Parte III – Crustáceos/Crustaceans

1929/1958

Metacarcinus magister. Alphonse Milne-Edwards, Études Zoologiques sur les Crustacés Récents de la Famille des Cancériens, (s.d.), prancha [plate] XIX.

Dois filópodes observados no Rio Grande do Norte*

Introdução

Entre os organismos que vivem na água doce os pequenos crustáceos da ordem Entomostraca têm um papel preponderante por sua freqüência e variedade. Entre estes se destacam os filópodes ou branquiópodes, pela alteração da propagação sexual e partenogenética. Um grupo destes, chamado Cladocera, é composto por espécies pela maior parte muito pequenos, mas extremamente abundantes e por isso bem conhecidos. Outro grupo, chamado Euphyllopoda, contém espécies maiores, porém muito mais raras, que aparecem de um modo errático para desaparecer logo por muito tempo. São encontrados de preferência em poças de água, devidas a chuvas ou inundações transitórias. Por isso as observações têm mais importância, sendo cuidadosamente registradas.

Os primeiros Euphyllopoda foram observados na Europa há cerca de duzentos anos, e durante este longo período as observações e estudos chegaram a uma perfeição que falta nos de outros continentes, explorados só muito depois. Assim mesmo a Ásia, a África e a América do Norte forneceram um material abundante. A América Meridional parece mais pobre. Na literatura até 1918 não achei mais do que 14 a 15 espécies, das quais apenas seis ou sete do Brasil. O número dos observadores não é maior, e poucas espécies foram encontradas duas ou três vezes. Assim, a presente comunicação, embora curta, parece justificada, porque traz uma nova espécie e nova observação de outra, apenas uma vez observada em terreno brasileiro.

Eis a lista dos filópodes observados no Brasil:

Gênero Estheria, espécies: brasiliensis Baird; dallasi Baird.

Gênero Eulimnadia, espécies: antilarum Baird, Rio Grande do Sul, leg. Ihering;? Texana Packard, São Paulo (Lutz), det. Ihering; brasiliensis Sars, criada de lodo seco de São Paulo, mandado por Ihering, prov. idêntica à anterior.

Gênero Branchinecta, espécie: iheringi Lilljeborg, Rio Grande do Sul.

Gênero Cyclestheria, espécie hislopi Baird, Cuiabá (leg. Ehrenreich, det. Weitner); também no Paraguai (Daday, Lutz).

Outros Phyllopoda da América do Sul:

Gênero Limnetis, esp. rotundirostris Daday, Patagônia.

Gênero Artêmia, esp. jelski Daday, Peru (Callao).

Gênero Branchinecta granulosa Daday, Patagônia.

Gênero Dendrocephalus, esp. cervicornis (Weltner), Argentina, Cordoba. esp. geayi Daday, Venezuela.

Gênero Apus, esp. frenzeli Thiele, Argentina (Cordoba).

Gênero Lepidurus, esp. patagonicus Berg, Patagônia.

Espécies observadas

I. Dendrocephalus ornatus n. sp.

Estampas I e II

Este filópode foi encontrado no Rio Grande do Norte, vinte quilômetros além de Macaíba, em 19 de julho de 1928. Ao lado direito da estrada de automóvel que vai da capital para o interior, havia uma poça larga e funda com água muito barrenta. Pescando larvas de anofelinos obtivemos também um crustáceo transparente com grande número de pernas, olhos pretos e apêndices caudais em forma de penas escarlates.

Moviam-se rapidamente ou ficavam parados com as costas para baixo e as pernas em vibração constante. Julguei logo que se devia tratar de uma espécie de Branchipus ou algum gênero aliado. Guardei-os vivos durante alguns dias, mas morreram pouco a pouco. Dos que foram fixados logo em álcool, aproveitei quatro exemplares bastante bons, sendo um macho e as restantes, fêmeas adultas. Estas, de 12 mm de comprimento, tinham nos ovários e no saco de incubação ovos pigmentados e uma massa escura que se confundia com o conteúdo intestinal. O macho, de corpo muito mais robusto, com 16 mm de comprimento, tinha as antenas do segundo par muito complicadas, e só com dificuldade se conseguiu desembrulhar e desenhá-las. (Estampa II).

Na sua extensa monografia da família que inclui os conhecidos gêneros Artemia, Branchipus, Chirocephalus e Streptocephalus, Daday estabeleceu grande número de gêneros novos que se caracterizam principalmente pelas antenas dos machos, as quais mostram uma polimorfia extraordinária, e uma complicação progressiva. A nossa espécie entra naturalmente no gênero Dendrocephalus, que continha apenas duas espécie bastante maiores, ambas sul-americanas e indubitavelmente diferentes. Dou um desenho ampliado das primeiras antenas do macho, cujas ramificações são mais complicadas que em qualquer espécie conhecida. As primeiras antenas (que se percebem na mesma figura, atrás das segundas) são relativamente simples. A figura da fêmea mostra que esta segue um tipo geral bastante comum. Ambos os sexos são caracterizados pelos apêndices caudais bem desenvolvidos e muito ornamentais, graças à sua cor escarlate brilhante, que justifica o nome genérico.

As gravuras que acompanham esta comunicação mostram os caracteres importantes. Infelizmente não consegui obter mais material vivo.

O Dr. Waldemar Antunes, que me acompanhou na excursão, visitou mais tarde a mesma poça, mas já a encontrou seca, e procurou a espécie sem resultado em outras águas vizinhas. Talvez será possível criá-la mais tarde, do lado barrento que formava o fundo da poça.

II. Cyclestheria hislopi Baird

Estampa III

Nas margens da Lagoa Seca, nos arrabaldes de Natal, achei, entre outros organismos aquáticos, um pequeno crustáceo bivalve de forma quase redonda e com cerca de 5 mm de comprimento. Foi caracterizado como Euphyllopodo pelo grande número de pernas. Gostava de ficar encostado, ora a planta aquáticas, ora ao próprio fundo, ou de nadar perto deste com as costas para baixo. Na cavidade dorsal carregava ovos ou filhotes já desenvolvidos, alguns dos quais apareceram logo na água ambiente, mostrando a mesma forma que os adultos. Por esse fato e pela formação característica, reconheci tratar-se de uma Cyclestheria, igual a uma colhida em Cuiabá por Ehrenreich e determinada por Weltner, e outras, assinaladas por Daday do Paraguai, onde também os encontrei na Lagoa de Iparacaraí. Só havia uma espécie, conhecida pelo nome de hislopi Baird, que os autores citados consideraram como correspondendo à espécie por eles observada.

Aqui convém mencionar um fato extraordinário e quiçá único em zoologia. As onze observações registradas limitam-se à zona tropical da Ásia ou ao Hemisfério Sul, mas aqui dão como pátria tanto a Austrália, a Ásia, a África e a América Meridional como as ilhas Ceilão e Zanzibar.

Para explicar uma repartição tão extensa e ao mesmo tempo tão errática, só podemos escolher entre a suposição do transporte pelo homem ou por aves aquáticas, a menos de recorrer às hipotéticas ligações de continentes em períodos geológicos afastados por pontes hoje submersas, explicação que desperta várias obje-ções evidentes. O transporte dos ovos a tão grandes distâncias e através dos mares, por meio do lodo aderente às pernas ou ao corpo de aves aquáticas, certamente não podia ocorrer freqüentemente. As distâncias terrestres podem ter sido vencidas por meio de etapas, sendo certo que conhecemos apenas uma mínima parte dos lugares onde ocorre o gênero Cyclestheria.

Para manter-se o tipo de uma espécie através de tanto tempo, tamanhas distâncias e durante tantas gerações em rápida sucessão, é preciso atribuir-lhe uma constância tanto mais notável que nestas condições outros filópodes teriam já desenvolvido novas variedades ou mesmo espécies e gêneros. Entretanto, os autores referem todas as Cyclestheria a uma única espécie. Apenas Thiele aponta, nos exemplares descritos por Daday, ligeiras diferenças que podiam talvez justificar a criação de uma nova espécie, que ele propõe chamar sarsiana. A princípio estive disposto a admitir essa diferenciação, mas, depois de obter e comparar as descrições e desenhos que Sars deu dos exemplares de origem australiana, cheguei à convicção de que se trata de uma só espécie. As pequenas diferenças notadas explicam-se por defeitos dos originais ou dos desenhos, ou finalmente pela idade e por leves aberrações individuais.

O desenho da Estampa III foi tirado, independentemente do conhecimento das figuras de Sars e de Daday, de uma fêmea do meu material.

As diferenças notadas referem-se apenas a detalhes tão pouco distintos que facilmente podem escapar à vista ou perder-se nos exemplares conservados. Nas feições importantes o desenho combina bem com as indicações de Daday, e ainda mais com os desenhos de Sars, que trabalhou com o material obtido de lodo, mandado de Queensland, na Austrália.

Como os outros observadores, não encontrei machos no meu material. Apenas Sars observou um macho novo, tirado da cavidade incubadora de uma fêmea grávida, mas não chegou a observar os ovos fecundados que podem resistir à dessecação.

Explicação das estampas

Estampa I: Fêmea adulta de Dendrocephalus ornatus n. sp. Com ovos no saco de incubação. X 20.

Estampa II: Antenas do macho; segundo par com 12 pontas maiores no processo ímpar e dois segmentos nos chifres pares, o primeiro par de antenas com estrutura simples.

Estampa III. Cyclestheria hislopi Baird. Fêmea adulta com ovos no espaço de incubação. X 12.

Bibliografia

Em seguida, dou uma lista de publicações que se referem a Euphyllopoda da América Meridional e especialmente do Brasil. Termina com o ano 1918, porque depois não encontrei mais referência. A literatura que estudei na biblioteca deste Instituto ou mandei vir depois está marcada por um asterisco; o resto não consegui consultar no original. A publicação de Ihering contém uma lista bibliográfica até 1895, e as publicações de Daday trazem ainda outras referências.

1. BAIRD. Monograph of the family Branchiopodidae. Proceed. Of the Zool. Soc. 1849, p.84.

2. BERG, C. Dados sobre alg. Crustáceos nuevos p. la fauna argentina. Comm. del Museo Nac. de Buenos Aires. T. 1, n.7, p.223. 1900.

3. DADAY, E. Untersuchungen ueber die microsc. Fauna von Paraguai. Zoologia. Leipzig, 1905.

4. DADAY, E. Monograph. Systémat. des Phyllopodes anostracés. Ann. Des Sc. Natur.: zoologie, 8ième Sér., T. 11. 1910.

5. IHERING, V. Os crustáceos phyllopodos do Brasil. Rev. do Museu Paulista, v.5, p.165. 1895.

6. LILLJEBORG, W. Diagnose zweier Phyllopoden von Suedbrasilien, Abh. d. Naturw. Ver. Bremen, 1889, p.424.

7. LUTZ, A. Memórias do Instituto Oswaldo Cruz, v.X, Fasc. II, p.169-70 (Crust.), 1918.

8. PACKARD, A. S. A monogr. of the phyllopod crustacea of North America. 1881.

9. SARS, D. O. On Cyclestheria hislopi. Vidensk. – Selsk. Forh. I. Christiania, 1887.

10. SARS, G. O. On a new Brasil. Phyllopod, Eulimnadia brasiliensis. Arch. For Math. Og Naturw., T.2, n.6. 1902.

11. SIMON, E. Étude sur les crustacés du sous-ordre Phyllopodes. Ann. de la Soc. Entom. de France, v.8, sér. 6, p.395, 1886.

12. THIELE, J. Einiges ueber Phyllopoden des Berliner Mus. I. Ueber Suedamerik. Phyllopoden. Sitzungsber d, Gesellsch. Naturf. Freunde in Berlin, p.288, 1907.

13. WELTNER, W. Ibidem 1888-89, p.199 (Ueber Cyclestheria hislopi).

14. WELTNER, W. Ibidem 1890, n.5, p.35 (Branchipus cervicornis n. sp. Aus Suedamerika).

15. WOLF, E. Die geograph. D. Phyllopoden. Verh. D. deutschen zoolog. Gesellsch., 1886, p.393.