Sumário: 5.1. O conceito contemporâneo ou pós-moderno de contrato e o direito do consumidor. Os contratos coligados e os contratos cativos de longa duração – 5.2. A revisão contratual por fato superveniente no Código de Defesa do Consumidor – 5.3. A função social do contrato e a não vinculação das cláusulas desconhecidas e incompreensíveis (art. 46 do CDC). A interpretação mais favorável ao consumidor (art. 47 do CDC) – 5.4. A força vinculativa dos escritos e a boa-fé objetiva nos contratos de consumo (art. 48 da Lei 8.078/1990). A aplicação dos conceitos parcelares da boa-fé objetiva: 5.4.1. Supressio e surrectio; 5.4.2. Tu quoque; 5.4.3. Exceptio doli; 5.4.4. Venire contra factum proprium; 5.4.5. Duty to mitigate the loss – 5.5. O direito de arrependimento nos contratos de consumo (art. 49 da Lei 8.078/1990) – 5.6. A garantia contratual do art. 50 da Lei 8.078/1990 – 5.7. As cláusulas abusivas no Código de Defesa do Consumidor. Análise do rol exemplificativo do art. 51 da Lei 8.078/1990 e suas decorrências: 5.7.1. Cláusulas que impossibilitem, exonerem ou atenuem a responsabilidade do fornecedor por vícios de qualquer natureza dos produtos e serviços ou impliquem renúncia ou disposição de direitos (art. 51, inc. I, do CDC); 5.7.2. Cláusulas que subtraiam ao consumidor a opção de reembolso da quantia já paga (art. 51, inc. II, do CDC); 5.7.3. Cláusulas que transfiram responsabilidades a terceiros (art. 51, inc. III, do CDC); 5.7.4. Cláusulas que estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou que sejam incompatíveis com a boa-fé ou a equidade (art. 51, inc. IV, do CDC); 5.7.5. Cláusulas que estabeleçam inversão do ônus da prova em prejuízo do consumidor (art. 51, inc. VI, do CDC); 5.7.6. Cláusulas que determinem a utilização compulsória de arbitragem (art. 51, inc. VII, do CDC); 5.7.7. Cláusulas que imponham representante para concluir ou realizar outro negócio jurídico pelo consumidor (art. 51, inc. VIII, do CDC); 5.7.8. Cláusulas que deixem ao fornecedor a opção de concluir ou não o contrato, embora obrigando o consumidor (art. 51, inc. IX, do CDC); 5.7.9. Cláusulas que permitam ao fornecedor, direta ou indiretamente, variação do preço de maneira unilateral (art. 51, inc. X, do CDC); 5.7.10. Cláusulas que autorizem o fornecedor a cancelar o contrato unilateralmente, sem que igual direito seja conferido ao consumidor (art. 51, inc. XI, do CDC); 5.7.11. Cláusulas que obriguem o consumidor a ressarcir os custos de cobrança de sua obrigação, sem que igual direito lhe seja conferido contra o fornecedor (art. 51, inc. XII, do CDC); 5.7.12. Cláusulas que autorizem o fornecedor a modificar unilateralmente o conteúdo ou a qualidade do contrato, após sua celebração (art. 51, inc. XIII, do CDC); 5.7.13. Cláusulas que infrinjam ou possibilitem a violação de normas ambientais (art. 51, inc. XIV, do CDC); 5.7.14. Cláusulas que estejam em desacordo com o sistema de proteção ao consumidor (art. 51, inc. XV, do CDC); 5.7.15. Cláusulas que possibilitem a renúncia do direito de indenização por benfeitorias necessárias (art. 51, inc. XVI, do CDC) – 5.8. Os contratos de fornecimento de crédito na Lei 8.078/1990 (art. 52) e o problema do superendividamento do consumidor. A nulidade absoluta da cláusula de decaimento (art. 53) – 5.9. O tratamento dos contratos de adesão pelo art. 54 do Código de Defesa do Consumidor.
Não há exagero algum em se afirmar que o contrato é o instituto mais importante do Direito Privado, diante de sua enorme interação com o meio social. O mundo se transforma e o contrato, como principal expressão negocial ou mais importante negócio jurídico, transforma-se com ele. Como bem aponta José de Oliveira Ascensão, “O contrato é, sem contestação, o mais importante negócio jurídico. Ao seu lado, os negócios jurídicos unilaterais representam uma faixa estreita”.1 Se há o incremento das relações humanas, também as relações contratuais vão se tornando cada vez mais complexas. O ser humano evolui e se transforma sempre acompanhado pelas manifestações negociais.
Como se extrai de uma das últimas obras de Caio Mário da Silva Pereira, “sobre o contrato atuam diversas forças convergentes, das quais cumpre destacar a presença de duas, que não seriam as únicas, porém as mais convincentes: a força obrigatória e a influência de fatores determinantes das injunções sociais”.2 No tocante à influência social, é marcante que o contrato sempre reproduziu – e continua reproduzindo – a realidade fática, temporal e espacial, da sociedade em que está inserido. E, na realidade contemporânea, cumpre destacar que a grande maioria dos contratos enquadra-se como contratos de consumo.
A interpretação do contrato de acordo com a realidade social representa uma das manifestações da ideia de função social do contrato, conforme exposto no Capítulo 2 deste livro. Ao lado dessa manifestação social principiológica, diante dos anseios da coletividade, surge o fenômeno da complexidade contratual. Como três manifestações desse incremento, podem ser citados os fenômenos da conexão contratual, da contratação eletrônica e dos contratos cativos de longa duração. Insta verificar, de antemão, que tais figuras, via de regra, assumem a configuração de contratos de consumo, estando regidos pela Lei 8.078/1990.
A respeito dos primeiros – dos contratos conexos, coligados ou redes contratuais –, trata-se de outra expressão da realidade social do contrato, proveniente da própria ideia de função social do contrato. Tais negócios estão interligados por um ponto ou nexo de convergência, seja direto ou indireto, presentes, por exemplo, nos negócios de plano de saúde e em negócios imobiliários. O Projeto de Lei 283/2012 pretende defini-los da seguinte forma: “são conexos, coligados ou interdependentes, entre outros, o contrato principal de fornecimento de produtos e serviços e os acessórios de crédito que lhe garantam o financiamento, quando o fornecedor de crédito: I – recorre aos serviços do fornecedor de produto ou serviço para a conclusão ou a preparação do contrato de crédito; II – oferece o crédito no local da atividade empresarial do fornecedor do produto ou serviço financiado ou onde o contrato principal foi celebrado; ou III – menciona no contrato de crédito especificamente o produto ou serviço financiado, a constituir uma unidade econômica, em especial quando este lhe serve de garantia”. A conceituação é interessante, podendo ser utilizada na atualidade.
No que concerne à contratação eletrônica, consigne-se que muitas vezes ela se dá por forma de redes negociais e na maior rede que o ser humano já criou, a rede mundial de computadores, a internet. E não se olvide que, preenchidos os requisitos dos arts. 2º e 3º da Lei 8.078/1990, aplica-se aos contratos digitais ou eletrônicos o Código de Defesa do Consumidor, conclusão muito comum na esfera jurisprudencial, como outrora apontado. Nesse sentido, a título de exemplo:
“Mútuo. Contratação eletrônica. Prova. Restituição. Negativa de contratação de empréstimo por meio eletrônico. Incidência do Código de Defesa do Consumidor. Responsabilidade por fato do serviço. Risco do empreendedor. Responsabilidade objetiva do fornecedor do serviço. Ausência de prova da culpa exclusiva do titular. Ação procedente. Negaram provimento” (TJRS – Apelação Cível 70034623835, São Sebastião do Caí – Décima Nona Câmara Cível – Rel. Des. Carlos Rafael dos Santos Júnior – j. 16.03.2010 – DJERS 23.03.2010).
“Exibição de documentos. Medida cautelar. Contratos e extratos bancários. Interesse de agir. Exibição cabível por serem documentos comuns às partes. Não há custo pela exibição e localização de documentos. Alegação de impossibilidade de exibição, por se tratar de contratação eletrônica. Irrelevância. Direito do consumidor de ter acesso a todas as cláusulas do contrato. Recurso improvido” (TJSP – Apelação 7258867-3 – Acórdão 3372493, São José dos Campos – Décima Sexta Câmara de Direito Privado – Rel. Des. Candido Pedro Alem Júnior – j. 18.11.2008 – DJESP 15.12.2008).
A subsunção do CDC não afasta a aplicação do CC/2002, em diálogo das fontes, forma correta de se interpretar os contratos eletrônicos ou digitais no plano legislativo. Em relação ao Código Civil, não se pode esquecer a regra do seu art. 425, segundo o qual é lícita a estipulação de contratos atípicos, aqueles sem previsão legal específica, incidindo a teoria geral dos contratos consagrada pela codificação geral privada.
Ato contínuo de estudo, como importante fenômeno da atualidade, os contratos cativos de longa duração, na feliz expressão de Claudia Lima Marques, são aqueles negócios que se consolidam de forma continuada no tempo, baseados na estrita confiança depositada pela partes por anos a fio. Vejamos as palavras da jurista a respeito da nova categoria:
“Trata-se de uma série de novos contratos ou relações contratuais que utilizam os métodos de contratação de massa (por meio de contratos de adesão ou de condições gerais dos contratos) para fornecer serviços especiais no mercado, criando relações jurídicas complexas, envolvendo uma cadeia de fornecedores organizados entre si e com uma característica determinante: a posição de ‘catividade’ ou ‘dependência’ dos clientes, consumidores”.3
A doutrinadora aponta a existência de outras denominações para o fenômeno, tais como contratos múltiplos, serviços contínuos, relações contratuais triangulares ou contratos de serviços de longa duração. Tais negócios são ainda denominados contratos relacionais, tema estudado por Ronaldo Porto Macedo Jr., em sua tese de doutorado.4 Vejamos o conceito desenvolvido pelo autor:
“Contratos relacionais, numa brevíssima e provisória definição (...), são contratos que se desenvolvem numa relação complexa, na qual elementos não promissórios do contrato, relacionados ao seu contexto, são levados em consideração significativamente frequente e clara. Esta natureza relacional da contratação é particularmente frequente e clara (porém não exclusiva) em contratos que se prolongam no tempo, isto é, em contratos de longa duração. Numa acepção ampla, contudo, todos os contratos são mais ou menos e jamais não relacionais ou descontínuos, como os denomino neste trabalho. O conceito de contrato relacional é, em sua dimensão descritiva, um tipo ideal que se contrapõe ao contrato descontínuo. Este último caracterizado pela pretensão de antecipação completa do futuro no presente, pela impessoalidade, por se constituir como unidade separada (ou descontínua) e por se apoiar na pressuposição de uma barganha instrumental, isto é, nele o acordo de vontades derivado da promessa é seu exclusivo núcleo de fonte obrigacional”.5
O que se percebe, portanto, é que nos contratos relacionais há um verdadeiro casamento negocial entre as partes, uma relação de confiança construída e consolidada. A título de exemplo, podem ser citados um contrato entre banco e correntista mantido há muito tempo, cumprido rigorosamente dentro daquilo que foi pactuado entre as partes; um contrato de seguro de vida celebrado e pago pontualmente pelo segurado há décadas; os contratos de plano de saúde e de previdência privada. Em casos tais, deve-se valorizar a conduta de confiança das partes, a boa-fé objetiva depositada pelos participantes negociais, conforme se depreende do seguinte julgado do STJ, publicado no seu Informativo n. 467:
“Contrato. Seguro. Vida. Interrupção. Renovação. Trata-se, na origem, de ação para cumprimento de obrigação de fazer proposta contra empresa de seguro na qual o recorrente alega que, há mais de 30 anos, vem contratando, continuamente, seguro de vida individual oferecido pela recorrida, mediante renovação automática de apólice de seguro. Em 1999, continuou a manter vínculo com a seguradora; porém, dessa vez, aderindo a uma apólice coletiva vigente a partir do ano 2000, que vinha sendo renovada ano a ano até que, em 2006, a recorrida enviou-lhe uma correspondência informando que não mais teria intenção de renovar o seguro nos termos em que fora contratado. Ofereceu-lhe, em substituição, três alternativas, que o recorrente reputou excessivamente desvantajosas, daí a propositura da ação. A Min. Relatora entendeu que a pretensão da seguradora de modificar abruptamente as condições do seguro, não renovando o ajuste anterior, ofende os princípios da boa-fé objetiva, da cooperação, da confiança e da lealdade que devem orientar a interpretação dos contratos que regulam relações de consumo. Verificado prejuízo da seguradora e identificada a necessidade de correção da carteira de seguro em razão de novo cálculo atuarial, cabe a ela ver o consumidor como um colaborador, um parceiro que a tem acompanhado por anos a fio. Logo, os aumentos necessários para o reequilíbrio da carteira devem ser estabelecidos de maneira suave e gradual, por meio de um cronograma extenso, do qual o segurado tem de ser comunicado previamente. Agindo assim, a seguradora permite que o segurado se prepare para novos custos que onerarão, a longo prazo, o seguro de vida e colabore com a seguradora, aumentando sua participação e mitigando os prejuízos. A intenção de modificar abruptamente a relação jurídica continuada com a simples notificação entregue com alguns meses de antecedência ofende o sistema de proteção ao consumidor e não pode prevalecer. Daí a Seção, ao prosseguir o julgamento, por maioria, conheceu do recurso e a ele deu provimento” (STJ – REsp 1.073.595/MG – Rel. Min. Nancy Andrighi – j. 23.03.2011).
Aliás, na linha do conteúdo desse último e fundamental precedente, na VI Jornada de Direito Civil, realizada em 2013, foram aprovados dois enunciados doutrinários importantes para a ideia contemporânea exposta neste tópico. O primeiro deles preceitua que “a recusa de renovação das apólices de seguro de vida pelas seguradoras em razão da idade do segurado é discriminatória e atenta contra a função social do contrato” (Enunciado n. 542). O segundo expressa que “constitui abuso do direito a modificação acentuada das condições do seguro de vida e de saúde pela seguradora quando da renovação do contrato” (Enunciado n. 543).
Pois bem, para o contexto do presente capítulo, é interessante verificar o conceito contemporâneo ou pós-moderno de contrato. Como é notório, o Código Civil brasileiro de 2002, a exemplo do seu antecessor, não tomou o cuidado de definir o contrato como categoria jurídica. Em um primeiro momento, pode-se pensar que agiu bem o novel legislador, pois não cabe a ele, e sim à doutrina, a tarefa de conceituar as categorias jurídicas.6 Todavia, cumpre assinalar que a atual codificação brasileira está baseada, entre outros, no princípio da operabilidade, que tem um dos seus sentidos expressos na simplicidade ou facilitação dos institutos civis.7 Consigne-se que o Código Civil brasileiro conceitua algumas figuras contratuais típicas, caso da compra e venda (art. 481), mas não chegou a definir o contrato, relegando, mais uma vez, a tarefa à doutrina.
Em uma visão clássica ou moderna, pois própria da modernidade, tem-se notado a prevalência do conceito do instituto que pode ser extraído do art. 1.321 do Código Civil italiano, ou seja, de que o contrato é o acordo de duas ou mais partes para constituir, regular ou extinguir entre elas uma relação jurídica de caráter patrimonial. Muitos juristas brasileiros seguem essa conceituação, como, por exemplo, Orlando Gomes8 e Álvaro Villaça Azevedo.9
A partir da construção clássica nota-se que o contrato, de início, é espécie do gênero negócio jurídico. Assim, há uma composição de interesses das partes – pelo menos duas – com conteúdo lícito e finalidade específica. Para a compreensão do contrato é fundamental o estudo estrutural do negócio jurídico, mormente os planos da existência, da validade e da eficácia. Serve como norte o art. 104 do Código Civil brasileiro, que aponta os requisitos de validade do negócio jurídico: a) agente capaz; b) objeto lícito, possível, determinado ou determinável; c) forma prescrita ou não defesa em lei.
Cumpre anotar que tal feição clássica do contrato limita o seu conteúdo às questões patrimoniais ou econômicas. Trata-se da patrimonialidade, tão cara aos italianos. Conforme comentam Cian e Trabucchi, o requisito da patrimonialidade serve para distinguir o contrato de outras figuras negociais, genericamente tidas como convenções, caso dos negócios de direito de família.10 Nesse contexto de definição, o contrato não pode ter uma feição existencial ou extrapatrimonial. A título de exemplo, pela visão clássica, o contrato não pode ter como conteúdo os direitos da personalidade, mesmo que indiretamente.
Na doutrina mais recente, há interessantes tentativas de ampliação ou remodelagem do conceito de contrato, o que sem dúvida alarga a margem de incidência de conceito, ou seja, a abrangência do mundo contratual. Deve ficar claro que tal visão de maior abrangência serve perfeitamente para a delimitação do que seja o contrato de consumo. Releve-se a construção denominada pós-moderna de Paulo Nalin, da Universidade Federal do Paraná. Para o jurista, o contrato constitui “a relação jurídica subjetiva, nucleada na solidariedade constitucional, destinada à produção de efeitos jurídicos existenciais e patrimoniais, não só entre os titulares subjetivos da relação, como também perante terceiros”.11 Deve-se aprofundar as razões de pertinência da construção doutrinária.
De início, constata-se que o contrato está amparado em valores constitucionais. Não há dúvida de que questões que envolvem direitos fundamentais, mormente aqueles com repercussões sociais, refletem na autonomia privada, caso do direito à saúde.12 No Brasil podem ser encontrados vários julgados que colocam em sopesamento a questão da saúde e a manutenção econômica, prevalecendo, muitas vezes, a primeira. Da recente jurisprudência do Tribunal Paulista, pode ser transcrita a seguinte ementa, tutelando amplamente a vida e a saúde:
“Plano de saúde. Paciente em tratamento de câncer. Cobertura para realização de sessões de radioterapia convencional. Recusa de cobertura para nova espécie de radioterapia prescrita à autora, com a técnica IMRT, porque não incluída ainda no rol de procedimentos divulgados pela ANS. Inadmissibilidade. Não se tratando de procedimento experimental, deve se considerar abrangido pela proteção do contrato em vigor. Recurso desprovido” (TJSP – Agravo de Instrumento 590.949.4/4 – Acórdão 3309012, São Bernardo do Campo – Segunda Câmara de Direito Privado – Rel. Des. Morato de Andrade – j. 21.10.2008 – DJESP 14.11.2008).
Como segundo ponto de defesa da construção de Paulo Nalin, muito pertinente para a concepção dos contratos de consumo, é ela instigante e prática porque conclui que o contrato envolve situações existenciais das partes contratantes. Tem-se relacionado a proteção individual da dignidade humana e dos interesses difusos e coletivos com o princípio da função social do contrato. Nesse sentido, na I Jornada de Direito Civil, evento promovido em 2002 pelo Conselho da Justiça Federal e pelo Superior Tribunal de Justiça, foi aprovado o Enunciado doutrinário n. 23, dispondo que “a função social do contrato, prevista no art. 421 do novo Código Civil, não elimina o princípio da autonomia contratual, mas atenua ou reduz o alcance desse princípio quando presentes interesses metaindividuais ou interesse individual relativo à dignidade da pessoa humana”. Em atualização à obra de Orlando Gomes, Antonio Junqueira de Azevedo e Francisco Paulo de Crescenzo Marino, da Universidade de São Paulo, fazem a mesma correlação, afirmando que “Entendemos que há pelo menos três casos nos quais a violação ao princípio da função social deve levar à ineficácia superveniente do contrato. Juntamente com a ofensa a interesses coletivos (meio ambiente, concorrência etc.), deve-se arrolar a lesão à dignidade da pessoa humana e a impossibilidade de obtenção do fim último visado pelo contrato”.13
Terceiro e por fim, a construção de Paulo Nalin é interessante, pois traz a dedução de que o contrato pode gerar efeitos perante terceiros. Algumas dessas externalidades constam da própria legislação, como é o caso da estipulação em favor de terceiro – comum no seguro de vida – e da promessa de fato de terceiro – por exemplo, a hipótese de um promotor de eventos que é contratado para agenciar uma apresentação de um cantor famoso, que não comparece, causando danos a consumidores. No entanto, além disso, reconhece-se a eficácia externa da função social dos contratos, a tutela externa do crédito, com efeitos contratuais atingindo terceiros. O tema já foi exposto no Capítulo 2 da presente obra.
Essa visão ampliada do contrato, flagrante nos contratos de consumo, é uma marca da autonomia privada, princípio que superou a ideia liberal de autonomia da vontade. Parcela considerável da doutrina atual, nacional e estrangeira, propõe a substituição do antigo princípio da autonomia da vontade pelo princípio da autonomia privada.14 A autonomia privada pode ser conceituada como um regramento básico, de ordem particular – mas influenciado por normas de ordem pública –, pelo qual, na formação dos contratos, além da vontade das partes, entram em cena outros fatores: psicológicos, políticos, econômicos e sociais. Trata-se do direito da parte de autorregulamentar os seus interesses, decorrente da sua própria dignidade humana, mas que encontra limitações em normas de ordem pública, particularmente nos princípios sociais contratuais.15
A existência dessa substituição é indeclinável, pois, como afirma Fernando Noronha, “foi precisamente em consequência da revisão a que foram submetidos o liberalismo econômico e, sobretudo, as concepções voluntaristas do negócio jurídico, que se passou a falar em autonomia privada, de preferência a mais antiga autonomia da vontade. E, realmente, se a antiga autonomia da vontade, com o conteúdo que lhe era atribuído, era passível de críticas, já a autonomia privada é noção não só com sólidos fundamentos, como extremamente importante”.16 De acordo com a personalização do direito privado e a valorização da pessoa como centro do direito privado, o conceito de autonomia privada é de fato o mais adequado, pois a autonomia não é da vontade, mas da pessoa. Ensinam os autores espanhóis Luiz Díez-Picazo e Antonio Gullón que “Conviene en este punto observar que cuando se habla, como es usual entre nosotros, de ‘autonomía de la voluntad’, no deja de incurrirse en algún equívoco. Porque el sujeto de lª autonomía no es la voluntad, sino la persona con realidad unitaria. La autonomía no se ejercita queriendo – funcíon de la voluntad – sino estableciendo, disponiendo, gobernando. La voluntad o el querer es un requisito indudable del acto de autonomía (que hay de ser siempre libre y voluntario), pero para ejercitar la autonomía es preciso el despliegue de las demás potencias”.17
Em reforço, não há dúvida de que a vontade – de per si – perdeu o destaque que exercia no passado, relativamente à formação dos contratos e dos negócios jurídicos. Vários são os fatores que entraram em cena para a concretização prática dessa distinta visão. As relações pessoais estão em suposta crise, o que na verdade representa uma importante mudança estrutural nas relações negociais, sendo certo que tal espectro deve ser analisado sob o prisma da concretude do instituto do contrato e do que este representa para o meio social. Predominam em larga escala os contratos de adesão, com o conteúdo imposto por uma das partes negociais, tida como mais forte ou hiperssuficiente, muitas vezes por ter o domínio das informações. Na grande maioria das vezes, estar-se-á diante de um contrato que é de consumo e de adesão, mesmo não havendo uma confusão absoluta entre as citadas categorias.
Sem dúvida, no mundo contemporâneo, a autonomia privada faz com que o contrato ingresse em outros meios, como é o caso do Direito de Família e do Direito das Coisas, sem falar no domínio natural do Direito do Consumidor. Como afirma Luciano de Camargo Penteado, olhando para o futuro, “todo contrato gera obrigação para, ao menos, um das partes contratantes. Entretanto, nem todo contrato rege-se, apenas, pelo direito das obrigações. Existem contratos de direito de empresa, contratos de direito obrigacional, contratos de direito das coisas, contratos de direito de família. No sistema brasileiro, não existem contratos de direito das sucessões, por conta da vedação do art. 426 do Código Civil, o que significa que, de lege ferenda, não se possa introduzir, no direito positivo, a figura, doutrinariamente admitida e utilizada na praxe de alguns países, como é o caso da Alemanha. Interessante proposição teórica seria, em acréscimo, postular a existência de contratos da parte geral, como parece ser o caso do ato que origina a associação, no atual sistema do Código Civil”.18 Amplia-se a seara contratual, por exemplo, com a forte tendência de aproximação dos direitos pessoais e dos direitos reais, desmontando aquele antigo quadro comparativo exposto nas aulas inaugurais sobre Direito das Coisas.19
A título de exemplo dessa aproximação, cai aquela premissa de que os direitos pessoais teriam efeitos inter partes e os direitos reais efeitos erga omnes. Como antes se demonstrou neste livro, a função social do contrato – em sua eficácia externa – traz a conclusão de que o contrato gera efeitos perante terceiros. A respeito dos efeitos restritos dos direitos reais, a tendência pode ser percebida pela Súmula 308 do Superior Tribunal de Justiça, pela qual a boa-fé objetiva faz com que a hipoteca tenha seus efeitos limitados aos celebrantes, não em relação a terceiros. Enuncia a citada ementa: “A hipoteca firmada entre a construtora e o agente financeiro, anterior ou posterior à celebração da promessa de compra e venda, não tem eficácia perante os adquirentes do imóvel”. A súmula surgiu dos casos de notória construtora que recebeu os pagamentos, mas não fez os devidos repasses aos agentes financeiros. Foram protegidos os consumidores adquirentes e adimplentes, restringindo-se os efeitos da hipoteca entre tal construtora e o banco. Prestigiou-se a boa-fé objetiva como preceito de ordem pública e a função social do contrato, pela proteção dos consumidores adquirentes de acordo com a ideia de justiça contratual.
Concluindo o tópico, a contemporaneidade demonstra que o futuro é de uma contratualização de todo o direito, um neocontratualismo, tese defendida há tempos por Norberto Bobbio.20 Entre os portugueses, Rui Alarcão também demonstra a tendência, ao discorrer sobre a necessidade de menos leis, melhores leis.21 Para o jurista de Coimbra, “se está assistindo a um recuo do ‘direito estadual ou estatal’, e se fala mesmo em ‘direito negociado’, embora se deva advertir que aquele recuo a esta negociação comporta perigos, relativamente aos quais importa estar prevenido e encontrar respostas, não avulsas mas institucionais. Como quer que seja, uma coisa se afigura certa: a necessidade de novos modelos de realização do Direito, incluindo modelos alternativos de realização jurisdicional e onde haverá certamente lugar destacado para paradigmas contratuais e para mecanismos de natureza ou de recorte contratual, que têm, de resto, tradição jurídica-política, precursora de dimensões modernas ou pós-modernas”.22 E arremata, sustentando que tem ganhado força a contratualização sociopolítica, para que exista uma sociedade mais consensual do que autoritária ou conflituosa.23 Em suma, a construção de contrato serve não só para as partes envolvidas mas também para toda a sociedade.
O contrato rompe suas barreiras iniciais, não tendo limites de incidência. Para tal rompimento, sem dúvidas, contribuem muito os contratos de consumo. Não se pode esquecer que, na grande maioria das vezes e no mundo contemporâneo, vivencia-se a realidade de aplicação do Código de Defesa do Consumidor.
Superada essa visão inaugural, parte-se ao estudo da revisão contratual por fato superveniente no Código de Defesa do Consumidor, assunto dos mais importantes, que serve para a concretização efetiva dos princípios sociais contratuais, caso da boa-fé objetiva e da função social.
Como apontado no Capítulo 2 desta obra, há uma forte relação entre o princípio da função social do contrato e a manutenção do ponto de equilíbrio do negócio, o que alguns doutrinadores preferem denominar equivalência material.24 Na verdade, trata-se de uma clara incidência da eficácia interna da função social do contrato, que veda a onerosidade excessiva e o enriquecimento sem causa. Como bem exposto pelo Professor Álvaro Villaça Azevedo em suas palestras, o contrato não pode gerar uma situação de massacre de uma parte sobre a outra, sendo essa uma boa concepção a respeito da função social.25 Em outras palavras, um contrato que acarreta onerosidade excessiva a uma das partes, especialmente tida como vulnerável, não está cumprindo o seu papel sociológico, necessitando de revisão pelo órgão judicante.
O Código de Defesa do Consumidor disciplina a revisão contratual por fato superveniente (fato novo) no seu art. 6º, inc. V. Constata-se que a norma trata da alteração das circunstâncias iniciais do negócio celebrado, o que não se confunde com as hipóteses em que há um vício de formação no negócio. Enuncia o citado dispositivo legal:
“Art. 6º São direitos básicos do consumidor:
(...)
V – a modificação das cláusulas contratuais que estabelecem prestações desproporcionais ou sua revisão em razão de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas.”
Existem claras diferenças entre essa revisão contratual e a consagrada pelo Código Civil de 2002. Isso porque a codificação privada exige o fator imprevisibilidade para a revisão contratual por fato superveniente, tendo consagrado, segundo o entendimento majoritário, a teoria da imprevisão, com origem na antiga cláusula rebus sic stantibus.26 Determina o art. 317 do CC/2002: “Quando, por motivos imprevisíveis, sobrevier desproporção manifesta entre o valor da prestação devida e o do momento de sua execução, poderá o juiz corrigi-lo, a pedido da parte, de modo que assegure, quanto possível, o valor real da prestação”.
Além desse dispositivo, tem-se se sustentado que a revisão contratual do contrato civil igualmente é possível pela subsunção do art. 478 do CC, in verbis: “Nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato. Os efeitos da sentença que a decretar retroagirão à data da citação”. Nessa linha de conclusão está o Enunciado 176 CJF/STJ, da III Jornada de Direito Civil, segundo o qual, “Em atenção ao princípio da conservação dos negócios jurídicos, o art. 478 do Código Civil de 2002 deverá conduzir, sempre que possível, à revisão judicial dos contratos e não à resolução contratual”. Reproduz-se o modelo italiano, eis que o art. 1.467 do Codice, que trata da resolução, também é utilizado para a revisão do negócio diante de um fato superveniente.
Não restam dúvidas de que a revisão contratual tratada pelo Código de Defesa do Consumidor é facilitada justamente por não exigir o fator imprevisibilidade, bastando que o desequilíbrio negocial ou a onerosidade excessiva decorra de um fato superveniente, ou seja, um fato novo não existente quando da contratação original. Na realidade civilista, o grande problema é o enquadramento dessa imprevisibilidade, o que tem tornado a revisão judicial do contrato civil praticamente impossível no campo prático.27
Sendo assim, pela opção de facilitação, fica claro que o CDC não adotou a teoria da imprevisão, ao contrário do que muitas vezes se tem afirmado.28 Na mesma linha de pensamento, a não adoção da teoria da imprevisão pela Lei 8.078/1990 pode ser retirada das lições de juristas como Rizzatto Nunes,29 Nelson Nery Jr. e Rosa Maria de Andrade Nery,30 Paulo Roque Khouri,31 João Batista de Almeida,32 Claudia Lima Marques, Antonio Herman Benjamin e Bruno Miragem,33 o que é compartilhado por este autor. Afirma-se, com a devida precisão teórica, que o Código de Defesa do Consumidor adotou a teoria da base objetiva do negócio jurídico, de influência germânica, desenvolvida, entre outros, por Karl Larenz.34 Nessa linha, vejamos as palavras de Claudia Lima Marques:
“A norma do art. 6º do CDC avança, em relação ao Código Civil (arts. 478-480 – Da resolução por onerosidade excessiva), ao não exigir que o fato superveniente seja imprevisível ou irresistível – apenas exibe a quebra da base objetiva do negócio, a quebra de seu equilíbrio intrínseco, a destruição da relação de equivalência entre as prestações, o desaparecimento do fim essencial do contrato. Em outras palavras, o elemento autorizador da ação modificadora do Judiciário é o resultado objetivo da engenharia contratual, que agora apresenta mencionada onerosidade excessiva para o consumidor, resultado de simples fato superveniente, fato que não necessita ser extraordinário, irresistível, fato que podia ser previsto e não foi”.35
Cumpre destacar que ma jurisprudência dos Tribunais Estaduais podem ser encontradas várias decisões que fazem menção à teoria da base objetiva e não à teoria da imprevisão (TJBA – Recurso 0012491-64.2009.805.0113-1 – Terceira Turma Recursal – Rel. Juíza Josefa Cristina Tomaz Martins Kunrath – DJBA 17.02.2011; TJPE – Apelação Cível 0134498-7, Recife – Quarta Câmara Cível – Rel. Des. Jones Figueirêdo – j. 24.09.2010 – DJEPE 21.10.2010; TJRS – Agravo de Instrumento 70007363195, Santa Vitória do Palmar – Décima Terceira Câmara Cível – Rel. Des. Marco Aurélio de Oliveira Canosa – j. 10.02.2004; TJSC – Apelação Cível 2003.010228-0, Blumenau – Primeira Câmara de Direito Comercial – Rel. Juiz Túlio José Moura Pinheiro – j. 09.10.2003).
Na prática, os principais acórdãos relativos à revisão contratual por fato superveniente no Brasil referem-se aos negócios de arrendamento mercantil (leasing) celebrados na década de noventa para a aquisição de veículos. Tais contratos tinham a atualização de valores atrelados à variação cambial, o que servia como um suposto atrativo aos consumidores. Com a alta do dólar frente ao real em janeiro de 1999, os contratos ficaram excessivamente onerosos aos consumidores, o que motivou um enxame de ações judiciais de revisão. Após uma grande variação na forma de decidir, o Superior Tribunal de Justiça chegou a concluir pela revisão, adotando a teoria da imprevisão:
“Recurso especial. Leasing. Contrato de arrendamento mercantil expresso em dólar americano. Variação cambial. CDC. Teoria da imprevisão. Aplicabilidade. Alegação de ofensa aos arts. 115 e 145 do Código Civil. Ausência de prequestionamento (Súmulas 282/STF e 211/STJ). Dissenso jurisprudencial não caracterizado. Acórdão local em consonância com recentes decisões do Superior Tribunal de Justiça. I. Aplica-se o Código de Defesa do Consumidor aos contratos de arrendamento mercantil. II. A abrupta e forte desvalorização do real frente ao dólar americano constitui evento objetivo e inesperado apto a ensejar a revisão de cláusula contratual, de modo a evitar o enriquecimento sem causa de um contratante em detrimento do outro (art. 6º, V, do CDC). III. Agravo regimental desprovido” (STJ – Ag. Rg. 430.393/RJ – Terceira Turma – Rel. Min. Antônio de Pádua Ribeiro – DJ 05.08.2002, p. 339. Veja: STJ, REsp 293.864/SE, REsp 361.694/RS e REsp 331.082/SC).
O julgado chega ao destino final da revisão adotando dois equívocos. O primeiro é a consubstanciado na afirmação de que o CDC consagrou a teoria da imprevisão. O segundo está relacionado à dedução de que a alta do dólar seria um fator imprevisível. A conclusão final é correta, apesar de se percorrer um caminho errado, de linhas tortas. Na verdade, os entendimentos precisos daquela Corte Superior são aqueles no sentido de dispensar a imprevisibilidade para a revisão contratual, bastando o desequilíbrio negocial em virtude de um fato novo. Por todas as decisões, transcreve-se a seguinte, um dos principais precedentes do Superior Tribunal de Justiça a respeito da matéria:
“Processual civil e civil. Revisão de contrato de arrendamento mercantil (leasing). Recurso especial. Nulidade de cláusula por ofensa ao direito de informação do consumidor. Fundamento inatacado. Indexação em moeda estrangeira (dólar). Crise cambial de janeiro de 1999 – Plano Real. Aplicabilidade do art. 6º, inc. V, do CDC. Onerosidade excessiva caracterizada. Boa-fé objetiva do consumidor e direito de informação. Necessidade de prova da captação de recurso financeiro proveniente do exterior. Recurso especial. Reexame de provas. Interpretação de cláusula contratual. Inadmitida a alegação de inaplicabilidade das disposições do Código de Defesa do Consumidor aos contratos de arrendamento mercantil (leasing), e não impugnado especificamente, nas razões do recurso especial, o fundamento do v. acórdão recorrido, suficiente para manter a sua conclusão, de nulidade da cláusula que prevê a cobrança de taxa de juros por ofensa ao direito de informação do consumidor, nos termos do inc. XV do art. 51 do referido diploma legal, impõe-se o juízo negativo de admissibilidade do recurso especial quanto ao ponto. O preceito esculpido no inc. V do art. 6º do CDC dispensa a prova do caráter imprevisível do fato superveniente, bastando a demonstração objetiva da excessiva onerosidade advinda para o consumidor. A desvalorização da moeda nacional frente à moeda estrangeira que serviu de parâmetro ao reajuste contratual, por ocasião da crise cambial de janeiro de 1999, apresentou grau expressivo de oscilação, a ponto de caracterizar a onerosidade excessiva que impede o devedor de solver as obrigações pactuadas. A equação econômico-financeira deixa de ser respeitada quando o valor da parcela mensal sofre um reajuste que não é acompanhado pela correspondente valorização do bem da vida no mercado, havendo quebra da paridade contratual, à medida que apenas a instituição financeira está assegurada quanto aos riscos da variação cambial, pela prestação do consumidor indexada em dólar americano. É ilegal a transferência de risco da atividade financeira, no mercado de capitais, próprio das instituições de crédito, ao consumidor, ainda mais que não observado o seu direito de informação (arts. 6°, III, 31, 51, XV, 52, 54, § 3º, do CDC). Incumbe à arrendadora desincumbir-se do ônus da prova de captação específica de recursos provenientes de empréstimo em moeda estrangeira, quando impugnada a validade da cláusula de correção pela variação cambial. Esta prova deve acompanhar a contestação (art. 297 e 396 do CPC), uma vez que os negócios jurídicos entre a instituição financeira e o banco estrangeiro são alheios ao consumidor, que não possui meios de averiguar as operações mercantis daquela, sob pena de violar o art. 6° da Lei 8.880/1994. Simples interpretação de cláusula contratual e reexame de prova não ensejam recurso especial” (STJ – Ag. Rg. no REsp 374.351/RS – Terceira Turma – Rel. Min. Nancy Andrighi – DJ 24.06.2002, p. 299).
As ementas na linha exposta se sucederam no STJ, afastando-se da teoria da imprevisão (STJ – REsp 596.934/RJ – Terceira Turma – Rel. Min. Castro Filho – j. 14.06.2004 – DJ 01.07.2004, p. 193; STJ – AgRg no REsp 677.708/SP – Terceira Turma – Rel. Min. Ari Pargendler – j. 20.09.2005 – DJ 28.11.2005, p. 280; STJ – AgRg no REsp 586.314/SP – Quarta Turma – Rel. Min. Barros Monteiro – j. 20.10.2005 – DJ 19.12.2005, p. 416; STJ – AgRg no REsp 437.317/SP – Terceira Turma – Rel. Min. Paulo Furtado (Desembargador Convocado do TJBA) – j. 24.03.2009 – DJe 15.04.2009; e STJ – AgRg no REsp 976.578/SP – Terceira Turma – Rel. Min. Nancy Andrighi – j. 06.08.2009 – DJe 19.08.2009). Curioso verificar que o Superior Tribunal de Justiça, nos acórdãos citados, tem dividido a onerosidade excessiva de forma igualitária entre as partes – empresas de leasing e consumidores –, tratando-as como iguais. Em outras palavras, o dólar é fixado em um patamar médio. Nessa linha, cumpre transcrever ainda a seguinte ementa:
“Direito do consumidor. Leasing. Contrato com cláusula de correção atrelada à variação do dólar americano. Aplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor. Revisão da cláusula que prevê a variação cambial. Onerosidade excessiva. Distribuição dos ônus da valorização cambial entre arrendantes e arrendatários. Recurso parcialmente acolhido. I. Segundo assentou a jurisprudência das Turmas que integram a Segunda Seção desta Corte, os contratos de leasing submetem-se ao Código de Defesa do Consumidor. II. A cláusula que atrela a correção das prestações à variação cambial não pode ser considerada nula a priori, uma vez que a legislação específica permite que, nos casos em que a captação dos recursos da operação se dê no exterior, seja avençado o repasse dessa variação ao tomador do financiamento. III. Consoante o art. 6º, V, do Código de Defesa do Consumidor, sobrevindo, na execução do contrato, onerosidade excessiva para uma das partes, é possível a revisão da cláusula que gera o desajuste, a fim de recompor o equilíbrio da equação contratual. IV. No caso dos contratos de leasing atrelados à variação cambial, os arrendatários, pela própria conveniência e a despeito do risco inerente, escolheram a forma contratual que no momento da realização do negócio lhes garantia prestações mais baixas, posto que o custo financeiro dos empréstimos em dólar era bem menor do que os custos em reais. A súbita alteração na política cambial, condensada na maxidesvalorização do real, ocorrida em janeiro de 1999, entretanto, criou a circunstância da onerosidade excessiva, a justificar a revisão judicial da cláusula que a instituiu. V. Contendo o contrato opção entre outro indexador e a variação cambial e tendo sido consignado que os recursos a serem utilizados tinham sido captados no exterior, gerando para a arrendante a obrigação de pagamento em dólar, enseja-se a revisão da cláusula de variação cambial com base no art. 6º, V, do Código de Defesa do Consumidor, para permitir a distribuição, entre arrendantes e arrendatários, dos ônus da modificação súbita da política cambial com a significativa valorização do dólar americano” (STJ – REsp 437.660/SP – Quarta Turma – Rel. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira – j. 08.04.2003 – DJ 05.05.2003, p. 306, RDDP, vol. 6, p. 111, RSTJ, vol. 168, p. 412).
A encerrar o estudo do tema, esclareça-se que o presente autor não se filia a tais julgamentos, pois consumidores e prestadoras não estão em situação de igualdade para que o prejuízo seja distribuído de forma igualitária entre eles. Aplica-se a proporcionalidade, fundada em meros critérios objetivos, matemáticos. Porém, afasta-se da razoabilidade, baseada em critérios subjetivos, no bom-senso e na equidade do julgador. Em reforço, há violação da especialidade, decorrência da máxima da isonomia, retirada do art. 5º, caput, da Constituição Federal. Como se sabe, pelo preceito máximo de justiça, deve-se tratar de maneira igual os iguais e de maneira desigual os desiguais. Os julgados demonstram como a incidência da pura proporcionalidade, desacompanhada da lógica do razoável, pode gerar decisões injustas.
Não há dúvidas de que a função social dos contratos constitui uma festejada mudança que revolucionou o Direito Contratual Brasileiro, trazendo uma nova concepção do instituto, de acordo com todas as tendências socializantes do Direito. As mudanças trazidas pelo novo princípio são inafastáveis e indeclináveis, o que também atinge os contratos de consumo, como não poderia ser diferente.
Repise-se que, pelo princípio da função social do contrato, deve-se interpretar e visualizar o contrato de acordo com o meio que o cerca. O contrato não pode ser mais concebido como uma bolha que envolve as partes, ou uma corrente que as aprisiona. Trazendo um sentido de libertação negocial, a função social dos contratos funciona como uma agulha, forte e contundente, que fura a bolha; como uma chave que abre as correntes. Em sentido próximo, ensina Teresa Negreiros que “partimos da premissa de que a função social do contrato, quando concebida como um princípio, antes de qualquer outro sentido e alcance que se lhe possa atribuir, significa muito simplesmente que o contrato não deve ser concebido como uma relação jurídica que só interessa às partes contratantes, impermeável às condicionantes sociais que o cercam e que são por ele próprio afetadas”.36
Alguns dos comandos relativos à proteção contratual do Código Consumerista trazem essa ideia em moldes perfeitos, mitigando a força obrigatória da convenção, a antiga premissa liberal segundo o qual o contrato faz lei entre as partes (pacta sunt servanda). Não se pode aceitar o contrato da maneira como antes era consagrado; a sociedade mudou, vivemos sob o domínio do capital, e com isso deve mudar a maneira de ver e analisar os pactos, sobretudo os contratos de consumo.
De início, o regramento em questão pode ser abstraído do art. 46 da Lei 8.078/1990, segundo o qual “Os contratos que regulam as relações de consumo não obrigarão os consumidores, se não lhes for dada a oportunidade de tomar conhecimento prévio de seu conteúdo, ou se os respectivos instrumentos forem redigidos de modo a dificultar a compreensão de seu sentido e alcance”.
A norma está a prever a não vinculação de determinadas cláusulas, que são consideradas como não escritas ou inexistentes. Em um primeiro momento, resta claro que a opção do legislador foi de tratar do plano da existência do negócio jurídico, pois o comando, por si só, não estabelece a solução da invalidade. Todavia, pode-se interpretar pela nulidade das cláusulas de infringência ao preceito, conjugando-se o art. 46 com o art. 51, inc. XV, da Lei 8.078/1990, que consagra como abusiva qualquer cláusula que esteja em desacordo com o sistema de proteção do consumidor. Essa parece ser a melhor solução, pelos problemas que a inexistência pode gerar, já que a teoria da inexistência do negócio jurídico não foi adotada expressamente pelo sistema civil brasileiro. Tal caminho, pela nulidade absoluta, por vezes é seguido pela jurisprudência nacional (nessa linha: TJMG – Apelação Cível 0770829-75.2008.8.13.0024, Belo Horizonte – Décima Sexta Câmara Cível – Rel. Des. Sebastião Pereira de Souza – j. 03.03.2011 – DJEMG 08.04.2011).
Pois bem, aprofundando-se na análise do art. 46 do CDC, para começar, são consideradas como não vinculativas as cláusulas desconhecidas, ou que o consumidor não teve a oportunidade de conhecer, havendo a chamada violação do dever de oportunizar.37 A origem da previsão está na vedação da chamada condição puramente potestativa, aquela que representa a vontade ou o puro arbítrio de apenas uma das partes, considerada ilícita pelo art. 122 do CC/2002.
Ilustrando a incidência dessa primeira parte do art. 46 do CDC, o consumidor deve ter o devido conhecimento prévio a respeito da taxa de juros estipulada no contrato bancário ou financeiro, sob pena de sua não incidência (com grande repetição no Tribunal Paulista e mesmo relator, por todos: TJSP – Apelação 9216881-08.2006.8.26.0000 – Acórdão 5042241, São Paulo – Vigésima Terceira Câmara de Direito Privado – Rel. Des. Sérgio Shimura – j. 30.03.2011 – DJESP 14.04.2011; TJSP – Apelação 9182798-29.2007.8.26.0000 – Acórdão 5042265, São Paulo – Vigésima Terceira Câmara de Direito Privado – Rel. Des. Sérgio Shimura – j. 30.03.2011 – DJESP 14.04.2011). Na verdade, o que ocorre muitas vezes na prática com os negócios bancários é que o consumidor sequer tem o devido conhecimento do conteúdo do contrato mantido com a instituição financeira, pois não lhe é dada a devida oportunidade para tanto.
Ato contínuo de ilustração, no caso de um contrato de seguro de vida, a cláusula limitativa de direitos deve ser comunicada previamente e em termos claros e ostensivos, sob pena de sua não vinculação. Nessa linha, do Tribunal Paulista:
“Seguro de vida e acidentes pessoais. Ação de cobrança de indenização. Cláusula com exclusão de cobertura em caso de separação judicial ou divórcio do casal. Morte. Separação judicial anterior. Desconhecimento prévio de cláusula limitativa. CDC, art. 46. Boa-fé e dever de informação (CDC, art. 30). Indenização devida. Recurso provido. É devida a indenização pelo falecimento do ex-cônjuge do segurado, ainda que o sinistro tenha ocorrido após a separação judicial do casal, se o segurado não tinha ciência de cláusula limitativa da cobertura. Nos contratos de consumo, eventual limitação de direito do segurado deve constar de forma clara e com destaque e, obviamente, ser entregue ao consumidor no ato da contratação, sob pena de não obrigar o contratante (CDC, art. 46). Cabe à seguradora demonstrar prévia disponibilização ao segurado da apólice e das condições gerais do seguro, nos termos do art. 6º, VIII do CDC” (TJSP – Apelação 9082668-60.2009.8.26.0000 – Acórdão 5010702, Araras – Trigésima Quinta Câmara de Direito Privado – Rel. Des. Clóvis Castelo – j. 21.03.2011 – DJESP 31.03.2011).
Pelo mesmo caminho, do STJ, tratando de caso relativo à exclusão da garantia do seguro em caso de embriaguez do motorista:
“Recurso especial. Indenização decorrente de seguro de vida. Acidente automobilístico. Embriaguez. Cláusula limitativa de cobertura da qual não foi dado o perfeito conhecimento ao segurado. Abusividade. Infringência ao art. 54, § 4º do Código de Defesa do Consumidor. Recurso especial provido. 1. Por se tratar de relação de consumo, a eventual limitação de direito do segurado deve constar, de forma clara e com destaque, nos moldes do art. 54, § 4º do CODECON e, obviamente, ser entregue ao consumidor no ato da contratação, não sendo admitida a entrega posterior. 2. No caso concreto, surge incontroverso que o documento que integra o contrato de seguro de vida não foi apresentado por ocasião da contratação, além do que a cláusula restritiva constou tão somente do ‘manual do segurado’, enviado após a assinatura da proposta. Portanto, configurada a violação ao art. 54, § 4º do CDC. 3. Nos termos do art. 46 do Código de Defesa do Consumidor: ‘Os contratos que regulam as relações de consumo não obrigarão os consumidores, se não lhes for dada a oportunidade de tomar conhecimento prévio de seu conteúdo, ou se os respectivos instrumentos forem redigidos de modo a dificultar a compreensão de seu sentido e alcance’. 4. Deve ser afastada a multa aplicada com apoio no art. 538, parágrafo único do CPC, pois não são protelatórios os embargos de declaração opostos com fins de prequestionamento. 5. Recurso especial provido” (STJ – REsp 1.219.406/MG – Quarta Turma – Rel. Min. Luis Felipe Salomão – j. 15.02.2011 – DJE 18.02.2011).
Ato contínuo de estudo, do mesmo modo não vinculam o consumidor as cláusulas incompreensíveis ou ininteligíveis, geralmente diante de um sério problema de redação, que visa a enganar o consumidor. A não vinculação decorre de um dolo contratual praticado pelo fornecedor ou prestador, via de regra com o claro intuito de induzir o consumidor a erro e obter um enriquecimento sem causa. A título de exemplo, muitas vezes verifica-se em contratos de seguro cláusulas mal escritas ou mal elaboradas, de difícil entendimento até pelo mais experiente aplicador do Direito, por utilizar expressões técnicas da área jurídica ou de gerenciamento de riscos. Em casos tais, tem-se entendido que, se o conjunto probatório da demanda evidenciar a inexatidão das informações apresentadas, no ato da contratação, pois a proposta não traz informação precisa e clara a respeito das limitações de cobertura, há violação do art. 46 do CDC (TJSP – Apelação 0001976-43.2005.8.26.0624 – Acórdão 4980354, Tatuí – Nona Câmara de Direito Privado – Rel. Des. Grava Brasil – j. 01.03.2011 – DJESP 23.03.2011).
As cláusulas contratuais devem ser elaboradas para a devida compreensão pelo brasileiro médio (pessoa natural comum). Assim sendo, diante da realidade cultural brasileira, os termos devem ser simples, sem grandes desafios em sua leitura e compreensão, sob pela de sua não vinculação ou a cabível solução de nulidade absoluta, conforme outrora se expôs. A concretizar tal importante premissa socializante, o Tribunal de Minas Gerais deduziu que “Aplica-se o art. 46 do Código de Defesa do Consumidor para afastar, em contrato de seguro, cláusula de exclusão de indenização por defeito de instalação elétrica que tenha provocado sinistro, por se tratar de disposição capciosa, que dificulta a compreensão do seu sentido e alcance. A queima da central eletrônica de controle do sistema injetor de combustível (módulo) é um defeito, uma avaria em peça do veículo. O curto circuito até pode ser causa de um incêndio, mas se os seus efeitos ficarem limitados à peça não se pode falar na ocorrência de um incêndio. (...)” (TJMG – Apelação Cível 1.0525.08.133576-8/0011, Pouso Alegre – Décima Terceira Câmara Cível – Rel. Des. Luiz Carlos Gomes da Mata – j. 16.04.2009 – DJEMG 11.05.2009).
Existe no art. 46 do CDC um ponto de simbiose entre o princípio da boa-fé objetiva e a função social do contrato, a mitigar a força obrigatória da convenção. Isso porque o desrespeito ao dever de informar com clareza gera como consequência a interpretação do pacto de acordo com a realidade social, afastando aquilo que aparentemente foi convencionado entre as partes. Em outras palavras, o concreto e o efetivo prevalecem sobre o meramente formal, tendência do Direito Civil Contemporâneo.
Superada a análise desse importante comando, o art. 47 da Lei 8.078/1990 consagra a máxima in dubio pro consumidor, ao preconizar que “As cláusulas contratuais serão interpretadas de maneira mais favorável ao consumidor”. Aqui, o princípio da função social do contrato, em sua eficácia interna, é flagrante pela preocupação em se proteger o consumidor como parte vulnerável da relação negocial, o que repercute na hermenêutica do negócio jurídico. Nesse sentido, mencionando a interação entre a regra e o princípio, da recente jurisprudência paulista:
“Plano de saúde. Obrigação de fazer. Negativa de atendimento quanto à realização do tratamento denominado ‘oxigenoterapia em câmara hiperbárica’, sob alegação de se tratar de tratamento sem aprovação da ANS e estar excluído do contrato. Abusividade. Tratamento aprovado pela comunidade médica. Parte integrante do tratamento demandado pelo autor. Incidência do Código de Defesa do Consumidor e da Lei 9.656/1998. Presente o princípio da vulnerabilidade emergente do Código de Defesa do Consumidor. O contrato de consumo, como o de seguro individual de saúde, típicos de adesão, devem ser interpretados de modo favorável ao aderente (CDC, art. 47) atendendo à função social do contrato. Reconhecida a abusividade na exclusão do tratamento. Mantida a sentença de procedência. Recurso improvido” (TJSP – Apelação 0003799-67.2009.8.26.0024 – Acórdão 4992907, Andradina – Quinta Câmara de Direito Privado – Rel. Des. James Siano – j. 02.03.2011 – DJESP 20.04.2011).
Atente-se ao fato de ter o Código Civil de 2002 adotado a mesma premissa para o contrato de adesão, dispondo o seu art. 423 que “Quando houver no contrato de adesão cláusulas ambíguas ou contraditórias, dever-se-á adotar a interpretação mais favorável ao aderente”. Consubstancia a norma a regra in dubio pro aderente, interpretando-se o negócio jurídico em desfavor do seu estipulante (interpretatio contra stipulatorem). Como bem aponta Ezequiel Morais, a tendência mundial, seja nos países que seguem o modelo romano-germânico ou naqueles do tronco anglo-saxão, é justamente a de interpretar os contratos em desfavor da parte que tem o poder de impor o seu conteúdo. Cita o doutrinador, por oportuno, que a mesma premissa hermenêutica pode ser encontrada no Código Italiano de Consumo (art. 35), no Código de Consumo Francês (art. L 133.2) e no Código Argentino de Direito do Consumidor (art. 3º).38
Pois bem, na realidade jurídica brasileira, pela teoria do diálogo das fontes, sendo o contrato de consumo e de adesão ao mesmo tempo, subsumem-se os dois preceitos, conforme reconhecido pelos acórdãos a seguir:
“Ação de indenização. Danos morais e materiais. Contrato de seguro. Pedido de transporte aéreo negado. Cobertura de acidente pessoal. Cláusulas contraditórias. Interpretação mais favorável ao consumidor-aderente. Aplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor. Art. 47 do CDC e art. 423 do CC. Dano material devido. Juros de mora, a partir da citação. Correção monetária, desde o efetivo desembolso. Dano moral. Não configurado. Sentença parcialmente reformada. A interpretação dada às cláusulas de um contrato de adesão, em caso de dúvida, deve ocorrer de forma mais favorável ao consumidor-aderente, parte mais fraca da relação, tentando-se extrair delas a maior utilidade possível, à luz da norma prevista no art. 47 do CDC e no art. 423 do CC. O contrato de seguro não pode ficar adstrito ao pagamento de uma indenização, mas também, e primordialmente, em prestar uma garantia e segurança ao segurado. O termo a quo dos juros de mora e da correção monetária no valor do dano material deve ocorrer, respectivamente, a partir da citação e do efetivo desembolso. A situação apresentada nos autos cinge-se a um mero dissabor, aborrecimento, não sendo capaz de causar um desequilíbrio psicológico do segurado, razão pela qual não há que se falar no instituto do dano moral” (TJMG – Apelação Cível 1.0024.07.463173-0/0011, Belo Horizonte – Décima Sexta Câmara Cível – Rel. Des. Nicolau Masselli – j. 15.04.2009 – DJEMG 29.05.2009).
“Apelação cível. Título de capitalização. Resgate antecipado. Cláusulas ambíguas. I. Quando ocorre o resgate antecipado de título de capitalização, devem ser atendidas as disposições contratuais no sentido da aplicação de redutor previsto no contrato, quando este se mostrar razoável e não atentar contra os princípios insculpidos no Código Consumerista e no Código Civil. II. Constando do contrato cláusulas ambíguas ou contraditórias, estas devem ser interpretadas da forma mais favorável ao aderente, nos termos do art. 47 do Código de Defesa do Consumidor e art. 423 do CC. III. Sendo atendido em parte, embora mínima, o pedido do autor, verificada está a parcial procedência da ação, permanecendo a condenação do demandante ao pagamento da totalidade das custas e honorários advocatícios à parte contrária, em face da sucumbência mínima desta. Apelo parcialmente provido” (TJRS – Apelação Cível 70006779292, Porto Alegre – Sexta Câmara Cível – Rel. Des. Ney Wiedemann Neto – j. 30.06.2004).
De toda sorte, como se verá mais à frente, o contrato de adesão não necessariamente é um contrato de consumo, hipótese em que terá incidência apenas o comando da codificação geral privada. Por outra via, o que é mais raro, nem sempre o contrato de consumo é de adesão, aplicando-se apenas o CDC em hipóteses tais. Esse ponto de divergência entre os dois preceitos deve ser observado, em relação às suas abrangências.
Voltando-se ao art. 47 do CDC, imagine-se a contratação de um serviço de conserto de um encanamento, em que o contrato traz expressamente dois preços, um fixo e um de acordo com a extensão do trabalho do encanador. Diante da presunção absoluta de vulnerabilidade do consumidor, valerá a menor remuneração, o que não comporta qualquer debate ou discussão para afastar a premissa. Em outro caso prático interessante, a jurisprudência paulista interpretou um compromisso de compra e venda da maneira mais favorável ao compromissário comprador, a afastar o pagamento de valor residual calculado de forma unilateral pelo promitente vendedor, pela não possibilidade de o prestador surpreender o consumidor com algo não esperado (vedação da surpresa). Vejamos a ementa da decisão:
“Ação de adjudicação compulsória. Promitente comprador pretende adjudicação de imóvel após pagamento de número de prestações previsto contratualmente. Promitente vendedor opõe resíduo de preço. Prestações calculadas pelo próprio promitente vendedor. Recibos apontavam número da prestação e total de prestações por pagar. Comportamento do promitente vendedor alimentou justa expectativa do promitente comprador de que quitação adviria do pagamento do número de prestações. Dever de lealdade e não surpresa, derivados do princípio da boa-fé (art. 4º, inc. III do CDC). Contrato interpretado mais favoravelmente ao promitente comprador (art. 47 do CDC). Precedentes do TJSP. Adjudicação cabível. Recurso improvido” (TJSP – Apelação 9214340-36.2005.8.26.0000 – Acórdão 5049061, Poá – Sétima Câmara de Direito Privado – Rel. Des. Luiz Antonio Costa – j. 06.04.2011 – DJESP 18.04.2011).
Nos contratos de plano de saúde, como outrora já se demonstrou, vários são os julgados que aplicam a premissa in dubio pro consumidor para abranger coberturas negadas injustificadamente pelas prestadoras de serviço. Um dos temas de maior discussão prática refere-se à cobertura relativa ao stent, aparelho utilizado após as cirurgias do coração para garantir o seu pleno funcionamento, visando afastar o entupimento de suas veias. Por todos os acórdãos, vejamos duas ementas, com menções expressas ao art. 47 do CDC e conteúdo impecável:
“Apelação. Incidência do CDC. Prótese necessária à cirurgia de angioplastia. Ilegalidade da exclusão de stents da cobertura securitária. Cláusula obscura. As disposições do Código de Defesa do Consumidor são aplicadas nas relações contratuais mantidas junto a operadoras de planos de saúde. De acordo com o art. 47 do Código de Defesa do Consumidor as cláusulas redigidas de forma a dificultar o entendimento do consumidor devem ser interpretadas da maneira mais favorável a este. O stent não tem função de substituir total ou parcialmente quaisquer órgãos, servindo apenas de reforço ao órgão afetado que exija cirurgia, não podendo, portanto, ser caracterizado como uma prótese” (TJMG – Apelação Cível 2949590-11.2009.8.13.0105, Governador Valadares – Décima Quinta Câmara Cível – Rel. Des. Tibúrcio Marques – j. 14.01.2011 – DJEMG 02.02.2011).
“Plano de saúde. Implantação de stent. Alegação da seguradora de que se trata de uma prótese, devendo incidir a exclusão existente no contrato efetivado pelas partes [art. 8º]. Inadmissibilidade. Exclusão que contraria a função social do contrato [art. 421 do CC], retirando do paciente a possibilidade de sobrevida com dignidade. Inexistência de comprovação pela seguradora de que ofertou condições acessíveis para que o autor migrasse ao novo plano [sem restrições de qualquer espécie], adaptado aos termos da Lei 9.656/1998. Intervenção do Judiciário para decidir em favor do consumidor idoso [art. 47, da Lei 8.078/1990], obrigando a AMIL a reembolsar os custos do procedimento, sem cabimento, contudo, de danos morais na espécie. Não provimento dos recursos” (TJSP – Apelação 990.10.208879-0 – Acórdão 4590510, São Paulo – Quarta Câmara de Direito Privado – Rel. Des. Ênio Santarelli Zuliani – j. 24.06.2010 – DJESP 22.07.2010).
Não se pode negar que, presente tal negativa ao STENT, deve o segurado ser indenizado pelos danos morais sofridos, diante da clara lesão ao direito fundamental à saúde. Por bem, tal solução vem sendo adotada pela jurisprudência superior, em importante conclusão sociológica (por todos: STJ – AgRg no REsp 1.235.440/RS – Rel. Min. Luis Felipe Salomão – Quarta Turma – j. 05.09.2013 – DJe 16.09.2013; AgRg no AREsp 102.550/PE – Rel. Min. Maria Isabel Gallotti – Quarta Turma – j. 06.08.2013 – DJe 16.08.2013 e REsp 1.364.775/MG – Rel. Min. Nancy Andrighi – Terceira Turma – j. 20.06.2013 – DJe 28.06.2013).
Seguindo nas ilustrações, ainda do Superior Tribunal de Justiça, na mesma linha de justa decisão, conclui se pela presença de cobertura relativa ao marca-passo em instrumento com cláusula demasiadamente ampla, aplicando-se a justiça esperada:
“Agravo regimental. Seguro. Plano de saúde. Negativa de prestação jurisdicional. Não ocorrência. Fornecimento de marca-passo. Cláusula ampla. Interpretação favorável ao consumidor. Art. 47 do CDC. Fundamento inatacado. Súmula STF/283. I. Tendo encontrado motivação suficiente para fundar a decisão, não fica o Órgão julgador obrigado a responder, um a um, os questionamentos suscitados pelas partes, mormente se notório seu propósito de infringência do julgado. II. Examinando o contrato firmado entre as partes concluiu o Colegiado estadual que o fornecimento de marcapasso não estaria excluído de cobertura. Isso porque, tratando-se de cláusula demasiadamente ampla, inserida em contrato de adesão, sua interpretação deveria ser feita da maneira mais favorável ao consumidor, em consonância com o art. 47 do Código de Defesa do Consumidor. III. Esse fundamento, suficiente, por si só, para manter a conclusão do julgado, não foi impugnado nas razões do especial, atraindo, à hipótese, a aplicação da Súmula 283 do Supremo Tribunal Federal. Agravo improvido” (STJ – AgRg-Ag 1.002.040/RS – Terceira Turma – Rel. Min. Sidnei Beneti – j. 19.06.2008 – DJE 01.07.2008).
Na mesma esteira, deduz o Tribunal da Cidadania que é abusiva a negativa do plano de saúde em cobrir as despesas de intervenção cirúrgica de gastroplastia, necessária à garantia da sobrevivência do segurado acometido por obesidade mórbida. Conforme pode ser retirado de aresto publicado no seu Informativo n. 510, “a gastroplastia, indicada para o tratamento da obesidade mórbida, bem como de outras doenças dela derivadas, constitui cirurgia essencial à preservação da vida e da saúde do paciente segurado, não se confundindo com simples tratamento para emagrecimento. Os contratos de seguro-saúde são contratos de consumo submetidos a cláusulas contratuais gerais, ocorrendo a sua aceitação por simples adesão pelo segurado. Nesses contratos, as cláusulas seguem as regras de interpretação dos negócios jurídicos estandardizados, ou seja, existindo cláusulas ambíguas ou contraditórias, deve ser aplicada a interpretação mais favorável ao aderente, conforme o art. 47 do CDC. Assim, a cláusula contratual de exclusão da cobertura securitária para casos de tratamento estético de emagrecimento prevista no contrato de seguro-saúde não abrange a cirurgia para tratamento de obesidade mórbida. Precedentes citados: REsp 1.175.616/MT, DJe 4/3/2011; AgRg no AREsp 52.420/MG, DJe 12/12/2011; REsp 311.509/SP, DJ 25/6/2001, e REsp 735.750/SP, DJe 16/2/2012” (STJ – REsp 1.249.701/SC – Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino – j. 04.12.2012).
Em sentido próximo, do mesmo Tribunal Superior, presentes divergências entre os documentos entregues ao segurado, entendeu-se pela prevalência da cobertura do seguro por invalidez em valor superior, por ser a interpretação mais benéfica ao segurado-consumidor. Na espécie, aplicou-se ainda o art. 46 do CDC, por último estudado, em interação efetiva com o art. 47 da mesma norma:
“Direito do consumidor. Contrato de seguro. Invalidez permanente. Valor da indenização. Divergência entre os documentos entregues ao segurado. Prevalência do entregue quando da contratação. Cláusula limitativa da cobertura. Não incidência. Arts. 46 e 47 da Lei 8.078/1990. Doutrina. Precedente. Recurso provido. I. Havendo divergência no valor indenizatório a ser pago entre os documentos emitidos pela seguradora, deve prevalecer aquele entregue ao consumidor quando da contratação (‘certificado individual’), e não o enviado posteriormente, em que consta cláusula restritiva (condições gerais). II. Nas relações de consumo, o consumidor só se vincula às disposições contratuais em que, previamente, lhe é dada a oportunidade de prévio conhecimento, nos termos do art. 46 do Código de Defesa do Consumidor. III. As informações prestadas ao consumidor devem ser claras e precisas, de modo a possibilitar a liberdade de escolha na contratação de produtos e serviços. Ademais, na linha do art. 54, § 4º da Lei 8.078/1990, devem ser redigidas em destaque as cláusulas que importem em exclusão ou restrição de direitos” (STJ – REsp 485760/RJ – Quarta Turma – Rel. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira – j. 17.06.2003 – DJU 01.03.2004, p. 186).
Merece destaque, igualmente, o julgamento superior que interpretou extensivamente cláusula do contrato de plano de saúde, a fim de incluir filho da segurada dependente, abarcando também a tutela da família constante do art. 226 da Constituição Federal. Nos termos da publicação constante do Informativo n. 520 do STJ, “no caso em que o contrato de seguro de saúde preveja automática cobertura para determinadas lesões que acometam o filho de ‘segurada’ nascido durante a vigência do pacto, deve ser garantida a referida cobertura, não apenas ao filho da ‘segurada titular’, mas também ao filho de ‘segurada dependente’. Tratando-se, nessa hipótese, de relação de consumo instrumentalizada por contrato de adesão, as cláusulas contratuais, redigidas pela própria seguradora, devem ser interpretadas da forma mais favorável à outra parte, que figura como consumidora aderente, de acordo com o que dispõe o art. 47 do CDC. Assim, deve-se entender que a expressão ‘segurada’ abrange também a ‘segurada dependente’, não se restringindo à ‘segurada titular’. Com efeito, caso a seguradora pretendesse restringir o campo de abrangência da cláusula contratual, haveria de especificar ser esta aplicável apenas à titular do seguro contratado” (STJ – REsp 1.133.338/SP – Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino – j. 02.04.2013).
A encerrar o presente tópico, consigne-se a existência de milhares de decisões jurisprudenciais de aplicação do art. 47 do CDC que, em prol da função social do contrato, têm consagrado uma nova visualização do contrato, da maneira a beneficiar com justiça a parte vulnerável da relação negocial. Do mesmo modo, o princípio da boa-fé objetiva também tem realizado milagres no mundo contratual, como se pode perceber do próximo tópico do presente capítulo.
Além do princípio da função social do contrato, como antes se expôs nesta obra de forma exaustiva, a boa-fé objetiva constitui outro pilar fundamental do Código Brasileiro de Defesa do Consumidor. Sem prejuízo do art. 4º, inc. III, da Lei 8.078/1990, merece destaque, no capítulo referente à proteção contratual, o art. 48 do CDC, in verbis:
“Art. 48. As declarações de vontade constantes de escritos particulares, recibos e pré-contratos relativos às relações de consumo vinculam o fornecedor, ensejando inclusive execução específica, nos termos do art. 84 e parágrafos”.
Pelo teor do preceito, fica evidenciada a função de integração da boa-fé objetiva em todas as fases contratuais: fase pré-contratual, fase contratual e fase pós-contratual. Nessa linha, não se olvida o teor do Enunciado 26, aprovado na I Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal, segundo o qual “a cláusula geral contida no art. 422 do novo Código Civil impõe ao juiz interpretar e, quando necessário, suprir e corrigir o contrato segundo a boa-fé objetiva, entendida como a exigência de comportamento leal dos contratantes”. Ora, se a premissa civil foi inspirada pelo Código Consumerista, a conclusão deve ser necessariamente a mesma para os contratos de consumo.
A respeito da abrangência das fases contratuais, na mesma I Jornada de Direito Civil foi aprovado o Enunciado 25, estabelecendo que “o art. 422 do Código Civil não inviabiliza a aplicação, pelo julgador, do princípio da boa-fé nas fases pré e pós-contratual”. Ato contínuo, da III Jornada de Direito Civil, o Enunciado 170 CJF/STJ, in verbis: “A boa-fé objetiva deve ser observada pelas partes na fase de negociações preliminares e após a execução do contrato, quando tal exigência decorrer da natureza do contrato”. Como se pode perceber, há uma diferença sutil entre os enunciados doutrinários, eis que o primeiro é dirigido ao juiz, enquanto o último é direcionado às partes. As menções constantes do art. 48 do CDC a qualquer escrito, pré-contrato ou recibo deixa clara a total abrangência do regramento, visando interpretar o negócio de acordo com a lealdade e a confiança depositada.
A força vinculativa da boa-fé é marcante, uma vez que não sendo respeitado o que se espera do negócio celebrado, caberão as medidas de tutela específica tratadas pelo art. 84 do CDC, inclusive com a possibilidade de fixação de multa diária ou astreintes. No que concerne à proposta de contratar, há claro diálogo com o art. 427 do CC/2002, segundo o qual a proposta formalizada vincula o proponente, se contiver os elementos fundamentais do negócio a ser celebrado. Como bem pondera Nelson Nery Jr. a respeito do art. 48 do CDC, “O juiz poderá determinar qualquer providência que o caso mereça, a fim de que seja assegurado o resultado prático equivalente ao adimplemento da obrigação de fazer. Não quer o Código a resolução em perdas e danos. Tais providências judiciais podem ser de vária ordem, tais como a busca e apreensão, desfazimento de obra, remoção de pessoas e coisas, impedimentos de atividade nociva, além de requisição de força policial”.39
Na esteira das palavras do jurista, consagra-se o princípio da conservação dos negócios jurídicos, sendo a solução de extinção do contrato a ultima ratio, o último caminho a ser percorrido. Não se pode esquecer do ponto de ligação entre tal princípio de manutenção e a função social do contrato, conforme reconhecido pelo Enunciado 22, da I Jornada de Direito Civil: “a função social do contrato, prevista no art. 421 do novo Código Civil, constitui cláusula geral, que reforça o princípio de conservação do contrato, assegurando trocas úteis e justas”. Mais uma vez, notam-se os princípios da função social e da boa-fé em interessante interação simbiótica, como se espera.
Deve ficar claro, todavia, que a incidência da força vinculativa dos instrumentos não afasta o direito à indenização dos danos a que o consumidor tem direito, decorrência natural do festejado princípio da reparação integral dos danos (art. 6º, inc. V, da Lei 8.078/1990). Algumas das decisões a seguir expostas deixam clara tal constatação.
Partindo-se para os exemplos jurisprudenciais de incidência da norma em comento, interessante julgado do Tribunal de São Paulo fez incidir a força vinculativa do art. 48 do CDC para reconhecer o direito à internação de segurado de seguro-saúde internacional, sem prejuízo da responsabilidade civil de todas as empresas envolvidas para com a prestação de serviços contratada. A ementa é bem interessante, por sintetizar algumas outras questões expostas nos capítulos anteriores deste livro:
“1. Ação indenizatória de danos materiais e morais fundada no inadimplemento de seguro viagem contratado em pacote turístico internacional. Autor submetido a cirurgia cardíaca, com implantação de desfibrilador ventricular, em hospital localizado na cidade de Livorno, Itália, sem a correspondente cobertura integral do débito hospitalar pela seguradora anteriormente contratada. Relação de consumo. Cerceamento de defesa inocorrente. Legitimidade e solidariedade passiva das corrés (agência de turismo, operadora de turismo e seguradora). Art. 275 do CC e art. 14 do CDC. 2. Responsabilidade solidária de todas as empresas integrantes da cadeia de fornecedores dos serviços, que comercializam pacotes de viagens em parceria empresarial, pelos danos causados aos consumidores por defeitos na prestação dos serviços contratados. Art. 25, § 1º do CDC. 3. Vedação legal à estipulação contratual de cláusula que impossibilite, exonere ou atenue a obrigação de indenizar. Art. 25, caput do CDC. 4. A declaração pré-contratual da seguradora integra o contrato celebrado entre as partes, vinculando a prestadora de serviços. Art. 48 do CDC. Descumprimento injustificado. Lesão à boa-fé objetiva. Art. 422 do CC. Ineficácia de cláusula contratual limitativa de cobertura para doenças preexistentes, exageradamente desvantajosa para o consumidor e que desvirtuaria a própria essência protetiva plena da cobertura de assistência de viagem internacional contratada. Art. 51, caput e IV do CDC. 5. Verbas indenizatórias devidas. Condenação a ser apurada por liquidação em artigos mantida, a fim de se evitar a propositura de eventual ação autônoma, aproveitando-se todo o exame fático até aqui ocorrido, preservada a ampla defesa. Notícia de celebração de acordo não cumprido integralmente pela empresa contratada, sem qualquer justificativa plausível. Reparação material integral mantida. 6. Transtornos e abalos emocionais gravíssimos causados a indivíduo idoso, lançado ao desamparo após infarto, por empresa contratada para assisti-lo em viagem internacional. Danos morais moderadamente fixados, em atenção à sua dúplice função punitiva ao ofensor e compensatória à vítima, à maneira dos punitive damages do direito norte-americano, origem remota do art. 5º, V e X da CF/1988. 7. Desobediência injustificada às ordens judiciais e tentativa de induzimento do julgador em erro, sem qualquer temor institucional ao Poder Judiciário. Fatos gravíssimos. Multa diária limitada, por ora, a R$ 500.000,00, tendo em vista princípios de razoabilidade e proporcionalidade, desde que efetivado o pagamento do débito ao órgão fazendário da cidade de Livorno em até 15 dias após a prolação deste acórdão. Persistindo a desobediência após tal prazo, a multa diária voltará a fluir no montante de R$ 5.000,00, por inescusável recidiva. Possibilidade de majoração das astreintes a qualquer tempo. (...)” (TJSP – Apelação 0047211-20.2008.8.26.0562 – Acórdão 4978866, Santos – Trigésima Quarta Câmara de Direito Privado – Rel. Des. Soares Levada – j. 28.02.2011 – DJESP 21.03.2011).
São interessantes os julgados estaduais relativos à negativa por parte de empresa que explora o serviço de telefonia em cumprir a promessa pública do plano de expansão feita anteriormente, devendo ser responsabilizada por tal conduta de surpresa, nos termos do art. 48 do CDC e do respeito à promessa anterior. Por todos, entre os mais recentes:
“Responsabilidade civil. Desídia de operadora de serviços de telefonia. Oferta pública, convocando interessados em aderir a plano de expansão. Inscrição e sorteio, indicando a expectativa de instalação de linhas. Promessa de contratar, descumprida, sem justa causa. Dever reparatório. Inteligência dos arts. 159 e 1.080, do Código Civil de 1916; arts. 186, 187, 427 e 429, do Código Civil vigente; arts. 6º, IV e VI, 30, 35 e 48, da Lei 8.078/1990. Recurso do autor. Provimento” (TJSP – Apelação 9090199-71.2007.8.26.0000 – Acórdão 4859898, Santos – Trigésima Câmara de Direito Privado – Rel. Des. Carlos Russo – j. 17.11.2010 – DJESP 11.01.2011).
Ainda do Tribunal de São Paulo, aplicou-se o art. 48 do CDC para se determinar a força vinculativa de promessa de bolsa escolar, para todo o período de estudos do curso, e não apenas para o primeiro semestre do curso (TJSP – Apelação 992.09.032175-7 – Acórdão 4614215, Santos – Trigésima Câmara de Direito Privado – Rel. Des. Orlando Pistoresi – j. 28.07.2010 – DJESP 18.08.2010). A decisão comprova como as justas expectativas geradas na parte contratual despertam uma nova ética negocial, eis que não cabe a alegação de que a bolsa foi dada como mero ato de liberalidade, que pode ser quebrado a qualquer tempo.
No que concerne à fase pós-contratual, constata-se que o art. 48 do CDC faz menção expressa ao recibo, que tem notória força vinculativa. Sendo assim, em regra, não cabe ao prestador fazer cobrança de valor a mais, alegando que o montante pago pelo consumidor não cobriu todos os serviços prestados. O que ser percebe é que o comando em análise traz como conteúdo a máxima da boa-fé objetiva que veda o comportamento contraditório, consubstanciada na expressão venire contra factum proprium non potest.
Na verdade, não só esse, mas outros conceitos parcelares da boa-fé objetiva têm plena incidência para os contratos de consumo. Tais construções, advindas do Direito Comparado e retiradas da obra do jurista lusitano António Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro, têm sido amplamente debatidas no cenário jurídico brasileiro, cabendo o seu estudo de forma pontual.40 Como se reconheceu na V Jornada de Direito Civil do Superior Tribunal de Justiça, evento de 2011, “As diversas hipóteses de exercício inadmissível de uma situação jurídica subjetiva, tais como supressio, tu quoque, surrectio e venire contra factum proprium, são concreções da boa-fé objetiva” (Enunciado 412).
A supressio (Verwirkung) significa a supressão, por renúncia tácita, de um direito ou de uma posição jurídica, pelo seu não exercício com o passar dos tempos. No âmbito das relações civis, o seu sentido pode ser notado pela leitura do art. 330 do CC, que adota o conceito, eis que “o pagamento reiteradamente feito em outro local faz presumir renúncia do credor relativamente ao previsto no contrato”. A título de ilustração, caso tenha sido previsto no instrumento obrigacional o benefício da obrigação portável (cujo pagamento deve ser efetuado no domicílio do credor), e tendo o devedor o costume de pagar no seu próprio domicílio de forma reiterada, sem qualquer manifestação do credor, a obrigação passará a ser considerada quesível (aquela cujo pagamento deve ocorrer no domicílio do devedor).
Ao mesmo tempo em que o credor perde um direito por essa supressão, surge um direito a favor do devedor, por meio da surrectio (Erwirkung), direito este que não existia juridicamente até então, mas que decorre da efetividade social, de acordo com os costumes. Em outras palavras, enquanto a supressio constitui a perda de um direito ou de uma posição jurídica pelo seu não exercício no tempo, a surrectio é o surgimento de um direito diante de práticas, usos e costumes. Ambos os conceitos podem ser retirados do citado art. 330 do CC/2002, constituindo duas faces da mesma moeda, como bem afirma José Fernando Simão.41
No âmbito do Direito do Consumidor, o Tribunal da Justiça da Bahia incidiu as duas construções para afastar o direito da seguradora de rescindir unilateralmente um contrato se seguro-saúde empresarial pelo fato de ter sido o segurado demitido: “Recurso. Plano de saúde empresarial. Demissão. Manutenção do plano. Exclusão do segurado. Prática abusiva. Ofensa às regras do Código de Defesa do Consumidor, da Lei 9.656/1998 e ao princípio da boa-fé objetiva. Surrectio e supressio. Sentença confirmada. Recurso improvido” (TJBA – Recurso 63252-0/2003-1 – Segunda Turma Recursal – Rel. Juiz Moacir Reis Fernandes Filho – DJBA 28.05.2009).
Do Tribunal do Paraná, em sentido próximo, a supressio foi aplicada para afastar o direito de negativa de cobertura por parte de empresa de plano de saúde, por não ter sido exercida tal prerrogativa em momento contratual posterior:
“Apelação cível. Ação cominatória de obrigação de fazer c/c indenização por danos morais. Plano de saúde. Negativa de cobertura de exame prescrito por médico. Existência de trato sucessivo: incidência do Código de Defesa do Consumidor, mas não da Lei 9.656/1998. Interpretação contratual eivada de abusividade. Violação aos arts. 47, 51, caput e IV e 54, §§ 3º e 4º, CDC. Valor arbitrado a título de honorários advocatícios em conformidade ao que prescreve o art. 21, § 4º, CPC. Sentença mantida. 1. As disposições da Lei 9.656/1998 só se aplicam aos contratos celebrados a partir de sua vigência, bem como para os contratos que, celebrados anteriormente, foram adaptados para seu regime. 2. A incidência do Código de Defesa do Consumidor ao presente caso veda que se interprete restritivamente o rol de procedimentos assegurados pelo plano de saúde. 3. A tais circunstâncias revela-se aplicável a figura jurídica da supressio – bem descrita nas palavras de Menezes Cordeiro: ‘A supressio caracteriza-se como a situação do direito que, não tendo sido, em certas circunstâncias, exercido durante um determinado lapso de tempo, não possa mais sê-lo, por outra forma, se contrariar a boa-fé’. Recurso conhecido e não provido” (TJPR – Apelação Cível 0567394-3, Curitiba – Nona Câmara Cível – Rel. Des. Rosana Amara Girardi Fachin – DJPR 17.07.2009, p. 344).
Por fim, do Tribunal do Rio Grande do Sul, cite-se instigante decisão que tem relação com o art. 48 do CDC, segundo a qual não tem a empresa de consórcio o direito de negar a emissão da certidão de propriedade de veículo, alegando a falta de pagamento de suposto valor residual, em desrespeito ao que foi previamente pactuado. Vejamos a ementa do julgado, com menção expressa aos dois conceitos aqui estudados:
“Consumidor. Consórcio de veículo. Equívoco na cobrança das parcelas mensais. Saldo a pagar no final do grupo. Inexigibilidade. Aplicação do princípio da boa-fé objetiva. Teorias da surrectio e supressio. Dever de concessão da liberação da alienação fiduciária pendente sobre o veículo. Danos materiais ocorrentes. Dano moral inocorrente. 1. Tendo o autor pago rigorosamente as parcelas do consórcio durante os 36 meses do grupo, não pode a administradora, ao final, negar-lhe a liberação da alienação fiduciária que recaía sobre o veículo adquirido com a carta de crédito. Isso porque, com os pagamentos realizados, criou-se ao autor a legítima expectativa de estar adquirindo parceladamente o veículo e quitando sua obrigação com o pagamento da última parcela. Ao mesmo tempo, em contrapartida, a inércia da ré fez desaparecer seu direito de cobrar o valor pago a menor. Aplicação do Princípio da Boa-fé Objetiva e das teorias da surrectio e supressio. 2. Comprovando o autor o gasto realizado com a notificação extrajudicial da ré, deve ser indenizado em tal monta. 3. Embora a conduta ilícita por parte da ré, tem-se que não experimentou o autor aborrecimento que extrapole os meros dissabores da vida em sociedade, não havendo falar em dano moral indenizável. Recurso parcialmente provido” (TJRS – Recurso Cível 71001586668, Três Passos – Primeira Turma Recursal Cível – Rel. Des. Ricardo Torres Hermann – j. 15.05.2008 – DOERS 20.05.2008, p. 100).
O termo tu quoque significa que um contratante que violou uma norma jurídica não poderá, sem a caracterização do abuso de direito por quebra da boa-fé, aproveitar-se dessa situação anteriormente criada pelo desrespeito. Conforme lembra Ronnie Preuss Duarte, “a locução designa a situação de abuso que se verifica quando um sujeito viola uma norma jurídica e, posteriormente, tenta tirar proveito da situação em benefício próprio”.42
Desse modo, está vedado que alguém faça contra o outro o que não faria contra si mesmo (regra de ouro), conforme ensina Cláudio Luiz Bueno de Godoy.43 Relata o professor da USP que “Pelo ‘tu quoque’, expressão cuja origem, como lembra Fernando Noronha, está no grito de dor de Júlio César, ao perceber que seu filho adotivo Bruto estava entre os que atentavam contra sua vida (‘Tu quoque, fili’? Ou ‘Tu quoque, Brute, fili mi’?), evita-se que uma pessoa que viole uma norma jurídica possa exercer direito dessa mesma norma inferido ou, especialmente, que possa recorrer, em defesa, a normas que ela própria violou. Trata-se da regra de tradição ética que, verdadeiramente, obsta que se faça com outrem o que não se quer seja feito consigo mesmo”.44
Incidindo a construção para o negócio jurídico de consumo, o Tribunal do Paraná já se pronunciou da seguinte forma, aplicando o preceito: “Responsabilidade civil. Relação de consumo. Compra de aparelho celular. Parcelamento do valor. Inadimplemento. Recusa de prestar assistência técnica. Indenização por danos materiais e morais indevida. 1. Pelo princípio tu quoque, decorrente da boa-fé, não se justifica a cobrança de adimplemento do contrato se a própria parte que pleiteia o descumpriu. 2. Não há razão em indenizar por danos materiais e morais o consumidor que deixa de pagar a maior parte das parcelas da compra de um produto. Apelação não provida” (TJPR – Apelação Cível 0722417-3, Bandeirantes – Décima Câmara Cível – Rel. Des. Nilson Mizuta – DJPR 01.03.2011, p. 307).
Como se pode notar da última ementa, a boa-fé objetiva exigida do fornecedor ou prestador também é premissa de conduta contra o consumidor.
A exceptio doli é conceituada como sendo a defesa do réu contra ações dolosas, contrárias à boa-fé. Aqui a boa-fé objetiva é utilizada como defesa, tendo uma importante função reativa, conforme leciona José Fernando Simão.45 A exceptio mais conhecida no Direito Civil brasileiro é aquela constante no art. 476 do Código Civil, a exceptio non adimpleti contractus, segundo a qual, nos contratos bilaterais, nenhuma das partes pode exigir que uma parte cumpra com a sua obrigação se primeiro não cumprir com a própria.46 Vale lembrar que os contratos bilaterais ou sinalagmáticos são aqueles que envolvem direitos e deveres para ambas as partes, de forma proporcional, sendo exemplo típico a compra e venda.
Não resta a menor dúvida de que a exceção de contrato não cumprido não só pode como deve ser aplicada em favor do consumidor, como nas hipóteses de compra e venda de consumo. Como primeiro caminho para tal afirmação, pode ser citada a incidência da boa-fé objetiva constante do art. 4º, inc. III, da Lei 8.078/1990. Como segundo caminho, a teoria do diálogo das fontes permite a conexão pelo art. 476 do CC/2002 em benefício do consumidor. Não tem sido diferente a conclusão da jurisprudência nacional, nas hipóteses em que o produto ou o serviço não estão a contento ou de acordo com o esperado, especialmente nas hipóteses de vício (por todos: TJES – Apelação Cível 35060210016 – Primeira Câmara Cível – Rel. Des. Arnaldo Santos Souza – j. 06.07.2010 – DJES 03.09.2010, p. 72; TJSC – Apelação Cível 2003.011376-2, Joinville – Segunda Câmara de Direito Comercial – Rel. Des. Jorge Luiz de Borba – DJSC 03.09.2009, p. 328; e TJSP – Apelação com Revisão 207.759.4/7 – Acórdão 4134137, Barueri – Nona Câmara de Direito Privado – Rel. Des. Viviani Nicolau – j. 13.10.2009 – DJESP 12.11.2009).
Anote-se, por fim, que a máxima da exceptio tem o condão de afastar o direito de eventual inclusão do nome de consumidores em cadastro de inadimplentes, podendo ainda configurá-la como indevida ou abusiva, a gerar o direito à reparação de danos a favor do consumidor (TJDF – Recurso 2009.01.1.116487-2 – Acórdão 481.366 – Segunda Turma Recursal dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais do DF – Rel. Juiz Asiel Henrique – DJDFTE 22.02.2011, p. 277; TJSP – Apelação 992.07.044110-2 – Acórdão 4805183, São Carlos – Trigésima Câmara de Direito Privado – Rel. Des. Carlos Russo – j. 10.11.2010 – DJESP 09.12.2010; e TJMG – Apelação Cível 1.0024.07.485048-8/0011, Belo Horizonte – Décima Oitava Câmara Cível – Rel. Des. Elpídio Donizetti – j. 17.06.2008 – DJEMG 28.06.2008).
Como outrora exposto, pela máxima venire contra factum proprium non potest, determinada pessoa não pode exercer um direito próprio contrariando um comportamento anterior, devendo ser mantida a confiança e o dever de lealdade, decorrentes da boa-fé objetiva. O conceito mantém relação com a teoria dos atos próprios, muito bem explorada no Direito Espanhol por Luís Díez-Picazo.47
Para Anderson Schreiber, que desenvolveu excelente trabalho monográfico sobre o tema no Brasil, podem ser apontados quatro pressupostos para aplicação da proibição do comportamento contraditório: 1º) um fato próprio, uma conduta inicial; 2º) a legítima confiança de outrem na conservação do sentido objetivo dessa conduta; 3º) um comportamento contraditório a este sentido objetivo; 4º) um dano ou um potencial de dano decorrente da contradição.48 A relação com o respeito à confiança depositada, um dos deveres anexos à boa-fé objetiva, é muito clara, conforme consta do Enunciado n. 362 da IV Jornada de Direito Civil: “A vedação do comportamento contraditório (venire contra factum proprium) funda-se na proteção da confiança, como se extrai dos arts. 187 e 422 do Código Civil”. A premissa é a mesma para os contratos de consumo, sem qualquer distinção, podendo tal conclusão ser retirada, entre outros, do sempre invocado art. 4º, inc. III, do CDC.
Ilustrando para os contratos de consumo, destaque-se julgado do Tribunal Paulista que fez incidir o venire contra uma empresa administradora de cartão de crédito que mantinha a prática de aceitar o pagamento dos valores atrasados. No caso, a empresa, repentinamente, alegou a rescisão contratual, com base em cláusula contratual que previa a extinção do contrato havendo inadimplemento. A Corte mitigou a força obrigatória dessa cláusula, ao apontar que a extinção do negócio jurídico e a cobrança integral não seriam possíveis, diante dos comportamentos de recebimento parcial do crédito. O consumidor foi indenizado pela negativação de seu nome em cadastro pela cobrança do valor integral:
“Dano moral. Responsabilidade civil. Negativação no Serasa e constrangimento pela recusa do cartão de crédito, cancelado pela ré. Caracterização. Boa-fé objetiva. Venire contra factum proprium. Administradora que aceitava pagamento das faturas com atraso. Cobrança dos encargos da mora. Ocorrência. Repentinamente invoca cláusula contratual para considerar o contrato rescindido, a conta encerrada e o débito vencido antecipadamente. Simultaneamente providencia a inclusão do nome do titular no Serasa. Inadmissibilidade. Inversão do comportamento anteriormente adotado e exercício abusivo da posição jurídica. Recurso improvido” (TJSP – Apelação Cível 174.305-4/2-00, São Paulo – Terceira Câmara de Direito Privado-A – Rel. Enéas Costa Garcia – j. 16.12.2005, v.u., voto 309).
Em julgado mais recente, por aplicar o venire contra factum proprium, o Tribunal Paulista afastou a extinção do contrato de seguro de forma automática, pois a seguradora vinha aceitando os pagamentos e emitindo faturas, mesmo com a presença da mora do segurado:
“Seguro de vida e acidentes pessoais. Ação de cobrança. Atraso no pagamento de parcelas mensais do prêmio. Cancelamento automático do contrato de seguro. Inadmissibilidade. Se a lei prevê a purga da mora, é porque afastada está a hipótese de resolução automática da avença. Diante do Código de Defesa do Consumidor, é reputada nula a cláusula que autoriza o fornecedor (seguradora) a resolver unilateralmente o contrato. Não pode o segurador cobrar os prêmios em atraso e, ao mesmo tempo, em caso de sinistro, furtar-se ao pagamento do capital de cobertura. Conduta contraditória e incompatível com a boa-fé (venire contra factum proprium). A jurisprudência do E. STJ prevê a necessidade de interpelação do segurado moroso para o desfazimento do contrato, o que não ocorreu. Ademais, a mora do segurado é de escassa importância, pois iniciada a partir do momento em que foi internado em nosocômio para tratar da doença letal. Recurso provido” (TJSP – Apelação 9147968-66.2009.8.26.0000 – Acórdão 4912959, São Paulo – Vigésima Quinta Câmara de Direito Privado – Rel. Des. Antônio Benedito Ribeiro Pinto – j. 20.01.2011 – DJESP 16.02.2011).
O venire tem sido aplicado em sentido muito próximo por outras Cortes Estaduais, podendo ser transcrito o seguinte resumo de acórdão do Tribunal Mineiro, relativo a contrato de plano de saúde:
“Ação ordinária. Rescisão por atraso no pagamento de ‘contrato de seguro-saúde’ firmado em momento posterior ao advento da Lei 9.656/1998. Requisitos. Notificação pessoal do consumidor. Inadimplência superior a 60 (sessenta) dias. Preenchimento. Ausência. Por força do art. 13, parágrafo único, II, da Lei 9.656/1998, a suspensão ou rescisão unilateral do contrato de seguro saúde por motivo de inadimplência nos últimos 12 (doze) meses de vigência do contrato, durante mais de 60 (sessenta) dias, pressupõe a notificação pessoal do consumidor. O cancelamento do plano de saúde promovido pela demandada está em nítido descompasso com a sua conduta anterior e caracteriza violação à doutrina dos atos próprios, venire contra factum proprium, mormente se considerarmos que a operadora de saúde aceitou receber, ainda que extemporaneamente, as mensalidades que justificariam o cancelamento da avença. Como a demandada descumpriu a norma contida no parágrafo único, II, da Lei 9.656/1998, deixando de enviar notificação pessoal válida aos consumidores, a fim de evitar a rescisão do contrato de seguro saúde por meio do pagamento das mensalidades em atraso, mostra-se correta a sentença que julgou procedente o pedido inicial, determinando o restabelecimento do contrato ilicitamente cancelado” (TJMG – Apelação Cível 0741246-16.2006.8.13.0024, Belo Horizonte – Décima Sétima Câmara Cível – Rel. Des. Lucas Pereira – j. 18.03.2010 – DJEMG 01.06.2010).
A encerrar as concreções do venire contra factum proprium, julgado do Tribunal do Rio Grande do Sul aplicou a máxima contra fabricante e comerciantes de aparelhos de ar condicionado, que indicaram terceiro a prestar serviço de reparo de um produto, não podendo quedar-se de responder pelo vício do produto já conhecido:
“Consumidor. Aparelho de ar condicionado split. Vício do produto. Encaminhamento à assistência técnica. Pedido de devolução do preço e de indenização. Dano moral configurado excepcionalmente. Valor da indenização mantido. Inexistência de complexidade do feito. Legitimidade passiva das rés. 1. Absolutamente desnecessária a realização de perícia, mormente quando a assistência técnica autorizada poderia ter esclarecido o defeito apresentado pelo aparelho. 2. Respondem solidariamente a fabricante e a comerciante. 3. Trata-se de relação típica de consumo, portanto aplicáveis as disposições do art. 18 e § 1º do Código de Defesa do Consumidor. Não sanado o vício no prazo de 30 dias, abre-se ao consumidor a possibilidade de postular a restituição da quantia paga ou a substituição do produto defeituoso. 2. Incontroverso o encaminhamento do produto à assistência técnica, sem a resolução do problema até o ajuizamento da demanda, configurado está o direito da autora em ver resolvido o contrato e devolvido o preço pago, acrescido de perdas e danos. 3. Ao contrário do sustentado pelas rés, não se pode atribuir à consumidora o fato de o aparelho ter sido colocado e retirado por empresa que não se constituía em uma assistência técnica autorizada. Consoante se vê da troca de e-mails de fls. 26, a ‘empresa de referência’ foi indicada pelas próprias rés para a realização do trabalho, não podendo agora ser invocado tal fato como causa ensejadora da perda da garantia. Decorre do princípio da boa-fé objetiva o dever anexo de transparência a repelir o non venire contra factum proprium 3. Configura-se, de forma excepcional, o dano moral em razão do descaso das rés em relação à autora. 4. Impossível reduzir o valor da indenização estabelecido na sentença (R$ 3.500,00), pois adequado ao caso concreto e aos critérios de proporcionalidade e razoabilidade. Sentença mantida por seus próprios fundamentos. Recursos improvidos” (TJRS – Recurso Cível 71002812733, Porto Alegre – Primeira Turma Recursal Cível – Rel. Des. Ricardo Torres Hermann – j. 28.10.2010 – DJERS 05.11.2010).
Em relação a esse último conceito parcelar, deve ficar claro que não é ele retirado da obra de Menezes Cordeiro, mas de outra fonte do Direito Privado Contemporâneo. Trata-se do dever imposto ao credor de mitigar suas perdas, ou seja, o próprio prejuízo. Sobre essa premissa foi aprovado o Enunciado n. 169 do CJF/STJ na III Jornada de Direito Civil, pelo qual “O princípio da boa-fé objetiva deve levar o credor a evitar o agravamento do próprio prejuízo”.
A proposta doutrinária, elaborada por Vera Maria Jacob de Fradera, professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, representa muito bem a natureza do dever de colaboração, presente em todas as fases contratuais e que decorre do princípio da boa-fé objetiva, incidente para qualquer contrato.49 Anote-se que o Enunciado n. 169 CJF/STJ está inspirado no art. 77 da Convenção de Viena de 1980, sobre a venda internacional de mercadorias, no sentido de que “A parte que invoca a quebra do contrato deve tomar as medidas razoáveis, levando em consideração as circunstâncias, para limitar a perda, nela compreendido o prejuízo resultante da quebra. Se ela negligencia em tomar tais medidas, a parte faltosa pode pedir a redução das perdas e danos, em proporção igual ao montante da perda que poderia ter sido diminuída”. Para a autora da proposta, há uma relação direta com o princípio da boa-fé objetiva, uma vez que a mitigação do próprio prejuízo constituiria um dever de natureza acessória, um dever anexo, derivado da boa conduta que deve existir entre os negociantes.
A título de exemplo para os contratos de consumo, imagine-se um contrato bancário ou financeiro em que há descumprimento por parte do consumidor. Segundo a interpretação deste autor, já aplicada pela jurisprudência, não pode a instituição financeira permanecer inerte, aguardando que, diante da alta taxa de juros prevista no instrumento contratual, a dívida atinja montantes astronômicos. Se assim agir, como consequência da violação da boa-fé, os juros devem ser reduzidos. Vejamos a ementa de julgado do Mato Grosso do Sul que subsume tais premissas:
“Apelação cível. Ação de cobrança. Aplicação do princípio duty to mitigate the loss. Contrato de cartão de crédito. Contrato de adesão. Aplicabilidade do CDC. Revisão das cláusulas abusivas. Possibilidade. Juros remuneratórios. Cópia do contrato. Ausência. Aplicação do art. 333 do CPC. Manutenção da limitação dos juros em 12% ao ano. Comissão de permanência. Impossibilidade de averiguação da sua cobrança cumulada com outros encargos. Inexistência de cópia do contrato. Manutenção da sentença que afastou a possibilidade de cobrança de capitalização mensal de juros. Prática ilegal. Anatocismo. Súmula 121 do STF. Usura. Multa. 2%. Falta de interesse recursal. Recurso parcialmente conhecido e improvido. Se a instituição financeira permanece inerte por longo período, aguardando que a dívida atinja montantes astronômicos, impõe-se-lhe a aplicação do princípio denominado duty to mitigate the loss, que impõe, nestes casos, por penalidade, a redução do crédito do mutuário deveria, nos termos do princípio da boa-fé objetiva, evitar o agravamento do próprio prejuízo. Nos termos da Súmula 297 do STJ e precedentes do Supremo Tribunal Federal, o Código de Defesa do Consumidor é aplicável às instituições financeiras. O contrato de cartão de crédito é considerado de adesão, eis que resulta da padronização e uniformização das cláusulas contratuais realizadas pela instituição financeira, as quais o consumidor é obrigado a aceitá-las em bloco, em seu prejuízo. Na esteira do entendimento atual do Superior Tribunal de Justiça, levando-se em consideração a situação jurídica específica do contrato, é de se admitir a revisão das cláusulas consideradas abusivas pelo Código de Defesa do Consumidor. Se os juros remuneratórios contratados excedem a taxa média de mercado, fixada pelo Banco Central do Brasil, fica autorizada a revisão contratual, eis que caracterizada a abusividade, devendo os juros serem reduzidos ao valor da taxa média de mercado. Outrossim, quando a instituição financeira não comprova os fatos extintivos, modificativos ou impeditivos do direito do autor, demonstrando que a taxa de juros por ele cobrada não é extorsiva, mantém-se a fixação dos juros em 12%, nos termos da sentença. Mantém-se a sentença recorrida que afastou a possibilidade de cobrança da comissão de permanência se não houver nos autos cópia do contrato, permitindo aferir se a sua cobrança foi cumulada com outros encargos. A capitalização mensal de juros, denominada anatocismo, é prática vedada pelo nosso ordenamento jurídico, a exemplo do que ocorre com o art. 13 do Decreto 22.626/1933, tanto que o STF editou a Súmula 121, que estabelece ser vedada a capitalização de juros. Se a sentença apenas afasta a possibilidade de cobrança da multa em percentual superior a 2%, nos termos contratados, carece o autor de interesse recursal” (TJMS – Apelação Cível 2009.022658-4/0000-00, Campo Grande – Terceira Turma Cível – Rel. Des. Rubens Bergonzi Bossay – DJEMS 24.09.2009, p. 12).
Exatamente na mesma linha, destaque-se decisão recente do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, que substituiu os vultosos juros contratuais pelos juros legais, incidindo o duty to mitigate the loss (TJRJ – Apelação Cível 0010623-64.2009.8.19.0209 – 9.ª Câmara Cível – Rel. Des. Roberto de Abreu e Silva, j. 2011).
Com esse importante e instigante conceito parcelar, encerra-se o estudo das incidências concretas da boa-fé objetiva para os contratos de consumo. Parte-se então à abordagem do direito de arrependimento, tratado pelo art. 49 da Lei 8.078/1990.
Tema dos mais relevantes na ótica consumerista é o relativo ao direito de arrependimento nos contratos de consumo, tratado pelo art. 49 da Lei 8.078/1990. Em sua redação literal, enuncia o caput do comando que “O consumidor pode desistir do contrato, no prazo de 7 dias a contar de sua assinatura ou do ato de recebimento do produto ou serviço, sempre que a contratação de fornecimento de produtos e serviços ocorrer fora do estabelecimento comercial, especialmente por telefone ou a domicílio”. Ato contínuo, o parágrafo único da norma preceitua que, se o consumidor exercitar tal direito, os valores eventualmente pagos, a qualquer título, durante o prazo de reflexão, serão devolvidos de imediato, monetariamente atualizados, o que visa a afastar o enriquecimento sem causa ou indevido.
Tal direito de arrependimento, relativo ao prazo de reflexão de sete dias, constitui um direito potestativo colocado à disposição do consumidor, contrapondo-se a um estado de sujeição existente contra o fornecedor ou prestador. Como se trata do exercício de um direito legítimo, não há a necessidade de qualquer justificativa, não surgindo da sua atuação regular qualquer direito de indenização por perdas e danos a favor da outra parte. Como decorrência lógica de tais constatações, não se pode falar também em incidência de multa pelo exercício, o que contraria a própria concepção do sistema de proteção ao consumidor.
A propósito da existência de um direito potestativo do consumidor, o Superior Tribunal de Justiça, em notável julgamento do ano de 2013, deduziu que “o Procon pode aplicar multa a fornecedor em razão do repasse aos consumidores, efetivado com base em cláusula contratual, do ônus de arcar com as despesas postais decorrentes do exercício do direito de arrependimento previsto no art. 49 do CDC. De acordo com o caput do referido dispositivo legal, o consumidor pode desistir do contrato, no prazo de sete dias a contar de sua assinatura ou do ato de recebimento do produto ou serviço, sempre que a contratação de fornecimento de produtos e serviços ocorrer fora do estabelecimento comercial, especialmente por telefone ou a domicílio. O parágrafo único do art. 49 do CDC, por sua vez, especifica que o consumidor, ao exercer o referido direito de arrependimento, terá de volta, imediatamente e monetariamente atualizados, todos os valores eventualmente pagos, a qualquer título, durante o prazo de reflexão – período de sete dias contido no caput do art. 49 do CDC –, entendendo-se incluídos nestes valores todas as despesas decorrentes da utilização do serviço postal para a devolução do produto, quantia esta que não pode ser repassada ao consumidor. Aceitar o contrário significaria criar limitação ao direito de arrependimento legalmente não prevista, de modo a desestimular o comércio fora do estabelecimento, tão comum nos dias atuais. Deve-se considerar, ademais, o fato de que eventuais prejuízos enfrentados pelo fornecedor nesse tipo de contratação são inerentes à modalidade de venda agressiva fora do estabelecimento comercial (pela internet, por telefone ou a domicílio)” (STJ, REsp 1.340.604/RJ – Rel. Min. Mauro Campbell Marques – j. 15.08.2013, publicado no seu Informativo n. 528).
Como bem pontuam Claudia Lima Marques, Herman Benjamin e Bruno Miragem, tal direito existe para proteger a declaração de vontade do consumidor, possibilitando que ele reflita com calma nas agressivas situações de vendas a domicílio.50 De acordo com os juristas, há um notável avanço confrontando-se a previsão com o sistema civil, que não consagra qualquer regra geral de arrependimento para os contratos regidos unicamente pelo CC/2002. Deve ficar claro que não se trata de venda a contento ou ad gustum, tratada pelos arts. 509 a 512 do CC, pois nesse caso há necessidade do comprador motivar as razões da sua não aprovação. No tipo do art. 49 do CDC, dispensa-se qualquer motivação para o exercício do arrependimento dentro do prazo de reflexão.
De qualquer maneira, apesar de sua indiscutível importância social, o dispositivo em análise é alvo de importantes alterações estruturais por meio do Projeto de Lei 281/2012. A primeira delas diz respeito à ampliação do prazo para quatorze dias, assim como ocorre nos Países que compõem a Comunidade Europeia. Nessa linha, o caput do comando passaria a ser assim redigido: “O consumidor pode desistir da contratação a distância, no prazo de quatorze dias, a contar da aceitação da oferta ou do recebimento ou disponibilidade do produto ou serviço, o que ocorrer por último”.
Feita tal consideração, insta verificar os limites de aplicação do comando na atualidade, bem como outras projeções visadas pelo PL 281/2012. Pela literalidade vigente, a sua incidência se restringe às vendas realizadas fora do estabelecimento empresarial, citando a norma as vendas por telefone ou a domicílio (chamada a última de venda porta-a-porta). De toda maneira, quando a lei foi elaborada, ainda não existia a atual evolução a respeito das vendas pela internet ou outros meios de comunicação semelhantes ou próximos, devendo o referido dispositivo ser estendido para tais hipóteses, conforme reconhece a melhor doutrina. Nessa linha, posicionam-se, por todos, Nelson Nery Jr. e Rosa Maria de Andrade Nery, afirmando que “O CDC enumerou, de maneira exemplificativa, as formas de contratação fora do estabelecimento comercial: por telefone e a domicílio. O caráter de numerus apertus desse elenco é dado pelo advérbio ‘especialmente’ constante da norma. Assim, as contratações por telefone, fax, videotexto, mala direta, reembolso postal, catálogo, prospectos, lista de preços, a domicílio, via Internet etc.”.51 No que concerne às vendas pela internet, não tem sido diferente a conclusão da jurisprudência nacional, colacionando-se as seguintes ementas, somente a título ilustrativo:
“Compra e venda pela ‘internet’. Desistência manifestada no prazo do art. 49 do CDC. Cabimento da restituição do valor debitado pela operadora de cartão de crédito. Descabimento, porém, de indenização pelo dano moral atribuído a desgastes e dissabores, já que pessoa jurídica não sofre tal sorte de repercussão psíquica, assim como de aluguéis pela sala na qual os bens ficaram guardados até retirada pelo vendedor. Apelação parcialmente provida” (TJSP – Apelação 0117190-97.2008.8.26.0100 – Acórdão 4926888, São Paulo – Trigésima Sexta Câmara de Direito Privado – Rel. Des. Arantes Theodoro – j. 03.02.2011 – DJESP 18.02.2011).
“Reparação de danos. Consumidor. Compra e venda de aparelho celular efetuada pela internet. Direito de arrependimento exercido conforme art. 49 do CDC. Transtornos para confirmar o distrato. Má comunicação entre a loja e a operadora do cartão de crédito. Cobrança das parcelas na fatura. Direito à restituição, em dobro, dos valores pagos. Inexistência de danos morais. Recurso parcialmente provido” (TJRS – Recurso Cível 71002280618, Soledade – Segunda Turma Recursal Cível – Rel. Des. Vivian Cristina Angonese Spengler – j. 21.10.2009 – DJERS 29.10.2009, p. 159).
Destaque-se, mais uma vez, que o PL 281/2012 pretende incluir expressamente menção aos contratos celebrados por meio eletrônico, não pairando qualquer dúvida a respeito da questão. De acordo com a proposição, o art. 49 ganharia mais um parágrafo, estabelecendo que “por contratação a distância entende-se aquela efetivada fora do estabelecimento, ou sem a presença física simultânea do consumidor e fornecedor, especialmente em domicílio, por telefone, reembolso postal, por meio eletrônico ou similar”.
Nessa linha, há um debate atual interessante no Brasil, a respeito da subsunção do art. 49 da Lei 8.078/1990 para as compras de passagens aéreas pela internet ou outro meio de comunicação à distância. Algumas decisões afastam a incidência da norma, uma vez que o consumidor tem consciência do que está adquirindo, o que foge do fim social do artigo consumerista, de sua mens legis (por todas: TJDF – Recurso 2010.01.1.014473-2 – Acórdão 492.650 – Segunda Turma Recursal dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais do DF – Rel. Juiz José Guilherme de Souza – DJDFTE 05.04.2011, p. 244).
Porém, outras tantas ementas aplicam com justiça o art. 49 do CDC para as compras de passagens aéreas pela internet ou telefone, pois o fim social da norma é justamente de abranger a hipótese de compra e venda contemporânea (nessa linha: TJDF – Recurso 2008.01.1.125046-8 – Acórdão 398.269 – Primeira Turma Recursal dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais – Rel. Juíza Wilde Maria Silva Justiniano Ribeiro – DJDFTE 13.01.2010, p. 151; TJBA – Recurso 124461-2/2007-1 – Terceira Turma Recursal – Rel. Juiz José Cícero Landin Neto – j. 28.05.2008 – DJBA 05.06.2008; e TJRS – Recurso inominado 71000597799, Caxias do Sul – Primeira Turma Recursal Cível – Rel. Des. João Pedro Cavalli Júnior – j. 18.11.2004). De fato, não se pode buscar o fim social da lei em prejuízo do consumidor, o que viola a própria concepção da Lei 8.078/1990 como norma protecionista e com fundamento constitucional. Pelo último caminho, são ilegais e abusivas as multas cobradas pelas empresas aéreas dentro do prazo de arrependimento, contado, nessa hipótese, da celebração do contrato. Ato contínuo, merece aplicação integral o parágrafo único do art. 49 do CDC, com a devolução integral do que foi pago pelo consumidor, valor que deve ser atualizado integralmente.
Em boa hora, para afastar qualquer dúvida a respeito da matéria, mais uma vez o PL 281/2012 tende a incluir preceito específico sobre as compras de passagens áreas, com a seguinte dicção: “Sem prejuízo do direito de rescisão do contrato de transporte aéreo antes de iniciada a viagem (art. 740, § 3º do Código Civil), o exercício do direito de arrependimento do consumidor de passagens aéreas poderá ter seu prazo diferenciado, em virtude das peculiaridades do contrato, por norma fundamentada das agências reguladoras” (art. 49-A).
Ainda no que concerne à abrangência atual da norma, ela não tem subsunção para as situações de venda realizada no estabelecimento empresarial, com presença física e corpórea do consumidor, o que é aclamado amplamente na prática. Nessa linha, “O arrependimento de que trata o art. 49 do CDC somente é possível nos casos ali elencados, ou seja, somente se a compra se deu por telefone ou internet. No caso aqui posto a venda se deu diretamente na loja da operadora, não incidindo a regra do art. 49, caput do CDC. Pedido de cancelamento de linha que não veio comprovado nos autos. Preliminar rejeitada, apelação improvida” (TJRS – Apelação Cível 70029597242, Teutônia – Décima Nona Câmara Cível – Rel. Des. Guinther Spode – j. 21.07.2009 – DOERS 28.07.2009, p. 69). Em reforço, colaciona-se: “Autora que adquiriu os bens de livre e espontânea vontade no estabelecimento comercial da ré. Posterior arrependimento. Impossibilidade. Relação de consumo que não se sujeita ao art. 49 do Código de Defesa do Consumidor. Solicitação de cancelamento dos negócios não demonstrada suficientemente. Anotação de inadimplência. Ilicitude. Inexistência. Dano moral não patenteado. Apelo desprovido” (TJSP – Apelação 992.08.002923-9 – Acórdão 4727236, Osasco – Trigésima Câmara de Direito Privado – Rel. Des. Marcos Ramos – j. 22.09.2010 – DJESP 25.10.2010).
Mais uma vez, cabe fazer pontuação a respeito do PL 281/2012, pois há proposta de inclusão de dispositivo relativo às vendas realizadas no estabelecimento empresarial, mas sem que o consumidor tenha contato imediato com o que está sendo adquirido. Nesse contexto, pretende-se a inclusão de norma preceituando que se equipara à modalidade de contratação à distância “aquela em que, embora realizada no estabelecimento, o consumidor não teve a prévia oportunidade de conhecer o produto ou serviço, por não se encontrar em exposição ou pela impossibilidade ou dificuldade de acesso a seu conteúdo”. Cite-se a compra realizada em estabelecimentos por meio de computadores que estão dentro da loja.
Pois bem, na atual realidade legislativa, efetivamente, nas situações em que o produto ou o serviço é adquirido no estabelecimento, não há o direito de arrependimento. Todavia, na prática, há um costume saudável de as empresas trocarem produtos, em especial quando o consumidor diz não estar satisfeito com eles; ou ainda porque o bem de consumo não lhe serviu. Os fornecedores assim o fazem para não perderem a clientela, mantendo um bom relacionamento com a coletividade consumerista. A par da existência desse costume reiterado, pode-se construir uma tese, a partir da boa-fé objetiva, no sentido de que já há um direito de troca a favor do consumidor (surrectio), afastando a impossibilidade de troca pela outra parte (supressio). Deve ficar bem claro que se trata de uma tese, que ainda deve ser devidamente desenvolvida no âmbito do Direito Privado Brasileiro. Ressalve-se que, em todos os casos, há obrigatoriedade de troca de produtos quando presentes vícios no produto ou do serviço, na esteira do exposto no capítulo anterior desta obra.
De qualquer modo, filia-se aos julgados que subsumem o art. 49 do CDC para as vendas realizadas no estabelecimento em que são utilizados meios agressivos de marketing para trazer o consumidor de fora para dentro do estabelecimento. Nessa linha, com interessantes conclusões, vejamos ementa do Tribunal de Justiça de São Paulo:
“Negócio jurídico – Contrato – Direito de arrependimento – Incidência do Código de Defesa do Consumidor – Hipótese em que o contrato foi firmado dentro do estabelecimento comercial – Art. 49 do CDC que não deve ser interpretado restritivamente – Método agressivo de ‘marketing’ que permite o direito de arrependimento – Caso em que a consumidora foi premiada após participação de jogo, ganhando direito a conhecer hotel, onde foi convencida a contratar, em duna emocional – Vontade maculada pelo entusiasmo temporário, causado pelo estímulo repentino e de ansiedade de contratação, derivado do método de apresentação do produto ou serviço – Direito de arrependimento que deve ser garantido em homenagem à boa-fé contratual, evitando-se que a venda emocional possa legitimar contratações maculadas pela ausência de transparência e respeito aos interesses do contratante mais fraco – Recurso não provido” (TJSP – Apelação com Revisão 9134379-17.2003.8.26.0000 – Rel. Melo Colombi –14ª Câmara de Direito Privado – j. 09.05.2007 – Data de registro: 25.05.2007).
Em reforço, da mesma Corte Estadual: “Na verdade, procura-se proteger o consumidor de uma manifestação de vontade maculada pelo entusiasmo temporário, produzido pelo estimulo repentino, pelo efeito de surpresa e de ansiedade de contratação, causados pelo método de apresentação do produto. Nessa esteira, a contração em que se convida o consumidor a ingressar no estabelecimento comercial por meio de chamarizes como festas, coquetéis, sorteios, jogos em geral, num clima ‘emocional’ de consumo, como diria Cláudia Lima Marques, deve receber proteção do Código consumerista” (TJSP –Agravo de Instrumento 0000882-84.2008.8.26.0000 – Rel. Felipe Ferreira – Comarca: Barretos – 26ª Câmara de Direito Privado – j. 28.01.2008 – Data de registro: 07.02.2008). Constata-se que tais situações fugiram da abrangência do PL 281/2012. Quem sabe não seria o caso de incluí-las no CDC, na esteira dos acórdãos e doutrinas citados.
Para findar o presente tópico, deve ficar claro que a boa-fé objetiva deve estar presente para o exercício desse direito de arrependimento por parte do consumidor. Justamente para se evitar abusos é que o prazo de reflexão é exíguo, de apenas sete dias, conforme lecionam Nelson Nery Jr. e Rosa Maria de Andrade Nery.52
Em outras palavras, não pode o consumidor agir no exercício deste direito em abuso, desrespeitando a boa-fé e a função social do negócio, servindo como parâmetro o art. 187 do CC/2002, mais uma vez em diálogo das fontes. Imagine-se, por exemplo, a hipótese de alguém que utiliza um serviço prestado pela internet e sempre se arrepende, de forma continuada, para nunca pagar pelo consumo. Por óbvio que a norma está sendo aplicada em desrespeito ao seu escopo principal, não podendo a conduta do consumidor ser premiada. Ainda ilustrando, não pode o consumidor “voltar atrás” em relação às informações prestadas pela internet, caindo em contradição, aplicando-se a máxima que veda o comportamento contraditório (venire contra factum proprium non potest). Nesse sentido, da jurisprudência gaúcha:
“Consumidor. Contrato. Rastreamento veicular. Cientificação de cláusula de multa para rescisão antecipada. Pedido contraposto. Limitação de reembolso de despesas. I. Não prospera a pretensão à desobrigação de cláusula contratual da qual a consumidora, em que pese tenha contratado o serviço por telefone, foi efetivamente cientificada, não só ao receber uma via do contrato pelo correio e não exercer o direito de arrependimento no prazo do art. 49 do CDC, mas também ao aceitar expressamente as condições gerais do contrato através da internet. II. Acolhimento da pretensão recursal atinente à limitação das despesas reembolsáveis à parte contrária. Recurso provido em parte. Unânime” (TJRS – Recurso Cível 71001678457, Porto Alegre – Primeira Turma Recursal Cível – Rel. Des. João Pedro Cavalli Júnior – j. 17.07.2008 – DOERS 22.07.2008, p. 102).
Encerrada a abordagem do direito de arrependimento a favor do consumidor, parte-se ao estudo da garantia contratual consagrada pelo art. 50 da Lei 8.078/1990.
A garantia contratual constitui modalidade de decadência convencional, sendo o prazo concedido geralmente pelo vendedor para ampliar o direito potestativo dado pela lei ao comprador de determinado bem de consumo. A título de ilustração, cite-se a comum garantia estendida, fornecida quando da venda de eletrodomésticos ou da prestação de serviços cotidianos.
A categoria está tratada pelo art. 50 da Lei 8.078/1990, consagrando o seu caput o caráter complementar da garantia contratual em relação à garantia legal. Como bem pontuam Nelson Nery Jr. e Rosa Maria de Andrade Nery, é inadmissível substituir a garantia legal pela contratual, pois a primeira é obrigatória e inderrogável, enquanto a última é meramente complementar.53 Não se olvide que os prazos de garantia legal são aqueles previstos no art. 26 do CDC, ou seja, trinta dias para os bens não duráveis e noventa dias para os bens duráveis.
O caráter de complementaridade da garantia contratual em relação à legal é muito bem explorado por Rizzatto Nunes, que apresenta a sua correta interpretação, no sentido de que “complementar significa que se soma o prazo de garantia ao prazo contratual”.54 Apresenta então o magistrado mais um didático exemplo, que auxilia em muito na compreensão da categoria consumerista:
“Portanto, não se deve confundir prazo de reclamação com garantia legal de adequação.
Se o fornecedor dá prazo de garantia contratual (até a Copa de 2002, um, dois anos etc.), dentro do tempo garantido até o fim (inclusive último dia), o produto não pode apresentar vício. Se apresentar, o consumidor tem o direito de reclamar, que se estende até 30 ou 90 dias após o término da garantia.
Se o fornecedor não dá prazo, então os 30 ou 90 dias correm do dia da aquisição ou término do serviço. Claro que sempre haverá, como vimos, a hipótese de vício oculto, que gera início do prazo para reclamar apenas quando ocorre”.55
Fica claro, portanto, a ideia de soma dos prazos (garantia contratual + garantia legal), conforme igualmente defendem Claudia Lima Marques, Herman Benjamin e Bruno Miragem.56 Insta anotar que julgado do Superior Tribunal de Justiça deu outra interpretação para a hipótese, entendendo não se tratar de soma dos prazos, mas de aplicação analógica e em complemento do art. 26 do CDC. Na verdade, a solução, ao final, foi exatamente a mesma. Vejamos a ementa, que reproduz um bom resumo a respeito dos problemas referentes às garantias no sistema consumerista:
“Consumidor. Responsabilidade pelo fato ou vício do produto. Distinção. Direito de reclamar. Prazos. Vício de adequação. Prazo decadencial. Defeito de segurança. Prazo prescricional. Garantia legal e prazo de reclamação. Distinção. Garantia contratual. Aplicação, por analogia, dos prazos de reclamação atinentes à garantia legal. No sistema do CDC, a responsabilidade pela qualidade biparte-se na exigência de adequação e segurança, segundo o que razoavelmente se pode esperar dos produtos e serviços. Nesse contexto, fixa, de um lado, a responsabilidade pelo fato do produto ou do serviço, que compreende os defeitos de segurança; e de outro, a responsabilidade por vício do produto ou do serviço, que abrange os vícios por inadequação. Observada a classificação utilizada pelo CDC, um produto ou serviço apresentará vício de adequação sempre que não corresponder à legítima expectativa do consumidor quanto à sua utilização ou fruição, ou seja, quando a desconformidade do produto ou do serviço comprometer a sua prestabilidade. Outrossim, um produto ou serviço apresentará defeito de segurança quando, além de não corresponder à expectativa do consumidor, sua utilização ou fruição for capaz de adicionar riscos à sua incolumidade ou de terceiros. O CDC apresenta duas regras distintas para regular o direito de reclamar, conforme se trate de vício de adequação ou defeito de segurança. Na primeira hipótese, os prazos para reclamação são decadenciais, nos termos do art. 26 do CDC, sendo de 30 (trinta) dias para produto ou serviço não durável e de 90 (noventa) dias para produto ou serviço durável. A pretensão à reparação pelos danos causados por fato do produto ou serviço vem regulada no art. 27 do CDC, prescrevendo em 5 (cinco) anos. A garantia legal é obrigatória, dela não podendo se esquivar o fornecedor. Paralelamente a ela, porém, pode o fornecedor oferecer uma garantia contratual, alargando o prazo ou o alcance da garantia legal. A lei não fixa expressamente um prazo de garantia legal. O que há é prazo para reclamar contra o descumprimento dessa garantia, o qual, em se tratando de vício de adequação, está previsto no art. 26 do CDC, sendo de 90 (noventa) ou 30 (trinta) dias, conforme seja produto ou serviço durável ou não. Diferentemente do que ocorre com a garantia legal contra vícios de adequação, cujos prazos de reclamação estão contidos no art. 26 do CDC, a lei não estabelece prazo de reclamação para a garantia contratual. Nessas condições, uma interpretação teleológica e sistemática do CDC permite integrar analogicamente a regra relativa à garantia contratual, estendendo-lhe os prazos de reclamação atinentes à garantia legal, ou seja, a partir do término da garantia contratual, o consumidor terá 30 (bens não duráveis) ou 90 (bens duráveis) dias para reclamar por vícios de adequação surgidos no decorrer do período desta garantia. Recurso especial conhecido e provido” (STJ – REsp 967.623/RJ – Terceira Turma – Rel. Min. Nancy Andrighi – j. 16.04.2009 – DJe 29.06.2009).
Destaque-se a existência de um outro julgado do STJ, publicado no seu Informativo 463, que parece dar a correta interpretação da soma dos prazos, conforme se depreende da seguinte publicação: “Prazo. Decadência. Reclamação. Vícios. Produto. A Turma reiterou a jurisprudência deste Superior Tribunal e entendeu que o termo a quo do prazo de decadência para as reclamações de vícios no produto (art. 26 do CDC), no caso, um veículo automotor, dá-se após a garantia contratual. Isso acontece em razão de que o adiamento do início do referido prazo, em tais casos, justifica-se pela possibilidade contratualmente estabelecida de que seja sanado o defeito apresentado durante a garantia. Precedente citado: REsp 1.021.261-RS, DJe 06.05.2010” (STJ – REsp 547.794-PR – Rel. Min. Maria Isabel Gallotti – j. 15.02.2011).
Questão de debate refere-se à possibilidade de se cobrar pela garantia contratual concedida, o que é usual na prática da garantia estendida. O que se entende de forma majoritária é que tal garantia contratual somente pode ser cobrada se efetivamente contratada, o que não pode ser presumido na espécie, sob pena de responsabilização civil do fornecedor. Nessa linha de dedução, vejamos duas recentes ementas de Tribunais Estaduais:
“Recurso inominado. Contrato de compra e venda de aparelho de ar condicionado. Garantia estendida não contratada. Cobrança indevida. Restituição em dobro. Inocorrência de danos morais. Procedência parcial dos pedidos. Sentença mantida por seus próprios fundamentos. Improvimento do recurso” (TJBA – Recurso 0001911-05.2009.805.0103-1 – Terceira Turma Recursal – Rel. Juiz Marcelo Silva Britto – DJBA 14.02.2011).
“Consumidor. Aquisição de televisão. Cobrança de taxa de garantia estendida. Não contratação. Preliminar de ilegitimidade passiva afastada. Cobrança indevida. Conduta abusiva. Direito à desconstituição do débito e à devolução dos valores pagos indevidamente. 1. Ilegitimidade passiva da recorrente afastada, vez que a cobrança indevida foi incluída nas cobranças efetuadas pela ré, logo, figura como fornecedor responsável perante o consumidor. Se não é a ré capaz de cancelar o serviço não solicitado deve abster-se de incluí-lo em suas faturas. 2. Ré não se desincumbiu do ônus que lhe competia de comprovar a contratação da garantia estendida pela parte autora. Aliás, prova de fácil produção para a ré, visto que detém grande aporte técnico. 3. Restituição em dobro dos valores indevidamente pagos, que se impõe, com base no art. 42, parágrafo único, do CDC. Negaram provimento ao recurso” (TJRS – Recurso Cível 71002673820, Porto Alegre – Primeira Turma Recursal Cível – Rel. Des. Heleno Tregnago Saraiva – j. 12.08.2010 – DJERS 19.08.2010).
O caput do art. 50 do CDC ainda prenuncia que a garantia contratual deve ser concebida por escrito pelo fornecedor de produtos ou prestador de serviços, o que é denominado como termo de garantia. A norma está em sintonia com o dever de informar próprio da boa-fé objetiva. Como bem pondera Ezequiel Morais, apesar da informalidade que rege os contratos civis ou de consumo (art. 107 do CC), a garantia contratual exige forma escrita, o que é reconhecido também em outras fontes do Direito Comparado, caso das normas italianas.57 A norma visa a dar maior segurança aos consumidores, para a tutela efetiva dos seus direitos.
Em complemento, estipula o parágrafo único do art. 50 que o termo de garantia ou equivalente deve ser padronizado e esclarecer, de maneira adequada, em que consiste a garantia, especialmente o seu lapso temporal. Além disso, deve indicar a forma e o lugar em que pode ser exercitada e os ônus a cargo do consumidor. Em suma, as informações constantes do termo devem ser completas e precisas, para o seu devido exercício por parte do vulnerável negocial.
O art. 50, parágrafo único, do CDC ainda preceitua que o termo de garantia deve ser efetivamente entregue e preenchido pelo fornecedor, no ato do fornecimento, acompanhado de manual de instruções, de instalação e uso do produto em linguagem didática, com ilustrações. O desrespeito a tais deveres inerentes à boa-fé objetiva pode gerar a responsabilização do fornecedor ou prestador, nas hipóteses de danos causados aos consumidores.
Para encerrar a análise do tema, cumpre trazer a lume mais um debate envolvendo os vícios redibitórios tratados pelo Código Civil, em diálogo das fontes. Enuncia o art. 446 do CC/2002 que “Não correrão os prazos do artigo antecedente na constância de cláusula de garantia; mas o adquirente deve denunciar o defeito ao alienante nos trinta dias seguintes ao seu descobrimento, sob pena de decadência”. O dispositivo sempre gerou dúvidas, desde a entrada em vigor do Código Civil. Esclareça-se que os “prazos do artigo antecedente” são os prazos decadenciais de trinta dias, cento e oito dias e um ano para a reclamação dos vícios redibitórios.
Em verdade, trata o comando legal de prazo de garantia convencional que independe do legal e vice-versa, exatamente como consta do CDC. O art. 50 da Lei 8.078/1990 serve perfeitamente para a interpretação do preceito privado, por meio de um diálogo de complementaridade. Assim, na vigência de prazo de garantia (decadência convencional), não correrão os prazos legais (decadência legal). Porém, diante do dever anexo de informação, inerente à boa-fé objetiva, o alienante deverá denunciar o vício no prazo de trinta dias contados do seu descobrimento, sob pena de decadência. A dúvida relativa ao dispositivo gira em torno da decadência mencionada ao seu final. Essa decadência se refere à perda da garantia convencional ou à perda do direito de ingressar com as ações edilícias?
Na opinião deste autor, a decadência referenciada no final do art. 446 do CC está ligada à perda do direito de garantia e não ao direito de ingressar com as ações edilícias fundadas em vícios redibitórios. Sendo assim, findo o prazo de garantia convencional, ou não exercendo o adquirente o direito no prazo de 30 dias fixado no art. 446 do CC, iniciam-se os prazos legais previstos no art. 445 do CC. Essa é a melhor interpretação, dentro da ideia de justiça, pois, caso contrário, seria pior aceitar um prazo de garantia convencional, uma vez que o prazo de exercício do direito é reduzido para trinta dias. Interpretando dessa forma, leciona Maria Helena Diniz que “com o término do prazo de garantia ou não denunciando o adquirente o vício dentro do prazo de trinta dias, os prazos legais do art. 445 iniciar-se-ão”.58 Anote-se, para encerrar a seção, que essa solução de complementaridade dos prazos no sistema civil já é aplicada pela melhor jurisprudência nacional (TJRS – Recurso 34989-90.2010.8.21.9000, Três de Maio – Segunda Turma Recursal Cível – Rel. Des. Fernanda Carravetta Vilande – j. 13.04.2011 – DJERS 19.04.2011).
Sintonizado com os princípios da função social do contrato e da boa-fé objetiva, o art. 51 da Lei 8.078/1990 consagra um rol exemplificativo ou numerus apertus de cláusulas abusivas, consideradas como nulas de pleno de direito nos contratos de consumo (nulidade absoluta ou tão somente nulidade). Esclareça-se que a expressão cláusulas abusivas é mais contemporânea, para substituir o antigo termo cláusulas leoninas, que remonta ao Direito Romano.
A natureza meramente exemplificativa, tema praticamente pacífico em sede doutrinária e jurisprudencial em nosso País, fica clara pela redação do caput do comando em estudo (“São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que” – com destaque por este autor). Como bem aponta Cristiano Heineck Schmitt, em trabalho monográfico sobre a matéria, “Todas essas situações exprimem contrariedade à boa-fé, mas o legislador preferiu ser meticuloso, explicitando cada uma delas, as quais servem de auxílio ao juiz, sem limitar a sua atividade, uma vez que esse rol é apenas exemplificativo. A não adequação do caso concreto ao rol do art. 51 do CDC não impedirá a atividade meticulosa do magistrado na análise das cláusulas do instrumento, a fim de comprovar a abusividade ou não de uma ou de todas elas”.59
As cláusulas são consideradas ilícitas pela presença de um abuso de direito contratual. Além da nulidade absoluta, é possível reconhecer que, presente o dano, as cláusulas abusivas podem gerar o dever de reparar, ou seja, a responsabilidade civil do fornecedor ou prestador.
O art. 51 do CDC representa uma das mais importantes mitigações da força obrigatória da convenção (pacta sunt servanda) na realidade brasileira, o que reduz substancialmente o poder das partes, em situação de profundo intervencionismo ou dirigismo contratual. Antes do estudo das consequências concretas da nulidade, vejamos, pontualmente, as cláusulas que são descritas como nulas pelo preceito legal.
A norma repete a vedação da cláusula de não indenizar ou cláusula de irresponsabilidade para os contratos de consumo, já tratada pelo art. 25 da Lei 8.078/1990, considerada nula de pleno direito. Além da cláusula de exclusão total da responsabilidade do fornecedor ou prestador, não tem validade a cláusula que atenua o dever de reparar dos fornecedores ou prestadores em detrimento do consumidor. Na verdade, conforme exposto no capítulo anterior desta obra, tal atenuação somente é admitida nos casos de fato ou culpa concorrente do consumidor, o que decorre das circunstâncias fáticas e não do que foi pactuado. A título de exemplo, se um frequentador de academias assina um termo de autorresponsabilidade, não se pode afastar total ou parcialmente a responsabilidade da prestadora por força do contrato, o que somente é possível pelo fato ou risco assumido pelo próprio consumidor.
Como ilustração concreta de falta de vinculação da cláusula de não indenizar na realidade dos contatos de consumo, cite-se a conhecida placa encontrada em estacionamentos, com dizeres próximos a “O estacionamento não se responsabiliza por objetos deixados no interior do veículo”. Ora, o estacionamento deve, sim, responder pela segurança no seu interior, o que é inerente à própria contratação, pois esse é o fator buscado pelos consumidores (causa contratual). Nesse sentido, repise-se o teor da Súmula 130 do Superior Tribunal de Justiça, segundo a qual “a empresa responde, perante o cliente, pela reparação de dano ou furto de veículo ocorridos em seu estacionamento”. Apesar dessa responsabilização pelo furto, não se pode esquecer que as empresas de estacionamentos – excluídos os relativos aos bancos – não respondem pelo assalto à mão armada, pois tal fato escapa do risco do empreendimento ou risco do negócio ofertado (ver, por todos: STJ – REsp 1.232.795/SP – Rel. Min. Nancy Andrighi – j. 02.04.2013, publicado no seu Informativo n. 521).
Destaque-se, ato contínuo de ilustração, a Súmula 302 do STJ, que determina a nulidade por abusividade da cláusula contratual de plano de saúde que limita no tempo a internação hospitalar do segurado. A cláusula é claramente antissocial, por mais uma vez violar a própria concepção do negócio jurídico celebrado. Cite-se, ainda, o teor da Súmula 112 do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, segundo a qual é nula, por ser abusiva, a cláusula que exclui de cobertura de componente que integre, necessariamente, cirurgia ou procedimento coberto por plano ou seguro de saúde, tais como stent e marca-passo.
Como uma última concreção do art. 51, I, do CDC, o Tribunal Paulista considerou nula a cláusula contratual que afasta a responsabilidade de empresa de loteamento pelo atraso na entrega da obra (TJSP – Apelação 994.09.288608-0 – Acórdão 4713819, São Paulo – Quarta Câmara de Direito Privado – Rel. Des. Ênio Santarelli Zuliani – j. 09.09.2010 – DJESP 06.10.2010). Mais uma vez, nas esteira das hipóteses acima, nota-se o afastamento de cláusula contratual, por entrar em conflito com a própria causa do negócio jurídico celebrado.
O fundamente da previsão é a antiga máxima de vedação do enriquecimento sem causa, retirada do atual Código Civil (arts. 884 a 886). Especificamente, o art. 53 do mesmo CDC estabelece a nulidade, nos contratos de financiamento em geral, da cláusula de decaimento ou perdimento, que encerra a perda de todas as parcelas pagas, mesmo nas hipóteses de inadimplemento. O tema será aprofundado ainda no presente capítulo.
A propósito de uma interessante incidência da previsão do art. 51 do CDC, concluiu o Tribunal Paulista pelo direito de reembolso relativo a medicamento para tratamento hepático, o que estaria dentro da cobertura do plano de saúde, reconhecendo-se a nulidade absoluta da cláusula em contrário (TJSP – Apelação 0477776-65.2010.8.26.0000 – Acórdão 4964682, São Paulo – Quinta Câmara de Direito Privado – Rel. Des. Silvério Ribeiro – j. 09.02.2011 – DJESP 14.03.2011).