I. Sobre a Hyla aurantiaca Daudin e Sphoenorhynchus Tschudi e sobre duas Hylae aparentadas do Sudeste do Brasil. II. Duas novas espécies de Hyla*
Hyla aurantiaca foi descrita há mais de 130 anos por Daudin.
Depois da sua descrição, em 1802-3, pelo naturalista francês, vários exemplares de Hyla, com alguns caracteres semelhantes foram determinadas ou descritas, sob o mesmo nome, de procedências muito diversas e com outros caracteres divergentes. A maioria desses espécimes são da região amazônica, das Guianas, um e outro do noroeste da América do Sul, havendo também um exemplar de Teresópolis, descrito pelo professor Miranda Ribeiro e dois pequenos de Nova Friburgo, citados por Peters, em 1872.
Duméril e Bibron, exímios herpetologistas, declararam em 1841 ser muito pouco próprio o nome escolhido por Daudin, porque longe de ser cor de laranja, o espécime tipo, que se acha em Paris, é pardo escuro, e um segundo exemplar, da mesma espécie, descrito pelo mesmo autor, com nome diverso, o de Hyla lactea, está completamente desbotado. O Prof. Miranda Ribeiro diz que o seu exemplar era amarelo, e Peters, que, enquanto frescos, os seus eram amarelo-ouro, desbotando em seguida, para se tornarem pardo e branco. Nenhum outro naturalista consigna ter encontrado hilas vivas cor de laranja. Trabalhando há muitos anos na coleta de batráquios com o nosso prático de laboratório, Joaquim Venancio, nunca encontramos pererecas alaranjadas. Ultimamente, tivemos entretanto o ensejo de observar que os espécimes mortos de uma pequena Hyla, verde, aquática, do Distrito Federal, tornam-se laranja quando mergulhados em álcool. A cor permanece por algum tempo, desaparecendo a seguir. Por outro lado, mantendo em vivário, exemplares de outra espécie, um pouco maior, da Serra dos Órgãos, tivemos o ensejo de ver três exemplares perderem a cor verde em vida, tornando-se amarelos e depois cor de laranja. Um deles continuou com uma pata verde durante alguns dias. Todos esses exemplares morreram sem recuperar a cor verde. Quando se mergulha um dos espécimes normais, verde intenso, em álcool, esse líquido toma uma cor esverdeada. Depois de algum tempo a cor de laranja do espécime conservado foge, podendo permanecer por algum tempo ainda cromatóforos róseos ou pardo-purpúreos, visíveis nas estrias escuras ou em todo o dorso, desaparecendo posteriormente também, ficando então o espécime uniformemente branco, cor de marfim ou pardo.
Dessas observações deduzimos que muito provavelmente a Hyla aurantiaca de Daudin também é um batráquio verde e não laranja, como indicaria o seu nome, e que os fatos narrados demonstram como é difícil a classificação dos batráquios conservados sem vê-los na natureza e com vida.
Tendo duas espécies de pererecas verdes com alguns, mas não todos, os caracteres que distinguem a Hyla aurantiaca de Daudin, concluímos ainda que o nome de Hyla aurantiaca tem sido aplicado, não a uma, mas às várias espécies, como já o indicam aliás as procedências muito diversas, as dimensões que apresentam divergências respeitáveis e as variações que se encontram nos espécimes descritos na literatura sobre o assunto.
Ao encontrarmos a menor das nossas espécies, ficamos desde logo surpreendidos pela cabeça, esqualirostre e em forma de cunha. Esse mesmo caráter já impressionara outro naturalista, Tschudi, que em 1838 criou um gênero à parte, o de Sphoenorhynchus (focinho em forma de cunha) para os espécimes sinônimos de Daudin. Verificamos que infelizmente esse nome não pode subsistir, tendo sido empregado anteriormente, por duas vezes, por ornitólogos.
Resolvemos, pois, restabelecer a maior parte dos caracteres de Tschudi, não como gênero, mais como subgênero novo, para a espécie de Daudin e as nossas duas espécies novas. Assim procedemos porque ambas as espécies novas possuem certos distintivos do gênero Hyla. É muito provável que mais tarde tenha que se subdividir novamente a espécie aurantiaca de Daudin, na qual ainda permanecem os espécimes do norte que constituem a maioria dos conhecidos e descritos, sob a denominação aurantiaca.
O exemplar tipo de Daudin não tem procedência certa, mas quase todos os batráquios por ele descritos são de Cayenne e do norte do continente.
É provável que também esse proceda daquela região. Aliás, a cidade de Friburgo e outras colônias alpinas do estado do Rio de Janeiro ainda não tinham sido fundadas quando o naturalista francês criou a sua espécie.
Ao novo subgênero é dado o nome de Sphoenohyla. A diagnose é a seguinte:
Sphoenohyla nov. sub-gen – Caput minimum, trigonum; verticem planum, rostrum oblique truncatum; nares in cantho rostrali, oris rictu parvum, linguam maximam; tympanum cute tectum, dentes maxillares minos numerosos, nec semper contiguos; dentes vomerinos minimos.
Inclui o novo subgênero as seguintes espécies:
1. (Sphoenohyla) – aurantiaca Daudin (= Hyla lactea Daudin), espécie tipo. 43 mm, (segundo Boulenger), com olhos grandes e outros caracteres, diversamente descritos, segundo os autores, principalmente em relação à língua, às membranas natatórias e ao comprimento dos membros.
2. Hyla (Sphoenohyla) – orophila n. s. p.: 30-35 mm; verde intenso, com focinho triangular, terminado em ponta arredondada, íris verde ouro, com pigmento pardo. Uma estria dourada constante, debruada em pardo, cantal e dorso lateral, da ponta do focinho à região inguinal. Espécie de montanha, aquática, vivendo em águas dormentes. Procedência: Serra do Mar.
3. Hyla (Sphoenohyla) planicola, sp.: 21-23 mm; verde claro, sem nenhum desenho; focinho triangular, truncado no ápice, com as narinas nas extremidades da linha anterior horizontal; íris com lóbulos medianos; superior e inferior, fundo dourado, pigmento pardo purpúreo na zona interna e verde na periférica. Aquática, noturna, de águas dormentes limpas, na Baixada Fluminense.
Os tipos e paratipos na coleção herpetológica do Dr. Adolpho Lutz, no Instituto Oswaldo Cruz, foram apanhados pelos autores e auxiliares J. Venâncio e A. Passarelli, a primeira na Serra do Mar em Petrópolis, Friburgo e Serra da Bocaina, a segunda no Recreio dos Bandeirantes e várias localidades do Distrito Federal e estado do Rio de Janeiro, na Baixada Fluminense.
Hyla albosignata n. sp. foi encontrada pela sua voz, que se assemelha ao som produzido quando se sopra por cima do gargalo de uma garrafa vazia. Vive nas árvores, descendo apenas na época nupcial para a beira dos córregos de montanha. É toda verde, com exceção das pregas cutâneas e glândulas. Seu nome é dado em atenção a um padrão glandular muito especial da região anal, constituído por séries paralelas de grânulos brancos, semelhantes ao que se chama milium em dermatologia. Encontram-se abaixo do ânus, e, com a prega supra-anal, constituem um desenho semelhante a certos estribos muito largos no pé. Outro caráter importante é o íris dividido em duas zonas, uma interna, cor de cinza, e outra externa, cor de eosina, diferente do olho de qualquer outro batráquio observado por nós. Distinguem-se facilmente das espécies verdes de dimensões e procedências semelhantes, Hyla albofrenata Lutz e Hyla albomarginata Spix, pelo íris. O de Hyla albosignata é conforme acaba de ser descrito; o de Hyla albomarginata é cor de cinza ou argênteo, um pouco rosado, o de Hyla albofrenata Lutz é purpúreo (cor de ameixa) com venulações. Além disso, Hyla albosignata prescinde do freio cantal alvo de Hyla albofrenata, que é menor, mais delgada e um pouco diferente em matizes. Não possui as manchas alaranjadas do fêmur de Hyla albomarginata, que, maior e mais clara, é caracterizada pela linha dorso-lateral branca da qual deriva sua denominação.
Tipo da Estação Biológica, no Alto da Serra de Cubatão, São Paulo. Para-tipos de várias localidades, todas elas de montanha.
Hyla pickeli n. sp. é uma espécie pequena, encontrada em Pernambuco, Rio Grande do Norte e Bahia. Os primeiros exemplares foram enviados por D. Bento Pickel, da Ordem de São Bento, e apanhados em bromélias. O corpo é alongado, o focinho pontudo e as pernas são muito longas, depassando a articulação tíbio-tarsal a ponta da cabeça, quando a perna é levada à frente. Tipo e para-tipos de Tapera, Pernambuco, outros espécimes de Natal, Rio Grande do Norte, e vizinhanças de Salvador, Bahia.
(Ver a bibliografia no final da versão em inglês)