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Código dos banidos

Willa ouviu a batida na porta quando estava tirando a última leva de roupa da secadora naquela noite. Ela teve a sensação de que sabia quem era, mas, com todas as janelas fechadas e o ar-condicionado ligado, ela achou que seus vizinhos implicantes não ouviriam se ela aumentasse o som de Bruce Springsteen.

Deixando a roupa em cima da mesa da cozinha e pulando seu costumeiro ritual de mergulhar o rosto na roupa ainda morna, ela caminhou pela casa até a porta da frente.

Esse era um dos lados negativos de morar num bairro antigo com casas tão próximas. Mas Willa tinha herdado esta, que fora seu lar de infância, quando o pai faleceu, quase sete anos antes. Uma casa com financiamento pago não podia ser esnobada, principalmente levando-se em conta que Willa tinha finalmente quitado o astronômico débito de seu cartão de crédito, contraído na faculdade. Walls of Water tinha um número incomum de habitantes ricos, e quando era jovem ela detestava não ser um deles. Tinha sido uma sensação inebriante quando subitamente teve fácil acesso ao dinheiro, na faculdade, deitando e rolando como sempre quisera. Seu pai morrera antes de descobrir quão afundada em dívidas ela estava.

Agora, com tudo quitado, ela era a proprietária de um negócio e de uma residência, tudo graças ao pai, que lhe deixara a casa e a pusera como beneficiária de um seguro de vida. Ser adulta era algo importante para ele. Ela lhe devia isso. Essa era sua penitência por causar tanta tristeza a ele e à sua avó, por sua espantosa incapacidade de conter toda a sua inquietante energia juvenil, e passar a viver a vida tranquila que eles queriam.

Springsteen estava cantando “I’m on Fire” quando ela abriu a porta. Willa ergueu os olhos e o homem em sua porta disse:

— E voltamos a nos encontrar.

Qualquer som que poderia estar se formando em sua garganta desapareceu. Quando ela abriu a boca, tudo que saiu foi o ar com palavras dissolvidas.

— Você fugiu tão depressa hoje que se esqueceu disso — ele estendeu a mão com o convite.

Ela o pegou rapidamente e, inexplicavelmente, escondeu atrás das costas.

Ele enfiou as mãos nos bolsos. Ainda estava vestindo as mesmas calças e camisa social, agora seca, parecendo papel amassado. A intensa luz da luminária em globo ao lado da porta o obrigou a estreitar os olhos, fazendo surgir ruguinhas. Ele a olhou por um momento, antes de dizer:

— Eu levei a culpa por todos os seus trotes no ensino médio. O mínimo que você poderia fazer é me convidar para entrar.

Isso a fez despertar.

— Você não levou a culpa, você levou o crédito — disse ela.

Claro que ela se lembrava dele. Isso tornara ainda mais constrangedor ser flagrada em Jackson Hill. Embora Willa nunca tivesse prestado muita atenção em Colin na escola, todos sabiam quem ele era. Era um Osgood. Mas sempre fora ofuscado por sua irmã gêmea popular e obstinada. Não que Colin parecesse se importar. Ele provavelmente poderia ter sido tão popular quanto Paxton, mas nunca pareceu tão interessado quanto ela em se candidatar anualmente à presidência do conselho estudantil ou em ingressar em um milhão de clubes. Ele andava mais com os garotos que usavam camisa polo em tons pastel e jogavam golfe nos fins de semana. Parecia destinado a regressar depois da faculdade e assumir o lugar do pai, como Rei dos Links, mas, por algum motivo, ele não aparecia com tanta frequência. Ela não fazia ideia da razão.

Willa não tivera a intenção de culpá-lo por seus trotes no ensino médio. No início do último ano, ela saiu escondida numa noite e pregou uma citação do poeta Ogden Nash na marquise da escola. DOCE É ELEGANTE, MAS BEBIDA É MAIS VELOZ. Ela entreouvira Colin dizer isso, ele havia passado o dia recitando, e Willa tinha achado engraçado. O que ela não sabia era que Colin tinha acabado de entregar um trabalho sobre Ogden Nash, portanto ela o comprometeu sem querer. Ninguém jamais pôde provar que tinha sido Colin, e seus pais garantiram que ele jamais fosse responsabilizado, mas todas as brincadeiras que Willa fizera até então, e as que fez depois, foram creditadas a ele. Colin ganhou respeito por ser o “Piadista da Escola Walls of Water”, herói dos alunos, ruína dos professores. Foi somente quando Willa foi flagrada de fato, três semanas antes da formatura, que todos se deram conta de que era ela a piadista, não Colin.

— Vai me deixar entrar ou não? O suspense está me matando.

Ela suspirou e deu um passo para trás. Quando ele entrou, Willa fechou a porta, depois passou por cima dos alto-falantes de seu iPod, ao lado do computador, e abaixou o volume do som, antes que Springsteen pudesse soar ainda mais sexy. Ela se virou e viu Colin andando ao redor, distraidamente passando a mão por cima do encosto de seu sofá supermacio. Era esse tipo de sofá. Você tinha de tocar. Depois de quase sete anos, foi a primeira coisa nova que ela comprou para a casa, e tinha sido entregue apenas alguns dias antes. Custou caro, era pouco prático, e ela se sentira culpada, mas estava ridiculamente apaixonada por ele.

— Ninguém me disse que você tinha voltado — disse Colin.

— Por que diriam?

Ele sacudiu a cabeça, como se não soubesse a resposta.

— Há quanto tempo você está aqui?

— Desde que meu pai morreu.

Os ombros de Colin caíram ligeiramente.

— Lamento pelo que aconteceu. — O pai dela tinha sido atropelado e morrera ao tentar ajudar alguém a trocar um pneu na interestadual, no ano que seria o último da faculdade de Willa, se ela não tivesse trancado. Outra coisa que seu pai não soubera. — Ele era um ótimo professor. Tive aula de química com ele no segundo ano. Uma vez, ele deu um jantar para seus melhores alunos aqui nesta casa.

— Sim, eu me lembro. — Ela detestava aqueles jantares, porque os garotos vinham à sua casa, viam como ela vivia. Ela se escondia em seu quarto e fingia estar doente. Não havia nada de errado com a casa, era apenas velha e pequena, nada parecida com as mansões em que metade dos garotos morava.

— Pensei muito em você ao longo dos anos, no que você estava fazendo, em que confusões estaria se envolvendo — ele parou. — Eu não fazia ideia de que você estava aqui o tempo todo.

Willa só olhava, imaginando por que isso teria importância.

Ele observou novamente a sala, olhando ao redor, então pareceu não saber mais o que fazer e sentou-se no sofá, dando um suspiro cansado. Colin passou os dedos pelos cabelos escuros. Suas mãos eram grandes. Ele era um homem grande, de presença marcante. Ninguém parecia perceber isso no ensino médio. O tempo que ele passou distante o modificou, deu-lhe mais confiança, um ar de independência que ele não tinha antes.

— Então, o que você anda fazendo ultimamente, Willa Jackson?

— Sou dona de uma loja de artigos esportivos na National Street. — Pronto. Isso parecia responsável, não? Normal e prático.

— O que faz para se divertir?

Ela lhe lançou um olhar engraçado. Que tipo de pergunta era essa?

— Lavo roupa — respondeu ela secamente.

— Casou? — perguntou ele. — Tem filhos?

— Não.

— Então, não tem uma prole para ensinar como colocar papel higiênico no gramado da escola, ou decorar os carros dos professores com pasta de amendoim, ou escrever citações escandalosas na marquise da escola, ou trocar os itens dos armários de toda a turma de formandos? — ele riu. — Aquilo foi um clássico. Deve ter levado a noite toda.

Isso era como uma lembrança afetuosa para ele. Mas ela propositadamente não relembrava essas brincadeiras havia anos. E não pensara em Colin duas vezes. Agora, subitamente, estava se lembrando da expressão no rosto dele, quando ela saiu da escola acompanhada por um policial, depois de disparar o alarme de incêndio. A escola toda estava do lado de fora, no gramado. Foi ela, eles cochichavam. Willa Jackson era a Piadista da Escola Walls of Water! Colin Osgood parecia completamente abatido. Willa só não sabia se era por ser ela ou porque ele não podia mais levar o crédito por seus trotes.

Eles ficaram se olhando, cada um de um lado da sala. Willa observou os olhos de Colin descendo por seu corpo, e estava prestes a mencionar isso quando ele disse:

— Então, você vai? — ele apontou para o convite, ainda na mão dela. — Ao baile de gala?

Ela olhou para baixo, como se estivesse surpresa de encontrar o convite ali. Ela o colocou sobre a mesa do computador, lançando um olhar desprezível, como se fosse tudo culpa do convite.

— Não.

— Por que não?

— Porque não tem nada a ver comigo.

— Então você só vai a festas que têm algo a ver com você? Sua festa de aniversário, por exemplo. — Depois de um breve silêncio, ele franziu o rosto e disse: — Isso pareceu mais engraçado em minha cabeça. Tudo subitamente começa a parecer engraçado quando você está acordado há quarenta e oito horas. Eu ri de uma placa de limite de velocidade a caminho daqui. Não faço ideia do motivo.

Ele estava bêbado de sono. Isso explicava muita coisa.

— Por que você está acordado há quarenta e oito horas?

— Não consegui dormir no voo, vindo do Japão. E estou tentando ficar acordado o dia todo, para poder ir para a cama na hora certa e não ficar perdido no fuso horário.

Ela olhou em direção à janela.

— Alguém o trouxe de carro, até aqui?

— Não.

Ela olhou em seus olhos. Eram escuros, enervantes e pareciam muito, muito cansados.

— Você está bem para dirigir? — perguntou ela, seriamente.

Ele sorriu.

— Isso foi algo muito responsável de perguntar.

— Deixe-me pegar um pouco de café.

— Se você insiste. Mas a antiga Willa teria encontrado alguma forma de tirar vantagem dessa situação.

— Você não faz ideia de quem era a antiga Willa — disse ela.

— Nem você, obviamente.

Sem dizer mais nada, ela virou-se e foi até a cozinha, onde conseguiu derrubar os grãos de café e a água. Ela só queria ligar a velha cafeteira de seu pai para poder dar uma boa dose de cafeína a Colin e fazê-lo seguir seu caminho.

— Você sempre sobe até a Blue Ridge Madam? — perguntou Colin, lá da sala.

— Não — respondeu ela. Claro que ele acabaria tocando nesse assunto.

— Então você não estava planejando uma brincadeira para, digamos, a grande noite de gala? — ele, de fato, disse isso com um tom esperançoso.

— Ah, pelo amor de Deus — murmurou Willa.

Recostando-se na bancada da cozinha, ela olhava a cafeteira gorgolejar calmamente. Quando a máquina finalmente tinha moído e coado café suficiente para uma xícara, ela serviu e levou até a sala.

Ele ainda estava sentado no sofá cinza de camurça, com as mãos nos joelhos, descansando a cabeça nas almofadas.

— Ah, não — disse ela, entrando em pânico, ao pousar a caneca na ponta da mesa. — Não, não, não. Colin, acorde.

Ele nem se mexeu.

Ela esticou o braço e tocou seu ombro.

— Colin, eu trouxe seu café. Acorde e beba um pouco — ela sacudiu seu ombro. — Colin!

Os olhos dele se abriram, e Colin olhou para ela ligeiramente desconcertado.

— O que aconteceu com você? Você era a pessoa mais corajosa que eu conhecia — Colin murmurou. Então, ele fechou novamente os olhos.

— Colin? — ela procurou por um sinal no tremular de seus cílios, pensando que ele talvez estivesse fazendo um joguinho com ela. — Colin?

Nada.

Ela ficou ali, em pé por um momento, perplexa. Bem na hora em que ia se virar, ela captou um sopro de perfume adocicado. Willa inalou profundamente, querendo saboreá-lo de modo instintivo, mas quase engasgou quando o cheiro pousou em sua língua com um gosto amargo. Era tão forte que ela chegou a fazer uma careta.

Sua avó lhe descrevera isso uma vez, depois de fazer uma torta de limão que saiu ruim, e era exatamente o gosto da tristeza.

A densa névoa matinal de Walls of Water, comum por conta da proximidade das cataratas, era famosa por si só. Não havia uma única loja na National Street que não vendesse os Potes de Neblina turística, potes de vidro cinzento, para que os visitantes pudessem levar para casa uma lembrança de sua estada. Willa achava que era muito parecido com morar perto do mar. Quando você vê a mesma coisa diariamente, às vezes se pergunta o que tem de mais.

Na manhã seguinte, a névoa estava começando a desaparecer com o aumento da temperatura quando Willa entrou no jipe e seguiu para a casa de repouso. Ainda bem que Colin tinha se levantado e ido embora durante a noite, levando com ele sua decepção por ela não estar mais pregando peças na cidade, por ela não ter mais dezoito anos.

Willa gostaria que ele nunca tivesse vindo vê-la. Ela estava fazendo a coisa certa em ficar ali. Tinha crescido. Todo o sentido de estar ali era não decepcionar mais as pessoas.

— Oi, vovó Georgie — Willa disse alegremente quando chegou à casa de repouso e entrou no quarto da avó. Ela já tinha sido vestida e deixada na cadeira de rodas. Estava sentada, ligeiramente curvada, perto da janela. O sol matinal em seus cabelos brancos e em seu rosto claro lhe dava um ar quase translúcido. Ela havia sido uma bela mulher em sua época, com olhos grandes, maçãs do rosto proeminentes e um nariz longo e fino. Às vezes, ainda dava para ver aquela beleza, e era como olhar através de um vidro encantado.

Sua avó tinha começado a apresentar os primeiros sinais de demência quando Willa partiu para a faculdade. Nessa época, o pai de Willa levou a mãe para morar com ele, instalando-a no antigo quarto de Willa. Dois anos depois, ela teve um derrame e ele foi forçado a transferi-la para uma casa de repouso. Willa sabia que a decisão não tinha sido fácil para o pai, mas ele conseguira alojá-la na melhor casa da região. Depois que seu pai morreu, Willa assumiu seu lugar, passando a visitá-la, pois sabia que era o que ele gostaria que ela fizesse. Ele adorava a mãe e agradá-la havia sido a ambição de sua vida.

Willa sempre achou a avó meiga, mas ela era uma daquelas pessoas com espinhos invisíveis, que impediam os outros de se aproximarem demais. Georgie Jackson tinha sido uma pessoa nervosa, alerta, sem frivolidade nenhuma, que Willa achava extraordinária, levando-se em conta como os Jackson tinham sido ricos um dia. Mas depois que a família perdeu todo o seu dinheiro, Georgie trabalhou como doméstica para várias famílias ricas da cidade até ter quase setenta anos.

Ela sempre foi quieta, como o pai de Willa. A mãe de Willa tinha sido a ruidosa da família, e Willa ainda se lembrava de sua risada, um som meigo e pontuado, como brasa estalando. Ela era recepcionista de um escritório local de advocacia, mas morrera quando Willa tinha seis anos. Isso desencadeou a fase em que Willa gostava de brincar de morta. Ela costumava se posicionar no sofá, completamente encharcada, como se tivesse se afogado ali. Ela se deitava contorcida, no capô do carro, como se tivesse sido atropelada. Sua morte preferida era a Morte das Colheres, na qual ela se deitava no chão da cozinha, se lambuzava de ketchup e enfiava colheres sob as axilas. Naquela idade, Willa não entendia a morte, não via como algo ruim, se acontecera com alguém tão bondoso como sua mãe, francamente ela era fascinada por isso.

Uma vez, sua avó flagrou-a tendo uma conversa imaginária com sua mãe e imediatamente abriu todas as janelas e queimou sálvia. “Fantasmas são coisas terríveis”, ela dissera. “Você não vai querer falar com eles. Mantenha-os distantes.” Isso tinha magoado Willa, e levou um bom tempo para que ela perdoasse a avó por negar-lhe um elo com a mãe, por deixá-la com medo disso, por mais tolo que fosse.

Agora, todas essas superstições tinham sumido da mente da avó. Sua avó nem se lembrava mais de Willa, mas a neta sabia que ela gostava da melodia de vozes, embora não entendesse mais as palavras. Então, isso era o que Willa fazia, várias vezes por semana; ela vinha conversar sobre o que se passara no noticiário, sobre o visual das árvores naquela época do ano, o que estava sendo vendido em sua loja, que melhorias estavam sendo feitas na casa do pai. Ela contou à avó sobre o novo sofá, mas não sobre Colin.

Falou até que trouxessem o café da manhã de Georgie, então Willa ajudou a alimentá-la. Depois que a bandeja foi levada, ela delicadamente limpou o rosto da avó e sentou-se ao seu lado.

Willa hesitou por alguns instantes antes de pegar o convite no bolso traseiro.

— Tenho me questionado quanto a contar-lhe ou não sobre isso. Haverá uma festa na Blue Ridge Madam no mês que vem. O Clube Social Feminino está comemorando sua fundação. Paxton Osgood quer homenageá-la na festa, o que me parece bacana. Mas você nunca falou a respeito. Eu não sei se realmente significava algo para você. Se eu achasse que significasse, eu iria. Mas simplesmente não sei.

Willa baixou o olhar para o convite e, pela primeira vez, fez as contas. Ela percebeu que a avó tinha somente dezessete anos quando ajudou a fundar o clube. Isso foi no ano em que sua família tinha perdido a Blue Ridge Madam, ano em que ela dera à luz o pai de Willa.

Era doloroso para Willa pensar nisso agora, mas, quando era mais jovem, ela nunca se orgulhara particularmente de ser uma Jackson. Contudo, à medida que foi ficando mais velha, ela passou a apreciar mais a forma que sua família tinha trabalhado duro para se manter, e como ninguém, exceto ela, se envergonhara pelo que eles tinham perdido. Willa já tinha enfrentado e aceitado o fato de sua avó não poder mais lhe contar coisas que ela queria saber sobre a família, que ela perdera todas as oportunidades de perguntar quando a avó ainda tinha a mente boa, ou que poderia ter perguntando ao pai, quando ele estava vivo. Mas, em momentos como aquele, ela ainda sentia profundamente, todos os “Eu te amo” que ela deveria ter dito e não disse, as coisas que ela gostaria de voltar no tempo para mudar, como ela poderia tê-los feito se orgulhar dela em vez de preocupá-los constantemente.

Willa ergueu os olhos do convite e se surpreendeu ao ver que Georgie tinha virado a cabeça para ela e seus olhos cinza-claros, do mesmo tom dos de Willa, estavam olhando diretamente para ela, como se Georgie tivesse reconhecido algo familiar no que Willa dissera. Isso não acontecia havia anos, literalmente, e Willa ficou tão surpresa que seu coração se acelerou.

Willa inclinou-se para a frente.

— O que foi, vovó Georgie? É a Blue Ridge Madam? O Clube Social Feminino?

O lado esquerdo de Georgie ficara paralisado pelo derrame, então ela levantou a mão direita e a pousou sobre a de Willa. Georgie tentou mover a boca, formar palavras.

Precisou de algumas tentativas antes que Willa reconhecesse uma palavra: pêssego.

— Pêssego? Você quer pêssegos?

O rosto da avó subitamente ficou inexpressivo, como se ela tivesse esquecido o que queria dizer. Ela se virou para a janela.

— Certo, vovó Georgie — disse Willa ao se levantar e beijar a avó na cabeça. — Pode deixar que eu vou trazer alguns pêssegos.

Ela colocou um xale ao redor dos ombros da avó e prometeu voltar logo para vê-la.

Após uma última olhada, Willa se virou e deixou o quarto.

Era tolice esperar algo profundo. Só o fato de estar tentando se comunicar já era o suficiente.

Ela parou no posto de enfermagem para ver se havia alguma anotação médica, depois perguntou se a avó poderia comer pêssegos na próxima refeição.

Ela colocou os óculos escuros e saiu no sol radiante, atravessando o pátio de tijolinhos em direção ao estacionamento. O sol já irradiava ondas quentes metálicas dos para-brisas dos carros, motivo pelo qual Willa não poderia ver ninguém se aproximando até estar a apenas alguns passos de distância.

Era Paxton Osgood, com um lindo vestidinho cor-de-rosa e sapatos deslumbrantes. Ela era alta como o irmão, mas tinha curvas generosas, como se um de seus ancestrais franceses tivesse escandalizado todos se casando com uma bela ordenhadora parruda e, algumas gerações depois, Paxton fosse o resultado. Estava acompanhada de um homem de cabelos loiros e pele clara. Ele vestia um terno de alfaiate que não ficaria bem em qualquer pessoa tão esguia. Nele ficava. Ele era lindo, de um jeito muito incomum, uma daquelas pessoas que você não consegue identificar se ficam mais do lado masculino ou feminino.

Sem saber o que Colin dissera à irmã na noite anterior, ou que rancores Paxton ainda guardava pela vez que Willa falsificou uma carta de amor de Paxton para Robbie Roberts, Willa não tinha certeza se Paxton sequer a cumprimentaria.

Ela decididamente não estava esperando que Paxton sorrisse e dissesse:

— Willa! Olá! Que bom tê-la encontrado. Então, você passa as manhãs aqui? É por isso que nunca a vejo. Você recebeu meu bilhete sobre fazer algo especial para nossas avós no baile de gala?

Willa, constrangida, alisou seus cabelos rebeldes e ondulados, pois os de Paxton estavam presos num coque que era sua marca registrada. Ela estava sempre muito bem-arrumada.

— Minha avó não está boa o bastante para participar — disse Willa. — Ela nem se lembra de mim, muito menos do clube.

— Sim, eu sei. E lamento — disse Paxton. — Eu estava pensando em fazer uma homenagem a ela através de você. Que você poderia aceitar um presente por ela.

— Eu... acho que já tenho compromissos pré-agendados nessa noite — disse Willa.

— Ah — disse Paxton, obviamente surpresa. Houve um silêncio estranho.

Sebastian limpou a garganta.

— Olá, Willa. É um prazer revê-la. Já faz bastante tempo.

— Sebastian. Ouvi dizer que você assumiu o consultório do Dr. Kostovo. — Sebastian Rogers reforçava sua crença de que a reinvenção não era apenas uma boa teoria. Isso realmente acontecia. Na época do ensino médio, seus colegas às vezes se esqueciam de que ela estava ali, porque Willa era muito quieta durante as aulas, mas Sebastian não tinha a mesma sorte. Willa possuía o poder de ser invisível, algo que alguém com a aparência de Sebastian jamais poderia ter. Ele aturara provocações constantes. No entanto, ali estava ele, um dentista, vestindo um terno que provavelmente custava mais que um ano de financiamento de seu jipe. — Na última vez que o vi, você usava delineador e um casacão roxo.

— Na última vez que a vi, você estava sendo presa por acionar o alarme de incêndio.

Touché. Apareça na Au Naturel, na National Street, qualquer hora dessas. Você pode tomar um café por conta da casa.

— Talvez eu vá. Você era paciente do Dr. Kostovo, não era? Espero que continue frequentando o consultório, para suas limpezas regulares.

— Você agora é o policial dental?

Ele ergueu uma sobrancelha, seriamente.

— Sim, eu sou.

Willa riu, depois percebeu que Paxton a olhava curiosa. Com o riso sumindo, Willa desviou o olhar de Paxton para Sebastian, depois de volta.

— Bem, eu preciso ir — ela finalmente disse.

— Tchau, Willa — disse Sebastian, à medida que ela se afastava.

Paxton não disse nada.

Paxton observava Sebastian de canto de olho enquanto eles caminhavam pelo corredor em direção ao quarto de sua avó. Os passos dela eram pesados sobre os saltos, mas os dele eram sopros leves, em seus mocassins italianos. Nem o buquê de hortênsias que ele levava murchara.

— Eu não me lembro de você e Willa serem próximos no ensino médio. Vocês eram?

— Não — disse ele, simplesmente.

— Ela pareceu mais feliz em ver você do que a mim.

— É o código dos banidos — disse ele, sorrindo. — Você não entenderia — antes que Paxton pudesse perguntar, eles chegaram à porta de sua avó. — Pronta para ver a senhora dragão?

— Não — disse Paxton.

— Estou aqui com você — Sebastian passou o braço ao redor da cintura dela, dando um apertão consolador antes de baixar o braço.

Eles entraram juntos, e Paxton cautelosamente se aproximou da cama da avó. À medida que se aproximava, sentia a pele começar a queimar. Ela temera aquela mulher por toda a sua vida, algo que nunca contou a ninguém. Ela olhava para a avó e sentia um terror profundo de se transformar nela um dia.

— Nana Osgood? — disse ela baixinho. — Sou eu, Paxton. Você está acordada?

Sem abrir os olhos, Agatha disse:

— O fato de você ter de perguntar deveria ser uma dica.

— Hoje estou aqui com o Sebastian.

Ela finalmente abriu os olhos.

— Ah, o homem elegante.

Paxton suspirou, mas Sebastian sorriu e piscou para ela.

— Eu lhe trouxe hortênsias, Agatha — disse Sebastian. — Suas favoritas.

— Você não precisa me dizer que são minhas prediletas. Eu sei disso. Mas a minha pergunta é: por que você está trazendo flores para uma mulher cega? Não posso vê-las. Estou sempre lhe dizendo, eu quero chocolate. A comida é o último prazer que me resta.

— Vovó, você sabe que a mamãe não quer que você coma doce demais.

— Sua mãe não sabe nada. Pegue meus dentes.

— Onde estão? — perguntou Paxton.

— Na mesa, onde sempre ficam — disse Agatha, se sentando. — Honestamente, até parece que não fazemos isso toda vez que você me visita. De qualquer forma, por que você está aqui tão cedo? Nem é seu dia de vir me ver.

— Tenho algo maravilhoso para lhe contar, sobre a Blue Ridge Madam — disse Paxton, olhando para a mesa de cabeceira, à procura dos dentes da avó.

— Não há nada maravilhoso sobre a Blue Ridge Madam. Fique longe dali. É assombrada. Passe para cá meus dentes.

Paxton começou a entrar em pânico.

— Seus dentes não estão aqui.

— Claro que estão — Agatha jogou as cobertas para o lado enquanto levantava e cutucava Paxton para sair do caminho. Ela apalpou o tampo da mesinha, com a boca aberta e as gengivas à mostra. — Onde estão? Alguém roubou meus dentes! Ladrões! — ela gritou. — Ladrões!

— Vou colocar essas flores na água — disse Sebastian, pegando um vaso de cristal Waterford na cômoda e seguindo para o banheiro anexo. Segundos depois, ele pôs a cabeça para fora e disse: — Querida?

Paxton agora estava de joelhos, procurando embaixo da cama da avó enquanto Agatha continuava a gritar. Ela ergueu os olhos e viu que Sebastian tentava desesperadamente conter o riso. Paxton adorava que ele não deixasse que sua avó o aborrecesse. Adorava que ele estivesse disposto a passar por isso com ela, que ela não tivesse de esconder como Agatha era horrível. Se Sebastian podia conviver com seu segredo, então ela podia viver com o fato de que ele soubesse. Nada aconteceria entre eles. Se apenas levassem as coisas como sempre, tudo ficaria bem.

— Acho que encontrei os dentes de Agatha — disse ele.

Depois que Paxton e o homem elegante partiram, Agatha Osgood sentou-se na poltrona de seu quarto, com os lábios comprimidos, os dedos nervosamente enroscando o cardigã que ela imaginava combinar com seu vestido. Uma degeneração maligna lhe tirara a visão. Mas ela sabia onde ficavam todos os móveis de seu quarto, os quais eram macios e confortáveis. Alguém lhe disse que o estofamento tinha uma estampa azul de hortênsias que ela quase podia identificar quando a luz certa refletia. Ela também tinha seu próprio frigobar, que a família mantinha abastecido com as coisas de que ela gostava. Ela ainda adorava comer, portanto isso ajudava um pouquinho, mesmo que não lhe dessem tanto chocolate quanto ela gostaria. Esse lugar não era tão ruim, ela imaginava. Na verdade, era o melhor das redondezas, e o preço deixava isso claro. Não que Agatha ligasse para dinheiro. Isso é o que acontece quando você tem demais. Ele passa a ser como poeira, algo que constantemente se desloca ao seu redor, mas você nunca toca de fato.

Agatha achava que a família a consultava a respeito das coisas, que, como matriarca, sua opinião ainda era relevante. Essa era a impressão que eles lhe davam quando a visitavam. Esse lugar iludia os residentes a pensarem que aquilo ali era tudo que existia no mundo. O lugar encolhia tudo, como em Alice no País das Maravilhas. Para ela, era surpreendente que ainda houvesse um mundo além dessas paredes, um mundo que continuava girando mesmo sem ela.

Agatha não podia acreditar que sua família tinha, de fato, comprado a Blue Ridge Madam. Todos aqueles anos cuidadosamente construindo os boatos sobre os fantasmas, fazendo com que todas as crianças e a maioria dos adultos temessem a Madam, vissem-na ruindo, ano após ano, esperando pela hora em que finalmente desabasse e tudo que havia acontecido ali desaparecesse, tudo em vão.

Como se isso não fosse ruim o bastante, Paxton estava planejando um grande baile de gala ali, comemorando a fundação do Clube Social Feminino. Agatha tentara tudo para fazer Paxton parar, cancelar aquilo. Ela dissera coisas odiosas e insinceras, e fizera ameaças que não podia cumprir, mas nada impediria aquilo. Agora Paxton estava no controle do clube, e Agatha sentia profundamente a sua impotência.

Aquelas garotas tolas não faziam ideia do que realmente estavam comemorando. Elas não tinham ideia do que foi preciso para reunir Agatha e suas amigas, setenta e cinco anos antes. O Clube Social Feminino tinha a ver com o apoio de umas às outras, com a união para proteger umas às outras, porque ninguém mais o faria. Mas isso havia se transformado num monstro horrendo, um meio através do qual as damas ricas podiam se parabenizar por dar dinheiro aos pobres. E Agatha deixou que isso acontecesse. Parecia que durante toda a sua vida ela estava se redimindo por coisas que tinha deixado acontecer.

Ela sabia que não era coincidência que o clube estivesse organizando sua comemoração na Madam. Não havia coincidência. Era destino. Olhando de modo objetivo, aquilo tinha até um tipo de simetria cruel. O motivo para que elas fundassem o clube tinha a ver com a Madam. Era só uma questão de tempo até que tudo viesse à tona. Segredos nunca permanecem sepultados, independentemente do esforço que você faça. Era isso que Georgie sempre temera. Ela se levantou e saiu do quarto, contando os passos até o posto de enfermagem. Dava para ouvir a voz da enfermeira da manhã que se aproximava. A enfermeira era jovem. Jovem demais. Tinha voz de quem ainda deveria estar pulando amarelinha com as amigas. Por que as meninas tinham tanta pressa de crescer? Agatha jamais entenderia. A infância era mágica. Deixá-la para trás era uma perda monumental.

— Olá, Sra. Osgood — disse a enfermeira num tom que tentou ser agradável, mas não chegou a ser. Agatha provocava isso em todos os funcionários dali. Ela não tinha certeza de quando isso acontecera, mas, em algum momento, ao longo desses últimos dez anos, ela descobrira que se sentia melhor quando fazia os outros infelizes como ela. Foram os empregados que esconderam seus dentes no banheiro, naquela manhã, onde o homem elegante os encontrara. Ela tinha certeza. Era um jogo de toma lá dá cá com os empregados, que já durava anos. — O que posso fazer pela senhora?

— Se eu precisar de sua ajuda, eu peço — Agatha estrilou ao passar. Ela caminhou até o terceiro corredor, passando as pontas dos frágeis dedos pelas paredes, enquanto contava as portas até o quarto de Georgie. Quando o filho de Georgie, Ham, viera lhe pedir ajuda para arranjar uma vaga para Georgie ali na casa de repouso, Agatha lhe dera o dinheiro sem hesitar. Tudo que ela sempre quis foi ajudar Georgie, compensar pela época em que Georgie mais precisou de Agatha e ela lhe deu as costas... a época que mudara tudo. Agatha sempre acompanhava a forma que Georgie estava sendo tratada, mas ela raramente a visitava. Georgie não iria gostar. Ela teria dito: “Você tem o seu lado, eu tenho o meu. Agora, é assim que tem de ser”.

Quando ela chegou ao quarto, tudo que Agatha pôde identificar foi um vulto escuro aureolado pelo sol matinal. Georgie parecia um buraco dentro do qual Agatha poderia cair.

Agatha sentia pesar por muitas coisas que perdera, mas, ultimamente, essa era a perda que ela mais sentia, a perda da amizade. Ela sentia falta de sua visão. Sentia falta de seu marido. Sentia falta da mãe e do pai. Mas aquelas garotas com quem ela crescera foram uma parte muito importante de sua vida. Se todas as suas velhas amigas lhe aparecessem agora, ela as protegeria até o último suspiro, o que, obviamente, significava muito pouco, e era tarde demais. Do jeito que sempre fora. Elas tinham partido, todas, exceto Georgie, que flutuava na vida apenas por um fio tênue e cintilante.

Ela caminhou até Georgie e sentou-se ao seu lado.

— Finalmente está acontecendo — sussurrou Agatha.

Georgie, a meiga e inocente Georgie, virou-se para ela e disse:

— Pêssego.

Agatha tateou até encontrar a mão de Georgie, depois a segurou:

— Sim — disse Agatha. — Ainda está lá.

Mas a questão era: por quanto tempo?