flávio. Manual de Direito Civil. Volume Único. São Paulo: GEN/Método, 2011.
14 MARQUES, Claudia Lima; BENJAMIN, Antonio Herman V.; BESSA, Leonardo Roscoe. Manual de Direito do Consumidor. 3. ed. São Paulo: RT, 2010. p. 85.
15 MARQUES, Claudia Lima; BENJAMIN, Antonio Herman V.; BESSA, Leonardo Roscoe. Manual de Direito do Consumidor. 3. ed. São Paulo: RT, 2010. p. 85.
16 NOVAES, Alinne Arquette Leite. A teoria contratual e o Código de Defesa do Consumidor. São Paulo: RT, 2001. p. 165.
17 MARQUES, Claudia Lima; BENJAMIN, Antonio Herman V.; BESSA, Leonardo Roscoe. Manual de Direito do Consumidor. 3. ed. São Paulo: RT, 2010. p. 87.
18 Entendendo tratar-se a conclusão de incidência da teoria maximalista: CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de Direito do Consumidor. São Paulo: Atlas, 2008. p. 52-53; GARCIA, Leonardo Medeiros. Direito do Consumidor. 3. ed. Niterói: Impetus, 2007. p. 12-14.
19 RIZZATTO NUNES, Luiz Antonio. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 95-103. Esclareça-se que o presente autor foi aluno do Professor Rizzatto Nunes no curso de pós-graduação lato sensu em Direito Contratual do COGEAE-PUC-SP, entre os anos de 1999 e 2001, passando a utilizar as ilustrações do jurista, desde então.
20 RIZZATTO NUNES, Luiz Antonio. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 101-103.
21 RIZZATTO NUNES, Luiz Antonio. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 102.
22 FILOMENO, José Geraldo Brito. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004. p. 38.
23 RIZZATTO NUNES, Luiz Antonio. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 113.
24 Tal conceito é utilizado principalmente por Sílvio Rodrigues, e seguido pelo presente autor em suas obras de Direito Civil. Veja-se: TARTUCE, Flávio. Direito Civil. Lei de Introdução e Parte Geral. 7. ed. São Paulo: Método, 2011. vol. 1; TARTUCE, Flávio. Manual de Direito Civil. Volume Único. São Paulo: Método, 2011.
25 NERY JR., Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código Civil Anotado. 2. ed. São Paulo: RT, 2003. p. 909. O julgado citado é: TJSP – Agravo 281.523-1/1-00 – Oitava Câmara de Direito Privado – Rel. Des. César Lacerda – j. 07.02.1996.
26 Elementos retirados da mais recente doutrina trabalhista de: CASSAR, Vólia Bomfim. Direito do Trabalho. 3. ed. Niterói: Impetus, 2009. p. 199-222.
27 Sobre a técnica de ponderação, por todos: ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Trad. Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2008.
28 RIZZATTO NUNES, Luiz Antonio. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 324.
29 CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de Direito do Consumidor. São Paulo: Atlas, 2008. p. 233-234.
30 Disponível em: <http://www.bcb.gov.br/pre/composicao/spc.asp>. Acesso em: 30 mar. 2011.
31 MARQUES, Claudia Lima; BENJAMIN, Antonio Herman V.; BESSA, Leonardo Roscoe. Manual de Direito do Consumidor. 3. ed. São Paulo: RT, 2010. p. 100-101.