Sumário: 12.1. Introdução – 12.2. Responsabilidade patrimonial secundária – 12.3. Forma procedimental da desconsideração da personalidade jurídica – 12.4. A desconsideração da personalidade jurídica – 12.5. Recorribilidade da decisão que desconsidera a personalidade jurídica – 12.6. Qualidade processual do sócio – meio de defesa adequado – 12.7. Desconsideração da personalidade jurídica de ofício.
A desconsideração da personalidade jurídica tem como objetivo permitir atos de constrição e futura expropriação de bens do patrimônio de sócios diante da satisfação de uma dívida contraída pela sociedade empresarial. Trata-se, portanto, de construção de direito material que só terá aplicabilidade no processo, mais precisamente na execução ou falência, quando serão praticados os atos de constrição/expropriação de bens. Os aspectos processuais, portanto, são indispensáveis na exata compreensão da desconsideração da personalidade jurídica.
A responsabilidade patrimonial é indiscutivelmente instituto de direito processual1, compreendida como a possibilidade de sujeição de um determinado patrimônio à satisfação do direito substancial do credor. Por outro lado, a obrigação é instituto de direito material, representado por uma situação jurídica de desvantagem. Contraída a obrigação, uma parte tem o dever de satisfazer o direito da outra, e quando isso não ocorre surge a dívida, instituto atinente ao direito material. Também existe a responsabilidade patrimonial para o caso de inadimplemento, ou seja, quando a dívida não é satisfeita voluntariamente pelo devedor, surge a possibilidade de sujeição do patrimônio de algum sujeito – geralmente o próprio devedor – para assegurar a satisfação do direito do credor na execução2. Em razão dessa distinção, fala-se que a obrigação é estática, gerando uma mera expectativa de satisfação, enquanto a responsabilidade patrimonial é dinâmica, representada pela forma jurisdicional de efetiva satisfação do direito3.
A distinção é interessante e ganha importância sempre que existe dívida e não responsabilidade e vice-versa4. Tome-se como exemplo a dívida de jogo, situação em que existe a dívida, mas o patrimônio do devedor não responde por sua satisfação. É certo que existe dívida, tanto que, se houver quitação voluntária, não caberá ação de repetição de indébito, mas não haverá responsabilidade patrimonial do devedor derivada do inadimplemento. Por outro lado, por exemplo, em determinadas situações expressamente previstas em lei, o sócio pode ter seu patrimônio afetado por uma dívida da sociedade, justamente por ter responsabilidade patrimonial, mesmo que o devedor seja outrem (no caso, a sociedade).
É o patrimônio do devedor que geralmente responde por sua dívida, mas em algumas situações específicas mesmo aquele que não participou da relação de direito material obrigacional se vê responsável por sua satisfação. Seguindo as lições de Liebman, a doutrina nacional qualifica tal situação como “responsabilidade executória secundária”, prevista no art. 592 do CPC. Dessa forma, a responsabilidade patrimonial do devedor é primária, enquanto nas situações previstas em lei a responsabilidade do sujeito que não é obrigado (plano do direito material) é secundária5.
O art. 592 do CPC é responsável pelo tratamento das hipóteses de responsabilidade secundária, sendo de interesse para o presente tema o inciso II do dispositivo legal, ao prever a responsabilidade patrimonial dos sócios nos termos da lei. Sempre me pareceu ser nesse dispositivo incluídas as hipóteses de desconsideração da personalidade jurídica, a partir da qual o patrimônio do sócio (não devedor) passa a responder pela satisfação da dívida contraída pela sociedade empresarial (devedora).
Os artigos que tratam da desconsideração da personalidade jurídica não criam propriamente a responsabilidade secundária dos sócios, apenas completando a previsão do art. 592, II, do CPC, ao prever as condições para que os sócios passem a responder com seus patrimônios pela dívida da sociedade empresarial.
Registre-se, por fim, que nem só de desconsideração da personalidade jurídica vive o art. 592, II, do CPC. Nas leis societárias é possível a criação de regras que concebam a responsabilidade patrimonial do sócio, existindo atualmente determinadas espécies de sociedade, nas quais este responde com o seu patrimônio pelas dívidas da sociedade em qualquer situação de inadimplemento. É o caso da sociedade em nome coletivo (art. 1.039 do CC) e do sócio comanditado na sociedade em comandita simples (art. 1.045, caput, do CC). Ocorre, entretanto, que nesse caso não parece ser a responsabilidade dos sócios secundária, porque o texto legal é claro ao prever uma solidariedade passiva entre o sócio e a sociedade pelas dívidas contraídas por esta. Parece tratar-se, portanto, de responsabilidade primária subsidiária. O mesmo fenômeno verifica-se nas hipóteses de sociedade irregular e de sociedade de fato, nas quais a responsabilidade do sócio é solidária e ilimitada (art. 990 do CC)6.
O Superior Tribunal de Justiça já decidiu nesse sentido, conforme julgado assim publicado no seu Informativo n. 468:
“In casu, a sociedade empresária recorrida ajuizou, na origem, ação de cobrança e ressarcimento em desfavor das recorrentes sob a alegação de que o contrato de prestação de serviços celebrado com a sociedade civil da qual elas eram sócias – extinta pelo decurso do prazo – não foi cumprido. Esse contrato previa a elaboração pela recorrida do marketing do texto que seria entregue ao comitê olímpico quando da apresentação da candidatura de cidade brasileira para sediar os jogos olímpicos de 2004. Nos recursos especiais, as sócias sustentaram, entre outras questões, sua ilegitimidade passiva ad causam, a irregularidade da desconsideração da personalidade jurídica e a impossibilidade de se comprovar a prestação do serviço por prova exclusivamente testemunhal. Nesse contexto, a Turma negou-lhes provimento por entender que, nas sociedades cuja responsabilidade dos sócios é ilimitada – como na hipótese, em que se trata de sociedade simples –, uma vez exaurido o patrimônio da pessoa jurídica, não é necessário desconsiderar sua personalidade para que se atinjam os bens dos sócios, conforme o art. 1.023 do CC/2002, o que evidencia a legitimidade das recorrentes para figurar na demanda. Ressaltou-se ainda que a vedação para utilizar prova exclusivamente testemunhal descrita nos arts. 401 do CPC e 227 do CC/2002 restringe-se à demonstração da existência do negócio jurídico em si, não alcançando a verificação dos fatos e circunstâncias atinentes ao contrato. Precedente citado: EREsp 263.387-PE, DJ 17.03.2003” (STJ – REsp 895.792-RJ – Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino – j. 07.04.2011).
Muito se discute na doutrina a forma procedimental para a desconsideração da personalidade jurídica. Segundo o Superior Tribunal de Justiça, a desconsideração pode ocorrer em qualquer fase do processo, não havendo que se falar em decadência de um direito potestativo7. Existe dúvida, entretanto, de como deve ser conduzido procedimentalmente para se efetivar a desconsideração da personalidade jurídica da sociedade empresarial.
A desconsideração tem natureza constitutiva, considerando-se que por meio dela tem-se a criação de uma nova situação jurídica. Seria possível a criação dessa nova situação jurídica de forma incidental no processo/fase de execução ou caberia ao interessado a propositura de uma ação incidental com esse propósito?
Há corrente doutrinária que defende a existência de um processo de conhecimento com os pretensos responsáveis patrimoniais secundários compondo o polo passivo para se discutir os requisitos indispensáveis à desconsideração da personalidade jurídica. Cândido Rangel Dinamarco, ao elaborar parecer a respeito do tema, afirma que “seria indispensável colocar esses fatos supostamente caracterizadores da fraude ou da sucessão em algum processo de conhecimento, no qual em sentença o juiz declarasse que a consulente é, ou não é, cotitular da obrigação ou mesmo de responsabilidade por obrigação alheia”8.
Na realidade, para a corrente doutrinária que defende a existência de um processo para a desconsideração da personalidade jurídica, a maior parte dos doutrinadores afirma que, havendo processo de conhecimento contra a sociedade patrimonial, basta a formação de um litisconsórcio passivo com os sócios. Não seria, portanto, necessário um processo autônomo com o objetivo exclusivo de se determinar a desconsideração, bastando o aproveitamento em contraditório do processo já existente contra a sociedade empresarial devedora9. Durante a execução, para uns seria necessário um incidente processual10, enquanto para outros uma ação própria para a desconsideração11.
Por outro lado, há doutrina que afirma que, estando presentes os pressupostos para a desconsideração da personalidade jurídica, “e o credor consiga prová-los ou ao menos trazer fortes indícios desses fatos, conhecíveis de plano, deverá o juiz determinar a desconsideração, acatando o requerimento do exequente, tornando passíveis de penhora os bens dos terceiros que compõem o quadro societário da executada”12. O Superior Tribunal de Justiça vem prestigiando o entendimento, conforme julgado publicado no seu Informativo 302:
“Inicialmente, o Min. Relator destacou tratar-se de recurso especial proveniente de decisão interlocutória proferida no curso de execução de título extrajudicial, estando caracterizada a excepcionalidade da situação de molde a afastar o regime de retenção, porquanto não caracterizadas as hipóteses taxativas do art. 542, § 3.º, do CPC. No caso, a empresa distribuidora de peças ajuizou ação de execução contra a recorrida com base em títulos executivos extrajudiciais. E, não realizada a penhora pelo fato de terem sido encontrados apenas bens considerados de família, a exequente requereu a desconsideração da personalidade jurídica da empresa executada, alegando dissolução irregular dessa, não subsistindo “bens que respondam pelo passivo”. O juiz indeferiu o pedido ao argumento de que a desconsideração da pessoa jurídica só pode ocorrer no devido processo legal. O cerne da questão é analisar a possibilidade de o julgador decidir acerca da desconsideração da personalidade jurídica de empresa executada no curso do processo executivo. Isso posto, este Superior Tribunal tem decidido pela possibilidade da aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica nos próprios autos da ação de execução, sendo desnecessária a propositura de ação autônoma. Precedentes citados: REsp 521.049-SP, DJ 03.10.2005; REsp 598.111-AM, DJ 21.06.2004; RMS 16.274-SP, DJ 02.08.2004; AgRg no REsp 798.095-SP, DJ 1.º.08.2006, e REsp 767.021-RJ, DJ 12.09.2005” (STJ – REsp 331.478-RJ – Rel. Min. Jorge Scartezzini – j. 24.10.2006).
Compreendo que o entendimento consagrado no Superior Tribunal de Justiça esteja fundado nos princípios da celeridade e da economia processual, até porque exigir-se um processo de conhecimento para se chegar à desconsideração da personalidade jurídica atrasaria de forma significativa a satisfação do direito, além de ser claramente um caminho mais complexo que um mero incidente processual na própria execução ou falência.
Conforme analisado no item anterior, existe divergência doutrinária a respeito da necessidade de processo autônomo ou se basta um mero incidente processual para o reconhecimento dos requisitos legais e consequente desconsideração da personalidade jurídica. O entendimento pacificado no Superior Tribunal de Justiça é pela desconsideração pelo mero incidente processual no momento de satisfação do direito, tanto na execução como na falência.
Essa simplicidade procedimental, elogiável à luz dos princípios da efetividade da tutela executiva e da celeridade e economia processual, que também pode ser compreendida como resultante do sincretismo processual vivenciado atualmente no direito processual pátrio, vem levando a uma consequência prática bastante criticada por considerável parcela da doutrina.
A dispensa de um processo autônomo vem permitindo na praxe forense a desconsideração sem qualquer oitiva prévia dos maiores atingidos por ela: a sociedade empresarial e os sócios que passaram a responder por suas dívidas. O que se tem notado com extrema frequência é a desconsideração inaudita altera parte, diante apenas do pedido do exequente ou do autor da ação de falência. A pergunta que deve ser respondida é: tal postura afronta o princípio do contraditório?
Segundo o art. 5.º, LV, da CF/1988, “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”. Também na Lei de Arbitragem (art. 21, § 2.º, da Lei 9.307/1996) existe expressa previsão para que se cumpra o contraditório no processo arbitral.
Tradicionalmente, considera-se ser o princípio do contraditório formado por dois elementos: informação e possibilidade de reação. Sua importância é tamanha que a doutrina moderna entende tratar-se de elemento componente do próprio conceito de processo. Nessa perspectiva, as partes devem ser devidamente comunicadas de todos os atos processuais, abrindo-se a elas a oportunidade de reação como forma de garantir a sua participação na defesa de seus interesses em juízo. Sendo o contraditório aplicável a ambas as partes, costuma-se também empregar a expressão “bilateralidade da audiência”, representativa da paridade de armas entre as partes que se contrapõem em juízo13.
Percebeu-se, muito por influência de estudos alemães sobre o tema, que o conceito tradicional de contraditório fundado no binômio “informação + possibilidade de reação” garantia tão somente no aspecto formal a observação desse princípio. Para que seja substancialmente respeitado, não basta informar e permitir a reação, mas exigir que essa reação no caso concreto tenha real poder de influenciar o juiz na formação de seu convencimento14. A reação deve ser apta a efetivamente influenciar o juiz na prolação de sua decisão, porque, em caso contrário, o contraditório seria mais um princípio “para inglês ver”, sem grande significação prática. O “poder de influência” passa a ser, portanto, o terceiro elemento do contraditório, tão essencial quanto os elementos da informação e da reação.
Essa nova visão do princípio do contraditório reconhece a importância da efetiva participação das partes na formação do convencimento do juiz, mas a sua real aplicação depende essencialmente de se convencerem os juízes de que assim deve ser no caso concreto. Posturas como a do juiz que recebe a defesa escrita em audiência nos Juizados Especiais e, sem sequer folhear a peça, passa a sentenciar certamente não vão ao encontro da nova visão do contraditório. O mesmo ocorre quando desembargadores conversam, leem ou, excepcionalmente, se ausentam enquanto o advogado faz sustentação oral perante o Tribunal. Como observa a melhor doutrina, somente por meio de um constante e intenso diálogo do juiz com as partes se concretizará o contraditório participativo, mediante o qual o poder de influência se tornará uma realidade15.
Para parcela da doutrina, ainda que se admita a desconsideração da personalidade jurídica por meio de mero incidente processual, os interessados devem ser ouvidos antes da decisão judicial, justamente para se preservar o princípio do contraditório. Nesse sentido as lições de Humberto Theodoro Jr.:
“Para, entanto, respeitar-se o devido processo legal e assegurar-se o contraditório e a ampla defesa, é indispensável que o sócio seja citado em nome próprio para integrar a relação processual da execução”16.
Qualquer entendimento que busque preservar o princípio do contraditório deve ser tomado com seriedade, considerando a sua posição de destaque em nosso sistema processual. Ocorre, entretanto, que a oitiva prévia do interessado é medida indispensável apenas no chamado “contraditório tradicional”, sendo outra a técnica procedimental adotada no chamado “contraditório diferido ou postecipado”.
A estrutura básica do contraditório é: (i) pedido; (ii) informação da parte contrária; (iii) reação possível; (iv) decisão. Essa ordem dos elementos que, de maneira mais completa, determina o contraditório é percebida inclusive na estrutura do processo de conhecimento: (i) petição inicial; (ii) citação; (iii) respostas do réu; (iv) sentença.
É, realmente, mais adequada a estrutura do princípio do contraditório, porque a decisão a ser proferida pelo juiz só ocorre depois da oportunidade de ambas as partes se manifestarem a respeito da matéria que formará o objeto da decisão.
Essa ordem, apesar de ser a preferível, pode excepcionalmente ser afastada pelo legislador, como ocorre na concessão das tutelas de urgência inaudita altera partes, em situações de extrema urgência nas quais a decisão do juiz deve preceder a informação e reação da parte contrária após a prolação da decisão. Nesse caso, haverá um “contraditório diferido ou postecipado”, porque, apesar de os elementos essenciais do princípio continuarem a existir, a inversão da sua ordem tradicional antecipa a decisão para o momento imediatamente posterior ao pedido da parte17. A estrutura do contraditório diferido é: (i) pedido; (ii) decisão; (iii) informação da parte contrária; (iv) decisão.
A técnica do contraditório diferido (ou postecipado) é cabível na tutela de evidência, sendo ou não tutela de urgência. Tutela de evidência é aquela fundada na grande probabilidade de a parte ter o direito que alega, não sendo crível que, à luz do princípio do acesso à ordem jurídica justa, tenha que esperar o final do processo para que seja a tutela concedida jurisdicionalmente18. Nesses casos concede-se a tutela e, posteriormente, se informa ao réu para que possa reagir.
O contraditório diferido é excepcional, devendo ser utilizado com extrema parcimônia, até porque a prolação de decisão sem a oitiva do réu capaz de invadir a esfera de influência do sujeito que não foi ouvido é sempre uma violência19. Apesar disso, seja em razão do manifesto perigo de ineficácia (tutela de urgência), seja pela enorme probabilidade de o direito existir (tutela de evidência), o contraditório diferido cumpre com a promessa constitucional do art. 5.º, LV, da CF/1988.
Entendo que, na hipótese específica de desconsideração da personalidade jurídica, seja possível a adoção do contraditório diferido, havendo suficiente evidência de que seja possível a adoção de tal forma de responsabilização secundária dos sócios. Adotada a tese menor da desconsideração da personalidade jurídica no âmbito do direito consumerista, os indícios devem se limitar à indicação de insuficiência de patrimônio da sociedade empresarial para fazer frente à satisfação da obrigação. Havendo essa prova indiciária, não entendo haver qualquer ofensa ao princípio do contraditório a decisão liminar de desconsideração, com posterior informação aos sócios, e a abertura de seu prazo de defesa20.
O Superior Tribunal de Justiça parece concordar com a desnecessidade de informação prévia aos sócios, entendendo que sua citação deve ocorrer somente após a realização da penhora de seus bens:
“Processo civil. Violação do art. 535, II, do CPC. Não ocorrência. Execução. Desconsideração da personalidade jurídica. Penhora dos bens do sócio. Necessidade de citação. Divergência jurisprudencial. Não comprovação. 1. Não há por que falar em violação do art. 535, II, do CPC nas hipóteses em que o acórdão recorrido, integrado pelo julgado proferido nos embargos de declaração, dirime, de forma expressa, as questões suscitadas nas razões recursais. 2. Impõe-se a citação do sócio nos casos em que seus bens sejam objeto de penhora por débito da sociedade executada que teve a sua personalidade jurídica desconsiderada. 3. Não se conhece da divergência jurisprudencial quando não demonstra o recorrente a identidade de bases fáticas entre os julgados indicados como divergentes. 4. Recurso especial não conhecido” (STJ, REsp 686.112/RJ – Recurso Especial 2004/0133803-4 – Rel. Min. João Otávio de Noronha (1123) – Quarta Turma – j. 08.04.2008 – DJe 28.04.2008).
No PLNCPC há expressa consagração do contraditório tradicional, nos termos do art. 135, que prevê que, instaurado o incidente de desconsideração da personalidade jurídica, o sócio ou a pessoa jurídica (desconsideração inversa) será citado para manifestar-se e requerer a produção de provas no prazo de quinze dias. Já o art. 136 prevê que a decisão (interlocutória) do incidente ocorre apenas após esse momento e o da produção da prova, sempre que necessária, sendo recorrível por agravo de instrumento quando proferida pelo juízo de primeiro grau e por agravo interno quando proferida pelo relator no tribunal.
Adotando-se o entendimento já consagrado pelo Superior Tribunal de Justiça de que basta um incidente processual para a desconsideração da personalidade jurídica, a decisão que a decretar terá naturalmente natureza interlocutória, resolvendo apenas uma questão incidental da execução ou da falência. Tratando-se de decisão interlocutória, será impugnável pelo recurso de agravo, nos termos do art. 522 do CPC, bastando se determinar se o recurso será na forma retida ou por instrumento.
A questão do cabimento deve ser analisada como matéria preliminar desses recursos, porque a lei, ao prever as hipóteses de cabimento do agravo de instrumento, automaticamente, e de forma subsidiária, prevê também as hipóteses de cabimento do agravo retido. É natural que assim seja, porque, existindo somente duas espécies de agravo contra decisão interlocutória de primeiro grau, caberá uma das espécies sempre que a outra não for cabível. Ainda que o art. 522, caput, do CPC preveja somente as hipóteses de cabimento do agravo de instrumento, subsidiariamente, e de forma implícita, indica também as hipóteses de cabimento do agravo retido.
Segundo a previsão contida no art. 522, caput, do CPC, o agravo retido será cabível contra as decisões interlocutórias proferidas em primeiro grau de jurisdição, salvo em três hipóteses, quando será cabível o agravo de instrumento: (i) decisão que não recebe a apelação; (ii) decisão que determina os efeitos de recebimento da apelação; e (iii) decisão apta a gerar lesão grave e de difícil reparação.
Além dessas três hipóteses, registre-se o cabimento do agravo de instrumento sempre que houver uma expressa previsão legal nesse sentido, como ocorre nos arts. 475-H do CPC (decisão da liquidação de sentença) e 475-M, § 3.º, do CPC (decisão da impugnação que não põe fim ao cumprimento de sentença). Como facilmente se pode notar, o cabimento do agravo retido é residual, sendo aplicável sempre que nenhuma das hipóteses previstas em lei se verificar no caso concreto. Das três hipóteses de cabimento do agravo de instrumento, duas não trazem maiores dificuldades de compreensão, tampouco de identificação, o que será feito de forma objetiva no caso concreto.
A decisão que não recebe a apelação naturalmente não é recorrível por agravo retido, porque essa espécie de agravo só é julgada no momento do julgamento da apelação ou, para ser mais exato, imediatamente após o conhecimento desse recurso pelo Tribunal de segundo grau. Assim, a interposição de agravo retido, nesse caso, faria com que ambos os recursos “morressem abraçados”, jamais chegando ao conhecimento do tribunal.
Os efeitos em que a apelação é recebida é questão que perde toda a sua importância no momento de julgamento desse recurso, porque aí a questão dos efeitos fará parte do passado. Não teria qualquer justificativa lógica ou jurídica exigir da parte que não se conforma com os efeitos de recebimento da apelação a interposição de agravo retido, daí o expresso cabimento do agravo de instrumento.
Nessas duas hipóteses descritas, em verdade, o agravo retido seria inútil, faltando à parte interesse recursal, na modalidade adequação. A inaptidão de conseguir reverter a sucumbência suportada pela parte é razão suficiente para elogiar o legislador em excluir tais situações do cabimento do agravo retido. Existe inclusive doutrina que defende o entendimento de que o agravo de instrumento será cabível sempre que o agravo retido se mostrar inútil no caso concreto21, o que se mostra de forma manifesta na decisão que não recebe a apelação e na decisão que declara os efeitos do recebimento de tal recurso.
A terceira hipótese de cabimento do agravo de instrumento, justamente a aplicável ao caso concreto, traz sérias complicações no tocante a sua aferição, porque não é possível realizar uma análise objetiva como nas duas hipóteses já enfrentadas. Aliás, pelo contrário, considerando-se que o legislador se valeu de conceito indeterminado, exigindo-se do operador grande trabalho no caso concreto para determinar o que significa “decisão apta a gerar graves danos de difícil reparação”. Justamente em razão das incertezas que rondam essa hipótese de cabimento, e visando não onerar em demasia a parte recorrente, o art. 527, II, do CPC prevê que, sendo interposto o agravo de instrumento em situação na qual o Tribunal de segundo grau entenda cabível o agravo retido, não será caso de não conhecimento do recurso, mas de sua conversão. Ainda que o dispositivo legal mencionado não faça expressa remissão à hipótese de cabimento do agravo de instrumento ora enfrentada, é correta a conclusão de que seja aplicável nas hipóteses em que as visões do agravante e do órgão jurisdicional divergem a respeito do que seja decisão apta a gerar graves danos de difícil reparação.
É importante frisar que não é propriamente a questão de a decisão gerar lesão grave e de difícil reparação que permitirá o ingresso de agravo de instrumento, mas sim a lesão somada à exigência de interposição de agravo retido. São situações nas quais, seja pelo ponto de vista do recorrente, seja pelo ponto de vista do próprio processo, o agravo de instrumento se faz necessário como forma de evitar que a pleiteada revisão da decisão interlocutória se faça somente no momento de julgamento da apelação. A demora natural no julgamento do agravo retido cria a aptidão da decisão de gerar lesão grave e de difícil reparação22.
A doutrina aponta para a existência de duas diferentes espécies de “lesão grave” que legitimam a interposição do agravo de instrumento. A primeira e mais comum diz respeito ao aspecto material da lesão, ou seja, a lesão que a decisão gerará à parte sucumbente fora do processo, no plano dos fatos. Uma decisão que indefere um pedido de concessão de medida de urgência – liminar ou tutela antecipada – traz em si mesma uma urgência absolutamente incompatível com o tempo de espera para o julgamento do agravo retido. Nesse tocante, inclusive, é possível até mesmo criar uma regra não escrita no sistema de cabimento de agravo contra decisão interlocutória de primeiro grau: tratando-se de decisão – concessiva ou denegatória – de tutela de urgência, será sempre cabível o recurso de agravo de instrumento23. É lamentável constatar que alguns desembargadores ainda não compreenderam tal realidade, convertendo o agravo de instrumento em agravo retido com o argumento de que a urgência mencionada pelo recorrente não se encontra presente no caso concreto. Nesse caso, a urgência é a matéria de mérito do recurso, cabendo ao órgão colegiado ou ao relator monocraticamente, se for o caso (art. 557 do CPC), negar provimento ao recurso, mas nunca convertê-lo em agravo retido.
Por outro lado, a lesão grave pode se manifestar no aspecto processual, ainda que no plano dos fatos não exista no caso concreto perigo de a parte suportar grave lesão. A lesão processual fundamenta-se no argumento de que o futuro provimento do agravo retido, caso a parte seja obrigada a interpô-lo, gerará um grave dano ao processo, por meio da anulação de parte considerável dos atos processuais praticados após a prolação da decisão interlocutória impugnada24. A lesão, nesse caso, afrontaria não tão diretamente o aspecto jurídico-material do agravante, mas o princípio da economia processual, com o dispêndio inútil de esforço e tempo na prática de atos processuais que futuramente serão anulados em razão do efeito expansivo objetivo externo do agravo retido provido.
Entendo que a decisão que desconsidera a responsabilidade jurídica, passando a determinar a responsabilidade patrimonial dos sócios, seja apta a gerar grave lesão, ainda mais quando o Superior Tribunal de Justiça decide que a decisão sofre preclusão se não for devidamente impugnada25. Dessa forma, entendo viável o cabimento do agravo de instrumento contra tal decisão, considerando que o agravo retido não teria qualquer utilidade prática. Ademais, conforme ensina a melhor doutrina, a regra de retenção do agravo não parece ser aplicável à regra de retenção do agravo no processo de execução e na fase de cumprimento de sentença, considerando-se que nestas a sentença que encerra o procedimento dificilmente será impugnável por apelação, por falta de interesse na interposição desse recurso. Essa decisão somente declara extinto o procedimento, nada decidindo, de forma que a sua recorribilidade por apelação é duvidosa, o que traria enormes dificuldades práticas para o subimento do agravo retido ao tribunal26.
O Superior Tribunal de Justiça, inclusive, já decidiu que tanto os sócios como a própria sociedade empresarial terão legitimidade recursal – melhor teria sido a referência a interesse – para agravar da decisão ora analisada (Informativo 422):
“A desconsideração da pessoa jurídica consiste na possibilidade de ignorar a personalidade jurídica autônoma de entidade sempre que essa venha a ser utilizada para fins fraudulentos ou diversos daqueles para os quais foi constituída. Quando houver abuso, desvio de finalidade ou confusão patrimonial entre os bens da sociedade e dos sócios, caberá a aplicação do referido instituto. Assim, uma vez que desconsiderada a personalidade jurídica, tanto a sociedade quanto os sócios têm legitimidade para recorrer dessa decisão. Precedente citado: REsp 170.034-SP, DJ 23.10.2000” (STJ – REsp 715.231-SP – Rel. Min. João Otávio de Noronha – j. 09.02.2010).
Na realidade, a depender da premissa adotada, conforme será visto no item seguinte, o sócio, diante da desconsideração da personalidade jurídica, se torna parte no processo ou mantém-se como terceiro. No primeiro caso, terá legitimidade/interesse como parte; no segundo, terá legitimidade/interesse como terceiro prejudicado, ambos sujeitos legitimados pelo art. 499 do CPC.
Conforme amplamente defendido, o sócio passa a partir da desconsideração da personalidade jurídica a ser responsável patrimonial secundário pela dívida da sociedade empresarial. Será o sócio legitimado a formar um litisconsórcio passivo ulterior, transformando-se em executado junto à sociedade empresarial ou continuará com um terceiro no processo? A resposta a esse questionamento é resultante da definição da qualidade processual do responsável patrimonial secundário.
O responsável patrimonial secundário, com hipóteses previstas pelo art. 592 do CPC, mesmo não sendo devedor, responde com seus bens pela satisfação da obrigação em juízo. É preciso atentar que, no tocante a pelo menos duas hipóteses de responsabilidade secundária, a questão da legitimidade passiva é totalmente superada pelo próprio art. 568 do CPC, que em seus dois últimos incisos prevê expressamente a legitimidade passiva do fiador judicial e do responsável tributário, sendo, ambos, sujeitos que não são devedores, mas que respondem com seus bens – na primeira hipótese com bem determinado – pela satisfação da obrigação. A questão, entretanto, remanesce relativamente aos demais responsáveis secundários, em especial àqueles indicados pelo art. 592 do CPC.
Parte da doutrina entende que não se deve considerar o responsável patrimonial como parte na demanda executiva, ainda que sejam seus bens que respondam pela satisfação da obrigação, em interpretação que limita a legitimação passiva da execução aos sujeitos previstos no art. 568 do CPC. Por esse entendimento, não se devem confundir a legitimidade passiva e a responsabilidade secundária, sendo que o sujeito passivo é o executado, enquanto o responsável não é executado, tão somente ficando seus bens sujeitos à execução27. Para outra corrente doutrinária, o legislador indevidamente separou o tema da legitimidade passiva da responsabilidade patrimonial, não se podendo admitir que o sujeito que potencialmente perderá seu bem em virtude da expropriação judicial não seja considerado parte na demanda executiva28.
Sendo o sujeito responsável por dívida que não é sua – responsabilidade patrimonial secundária –, é natural que seja considerado parte na demanda executiva, visto que será o maior interessado em apresentar defesa para evitar a expropriação de seu bem. O devedor, que também deverá estar na demanda como litisconsorte passivo, poderá não ter tanto interesse assim na apresentação da defesa, imaginando que, em razão da propriedade do bem penhorado, naquele momento o maior prejudicado será o responsável secundário e não ele.
Trata-se de legitimação extraordinária, porque o responsável secundário estará em juízo em nome próprio e na defesa de interesse de outrem, o devedor29. Além de extraordinária, parece que tal legitimação permite que os responsáveis secundários sejam demandados já inicialmente, em litisconsórcio inicial com o devedor, em especial quando a própria lei expressamente prevê sua legitimidade, como ocorre com o fiador judicial e o responsável patrimonial. Caso tal litisconsórcio não seja formado no início da demanda, penhorado o bem de sujeito que até então não participa como parte na demanda judicial, a ciência desse ato processual deverá se realizar por meio de sua citação, o que o integrará à relação jurídica executiva supervenientemente30.
Para os responsáveis patrimoniais que não têm sua legitimidade passiva expressamente prevista em lei, a legitimação extraordinária apresenta uma particularidade interessante, considerando-se que para esses sujeitos ela só surgirá no caso concreto quando ocorrer a efetiva constrição judicial do bem do responsável secundário. Não teria qualquer sentido a citação de todos os sócios da pessoa jurídica se na execução não houver qualquer tipo de constrição judicial, desejada pelo exequente ou efetivamente ocorrida, de bens desses sócios. Há, portanto, uma condição para que a legitimidade extraordinária nesse caso exista: o patrimônio do responsável secundário efetivamente responder no caso concreto pela execução.
Dessa forma, para que seja demonstrada a legitimação do responsável secundário já com a distribuição da petição inicial (processo autônomo executivo) ou com o protocolo do requerimento (cumprimento de sentença), é imprescindível que o exequente indique nessas peças processuais bens do patrimônio do responsável secundário (art. 475-J, § 3.º, do CPC e art. 652, § 2.º, do CPC), o que justificará sua presença no polo passivo da demanda31. Por outro lado, essa legitimidade poderá se mostrar no caso concreto supervenientemente, com a efetiva constrição de bem que não pertence ao executado. No momento processual da penhora o responsável secundário é um terceiro, mas sofrendo a constrição judicial deverá ser citado na demanda executiva, passando a integrar o polo passivo como parte.
Especificamente a respeito do sócio na desconsideração da personalidade jurídica, vale a precisa lição de Teori Albino Zavascki:
“Em qualquer dos casos de responsabilidade subsidiária, proposta a execução contra a pessoa jurídica e não tendo ela força patrimonial suficiente para suportar a obrigação, poderão os atos executivos ser ‘redirecionados’ contra o patrimônio do sócio responsável, ‘hipótese em que este deve ser preliminarmente citado em nome próprio para se defender da responsabilidade imputada, cuja causa o credor deve traduzir em petição clara e precisa’. Essa orientação da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, calcada em entendimento semelhante do Supremo Tribunal Federal, evidencia a opção pela corrente doutrinária segundo a qual o responsável é parte, e não terceiro, no processo de execução, razão pela qual há de se defender por embargos do devedor, e não por embargos de terceiro”.
A importância prática de se definir a qualidade processual do sócio após a desconsideração da personalidade jurídica é a defesa adequada a apresentar na execução: sendo terceiro, a defesa parece ser mais adequadamente apresentada por meio de embargos de terceiro; sendo parte, a defesa será elaborada por meio de embargos à execução (ou mesmo impugnação, no caso de cumprimento de sentença). O Superior Tribunal de Justiça parece adotar o segundo entendimento, ao apontar a citação do sócio e sua integração à relação jurídica processual executiva.
Entendo que está absolutamente correto o posicionamento do Superior Tribunal de Justiça, até porque considero que todos os responsáveis patrimoniais secundários, ao terem bem de seu patrimônio constrito em processo alheio, automaticamente passam a ter legitimidade passiva, e, uma vez sendo citados ou integrando-se voluntariamente ao processo, formarão um litisconsórcio passivo ulterior com o devedor.
Poder-se-á afirmar que a defesa adequada são os embargos de terceiro, porque, não concordando o sócio com a desconsideração, deve alegar que não tem responsabilidade patrimonial secundária e, dessa forma, deve ser tratado como um mero terceiro no processo. O problema, entretanto, é a distância entre a qualidade real que o sócio adquire no processo ao ser citado e a qualidade que ele gostaria de ter.
Importante notar que o conceito de parte na demanda ou no processo não se confunde com o conceito de parte material, que é o sujeito que participa da relação de direito material que constitui o objeto do processo. Dessa forma, mesmo que não seja o titular dessa relação de direito material, mas participe do processo, o sujeito será considerado parte processual, independentemente da legalidade de sua presença no processo. É por isso que, mesmo sendo parte ilegítima, o sujeito é considerado parte processual pelo simples fato de participar do processo32. Significa dizer que o sócio será parte querendo ou não, tendo ou não legitimidade para participar da execução.
Concluo afirmando que, nos embargos à execução, caberá ao sócio alegar em sede de preliminar de ilegitimidade passiva a eventual incorreção da desconsideração da personalidade jurídica, até porque se não foi devida não existe responsabilidade patrimonial secundária e, por consequência, o sócio é parte ilegítima. O acolhimento dessa defesa, além de excluir o sócio da execução por ilegitimidade de parte, ainda resultará na imediata liberação da constrição judicial sobre o seu bem. Além da alegação de ilegitimidade de parte, o sócio poderá alegar todas as outras defesas típicas do devedor, firme no princípio da eventualidade.
Registre-se que essa alegação de ilegitimidade vinculada à inadequação da desconsideração da personalidade jurídica é a única forma de se preservar o princípio do contraditório, ainda que diferido. Como nessa forma de contraditório a informação e a reação são posteriores à decisão judicial, não será legítimo exigir da parte a interposição de agravo de instrumento contra a decisão que determina a desconsideração, sob pena de preclusão. Naturalmente o sócio poderá se valer de tal recurso, conforme já exposto no item anterior, mas se preferir poderá aguardar os embargos à execução para se defender. Condicionar a defesa do sócio ao agravo de instrumento seria suprimir um grau de jurisdição no exercício de seu contraditório.
Interessante questão atinente à desconsideração da personalidade jurídica no âmbito do direito consumerista diz respeito à possibilidade de sua determinação de ofício. É natural que o exequente, sendo o maior interessado em aplicar as chances de satisfazer seu direito, o que obterá com a ampliação de sujeitos que respondam com seu patrimônio por tal satisfação, invariavelmente faz pedido nesse sentido. Mas a pergunta permanece interessante, ainda que relegada à excepcionalidade: não havendo pedido do interessado, pode o juiz atuar de ofício?
Existem decisões de Tribunais Estaduais no sentido de ser viável tal ato de ofício pelo juiz:
“Civil. Processual civil. Embargos de terceiro. Execução. Parte executada (sociedade de fato ‘PRO4 Produções’) constituída irregularmente e representada pelos recorrentes. Utilização de CNPJ de outra empresa (‘Multi Util Comércio e Representações LTDA. ME’, representada também pelos recorrentes). Confusão patrimonial que gera obstáculos ao ressarcimento do consumidor. Desconsideração da personalidade jurídica devidamente aplicada pelo juízo de origem. Incidência da ‘teoria menor’, que possibilita a decretação, de ofício, da desconsideração da personalidade jurídica. Artigo 28, § 5.º, do CDC. Ausência de julgamento extra petita. Legitimidade passiva de ambos os recorrentes confirmada. Bloqueio de numerário devido. Citação válida (F. 11). Recurso improvido. Sentença mantida por seus próprios e jurídicos fundamentos, com Súmula de julgamento servindo de acórdão, na forma do artigo 46 da Lei n.º 9.099/1995. Honorários advocatícios fixados em 10% do valor da condenação, mais custas processuais, a cargo dos recorrentes” (TJDF – Recurso 2006.01.1.078794-9 – Acórdão 480.320 – Segunda Turma Recursal dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais do DF – Rel. Juiz José Guilherme de Souza – DJDFTE 18.02.2011 – p. 214).
“Agravo de instrumento. Execução de sentença. Desconsideração da personalidade jurídica. Impossibilidade. Depreende-se do art. 28 do Código de Defesa do Consumidor, que o juiz poderá, a requerimento ou de ofício, desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade sempre que houver prejuízo ao consumidor, abuso de direito, excesso de poder, infração da Lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. Mencionada faculdade também é conferida nos casos de falência, insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica, os quais tenham sido causados pela má administração. Consagrou-se a teor do art. 20 do Código Civil, que as pessoas jurídicas têm existência distinta da dos seus sócios, devendo, pois, ser desconsiderada a teoria da personalidade jurídica somente em casos extremos, ou seja, quando exaustivamente demonstrado dolo ou fraude praticados pela pessoa física, que usa como escudo a personalidade jurídica da empresa. Sem que se prove ter agido as representantes legais ao arrepio dos estatutos sociais, em abuso de direito, não é possível atribuir a responsabilidade com a desconsideração da personalidade jurídica da empresa” (TJMG – Agravo de Instrumento 2.0000.00.353986-8/000 – Juiz de Fora – Quarta Câmara Civil – Rel. Des. Alvimar de Ávila – j. 12.12.2001 – DJMG 22.12.2001).
O tema do reconhecimento de ofício de matérias referentes ao Código de Defesa do Consumidor será devidamente analisado no Capítulo 13, inclusive havendo divergência entre os autores da presente obra quanto à interpretação a ser dada ao art. 1.º da Lei 8.078/1990. Pessoalmente não consigo retirar do art. 28, § 5.º, do CDC a permissão para a desconsideração de ofício, conforme serviu de fundamento dos julgamentos mencionados. Se realmente fosse possível a desconsideração de ofício, o responsável seria o art. 1.º do CDC, jamais o art. 28, § 5.º, do CDC, responsável apenas pela adoção da teoria menor da desconsideração às relações consumeristas.
Será reafirmado no Capítulo 13 que o reconhecimento de matérias de direito material de ofício deve respeitar outros valores relevantíssimos do processo, tais como o princípio da inércia da jurisdição e da correlação entre pedido e sentença. No tocante à desconsideração da personalidade jurídica, entretanto, entendo ser possível a atuação de ofício pelo juiz, porque vejo nessa forma de estender a responsabilidade patrimonial aos sócios uma matéria de direito processual ou, quando menos, uma matéria processual.
Conforme já tive a oportunidade de afirmar, com amparo em tranquila doutrina, a responsabilidade patrimonial é matéria exclusivamente processual, porque trata de responsabilidade que só será exigida na execução ou falência. Dessa forma, a responsabilidade patrimonial secundária é regulada por norma de direito processual, mais precisamente o art. 592 do CPC. Tem-se, portanto, uma matéria de direto processual. Partindo dessa premissa, é importante se determinar se a matéria processual é reconhecível de ofício ou somente pode ser reconhecida mediante a alegação da parte interessada.
Nessa análise, apesar de compreender que realmente exista a necessidade de pedido da parte na maioria das vezes, no caso particular do direito consumerista entendo ser possível a atuação de ofício do juiz, justamente em razão do previsto no art. 1.º do CDC. Nesse caso, não vejo como ofensa ao princípio da inércia da jurisdição e tampouco da correlação, considerando que na execução o juiz é provocado a satisfazer o direito do exequente, sendo justamente isso que tentará fazer ao desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade empresarial.
Poder-se-ia alegar que, nesse caso, o juiz estaria redirecionando a execução contra novo exequente, já que o pedido do exequente não foi dirigido contra o sócio da sociedade empresarial. De fato, tal redirecionamento ocorrerá, mas apenas porque o juiz concluirá que o sócio é parte legítima no processo de execução, já que será tão responsável quanto o executado. Esse litisconsórcio, entretanto, além de ulterior, será facultativo, não sendo lícito o juiz formar um litisconsórcio iussu iudicis nos termos do art. 91 do CPC de 1939. Mas no direito consumerista essa matéria poderá ser conhecida de ofício, justamente em razão da previsão do art. 1.º da Lei 8.078/1990.
O art. 133 do PLNCPC exige, para a instauração do incidente de desconsideração da personalidade jurídica, o pedido da parte ou do Ministério Público, quando funcionar como fiscal da ordem jurídica.
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1 MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel Francisco. Código de Processo Civil comentado. São Paulo: RT, 2008. p. 606; ZAVASCKI, Teori Albino. Processo de execução: parte geral. 3. ed. São Paulo: RT, 2004. p. 190; FUX, Luiz. Curso de direito processual civil. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004. p. 1.284. Contra, entendendo ser instituto de direito material: GRECO, Leonardo. O processo de execução. Rio de Janeiro: Renovar, 1999. n. 6.3, p. 7-8.
2 THEODORO JR., Humberto. Processo de execução e cumprimento de sentença. 25. ed. São Paulo: Leud, 2008. n. 103, p. 160; GRECO, Leonardo. O processo de execução. Rio de Janeiro: Renovar, 1999. n. 6.3, p. 6.
3 DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de direito processual civil. São Paulo: Malheiros, 2004. v. IV, n. 1.523, p. 325.
4 Chaves de Farias-Rosenvald, Direito, n. 10.10.7, p. 453.
5 THEODORO JR., Humberto. Processo de execução e cumprimento de sentença. 25. ed. São Paulo: Leud, 2008. n. 104, p. 161; ZAVASCKI, Teori Albino. Processo de execução: parte geral. 3. ed. São Paulo: RT, 2004. p. 193-195; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel Francisco. Código de Processo Civil comentado. São Paulo: RT, 2008. p. 606.
6 ASSIS, Araken de. Manual dos recursos. 2. ed. São Paulo: RT, 2008. n. 36.3.1, p. 206; THEODORO JR., Humberto. Processo de execução e cumprimento de sentença. 25. ed. São Paulo: Leud, 2008. n. 106, p. 164.
7 “Trata-se de REsp em que o recorrente, entre outras alegações, pretende a declaração da decadência do direito de requerer a desconsideração da personalidade jurídica da sociedade empresária falida, bem como da necessidade de ação própria para a responsabilização dos seus ex-sócios. A Turma conheceu parcialmente do recurso, mas lhe negou provimento, consignando, entre outros fundamentos, que, no caso, a desconsideração da personalidade jurídica é apenas mais uma hipótese em que não há prazo – decadencial, se existisse – para o exercício desse direito potestativo. À míngua de previsão legal, o pedido de desconsideração da personalidade jurídica, quando preenchidos os requisitos da medida, poderá ser realizado a qualquer momento. Ressaltou-se que o próprio projeto do novo CPC, que, de forma inédita, disciplina um incidente para a medida, parece ter mantido a mesma lógica e não prevê prazo para o exercício do pedido. Ao contrário, enuncia que a medida é cabível em todas as fases do processo de conhecimento, no cumprimento de sentença e também na execução fundada em título executivo extrajudicial (art. 77, parágrafo único, II, do PL n. 166/2010). Ademais, inexiste a alegada exigência de ação própria para a desconsideração da personalidade jurídica, visto que a superação da pessoa jurídica afirma-se como incidente processual, e não como processo incidente, razão pela qual pode ser deferida nos próprios autos da falência. Registrou-se ainda que, na espécie, a decisão que desconsiderou a personalidade jurídica atinge os bens daqueles ex-sócios indicados, não podendo, por óbvio, prejudicar terceiros de boa-fé. Precedentes citados: REsp 881.330-SP, DJe 10.11.2008; REsp 418.385-SP, DJ 03.09.2007, e REsp 1.036.398-RS, DJe 03.02.2009” (STJ, REsp 1.180.191-RJ, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, j. 05.04.2011).
8 Cfr. Desconsideração da personalidade jurídica, fraude e ônus da prova. Fundamentos do processo civil moderno. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2000. t. II, p. 1.194.
9 DIDIER JR., Fredie; CUNHA, Leonardo José Carneiro da; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael. Curso de direito processual civil. Salvador: JusPodvm, 2009. v. 5, p. 286-287.
10 DIDIER JR., Fredie; CUNHA, Leonardo José Carneiro da; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael. Curso de direito processual civil. Salvador: JusPodvm, 2009. v. 5, p. 287.
11 DINAMARCO, Cândido Rangel. Desconsideração da personalidade jurídica, fraude e ônus da prova. Fundamentos do processo civil moderno. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2000. t. II, p. 1.197.
12 BRUSCHI, Gilberto Gomes. Aspectos processuais da desconsideração da personalidade jurídica. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2004. p. 94.
13 GRECO, Leonardo. Instituições de direito civil. Rio de Janeiro: Forense, 2009. v. 1, p. 540.
14 GRECO, Leonardo. Instituições de direito civil. Rio de Janeiro: Forense, 2009. v. 1, p. 539 e 541.
15 GRECO, Leonardo. Instituições de direito civil. Rio de Janeiro: Forense, 2009. v. 1, p. 541.
16 Cfr. Processo de execução e cumprimento de sentença. 25. ed. São Paulo: Leud, 2008. n. 107, p. 164. No mesmo sentido ZAVASCKI, Teori Albino. Processo de execução: parte geral. 3. ed. São Paulo: RT, 2004. p. 199; DIDIER JR., Fredie; CUNHA, Leonardo José Carneiro da; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael. Curso de direito processual civil. Salvador: JusPodvm, 2009. v. 5, p. 288.
17 CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de direito processual civil. 17. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. v. 1, p. 53; SILVA, Ovídio Baptista da; GOMES, Fábio. Teoria geral do processo. 3. ed. São Paulo: RT, 2002. p. 56; THEODORO JR., Humberto. Curso de direito processual civil. 47. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2007. v. 1, n. 24, p. 31.
18 FUX, Luiz. Tutela de segurança e tutela de evidência. São Paulo: Saraiva, 1996. n. 36, p. 305-311.
19 GRECO, Leonardo. Instituições de direito civil. Rio de Janeiro: Forense, 2009. v. 1, p. 543.
20 REsp 881.330/SP, Recurso Especial 2006/0193612-2, Rel. Min. João Otávio de Noronha (1123), Quarta Turma, j. 19.08.2008, DJe 10.11.2008.
21 JORGE, Flávio Cheim. A terceira etapa da reforma processual civil. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 229; MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Manual do processo de conhecimento. São Paulo: RT, 2006. n. 3.6.1, p. 548; FREIRE, Rodrigo da Cunha Lima. Reforma do CPC. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 43. Informativo 389/STJ, 3.ª T., REsp 1.033.900-MG, rel. Massami Uyeda, 02.04.2009.
22 DINAMARCO, Cândido Rangel. A reforma do Código de Processo Civil. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 1998. n. 110, p. 166; THEODORO JR., Humberto. Curso de direito processual civil. 47. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2007. v. 1, n. 551, p. 678.
23 Araken de Assis, Manual, n. 51.3.2, p. 514; Theodoro Jr., Curso, n. 551, p. 680; Lima Freire, Reforma, p. 45; Nery-Nery, Código, p. 875; Marinoni-Mitidiero, Código, p. 535; STJ, 4.ª Turma, REsp 748.336/RN, rel. Min. Hélio Quaglia Barbosa, j. 11.09.2007, DJ 24.09.2007.
24 Wambier-Wambier-Medina, Breves, p. 255; Didier-Cunha, Curso, p. 147-148.
25 REsp 920.602/DF, Recurso Especial 2007/0015445-6, Rel. Min. Nancy Andrighi (1118), Terceira Turma, j. 27.05.2008, DJe 23.06.2008.
26 DINAMARCO, Cândido Rangel. A reforma do Código de Processo Civil. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 1998. n. 111, p. 167; CARNEIRO, Athos Gusmão. Recurso especial, agravos e agravo interno. Rio de Janeiro: Forense, 2001. n. 66, p. 198-199; THEODORO JR., Humberto. Curso de direito processual civil. 47. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2007. v. 1, n. 551, p. 680; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel Francisco. Código de Processo Civil comentado. São Paulo: RT, 2008. p. 535.
27 LIEBMAN, Enrico Tullio. Processo de execução. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1963. p. 68; SHIMURA, Sérgio Seiji. Título executivo. 2. ed. São Paulo: Método, 2005. p. 79-81.
28 ASSIS, Araken de. Manual dos recursos. 2. ed. São Paulo: RT, 2008. n. 107, p. 398-399; CARMONA, Carlos Alberto. Código de Processo Civil interpretado. In: MARCATO, Antonio Carlos. São Paulo: Atlas, 2004. p. 1.751. FUX, Luiz. Curso de direito processual civil. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004. p. 1.288, e NOLASCO, Rita Dias. Responsabilidade patrimonial. In: NEVES, Daniel Amorim Assumpção; SHIMURA, Sérgio Seiji (Coords.). Execução no processo civil: novidades & tendências. São Paulo: Método, 2005. p. 214-215, têm entendimento híbrido, em razão da possibilidade de ingresso de embargos à execução e embargos de terceiro.
29 ASSIS, Araken de. Manual dos recursos. 2. ed. São Paulo: RT, 2008. n. 107, p. 398.
30 ASSIS, Araken de. Manual dos recursos. 2. ed. São Paulo: RT, 2008. n. 107, p. 398; GRECO, Leonardo. O processo de execução. Rio de Janeiro: Renovar, 1999. n. 4.3.3.2.1, p. 334. Contra, DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de direito processual civil. São Paulo: Malheiros, 2004. v. IV, n. 1.402, p. 141, afirma tratar-se de litisconsórcio necessário.
31 THEODORO JR., Humberto. Processo de execução e cumprimento de sentença. 25. ed. São Paulo: Leud, 2008. n. 43, p. 88.
32 DIDIER JR., Fredie. Curso de direito processual civil. 7. ed. Salvador: JusPodivm, 2007. v. 1, p. 190; CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de direito processual civil. 17. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. v. 1, p. 143.