Apresentação

Jacinta Passos foi uma mulher à frente do seu tempo. Nascida no ano da eclosão da Primeira Guerra Mundial – quando o Brasil, país essencialmente rural, há pouco ingressara na era republicana e libertara os escravos –, educada em tradicional família do interior da Bahia, segundo princípios rígidos da Igreja Católica, destinada a ser mãe de família, ou, em caso de necessidade financeira, professora, Jacinta paulatinamente rompeu os limites impostos por sua época e situação social. Virou o próprio destino de ponta-cabeça, recusou suas heranças, traçou para si outros projetos, enveredou por trilhas novas. Fez da poesia arma de esplendor e guerra, afirmação de justiça, liberdade e amor, tornou-a a sua voz, a sua identidade. Jornalista incansável, foi das raras mulheres da Bahia, no início da década de 1940, a expressar publicamente suas opiniões, nem sempre concordantes com as da maioria. Como mulher, foi livre, escolhendo amores e amigos, mesmo os improváveis, não se submetendo a tradições. E lutou para que os direitos que conquistara pessoalmente se estendessem às outras mulheres. Feminista, entendia que as mulheres só seriam donas de seus destinos quando toda a sociedade se transformasse, mas compreendia também que elas tinham projetos, necessidades e desejos específicos, relativos às suas relações com os homens, que precisavam ser ouvidos e atendidos também de forma específica.

Jacinta Passos acreditou – quando essa utopia parecia possível – que a sociedade socialista e, posteriormente, a comunista trariam justiça, igualdade, liberdade e oportunidade para todos. Isso, numa época em que grande parte da sociedade brasileira equiparava os comunistas a brutais assassinos, inclusive de criancinhas, como Herodes: Conheci pessoas que, na época, tinham repugnância física pelos comunistas. Eu era um deles, lembrou o temido policial Cecil Borer, um dos chefes da repressão aos comunistas no Brasil.1 Ligada aos movimentos de esquerda desde a eclosão da Segunda Guerra Mundial, Jacinta ingressou oficialmente no Partido Comunista Brasileiro em 1945, nele permanecendo até morrer. Foi militante em tempo integral, renunciando a quaisquer comodidades ou benefícios pessoais em nome das causas que defendia.

Pagou um preço altíssimo por derrubar tantas barreiras, na contramão da vida, na construção do caminho duro de seus ideais. Afirmou-se como mulher e intelectual, mas sua existência foi muito difícil, marcada por rupturas, fortes desilusões, crises psicológicas. Foi excluída, perseguida, presa, internada em sanatórios. Este volume recupera a trajetória biográfica de Jacinta Passos, bem como toda a sua obra.

Esta é a primeira edição da obra completa de Jacinta. Nascida em Cruz das Almas, Recôncavo da Bahia, em 1914, e falecida em 1973, em Aracaju, Jacinta é uma escritora praticamente desconhecida hoje. Os quatro livros de poemas que publicou, entre os anos de 1942 e 1958 – Nossos poemas, Canção da partida,Poemas políticos e A Coluna2 – foram lançados em edições pequenas, há muito esgotadas, como esgotada também está a segunda edição do Canção da partida, de 1990.3

No entanto, os livros escritos por Jacinta Passos chamaram muito a atenção. Saudada em Momentos de poesia como uma excelente promessa literária, desde Canção da partida ela foi incluída "numa posição de primeira plana na moderna poesia brasileira", conforme assinalou Antonio Cândido.4 Seus livros foram lidos, analisados e elogiados por alguns dos mais respeitados intelectuais e críticos da época, gente do porte do próprio Cândido, de Mário de Andrade, Gabriela Mistral (Prêmio Nobel de Literatura em 1945), Roger Bastide, Sérgio Milliet, Aníbal Machado, Paulo Dantas e José Paulo Paes, entre outros. O grande artista Lasar Segall ilustrou Canção da partida.

A presente edição contém a poesia completa de Jacinta, incluindo-se seus livros publicados – apresentados aqui em ordem de publicação –, poemas esparsos e poemas inéditos, estes últimos parte de uma série manuscrita, produzida nos últimos anos de vida da autora, jamais trazida antes a público. O volume contém ainda a prosa completa de Jacinta, muito pouco conhecida, composta de artigos para jornal – nunca publicados em livro – e textos em prosa inéditos, parte da mesma série manuscrita dos últimos anos de sua vida, que denominei "Cadernos do Sanatório". Uma pequena parte desses cadernos, chamada "Comprimidos poéticos", abre o volume.

Todos os critérios usados nesta edição, tanto para a compilação e fixação do texto poético de Jacinta Passos, quanto para as outras produções de sua autoria, estão explicitados em textos introdutórios que antecedem cada uma das partes deste volume. O objetivo foi tornar mais concisa esta introdução e, ao mesmo tempo, aproximar cada explicação do conjunto de textos a que se refere. Todo o material apresentado no livro, em suas diversas partes, é acompanhado de notas explicativas – mais de 450 -, que esclarecem e complementam o conteúdo dos textos, a fim de melhor situar tanto o leitor de hoje quanto o futuro pesquisador interessado na obra de Jacinta.

Este volume compila também toda a fortuna crítica que foi possível reunir sobre Jacinta Passos, antes dispersa em grande número de jornais, revistas e livros, alguns de difícil acesso hoje. O leitor terá uma boa idéia da repercussão da poesia de Jacinta, à medida que seus livros iam sendo publicados. O volume reúne ainda análises inéditas sobre a obra de Jacinta, textos escritos especialmente para a presente edição por Angela Baptista, Fernando Paixão, Florisvaldo Mattos, Gerana Damulakis, Guido Guerra, Hélio Pólvora, Ildásio Tavares e Simone Lopes Tavares. O leitor conhecerá diversos olhares contemporâneos sobre a obra e a vida da escritora, que não só atualizam a reflexão sobre ela, como fornecem pistas e sugestões para futuros estudos.

Completa este livro a biografia de Jacinta Passos, escrita por mim, que sou sua filha. Procurei reunir no texto o máximo possível de informações, pois tenho consciência de que, se não fossem registradas agora, muitas se perderiam para sempre. A experiência como historiadora me ajudou, mas senti enorme dificuldade emocional em empreender a tarefa. Fico feliz por haver conseguido. São de minha autoria também a pesquisa, os textos introdutórios a cada uma das partes e as notas deste volume.

O volume é enriquecido por um caderno de imagens, contendo fotos de Jacinta e de pessoas e locais importantes em sua vida. E pelos lindos desenhos de Lasar Segall, produzidos em 1945 para o Canção da partida, aqui reproduzidos graças à autorização do diretor do Museu Lasar Segall, Jorge Schwartz, a quem muito agradeço. A construção e publicação deste livro é resultado do trabalho, dedicação e amor de diversas pessoas, relacionadas em "Agradecimentos", ao final do livro. A cada uma delas, o meu comovido muito obrigada. O título deste volume foi criação do poeta e jornalista Florisvaldo Mattos, originalmente para uma matéria jornalística sobre Jacinta, em suplemento literário da Bahia.5 Gostei tanto dele que o tomei emprestado, com o consentimento de seu criador, a quem também agradeço.

Já passa do tempo de apresentar a voz de Jacinta Passos. Aqui ela retorna inteira, no comando de seu destino e na força de sua poesia. Contudo, é bom preparar-se, leitor. Escritora exigente, a própria Jacinta expressou, no poema "Canção do amor livre", o que espera de você:

Se me quiseres amar

não despe somente a roupa.

Eu digo: também a crosta

Feita de escamas de pedra

e limo dentro de ti.

Se me quiseres amar.

desenhos de Lasar