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As guardiãs do pessegueiro 1936

Na primeira vez que aconteceu, Georgie acordou, subitamente congelando. Ela não sabia o motivo. Naquele verão fazia tanto calor que ela tinha de dormir sem as cobertas e mesmo assim derretia toda noite. Mas, naquela, ela acordou com o suor congelando e rachando sua pele. Ela estremeceu e olhou pela janela, esperando ver o mundo congelado. O mundo estava mudando, pensou ela, sonolenta. Vinha mudando havia meses. E agora que aquele tal de Tucker, com seu sorriso charmoso e seu jeito mágico, tinha ido morar na Madam com eles, Georgie sentia as mudanças ainda mais. Havia muita esperança no ar, esperança de que os problemas financeiros logo fossem superados com esse pomar de pêssegos que eles estavam planejando. E seu pai, que a ignorava em dias bons e a culpava pela morte da mãe, no parto, em dias ruins, agora até parecia feliz em vê-la no jantar. Ele ficava feliz porque Tucker ficava feliz. Tucker mudava as pessoas dessa forma. E, por conta disso, ela ignorava a forma que ele se esfregava nela nos corredores, como estava sempre por perto quando ela saía da banheira. Ela ignorava a inquietação dele, e a forma pela qual seu temperamento se inflamava às vezes. De qualquer forma, Agatha lhe dissera que ela estava sendo tola e não fazia ideia do quanto era sortuda. Tucker também tinha mudado Agatha. Houve uma época em que ela podia contar qualquer coisa a Agatha, mas agora a amiga ficava enfurecida toda vez que via Georgie, ela não sabia o motivo. Ultimamente, Georgie se sentia muito solitária. Ela não percebera quanto estava solitária, ali, no alto de Jackson Hill, até que suas amigas pararam de vir vê-la. E nas festas elas a ignoravam. Assim, Georgie agora passava a maior parte de seu tempo em seu quarto, remendando vestidos para que pudesse usá-los por mais um ano, ou reorganizando as bonecas no armário, escovando seus cabelos e passando seus aventais, sonhando com o dia em que todas essas mudanças teriam passado e todas voltariam ao normal.

Naquela noite surgiu um cheiro de pêssego e fumaça perto dela, que se sentou, tremendo na cama. De qualquer forma, ela estava acostumada ao aroma de pêssego. Tucker o trazia na pele. A essência o seguia por onde ele fosse. Por isso ele dizia que os pássaros o incomodavam tanto, pois gostavam de seu cheiro. Georgie nunca discutiu, mas ela sempre achou que os pássaros que mergulhavam na direção dele pareciam zangados, não enamorados.

Ela olhou ao redor do quarto escuro e viu uma pequena luz perto da porta. A ponta acesa de um cigarro. Alguém estava em pé, junto à sua porta fechada. Seu coração deu um pulo no peito. Pareceu um soco por dentro.

Tucker saiu da sombra. Ele levou o cigarro aos lábios e deu uma tragada, iluminando o próprio rosto. Soltou o cigarro no chão e pisou sobre ele, e tudo voltou a ficar escuro.

Quando ele foi até ela, Georgie não entendeu o que estava acontecendo. Quando ele finalmente saiu, ela ficou em sua cama pelo resto da noite, assustada demais para se levantar. Ela ouviu quando ele desceu de seu quarto no sótão, pela manhã, parando em sua porta, depois indo embora. Quando a casa ficou quieta, ela finalmente se levantou e se lavou, mas depois prendeu uma cadeira na maçaneta, para não deixar ninguém entrar, até que seu pai exigisse sua presença no jantar. Passou-se uma semana, depois duas, sem que Tucker voltasse a abordá-la, e ela achou que aquilo tinha acabado. Ela até começou a se recuperar. Seu mundo já não era mais o mesmo, mas ela sabia que sobreviveria.

Então, ele voltou.

E aquilo se estendeu pelo verão todo. Independentemente de quantas vezes ela tentasse obter ajuda, ninguém lhe dava ouvidos. Ele fazia que ninguém a ouvisse. Ela não via como aquilo poderia acabar. Continuaria assim para sempre, a menos que ela parasse. Mas Georgie não era tão corajosa. Ela nunca fora muito corajosa.

Até o dia em que finalmente aceitou que estava grávida.

Naquele dia, ela levou a frigideira da cozinheira para o seu quarto. E, ao cair da noite, ela ficou atrás da porta e esperou.

Depois que ela o atingiu, surgiu uma batida seca, como se algo tivesse caído no quarto ao lado, e ela apenas ficou ali, como se esperasse que tudo voltasse ao que era. Georgie começou a tremer. Nada estava diferente. Ela continuava grávida. E tinha acabado de ferir Tucker, talvez até o tivesse matado. Seu pai jamais compreenderia. Ninguém entenderia. Exceto...

— Mostre-o para mim — disse Agatha, depois que Georgie correra até sua casa, em meio ao nevoeiro, tropeçando e caindo pelo caminho. Quando finalmente chegou à Cabana da Nogueira, ela estava coberta de terra e arranhões. Ela conhecia um caminho que levava à escada dos fundos da casa, a escada que elas usavam muitas vezes para passar escondidas dos pais de Agatha. Georgie havia acordado Agatha e implorado que ela ouvisse, implorado por sua ajuda. Ela confiava em Agatha mais que em qualquer pessoa no mundo. E o que aconteceu naquele verão não poderia ter apagado a amizade de uma vida. Simplesmente não acabava assim. Ao menos ela rezava por isso. Ela já tinha perdido muito.

Agatha estava estranhamente quieta enquanto Georgie a levava de volta à Madam. Tucker estava bem ali onde ela o deixara, no chão de seu quarto. A frigideira estava pousada sobre seu peito, como um peso para impedi-lo de sair flutuando. Agatha se ajoelhou ao lado dele, murmurando algo que Georgie não conseguiu entender. Ela pôs uma das mãos na cabeça dele, depois deu um solavanco para trás, como se tivesse se queimado. Ela se levantou e disse:

— Precisamos fazer isso depressa. Ele não está totalmente apagado. E está zangado. Precisamos cavar um buraco perto. Não podemos carregá-lo para longe. Tem de ser no quintal. Se o fizermos na colina, ele será levado pela água. Vamos rápido, Georgie, vamos começar. — Nisso Agatha era muito boa, assumir o comando, organizar, fracionar as coisas em partes administráveis.

Elas trabalhavam à luz de velas. Na cozinha, Georgie juntou pimenta e pó de serragem que as abelhas carpinteiras tinham criado ao fazer um ninho na varanda. Uma vez, a cozinheira lhe dissera que, se você salpicar serragem e pimenta na frente da porta, ninguém conseguirá sair daquele cômodo. Ela espalhou diante da porta dos quartos do pai e dos irmãos, torcendo para que isso desse a ela e a Agatha tempo para o que precisa ser feito.

Elas cavaram o quintal durante horas, o mais distante que puderam da casa, mas não tão perto do precipício a ponto de desbarrancar o penhasco. Jamais se esqueceria daquele silêncio. A neblina abaixo delas escondia a visão da cidade, mas também abafava tudo. Dava a sensação de que elas eram as únicas pessoas no mundo, duas jovens prestes a enterrar um símbolo de sua impotência, como se isso fosse a única coisa necessária para torná-las inteiras novamente.

Quando Agatha disse que o buraco estava grande o suficiente, a lua crescente já tinha atravessado o céu noturno.

Elas voltaram à Madam para buscá-lo. Arrastaram-no até a janela do quarto de Georgie e o empurraram para fora. Então, pegaram-no pelos braços e pelas pernas e meio que carregavam, meio que arrastavam o corpo, atravessando o quintal, deixando um rastro negro, como se um raio tivesse chamuscado a terra.

Depois de terminar elas ficaram ali, enquanto o sol se erguia acima da neblina. Elas estavam sujas e trêmulas, quase dormentes.

Agatha finalmente se virou para Georgie e a abraçou. Levou um momento para que Georgie percebesse que Agatha estava chorando, e Agatha nunca chorava.

— Oh, Agatha — disse Georgie. — Eu lamento muito.

— Não! — disse Agatha, recuando. — Você não tem do que se lamentar. Isso é culpa minha. Que tipo de amiga deixa isso acontecer? Eu é que lamento. Lamento muito.

— O que vou fazer? — perguntou Georgie. — Diga-me o que fazer, Agatha.

— Vamos superar isso. Não se preocupe. Não importa o que aconteça, eu estou aqui para você. Jamais voltarei a decepcioná-la.

— E se descobrirem que fui eu?

Agatha pegou sua mão.

— Enquanto eu viver, Georgie, ninguém jamais saberá que foi você. Eu prometo.

E setenta e cinco anos depois, Agatha tinha mantido a promessa.