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10

O homem mágico

No fim da tarde de sexta, Paxton não suportou mais. Ela tinha de ver Willa. Por que ela estava tão quieta? Será que estava planejando usar tudo que sabia contra Paxton mais adiante? Entre a discussão bêbada, no Gas Me Up, a confissão de Paxton sobre Sebastian e, acima de tudo, a explosão de Nana Osgood, o potencial para constrangimento público era enorme e isso era a última coisa de que ela precisava no momento: mais escândalos cercando a Madam. Como ela foi acabar devendo tanto a uma mulher que mal conhecia?

Paxton seguiu de carro até o bairro de Willa e estacionou atrás de seu jipe. Endireitou os ombros, marchou até a porta e bateu. Ainda estava claro e o cheiro dos jantares de verão sendo preparados pairava no ar, os tomates fatiados, as vagens frescas, o cheiro do carvão. Quando Willa abriu a porta, o contraste entre as duas não podia ser mais óbvio. Willa estava confortável, de jeans e camiseta curta que parecia feita de bandanas. Paxton estava com um vestido bege justo e blazer de alfaiate, que ela borrifava regularmente ao longo do dia, com um vaporizador, para desamassá-lo.

— Paxton — disse Willa, surpresa. — Entre.

— Eu estava preocupada que você não estivesse aqui — disse Paxton entrando enquanto Willa fechava a porta.

— Estou sempre aqui sexta à noite. Reservo as noites de sexta para passar aspirador. A diversão nunca termina na Casa Jackson.

Paxton ajustou a bolsa no ombro.

— Então o que estava fazendo na rua na última sexta?

— Eu fui a um jantar que não pretendia ir.

Sorte minha. Paxton respirou fundo e foi direto ao assunto.

— Colin me disse que perguntou a você sobre o que aconteceu na sexta passada e você se recusou a dizer. Ele também parece não saber sobre a confissão de Nana Osgood. — Ela hesitou. — Achei que você fosse contar a ele. Eu esperava que você contasse para todo mundo.

Willa franziu as sobrancelhas.

— Por que eu faria isso?

— Segundo a minha experiência, as pessoas parecem ficar mais alegres do que deveriam quando as coisas não dão certo para mim.

— Bem, quando Colin mostrou não saber que a polícia tinha me perguntado sobre minha avó, eu imaginei que estivéssemos na mesma posição. De qualquer forma, como saberíamos o que aconteceu? — perguntou Willa.

— Você está certa. Não sabemos — disse Paxton, aliviada. — Mas eu acho um absurdo que Georgie tenha alguma coisa a ver com aquele esqueleto. Sempre gostei da sua avó. — Houve um silêncio constragedor no ar. — Tudo bem, eu sei que você não pode dizer a mesma coisa sobre a minha.

Willa deu um sorriso lamentoso.

Paxton olhou em volta sem jeito. Havia caixas na sala que não estavam ali na semana anterior. Os olhos dela imediatamente pousaram sobre um lindo vestido cinza que estava por cima de uma das caixas. O tecido era bordado e parecia coberto de estrelinhas reluzentes. Ela se aproximou e tocou-o com a reverência que só quem conhece o verdadeiro poder de um vestido pode ter.

— Isso é deslumbrante. É vintage? — Só podia ser. Tinha o bustiê justo, cintura marcada e a saia rodada do começo dos anos 1950.

Willa assentiu.

— Aparentemente é de 1954. Ainda tem as etiquetas. E estava na caixa original com o cartão. Foi um presente de Natal da sua avó para a minha. Ela o guardou todo esse tempo, mas nunca usou.

— Elas foram realmente amigas, não foram? — disse Paxton, ainda olhando o vestido.

— Em certa época, sim, acredito que foram.

Paxton se afastou do vestido e apontou para as outras caixas.

— O que é tudo isso?

— As coisas da minha avó. Estive olhando as coisas dela. Você me pegou quando eu estava colocando as caixas de volta no sótão.

— Procurando respostas? — Paxton imaginou. Claro que ela estava. Georgie Jackson não machucaria uma mosca. E Willa estava decidida a provar. Mas, quando se tratava de Nana Osgood, Paxton não tinha certeza do que ela seria capaz. E isso a amedrontava.

— Mas não encontrei muita coisa — disse Willa, dando de ombros.

— O que você encontrou?

— Não estou querendo incriminar Agatha, se é o que você está pensando. Só quero saber o que aconteceu. Depois daquele ano, as coisas não foram mais as mesmas para a minha avó. Estou começando a achar que Tucker Devlin teve algo a ver com isso. — Ela foi até a mesa de centro e remexeu em alguns papéis que estavam ali. — Encontrei isso na biblioteca. — Ela entregou a Paxton as impressões dos boletins da antiga sociedade. Willa deu um tapinha numa foto em preto e branco granulada, de um homem de terno, atrás de duas adolescentes suspirantes. O estilo das roupas parecia ser da década de 1930, ou 1940. — Esse é Tucker Devlin. Ele está com Agatha e Georgie nesta foto.

Perplexa, Paxton olhou mais de perto. Certamente eram as maçãs bem definidas do rosto de sua avó, seus grandes olhos escuros. Ela parecia tão feliz. O que teria acontecido? Para onde foi essa garota?

— Tem uma coisa me intrigando — disse Willa. — Você acha uma simples coincidência que o Clube Social Feminino tenha sido fundado na mesma época em que ele foi morto?

— Claro que é coincidência — disse Paxton, imediatamente. — Como as duas coisas poderiam estar ligadas?

— Eu não sei. Tudo o que sei é que, segundo esses boletins, nossas avós eram amigas aparentemente dedicadas uma à outra. Então, Tucker Devlin chegou e de repente elas se tornaram rivais pela afeição dele. Ele desapareceu em agosto, quando elas se reaproximaram e criaram o clube.

Paxton esfregou a testa. Por que isso tinha de fazer tanto sentido?

— Por favor, não deixe que essa teoria se espalhe. Eu já tenho pouco controle sobre o clube.

— Achei que tivéssemos acabado de falar sobre isso. Não vou contar a ninguém — disse Willa. — Gostaria de beber alguma coisa?

— Sim — disse Paxton. — Obrigada.

Quando Willa deixou a sala, Paxton foi até o sofá e sentou-se, tentando não deixar que ele a lembrasse do quanto passou mal na última vez que esteve sobre ele. Ela colocou a impressão do boletim com os papéis na mesa de centro, depois notou um álbum de fotografias com uma única foto em cima. Ela a pegou e observou. Ele parecia tão magnético naquela foto. Era o tipo de homem que passava a certeza de poder destruir civilizações inteiras com apenas um sorriso. Por que sua avó o mataria?

Willa voltou com duas garrafas de suco e entregou uma a Paxton.

— Tucker Devlin era certamente bonito — disse Paxton. — Se nossas avós tiveram uma queda por ele, dá para ver o motivo.

Willa pareceu confusa.

— Este não é Tucker Devlin. Esta é uma foto antiga do meu pai, que encontrei no álbum. Fiquei em dúvida se guardava ou não.

Paxton olhou novamente a foto.

— O quê?

— Esta é uma foto do meu pai.

— É? Ele é igualzinho ao Tucker Devlin.

Willa pousou sua garrafa e pegou a foto para olhar. Depois ela ergueu o retrato. Comparou as duas, e uma expressão de compreensão estampou o rosto de Willla quando ela despencou no sofá ao lado de Paxton.

— Ai, Deus, eu estava me esforçando tanto para não acreditar.

Segundos depois, Paxton também se deu conta. Georgie Jackson estava grávida quando sua família perdeu a Madam, e todos sabiam disso. Mas ninguém sabia quem era o pai da criança. Até agora.

Era isso. O fato que provocava a reviravolta em tudo. Essa não era apenas a história de Paxton, a qual ela amava e protegia, e que lhe dava uma sensação tão forte de pertencimento. Era a história de Willa também. E, de alguma forma, elas estavam ligadas. Descobrir que Tucker Devlin podia ser avô de Willa era demais para ignorar. Willa precisava saber o que acontecera com sua família, mesmo que isso mudasse a forma que Paxton pensasse sobre a dela.

— Acho que precisamos conversar com a Nana Osgood — disse Paxton.

Naquele fim de tarde, Agatha estava sentada no sofá de dois lugares em seu quarto enquanto o sol se punha. Ela não podia vê-lo, mas era capaz de senti-lo, de reconhecer o calor que passava por seu rosto, em pequenos movimentos. Havia um leve toque de pêssegos no ar, mas isso não a assustava. Ela estava simplesmente contente por Georgie não estar consciente o bastante para percebê-lo agora.

Naquela noite, ela não quis comer no salão de jantar, então pediu que a comida fosse levada ao seu quarto. Ela gostava de comer sozinha. Seu último prazer. De qualquer forma, ela não se preocupava com sociabilizar com outras pessoas dali. Estava velha demais para fazer amigos. Ninguém mais a compreendia.

Ela não estava deprimida. Agatha nunca ficara deprimida. Era autossuficiente demais para isso. Não que ela gostasse de suas circunstâncias atuais, além de se ver cada vez mais no passado desde que ouvira falar da Madam e da descoberta dos restos de Tucker Devlin.

— Nana Osgood? — era a voz de Paxton vindo da porta.

— Paxton, o que você está fazendo aqui? Você acabou de perder um encontro com seu irmão, o garoto árvore. Ele finalmente veio me visitar. E me trouxe chocolates. O que você trouxe para mim?

— Willa Jackson — disse Paxton ao entrar no quarto. Ouviu-se outro par de passos e surgiu outra sombra ao lado de Paxton.

— Olá, Sra. Osgood — disse Willa. Willa tinha sido uma criança sorrateira. Não cruel. Nem traiçoeira. Ainda assim, sorrateira. Agatha sempre vira isso. Georgie também, porém, assim como foi com Ham, ela achava que poderia encobrir qualquer traço que lembrasse Tucker Devlin, mantendo sua família na maior descrição e normalidade possíveis. Isso nem sempre foi vantagem para eles. Na verdade, Agatha acreditava que Ham poderia ter realizado grandes coisas se ao menos a mãe não lhe incutisse tanto o senso de pequenez. Mas Georgie sentia que estava apenas equilibrando a natureza intempestiva de Tucker, que ela temia ter sido herdada por Willa e Ham. E claro que eles tinham herdado. Até aí, isso sempre foi claro, mas não significava que eles se tornariam maus. Ela deveria ter dito isso a Georgie.

— Vocês duas juntas aqui só pode significar uma coisa — disse Agatha. — Vocês querem saber o que aconteceu.

— Willa encontrou algo chamado Boletim da Sociedade de Walls of Water. Nós juntamos os pedaços.

— O Boletim da Sociedade. Eu tinha me esquecido dele. — Agatha riu quando pensou nisso, no quanto achavam o Boletim importante naquela época. — Era a Jojo McPeat que publicava. Aquela mulher era a pessoa mais enxerida que Deus já criou.

— Sra. Osgood, Tucker Devlin era o pai do meu pai? — perguntou Willa.

Aquilo a atingiu no ponto onde ela achava ficar seu coração.

— Vocês deduziram isso, é?

— O que aconteceu? — perguntou Paxton, sentando-se ao lado de Agatha. Willa permaneceu na porta. — A senhora realmente o matou?

— Sim, matei — disse Agatha. Por todas as coisas que ela não pôde dar a Georgie, ela pôde ao menos lhe dar isso.

— Por quê?

— Porque somos ligadas, como mulheres. É como uma teia de aranha. Se uma parte dessa teia vibra, se há problemas, todas nós sabemos. Contudo, na maior parte do tempo, somos apenas medrosas, egoístas ou inseguras demais para ajudar. Mas, se não nos ajudarmos, quem irá fazê-lo?

— Então a senhora o matou por Georgie? — perguntou Paxton, e seu tom insinuava que ela imaginava ter sido por outros motivos, razões menos nobres.

— Houve uma época em que a Georgie e eu éramos unha e carne. Eu achava que nada mudaria isso. Até Tucker Devlin. Vocês precisam entender como eram as coisas naquela época. Foi durante a Grande Depressão e, além disso, a nova floresta nacional significava o fim dos madeireiros. Aqueles, dentre nós, que conseguiram guardar seu dinheiro estavam tentando ajudar os que o tinham perdido. Quando ele chegou, foi como se revivêssemos. Os dias eram mais iluminados. A comida era mais saborosa. Ele prometeu a cada um de nós exatamente o que mais queríamos. E nós acreditamos nele. A cidade toda acreditou nele. Éramos seus prisioneiros. E logo no início nós aprendemos a não enfurecê-lo. Havia um velho chamado Earl Youngston que repetidamente tentava nos fazer ver que Tucker era um trapaceiro. Um dia, depois de um confronto com Tucker, a barba de Earl cresceu doze metros, da noite para o dia, mantendo-o preso à sua cama. Depois disso, ele se calou e passou a ter de se barbear seis vezes por dia.

Nana Osgood se calou por um momento.

— Depois de um tempo, todos os homens queriam sua opinião e todas as garotas estavam apaixonadas por ele. Ele se assegurou disso. Pois sabia que a melhor forma de obter o que queria era destruir o que nos fortalecia. E nossa amizade era o que nos fortalecia. Ele mudou tudo isso. Foi por isso que nós ficamos tão enciumadas quando Tucker se mudou para a Blue Ridge Madam com seus planos grandiosos de salvar a cidade, transformando Jackson Hill num pomar de pessegueiros. Georgie não era apenas a mais bonita de nosso grupo como estava sob o mesmo teto que ele.

Agatha virou a cabeça. Ela pôde ouvir que o carrinho com a comida estava vindo pelo corredor. Essa era a única expectativa que lhe restara. Seu estômago se retraiu.

— Nana? — disse Paxton.

Onde ela estava?

— Ah. Bem, Georgie tentou nos contar o que estava acontecendo. Ela disse que Tucker dormia no sótão e andava muito de um lado para o outro. Disse que ele era inquieto e isso afetava a casa toda. Disse que os ratos fugiam, mas os pássaros estavam sempre tentando entrar. Ela dizia coisas como “Ele tem um temperamento cruel” e “Ele não me deixa em paz”. Mas nós a detestávamos por isso, porque o queríamos para nós. Depois de alguns meses, Georgie começou a nos evitar. Ela não ia mais às festas. Achamos que ela queria dizer que não éramos boas o bastante para ela. Mas ela o fazia porque estava assustada e envergonhada, e quando nós lhe viramos as costas ela não tinha mais ninguém.

— Por que ela estava assustada e envergonhada? — perguntou Willa.

— Não havia nenhuma história de amor se passando por lá — disse Agatha. — Tucker a violentou. Esse foi um dos motivos para que ele quisesse se mudar para lá. Para pegá-la.

As meninas ficaram em silêncio. O carrinho de comida se aproximava.

— Quando ela finalmente juntou coragem suficiente para me contar que estava grávida, fiquei com muita raiva de mim mesma. Ela era minha melhor amiga, e inúmeras vezes tentara me contar o que estava acontecendo, mas eu deixei que meu ciúme atrapalhasse. Eu poderia ter impedido. Poderia ter impedido tudo.

— Então o matou pelo que ele fez — disse Paxton.

— Não. Eu o matei porque ele não parava de fazê-lo. Ele a aterrorizava. Eu o atingi na cabeça, com uma frigideira.

— A frigideira que estava enterrada com ele — imaginou Willa.

— Sim.

— Ninguém soube? — perguntou Paxton. — Você o enterrou embaixo do pessegueiro sozinha?

— Georgie sabia. Nós o enterramos juntas. E naquela época não havia o pessegueiro. Ele nasceu depois. — Houve uma batida na porta. — Ele sempre disse que tinha suco de pêssego nas veias.

— Aqui está seu jantar, Sra. Osgood — disse a copeira.

— Agora vão — disse Agatha. — Eu quero comer.

— Mas... — disse Paxton.

— Se vocês quiserem saber mais, voltem. A história tem cerca de setenta e cinco anos. Ela não vai a lugar nenhum.

Agatha ouviu o ruído dos passos das meninas se afastando. Gostava das duas juntas. Isso lhe dava esperança.

— Não nos subestime. Você fez isso antes e olhe aonde isso o levou — ela disse a Tucker.

— O que disse, Sra. Osgood? — perguntou a copeira enquanto colocava a bandeja diante dela.

— Nada. Agora me deixe comer — Agatha disse a ela. Depois, acrescentou. — Vocês dois.