i. O herói infame

Aquele sábado foi um dia muito difícil: depois de ter furado cinco ou seis na retirada, um franco-atirador inglês com uma mira infravermelha me parou de repente e me abriu um buraco na barriga. Foi no combate de Monte Longdon. E quando despertei, estava todo remendado em uma barraca de campanha: tínhamos nos rendido. Ao voltar, deram-me três medalhas e me trancaram na ala psiquiátrica do Hospital Militar. Mais tarde me obrigaram a assinar alguns documentos confidenciais e, com outros desamparados e loucos, fizeram-me subir secretamente em um caminhão e me colocaram por dois anos no Campo de Mayo em cursos de comando sob as ordens de Leandro Cálgaris.

Desde então, Cálgaris trabalha em uma agência do serviço secreto do Estado. Nós o chamamos de “coronel”, mesmo que tecnicamente seja reservista do Exército e tenha reaparecido como nosso chefe de operações nas sombras desde 1984: todos os presidentes e ministros trataram com ele em algum momento, e agora é conhecido no mundo da política como “o cara que ajeita os problemas”. O velho me ensinou a ler e estudar, e a praticar todos os verbos proibidos. Salvou-me de dar cabo de minha própria vida, como fizeram tantos camaradas de trincheira. Devo muito a ele. Apesar de tudo, confesso, às vezes gostaria de meter uma bala no sujeito.

A mulher que estou seguindo não é um problema de Estado. Mas pagamos as contas com negócios desse tipo. Estou na cola dela desde sexta-feira e sei que chegou a hora. Estamos em uma boate na Costanera. A mulher tem um garoto que pensa que é grande e que Chapo Guzmán lhe deve um favor. Roda em um Porsche e porta uma Parabellum de nove milímetros, mas nunca disparou em um cristão e não sabe como se sente alguém depois desse procedimento.

Um louro musculoso bloqueia a entrada e me faz lembrar, com sua expressão, que ainda sou um pé-rapado de merda, mas há algo em meus olhos que o convence de que também sou bem capaz de arrebentar sua fuça. Assim que me dá passagem, entro na fumaça, nas luzes e no barulho. Abro caminho a cotoveladas e peço uma cerveja no balcão. A mulher tem cabelo vermelho e vestido amarelo, e anda pela pista com os olhos vagos, perto, porém não muito, do garoto, que dança sozinho, gesticulando, à espreita, como se estivesse cercado de possíveis clientes ou inimigos.

Depois de um tempo, é cercado por sete anoréxicos, e juntos vão aos abraços, gritos e beijos até um canto distante. Acampam ali por duas horas com cocaína pura, até que um deles fica duro e outros dois se confundem num emaranhado de corpos. Estive em muitas noitadas, mas poucas vezes vi uma mulher tão morta. O amarelo subiu ao rosto e não sabe se vomita ou se compra um gato. O namorado, um tremendo idiota, levanta-se com um baseado na boca e a leva ao banheiro dos homens. Quer injetar algo em seu braço para ressuscitá-la. Tudo isso não passa de pavoneamento de falso traficante, falso influente e falso pervertido. Achato seu nariz com uma cotovelada e arranco sua pistola no banheiro.

A mulher não sabe onde está: cantarola uma música do Sumo, pede explicações ao espelho e noto que perdeu um sapato. Pego-a pela cintura, passamos por cima do impostor caído e a arrasto para a rua. Pesa e pensa menos que um manequim. Recosto-a no banco traseiro do 4×4, pego a Libertador e subo a Panamericana.

Estou cantarolando a mesma música quando chego a La Horqueta. O segurança sai da guarita, me reconhece e chama o patrão pelo rádio. Acendo um cigarro, algumas lâmpadas se iluminam nas janelas. A mulher não sabe nem em que ano estamos. A mãe vem buscá-la de roupão e às lágrimas, seguida por empregadas vestidas de cor-de-rosa. Levam-na para a cama, chamam o médico. O pai, com as mãos nos bolsos, olha a procissão e se apoia no 4×4.

— São cinco dias seguidos — digo.

— Não durmo há dez dias. Os filhos são tão parecidos conosco, mas tanto, que ficam diferentes.

Recebo o pagamento e me mando. Perco-me na noite.

Lali tem trinta e oito anos, mas parece ter cinquenta. É viciada em cocaína há seis, mas não perdeu a estampa. Seu nome é María Laura: olhos castanhos, loura de cabelo comprido e trançado, pinta de roqueira. Ganhou uma grana preta nos anos 1990 quando trabalhava como paparazzo para revistas internacionais. Agora está na lona e precisou vender a alma ao diabo para não torrar a coleção de Nikons, Canons, teleobjetivas, câmeras digitais de alta resolução e, sobretudo, sua Yamaha fz16. Livramos sua pele numa acusação de tráfico ilegal de entorpecentes e hoje segue os outros a mando nosso. É muito eficaz como motoqueira, e Cálgaris lhe paga com provisões apreendidas que ela guarda no cofre. Dessa vez, levo para ela um bloco bem puro: se não se viciar e cortar bem, pode render uma boa grana em Palermo Hollywood. A polícia já sabe e não se mete com ela. Lali fornece ao pessoal do showbiz. Gente sensível que precisa de analgésicos contra a angústia dos deuses.

Bato na porta de latão porque não adianta usar a voz. São cinco horas da tarde, mas depois de ficar acordada por quatro dias, imagino que esteja em coma. Abrem a porta para mim depois de um tempo. Uma fresta por onde um vampiro remelento pergunta com uma voz rouca:

— Tá querendo o quê, Remil?

Tenho muitos nomes, mas aqui me conhecem como Remil. É uma piada de caserna que ficou popular em Puerto Argentino. Eu era um dragão cruel da infantaria. Hijo de remil putas — filho de mil putas —, dizia meu sargento-mor todas as manhãs, durante os exercícios. Era um elogio. Remil pegou.

— Estou com fome — digo a Lali, empurrando a porta. A loura cambaleia, está completamente nua, o cabelo comprido e solto chega às nádegas. Mora em uma casa térrea na rua Honduras. A porta dá para uma garagem convertida em loft. A sala de estar é uma oficina mecânica com uma Yamaha estacionada no meio. Tem ferramentas e fotos clicadas sem autorização de estrelas menores do cinema e da tv. A poucos passos, fica o cômodo principal, com uma cama redonda à esquerda e um laboratório com uma ilha de edição à direita: aqui estão todos os instrumentos. Só de olhar para eles, percebo que são meio escassos. Lali levou a leilão algumas coisas para manter a si e o vício. De um banheiro, sai um zumbi nu em pelo: no peito, traz tatuados Evita e Mick Jagger. Abro os botões de meu casaco e mostro o cinto. O magrela não sabe que é uma Glock, mas intui que se não der o fora, vou enchê-lo de balas. Pega como pode a roupa e foge como um ladrão. Abro a geladeira, pego presunto e pão de forma; preparo um sanduíche para mim. Não preocupa Lali que eu ainda a veja nua; senta-se em uma banqueta alta para processar a ressaca e fica calada. Certa vez, tivemos um lance. Na cama, não passou muito disso, e a verdade é que tenho carinho por ela. Não me agrada que seja drogada, mas ela já me gritou muitas vezes que isso não é da minha conta. Assim, retiro do bolso o bagulho embrulhado em papel-alumínio, mostro a ela por um segundo e o coloco no freezer.

— Vamos ver se recupera o equipamento — digo-lhe, dando uma mordida no sanduíche. Parece isopor. Abro uma cerveja para ajudar a descer. — O coronel disse que se você fizer festinha com este, vai me mandar quebrar a casa.

Ela dá de ombros. Ficamos em silêncio. Olho mais uma vez a sequência de fotos que ela fez da duquesa. São dois quadros sem moldura. Dois momentos maravilhosos do jornalismo e da aristocracia ibérica. Na primeira, vemos a duquesa passeando por Buenos Aires, fazendo topless numa varanda em José Ignacio, dando em cima de um jogador de polo em uma fazenda em San Antonio de Areco. Esse trabalho local colocou Lali na boca de toda imprensa marrom da Europa. Dois anos depois, ofereceram-lhe uma grana preta para seguir a condessa dia e noite pelo Brasil. Não lhe deram informação nenhuma; Lali teve de se virar sozinha para seguir a pista, subornar um porteiro e conseguir uma moto para não perdê-la no trânsito intenso do Rio de Janeiro. Enfim, conseguiu as fotos em Rio das Pedras: a duquesa sentada sobre um plebeu negro, a duquesa com os peitos pontiagudos rolando pela areia, a duquesa pagando um boquete. Exceto por esta última imagem, as revistas e os tabloides publicaram tudo e fizeram uma farra. No canto inferior da segunda foto, há um cartão da duquesa e uma frase escrita por ela de próprio punho. É dirigida a Lali: “Você destruiu a minha vida”. Há outras fotos emolduradas e muitas outras presas nessa parede, mas essas duas sequências são os troféus mais valiosos da caçadora.

— Uma advogada espanhola — informo a ela. Lali não ergue os olhos. — É dez anos mais velha do que você, mas aparenta menos. É bonita, embora pareça mais alta do que na realidade é. Seu nome é Nuria Menéndez Lugo. Toma.

Deixo um envelope pardo na bancada. Lali dá uma olhada, depois passa a mão no rosto. Sirvo-lhe um copo de água gelada. Toma de um gole só. Seu pulso treme um pouco. Pode ser que esteja meio em choque. Vou pegar uma camiseta em uma cômoda. Quando a alcanço, já está examinando a ficha e as fotos que baixamos do Google. Menéndez é uma morena que agora tem o cabelo tingido de vermelho. Maçãs do rosto salientes, olhos pretos, boca carnuda. Baixa, porém com boas proporções. Muito rímel e batom. Casacos justos de lapelas amplas; blusas e saias combinando. Às vezes, cinto de couro largo para destacar a cintura. Uma tendência ao preto e aos colares de pérolas.

— Advogada — sussurra. Lali ainda está sem voz.

— Alugou um apartamento no Barrio Norte.

— Quanto isso vai durar?

— Você vai levar três semanas — calculo.

Lali veste a blusa pelo avesso e olha mais atentamente uma das fotos. Depois a afasta para ter uma perspectiva melhor.

— É fodida — decreta. Ergue enfim os olhos castanhos, cravando-os em mim. Já não me parecem baços, de súbito estão despertos. — Uma mulher muito fodida, Remil. E ninguém entende mais de mulheres fodidas do que eu.

Lali não se deixa impressionar com quase nada, mas de repente está assustada como nunca. Tem um mau presságio. Termino a cerveja. Também compartilho seu sentimento.

Não afirmo que sou um atleta, mas o trabalho me obriga a me manter em forma. Levanto pesos e corro uma hora todo dia, pratico boxe às terças e quintas-feiras em Saavedra, e atiro com armas curtas e longas em um estande subterrâneo da Marinha. Nado vários quilômetros em alguns domingos no rio da Prata e jogo todos os sábados que posso no campeonato ilegal da Villa Costal. Sou canhoto, mas me destaco por armar bem a defesa. São jogos por dinheiro, com apostas e tudo, e os confrontos começam às oito da manhã e terminam às oito da noite. Todos contra todos, em partidas de quarenta e cinco minutos, e temos um time de traficantes, outro de policiais, um de ladrões e outro de pedreiros, um de caminhoneiros e outro misto. As regras são frouxas e sempre tem porrada. Com o cansaço e a ambição, as semifinais ficam sangrentas. O dono do armazém faz às vezes de ortopedista e veterinário, e é raro que não interfira para consertar uma fratura antes que venham buscar o infeliz com uma ambulância do same e o levem à emergência do Piñero. A final é feroz. Cai a noite e a patada mais leve que dão é nos dentes.

Quando tudo acaba, tomamos um vinho barato no armazém e comemos umas milanesas. Ali se ouvem boatos, façanhas delituosas, novidades do submundo. Neste sábado, minha equipe ficou pelo caminho, assim espero em meio ao público, enquanto fumo um cigarrinho e coço o sovaco. Depois digo ao patrão para chamar o Serralheiro e a Velha. Espero afastado pelos dois, em uma mesa de fórmica com duas cadeiras meio podres. Primeiro chega a Velha com três crianças de focinho queimado.

— Cuidado com a grana, Velha, que a qualquer momento esses aí te metem uma faca para te arrancar duas pratas — alerto. As crianças dão uma gargalhada, a lata quente deforma seus lábios.

— Fora daqui — ordena a Velha com um grito seco.

Elas partem, mas uma delas põe a mão no saco e o balança para mim. Sirvo um copo para a Velha. É uma mulher bem morena e atarracada, tem cara de rato e passa do frio ao calor em um segundo. É inexpressiva e nunca olha ninguém de frente. Até te olhar, solta uma saraivada de palavrões e te ameaça com um revólver. É uma catadora de papelão esperta. Sai às segundas-feiras com as crianças, que acompanham seu passo o quanto podem, e na hora da sesta vão tocando as campainhas e pedindo roupas em bairros chiques. Doam pouco, mas ela não se preocupa muito: tem um mapa dessas construções na cabeça, memoriza os hábitos dos empregados, as movimentações e as ausências, depois vende a informação aos delinquentes ou à polícia.

Depois chega o Serralheiro, um veterano do crime. Baixinho e magro, mas de braços musculosos. Ri de qualquer coisa, mas leva os negócios muito a sério. Não é drogado e nunca em sua vida de merda portou uma arma; mesmo assim, esteve várias vezes na cadeia graças a delações. Nunca foi apanhado com a mão na massa. É um artista com um único ponto fraco: os cavalos. Cálgaris se valeu disso para recrutá-lo e amarrá-lo. Levo a eles dois maços de cem e dois mapas com o endereço: rua Juncal, 14 B, prédio alto e antigo, sem câmeras nem segurança, mas com um porteiro que foi policial em Buenos Aires e que não faz a sesta.

— Qual é o nome da mulher? — pergunta a Velha.

— Nuria Menéndez Lugo — respondo rapidamente, depois divido em sílabas. — Nuria, Velha. É galega. Não sei se tem empregada.

— Nuria. — A rata ri sem os molares.

— Aluga o imóvel, então as contas não chegam em seu nome. Mas talvez encontre alguma coisa.

— Faremos para você — diz o Serralheiro, mais esclarecido. — Não terá problema.

A Velha esconde o pacote na calcinha; o Serralheiro beija o dele e o mete no bolso, olhando para os lados. Depois toma um trago do vinho, estala a língua e pergunta:

— Quando quer que a gente arrombe o cafofo?

— Deixa passar umas semanas. A Velha precisa averiguar como anda a vizinha de Nuria. É algum tipo de curandeira. Menéndez passa o dia fora, e a tal mulher não tem tantos pacientes assim. Pelo que sabemos é cinesióloga. Precisamos estar certos de que nenhuma das duas estará em casa quando entrarmos. Porque vamos fazer isso juntos.

— Vamos fazer por bem ou por mal? — o serralheiro quer saber.

— Mal — respondo. — Nada de chaves nem gazuas. Usaremos um pé de cabra. Entramos nos dois apartamentos para que Menéndez não desconfie. É muito esperta e vai perceber se as coisas forem reviradas por ali. Por outro lado, se roubarmos o andar todo, o caso vai acabar na delegacia e vão dizer que existem quadrilhas de colombianos dedicados ao roubo.

— Conheço vários, são novatos. — Ele sorri. — Mas se aguentam. E a polícia recebe deles.

— A polícia leva de todo mundo — acrescenta a Velha.

Pego outro papel, é um mapa de Flores. Informo aos dois que o coronel ajeitou tudo com um delegado. Podem roubar em seis ruas em torno.

— Não saiam do perímetro, porque não tem proteção e pipoca tiro — digo a eles inutilmente, e me espreguiço para trás. Sinto dor na cintura. — A paga é boa, nessa área mora gente de grana.

— Quem fica com o ganho da Juncal? — pergunta a rata.

Fifty-fifty — diz a raposa, sem olhar para ela. — Pelo risco de roubo.

— Não precisa ser tão ambicioso, Serralheiro. — Eu o acalmo e olho pela janela.

Agora é noite fechada. É sempre arriscado sair a pé a essa hora. Os cheiradores podem querer te liquidar para arrancar de você três notas sujas de dinheiro. E mesmo que no bairro saibam que ando armado, à noite todos os gatos são pardos. O normal é sair em grupo, mas essas instruções me detiveram mais do que o aconselhável. Despeço-me da rata e da raposa, pago a conta ao patrão no balcão e vou para a rua de terra. Por via das dúvidas, tiro a Glock do bolso e a destravo. Ando com ela por um tempo, escutando cumbias, me apoio em um muro que tem uma pintura de Gauchito Gil para dar a volta numa esquina que não devia, depois sigo à direita para o asfalto, sempre pelo lado da sombra. Atravesso uma avenida e olho por cima do ombro e, comprovando que não sou seguido por ninguém, travo e guardo o ferro. Vou a um estacionamento aberto vinte e quatro horas, pago e me acomodo no 4×4. Coloco D’Arienzo. Em cinquenta minutos chego ao subúrbio. Moro em um apartamento de cinco cômodos na Belgrano R.

A porta é blindada e tenho dois alarmes especiais. Depois desses rituais, deixo a pistola à mão, tiro a roupa e verifico a secretária eletrônica enquanto abro o chuveiro. Vão surgindo vozes conhecidas. A mais importante é de Rosita: convida-me para comer um churrasco de domingo em La Plata e diz para levar duas garrafas de vinho. O último exame médico não deixou ninguém tranquilo: o sargento não evolui e agora há alguns “probleminhas”. Resmungo. A segunda voz interessante pertence à gorda Maca: “Lembre que marcamos uma sessão para segunda-feira. O coronel me disse também que você tem material para mim. Traga. Te espero às onze”. Maca é psiquiatra. Por determinação judicial, tenho sessões de acompanhamento com ela uma vez por mês. Maca também é empregada de Cálgaris e trabalha no perfil psicológico de Nuria Menéndez. A terceira voz é metálica: Palma me avisa que ficará na Caverna até tarde e pede que telefone para ele. “Esse garoto não tem vida nenhuma”, penso durante o banho. Eu também não. Uso o kit de primeiros socorros para tratar os arranhões da tarde. Depois me olho no espelho de corpo inteiro. Músculos ainda firmes, cicatrizes antigas, tatuagens da prisão. Um velho que luta, mas ainda assim um velho. Sirvo-me de uma vodca, atiro-me no sofá e ligo a tv de plasma, mas baixo o volume. Digito o número da Caverna enquanto zapeio. Palma atende de imediato.

— Fala aí.

— Trabalho — digo, vendo cenas de guerra na cnn.

— Quem paga, a Casa ou a Casinha?

— A Casinha, ora essa — respondo, irritado.

A Casa é o serviço secreto. A Casinha é a base Chacabuco, que Cálgaris dirige e não aparece em mapa nenhum. Estrutura paralela, a nau dos insensatos. A Casa tem os próprios técnicos e equipamento oficial para espionagem eletrônica. Nós terceirizamos. A Caverna é um escritório de hackers que opera por encomenda. Pagamos com orçamento secreto, mas essa verba também não figura em planilha nenhuma. Os garotos são donos de um negocinho muito próspero, com clientes particulares de bolso generoso. Seguradoras que pedem um acompanhamento eletrônico da mulher infiel de um cliente. Diretores de recursos humanos que contratam uma perseguição silenciosa de um determinado empregado desonesto. Acionistas que encomendam grampos nos computadores de seus gerentes mais leais. Políticos, sindicalistas, jornalistas. Todos contra todos, em busca de seus segredos. Porém, a parte mais divertida é penetrar a intimidade das estrelas do showbiz. Os casos e pecados logo estouram nos programas de fofoca da tarde e os caras da Caverna morrem de rir. Palma é o mais hábil e mais obsessivo de todos: invade qualquer servidor, intromete-se em dados criptografados, intercepta mensagens pelo mecanismo man-in-the-middle. E tem um equipamento de primeira: microfones direcionais e a laser, maletas e escutas de telefonia celular analógico-digital. Não quero aborrecê-los. Não existe mais intimidade.

— Quem é e o que faz? — pergunta Palma.

— Não é uma atriz de novela — eu o decepciono. — É uma mulher das leis. Antes de ir dormir, passo os dados por e-mail. Tem dois celulares, um telefone fixo no escritório e outro no apartamento. Anda sempre com um tablet e às vezes com um netbook.

— E estamos procurando o quê?

— Não tenho ideia.

— Isso encarece muito.

— Não acredito que você queira pechinchar com o coronel.

— Não precisa me mandar o dossiê de Nuria Menéndez Lugo. Já peguei em seu computador. Sua senha é muito fácil: R7I. Remil. Todo mundo sabe que você estava no Regimento 7 de Infantaria quando Puerto Argentino caiu.

— Foi a unidade com as maiores baixas — digo, distraído. Agora a transmissão da cnn mostra ruas em convulsão na Síria. — Tivemos trinta e sete mortos e cento e trinta e sete feridos.

— Sua melancolia é uma chatice, Remil. Até amanhã.

Imagino-o sentado diante de sua mesa, cercado de telas, vendo meus arquivos. Um adolescente sem idade, com uma camiseta de algum filme do George Romero, boné de beisebol e um pirulito na boca babada. Nunca deixo o que é verdadeiramente importante em meu pc; guardo em alguns pen drives que escondo em um rodapé falso. Também tenho alguns discos de backup em um cofre de segurança do Banco Francés, junto com uma Magnum 357 de valor sentimental. Para os arquivos confidenciais da máquina de minha casa, tenho um vírus arrasador e, para os documentos, um fragmentador que reduz tudo a lascas brancas. Acho graça que Palma nade em meu aquário, procurando inutilmente seu alimento.

Por mais cansado que eu esteja, não consigo pregar o olho quando não leio um pouco. É um hábito que me foi introduzido por Cálgaris, fanático pela história, especificamente do Império Romano. Desde que eu era novo, me obrigava a devorar um livro por semana e me interrogava depois sobre seu conteúdo. Filho da puta com delírios de grandeza. “Somos a Guarda Pretoriana”, dizia o velho pinguço de uísque. “E cada um de nós deve alcançar a temperança dos centuriões.” Vinte e cinco anos depois, Leandro Cálgaris continua bebendo uísque, mas não toma mais minhas lições: só recomenda um escritor ou fala tranquilamente de alguma biografia romanceada. Uma vez ou outra mete na conversa uma cena ou um personagem histórico, usando para exemplificar alguma situação do presente. Sabe que não precisa mais me incentivar, que a droga histórica não me abandonará nunca.

Na mesa de cabeceira, me reconcilio com uma reportagem sobre os elementos básicos da Al-Qaeda. Levo quarenta páginas para adormecer. Sonho com a favela: estou numa partida interminável, exausto, mas sei que, se parar para tomar fôlego, o jogador vai me dar uma facada e depois outros cairão em cima de mim para me matar. Assim, tiro forças do desespero e continuo correndo e correndo enquanto sinto que morro. Acordo muito cansado e preparo um rápido desjejum: café expresso, suco de laranja e biscoitos com queijo branco. Leio os jornais lentamente, com um marcador amarelo, e algumas vezes destaco uma frase ou um parágrafo. Recorto artigos políticos ou policiais e faço anotações à margem com uma esferográfica. É um ato reflexo. “Quase tudo está nos jornais”, dizia-me Cálgaris, nos primórdios. “Só é preciso aprender a ler.”

Faço quarenta e cinco minutos de pesos e abdominais em minha academia particular. Volto para o chuveiro. Visto-me de preto, ponho o casaco e uso a Glock para não sair nu. Pego dois vinhos malbec no armário e saio com o 4×4 por Virrey del Pino até a Libertador. Estou a caminho de La Plata, com o sol nas têmporas. É um dia frio. Penso em Maca, que me espera amanhã para me revirar as tripas. Sorrio ao me lembrar de que Palma hackeou seu computador e interceptou as mensagens. Isso deve fazer um ano, mas de vez em quando clico ali por diversão. Maca é lésbica e tem um caso à distância com a srta. Flores, uma agente disfarçada que Cálgaris infiltrou no Palacio de las Cortes, na Espanha. Luciana Flores, ex-policial federal, loura oxigenada, nariguda e bunduda, rápida na obediência às ordens, mas propensa à astrologia. Maca cometeu o erro terrível de comentar com ela, entre promessas eróticas e frases de amor, a pesquisa psiquiátrica que estava fazendo sobre mim a pedido de um juiz. Não vou entrar nesse assunto agora, porque é longo e indecoroso. Basta dizer que Cálgaris me infiltrou em uma quadrilha de ladrões de carro-forte e depois arranjou tudo para que eu fosse preso e processado, e me meteram em um presídio de segurança máxima com o objetivo de desbaratar uma quadrilha que agia dentro do serviço penitenciário. A brincadeira durou cinco meses e jamais tive de lutar tanto para continuar vivo. Nem mesmo em Monte Longdon. Houve épocas em que lutava com as próprias mãos ou uma faca duas ou três vezes por dia. Contarei isso em outra ocasião, porque agora estou saindo da via expressa e o trânsito fica complicado. A questão é que me tiraram de lá a tempo e limparam minha ficha. Declarei-me testemunha protegida, mas um advogado do comandante da guarda costeira pressionou para que a Justiça me obrigasse a um exame psiquiátrico. Não me saí muito bem nessa prova, e assim o juiz ordenou que eu fosse submetido a um acompanhamento periódico. Cálgaris conseguiu que o procedimento permanecesse nos limites da Casinha. Preciso falar a verdade: filmamos o juiz com uma menor em um puteiro na rua Tucumán. Ele não opôs muita resistência.

Estou dando toda essa volta só para explicar que os e-mails de Buenos Aires a Madri e vice-versa eram de fato deliciosos. Depois de quinze sessões, Maca revelou à amante que tive “experiências de choque” e “neurose de guerra” e, por conseguinte, tinha um forte distúrbio pós-traumático. Era órfão de pai e mãe antes de entrar para o Exército e dragão condecorado ao sair. Porém, ter me mantido na estrutura do serviço secreto, ter sido treinado como agente e soldado, resultou em um “fator de proteção”. Mas tanto as sequelas como as novas atividades dessa profissão me transformaram, escreveu Maca: “Tem adaptação rápida para sobreviver a qualquer coisa e é capaz de se desumanizar. Às vezes penso que é incapaz de sentir”.

Com certa lógica, Flores assinalava que eu me considerava “acima das regras”. E perguntava qual era meu signo. Aquário. “Encaixa perfeitamente numa de suas variantes”, a loura oxigenada se entusiasmou. “Nunca revela seus sentimentos, mas gosta de fuçar os sentimentos dos outros. É um investigador nato, tem motivações complexas, gosta de experiências estranhas. Usa por instinto um código moral próprio.” Maca respondeu: “Pode ser impessoal, mas ao mesmo tempo tem o emocional enrustido”. Foi incrível ver como a psiquiatria e o zodíaco tentavam me entender. No fim, Luciana perguntou à namorada se tinha tesão por mim. Discutiram. Destrataram-se. Despediram-se para sempre. Voltaram a se escrever. Recomeçaram fogosamente essa besteira inútil. Deixaram-me em paz.

Estou chegando a Tolosa. É um bairro de construções térreas. O chalé decrépito do sargento fica numa esquina. Subo com o 4×4 pela entrada e toco a campainha. Vem um cheiro de carne assada que excitaria até um vegetariano ortodoxo. Rosita é ótima churrasqueira e abre a porta para mim com um sorriso triste e autoritário. Em certa época foi dançarina de striptease e prostituta. Está mais maltratada, mas ainda assim é um pedaço de mulher. Trocamos um abraço breve, ela manda que eu entre e me adverte que a comida vai esfriar.

O interior do chalé sempre me parece sombrio, porém os fundos são iluminados: tem churrasqueira, parreira e jardim. O sargento e sua cadeira de rodas estão acomodados ao sol. Rosa o vestiu com um poncho e pôs um chapéu para que ele não se enregelasse com o frio, nem sofresse insolação. Desde que teve o acidente vascular cerebral, ele não se levanta desse trono; consegue apenas girar a cabeça e mexer um pouco o braço esquerdo. Não tem sido muito obediente aos médicos: nega-se a fazer a reabilitação e a dieta, e Rosita se mata de preocupação.

— Me dê um cigarro — ele ordena a mim.

— Não nos cumprimentamos mais, meu sargento?

— Sargento-mor para você, recruta.

Olho para Rosita, que está atiçando as brasas. Mostro o maço de Parisienne. Ela faz que não com a cabeça, mas aceita, resignada, dá de ombros e continua com sua tarefa. Acendo dois cigarros e ponho um deles nos lábios do sargento. Mesmo podendo mexer a mão, não a move, só tira um trago e solta a fumaça pelo nariz. Fumamos os dois olhando a laranjeira e os jasmineiros. Arrasto uma cadeira e me sento a seu lado. Rosita nos dá a notícia de que abriram um açougue no bairro e que conseguiu umas vísceras muito gostosas.

— Sabia que Santiago morreu? — pergunta o sargento.

De perto, noto que em trinta dias ele envelheceu um ano. De nada o ajudam a pele ressecada e o corpo combalido. E, além disso, tem os olhos mortos. E isso não aconteceu nem mesmo quando nos trouxeram prisioneiros e derrotados no Canberra. Sua amargura tem décadas, e há três anos o avc adiou os pregos do caixão, mas, de qualquer forma, até agora seu olhar se manteve ileso e luminoso. Este olhar vazio é completamente novo.

— Que Santiago?

— O Santiaguito, idiota. O menino da metralhadora Mag que emperrou quando caiu aquela nevasca forte.

— Coração?

— Não, coração nada. Caiu do trem.

Ficamos calados. Rosita coloca música na angústia. A música de sua conversa. Fala do jardim, dos vizinhos, do tempo, da política municipal. O sargento e eu ouvimos a música, mas não escutamos a letra. Cospe a guimba do cigarro e eu jogo a minha nas brasas. Abro o primeiro malbec. Rosita espana as cinzas do peito do sargento, aproxima o copo de sua boca, enxuga os cantos. Empurro a cadeira para que ele possa abocanhar a primeira víscera. Comemos. A carne está deliciosa. Rosita corta bem fino os manjares de seu prato e dá a ele como se fosse mingau. O sargento pede que completem o segundo copo. Não começo a conversa porque sei que ele vai me cortar. Espero o inevitável. Há trinta anos acontece exatamente o mesmo. O sargento encontrará um jeito de fazer um comentário sobre o 11 de junho. Começará pelos disparos dos navios, ou pelo inglês que pisou em uma mina nos “campos da morte”, a noroeste do Monte. O ataque surpresa do regimento de paraquedistas, o céu atravessado por labaredas, os morteiros, o matraquear das metralhadoras, a noite lenta de heroísmos e covardias. O modo como enlouqueci. “Hijo de remil putas, recua! Recua, é uma ordem!” As recordações acabarão nos camaradas da Companhia de Engenheiros e no Esquadrão de Exploração da Cavalaria Blindada. Os fuzilamentos que o inimigo executou no campo de batalha. Aquele gurkha que arrancou de uma rajada rápida o olho esquerdo e a massa encefálica de um companheiro. Que depois sobreviveu porque Deus é grande. Coisas vistas, entrevistas, ouvidas, verdadeiras e falsas, aumentadas e diminuídas pelo tempo. O sargento me levando no ombro por quilômetros e mais quilômetros para me salvar da morte. O hospital de mutilados, a rendição, a volta. Dezenas de nomes. Que foi feito deste soldado e daquele oficial. Soube que fulano se matou, sabia que beltrano teve um filho? “Dessa garotada toda, o único que saiu torto foi você”, sempre diz nos epílogos, e desta vez não é uma exceção. “A maçã podre.” Rimos um pouco. Quatro horas depois, Rosita já dorme a sesta em uma rede paraguaia e o sargento faz uma pausa, tem um cansaço animal. Nesse tempo todo, acabamos com as duas garrafas e um maço de cigarros. Os olhos mortos ressuscitaram um pouco e voltaram a morrer. Estamos muito próximos, falamos aos sussurros. A tarde cai espantosamente rápido. As brasas mantêm certo calor, mas logo o sargento sentirá frio e sono e me pedirá que o leve para o quarto e o acomode na cama. Rosita, ao ouvir o barulho da cadeira de rodas, virá atrás, dará a ele os quatro comprimidos com um copo de água, um beijo na boca, apagará a luz e fechará amorosamente a porta. Antes que tudo isso aconteça, desta vez o sargento me dirá num leve sussurro: “Não quero que falte nada a Rosita, Remil”. Gostaria de contradizer seu pessimismo ou mesmo abraçá-lo, mas sei que seria bem capaz de me delatar. Ajeito melhor seu chapéu. “Os médicos avisaram que pioro a cada dia”, acrescenta, e sorri sem graça. “Não deixe que me enfiem debaixo da terra, sempre tive claustrofobia.” Rosita já lhe prometeu cem vezes uma cremação, mas o chefe só confia em seu recruta. Faço que sim sem parar, mexo a cabeça como aqueles cachorros de brinquedo que antigamente eram colocados no vidro traseiro dos carros. Empurro a cadeira, Rosita responde a seu chamado e cumpre o ritual. Limpo a churrasqueira enquanto ela lava os pratos. Não trocamos uma palavra. Não podemos.

Depois trepamos silenciosamente no galpão.

Maca é uma gordinha de feições agradáveis e peitos imensos. Usa óculos bifocais de armação colorida que combinam com o batom, o cinto, a caneta e os sapatos. Está lendo o arquivo confidencial de seis páginas que lhe trouxe: ali está quase tudo que por enquanto sabemos sobre Nuria Menéndez Lugo. Há pouco, ao examinar por uns segundos a foto da morena, desenhou com a boca uma careta estranha, como se estivesse se esforçando para não rir. Dou-me conta de que está pensando na namorada. A loura oxigenada corre em Madri para chegar a tempo com uma investigação a fundo sobre nossa misteriosa advogada. À noite, Maca e Luciana Flores devem estar trocando opiniões maldosas sobre a galega. Certamente já saberão o que eu apenas adivinho. Que Nuria não é lésbica. Mas quem sabe que conclusões astrológicas Flores terá delineado a respeito dessa mulher elegante?

Olho em volta e acendo um cigarro. Estamos nos fundos do térreo da Casinha. O consultório de Maca dá para o pátio interno com gerânios. É uma paisagem deprimente. Todo o edifício é assim. O coronel ocupa, no andar mais alto, um gabinete com vista para a rua Chacabuco, uma paisagem que tampouco dá muita vontade de viver. Na recepção, antes de entregar a arma e passar pelo detector de metais, comunicam-me agora que o coronel me espera ao meio-dia. Estou uma hora adiantado. Maca deixará de uma hora para a outra o dossiê Menéndez, se jogará para trás, olhará em meus olhos e me surpreenderá com uma pergunta íntima ou um golpe baixo. É seu modus operandi. Poderia inventar completamente os relatórios para o tribunal, e de fato redige uma minuta repleta de lugares-comuns, onde apareço como um paciente que faz grandes progressos. Mas o coronel lhe pediu que escrevesse, paralelamente, um relatório verídico “somente para seus olhos”. Cálgaris monitora minha cabeça, acredita que posso ter algum desvio e virar um pé no saco. “Ao contrário”, falou-me certa vez quando eu disse isso na cara dele, “fazemos isso para o seu bem.” Quanta consideração, o filho da puta.

Já passamos por minha infância e pelos traumas da guerra, também pelos efeitos colaterais deste trabalho. Já tivemos alguns lances incômodos, por exemplo, quando me perguntou sobre a morte. Nessa época, eu havia recebido uma ordem que não poderia ser cumprida. Respondi com a mesma brusquidão com que rebati o coronel: “Não sou um matador de aluguel”. Cálgaris fez vista grossa para a insubordinação e esqueceu o assunto, mas Maca quase deu um pulo da cadeira. Esta semana, escreveu um e-mail à Espanha com uma frase memorável: “Curioso, consigo mesmo sente-se um soldado, talvez mercenário, às vezes um guarda-costas, espião ou detetive, embora nunca entre nessas fantasias literárias baratas. Mas por esses dias o imbecil descobriu que bem no fundo se considera uma espécie de herói”. Na mensagem de resposta, Luciana Flores acrescentava um conceito irônico: “Sim, um herói infame”. É assim que somos, amigos. Nem heróis de coração puro, nem heróis cansados. Somos apenas heróis infames. Aventureiros sem moral nos esgotos deste país cheio de gente honesta e desinteressada.

— Há séculos não falamos de sua vida sentimental — diz Maca, largando o dossiê, jogando-se para trás e olhando minha boca. — Como vão as coisas? Tem alguma mulher?

— Muitos de nós, aquarianos, somos meio racionais com nossos sentimentos — respondo e solto uma baforada de fumaça. É evidente na cara dela que agora o golpe baixo quem deu fui eu: de repente ela se retesa, como se desconfiasse ter sido espionada por mim.

— Não sabia que você lia o horóscopo — diz ela a meia-voz, meio desligada. — Que surpresa.

— Tem uns rolos. — Dou de ombros. Estou prestes a dizer alguma coisa, mas me contenho.

— Não se reprima. — Ela me atiça, porém com prudência excessiva. Depois força mais um pouco. — O que é?

— Não sou profundo no amor, nem fiel por muito tempo.

— Nunca se apaixonou? — Ela recupera certa serenidade profissional. Acho graça.

— Sou meio dispersivo e não gosto das complicações.

— Insisto: nunca?

— Em algum momento da pré-história. — Sorrio. — Algumas velhinhas me seguem agora, mas não deixo entrar.

— O que mais?

— Nada, quanto é?

— O que mais, Remil?

— O amor não é imprescindível.

Esmago a guimba no cinzeiro e olho a parede. Maca morde a caneta e anota uma palavra no bloco.

— E o que sente quando se intromete na intimidade das pessoas? — pergunta, e esclarece. — Quando abre seus segredos e vê que essas pessoas sofrem, enganam-se, têm esperanças.

— Quando têm esperanças, me dão certa pena.

— Vejamos isso.

— Nunca tenha esperança. Assim nunca terá desilusões.

— O que é isso?

— Uma frase para a posteridade.

— Falemos de nosso chefe supremo.

— O que Cálgaris quer saber?

— Não é ele que quer saber, sou eu que quero saber, Remil.

— Neste caso, dá mais ou menos no mesmo.

— No ano passado você confessou aqui que às vezes fantasiava dar um tiro nele.

— Não era uma fantasia.

— E o que era então?

— Um desejo — digo como quem saboreia a palavra. — Matar o pai.

— E o que vai acontecer se um dia o coronel for aposentado?

— Não há ninguém neste país com poder suficiente para fazer isso.

— Bom, digamos que o coronel morra de um câncer fulminante.

— O que está havendo?

— Me diga você. O que está havendo?

Fico um minuto inteiro procurando uma resposta correta. Maca já está completamente relaxada. Me pegou no laço. Sua boca forma de novo aquela careta estranha, como se ela se esforçasse para não rir. Vagabunda.

— Dou baixa no serviço — digo, por fim. — E vou ajudar a Missing Children.

— Missing Children? — Ela se surpreende.

— Busca de crianças desaparecidas. Mas não porque tenha um grande coração. Porque é divertido.

— O quê?

— Continuar.

— Continuar a caça?

Pestanejo um pouco. A gorda é boa. Tenho de admitir. Muito boa. Sim, trata-se da caça. Toda a história humana fala de caçadores e presas. Está no nosso sangue, não? Maca anota outra palavra.

— Você choraria, Remil? — pergunta de repente. — Quero dizer: choraria ao saber que o coronel morreu? Seguraria a alça de seu caixão, falaria em seu enterro? Teria saudade? Se mataria?

Respiro com certa agitação, como quem chega de uma corrida leve. Maca percebe pelo olhar que estou ficando um pouquinho perigoso. Pisca muito, sei que sua boca ficou seca. Não é para menos.

— Isso me lembra um preso — digo lentamente. — Passou da cortesia do refeitório a me dar uma facada na barriga, outra no braço e, quando me virei, duas mais rápidas nos rins e na nádega. Aqui, está vendo? E aqui. Uma atrás da outra, como punhaladas de um louco. Fiquei seis semanas no Hospital Churruca.

O silêncio é tão prolongado que Maca olha a hora. Depois passa a língua pelos lábios pintados e escreve uma frase completa.

— Entraria no duplex dele na Recoleta e roubaria as quatro caixas de Blue Label escondidas nos armários secretos que ele tem embaixo da escada — digo, detendo-me; não reconheço minha voz. — E tomaria uma garrafa por dia em honra à sua infinita bondade. Anote bem este detalhe: embaixo da escada. E diga que mandei lembranças.

Recuo até a saída e me contenho para não bater a porta. Vagabunda. Gorda vagabunda. Depois pego o elevador e desemboco na salinha das duas secretárias. São incrivelmente feias e lacônicas. Fazem-me esperar quinze minutos; na mesa de centro acumulam-se revistas de turismo. Tem uma dedicada à Escócia. Aparecem a ilha de Skye, as montanhas de Cuillin e um marcador recente destaca a frase “exuberante aroma e sabor peculiar de turfa, defumado e salobro, com notas de algas marinhas”. Vejo aonde vai o chefe: direto a uma garrafa de Talisker. Talvez, afinal, em seu apartamento impenetrável e enigmático de dois andares, o coronel não guarde mais embaixo da escada uma provisão de Johnny Walker, mas esse dourado-avermelhado que deve dar água na boca. Quantos anos tem Cálgaris? Como pode ser que continue mamando como se não fosse nada, fumando cinquenta cachimbos por dia, praticando esse sedentarismo mortal? O que vai acontecer realmente se uma manhã me acordarem com a notícia de que ele bateu as botas? Gorda filha de uma puta.

Uma das duas secretárias me chama por um de meus três nomes falsos e informa que já posso entrar. Talisker. Preciso memorizar esse dado.

O coronel está falando com alguém pelo Skype; não se preocupa que eu ouça os detalhes. Faz sinal para que eu me aproxime e me sente em uma poltrona. Está atrás de sua imponente mesa de carvalho; ouve bem baixo um álbum de Thelonious Monk. Flutua no ar o odor de seu tabaco, uma rara mistura de cereja. “Uma combinação de Virgínia suave com um toque de Burley”, explicou ele uma vez a um ministro da Suprema Corte, enquanto tomávamos café em seu gabinete. Sua Excelência tinha um problema que não o deixava dormir: um legislador revirava uma falência fraudulenta do passado com a intenção de trazê-la à tona, contar como tudo foi encoberto, e queria sua exoneração. “Não gostamos das campanhas sujas”, disse Cálgaris. E ao sair desse templo da justiça, pediu-me que procurasse toda a sujeira que conseguisse do legislador. Tinha sujeira, como qualquer um: pegava a mulher de seu chefe político. Cálgaris lhe enviou uma foto íntima por e-mail, depois mandou o recado de que ele não enchesse o saco. Santo remédio, não encheu mais.

O peixe graúdo da Casinha tem olhos claros e um cabelo louro quase grisalho, bigodes amarelados e voz rouca. É um ancião indefinível de porte mediano. Não deixa de usar gravata nem que o fuzilem. Usa camisas brancas e abotoaduras verdes. Jamais encontrei os sapatos descuidados, sempre brilham como novos. E, na maioria das vezes, são. Teve uma esposa, mas enviuvou em 1993. Sei que tem dois filhos radicados na Europa e que leva uma vida solitária em Buenos Aires, cercado por livros de história, mapas, bússolas e armas antigas que coleciona. Sei também que tem um veleiro, com o qual escapa em alguns fins de semana para o litoral uruguaio. E uma mulher com quem se alivia no centro histórico de Colonia.

Pelo rumo da conversa, adivinho que fala com um agente que é traficante de escravas brancas. Um cafetão que mexe com prostituição de alta classe e tem uma quantidade impressionante de informações sobre políticos, empresários, atores e jogadores de futebol. Ganha uma grana tão preta que às vezes o coronel precisa recordar a missão original e baixar sua bola um pouco. “Câmbio e desligo”, diz ele e desativa a comunicação. Leva as mãos à nuca e olha o teto por uns segundos. Não o interrompo. Logo diz “Bom”, endireita-se, apalpa a mesa e escolhe um de seus dez cachimbos.

— Estamos cercados — diz, como que para si mesmo. Abre o tabaco e começa a encher o fornilho. — Como vai a operação?

— Tudo em andamento — respondo.

— Lembre-se de que preciso de tudo em vinte dias. — Ele me ameaça, apontando para mim com o cachimbo. Depois o leva à boca e acende com um isqueiro especial.

— Podemos instalar escutas — digo com ironia. — Ou usar um equipamento remoto de trezentos metros.

— Não precisa tanto — descarta a ideia, coçando o bigode amarelo. Lança a primeira baforada e enche o ar de aromas. Sorve a piteira por um momento, pensativo. Depois ergue os olhos. — Vou te envolver também em mais duas confusões. Porque este mês estamos cercados! Mas veja bem: é touch and go. Não vá se distrair, que Menéndez é a mais importante. Touch and go.

Acendo meu cigarro. Há uma competição de fumaça. O coronel tem o rubor de um hipertenso e os olhos úmidos de um alcoólatra. E se o velho for pelos ares?, pergunto a mim mesmo. Vagabunda. Conseguiu me meter uma pulga atrás da orelha. Vejo que ele abre uma caixa e pega um recorte de jornal e um disco. Mostra o recorte na mesa sempre imaculada e bate nele com o indicador.

— Não vá se esquecer de Holguín. — Ele ri.

Um barão veterano da Grande Buenos Aires. Foi reeleito seis vezes, nunca perdeu uma eleição, está em todas e, apesar de ser um corrupto famoso, os vizinhos o idolatram. Talvez por isso mesmo; as pessoas são muito estranhas. Fizemos um favor a ele seis meses atrás. Suspeitava de que a segunda mulher, vinte anos mais nova, estava lhe botando chifres. Como todos esses imbecis, não queria se envolver com a polícia, nem com os órgãos de segurança. Seguimos a mulher por dois dias e por acaso ela o corneava com o personal trainer. Palma gravou para ele várias conversas telefônicas: ela estava muito apaixonada, mas ele tinha duas amantes na mesma academia, fazia kick boxing e às vezes dava o rabo. Nada fora do comum: um metrossexual com um quê de gigolô e de garoto de programa. Gostava de experimentar os limites do próprio corpo.

— O que Holguín fez com o material que passamos a ele?

— Não disse nada a ela, eu a teria tocado para fora com um pé na bunda — declara lorde Cálgaris. — Mas o babaca quis reconquistá-la. Meu Deus do céu!

— É preciso tirar o professor da parada.

— Veja só que original.

— Está bem, vamos ao seguinte.

— O seguinte é um pouco mais espinhoso. — Agora coloca um disco sobre o recorte. Sei que ali vou encontrar todas as informações. — Existe uma senadora cordobesa. Elena Parisi. É amiga. Ou algo assim. Soubemos que Fierrito a extorque com um dossiê.

— De novo?

— Desde que o desligaram da “corrente da felicidade”, anda fazendo essas pesquisas.

— Diz que tem um ás na manga, mas é blefe, coronel — reclamo.

— Já disse isso, já falei. — Ele assente. — Mas ela ainda está inquieta. E não temos a completa certeza de que é um blefe. Quem sabe, talvez agora tenha algo mais palpável.

— Se me permite — interrompo, meio irritado. — Isso se arranja com um telefonema seu. Fierrito trabalhou vários anos para a Casa.

— Ele não atende, está sumido. — O coronel volta a acender o cachimbo. Vê-se que raciocina. — Era um bom jornalista, mas ficou viciado na moleza. Parte da culpa é nossa.

— Há três anos, pegou um adiantamento de uma editora — relembro. Uma biografia não autorizada de um ilustre membro do governo. — Gastou em uma viagem ao Egito, fingiu que havia uma investigação, deu a entender que tinha uma bomba, depois cobrou do otário uma grana alta para abortar o projeto. A editora entrou com um processo que não vai ganhar nunca. Não dá para cobrar de Fierrito, é inadimplente inveterado. É o maior picareta que tivemos por aqui.

— Dessa vez, taque fogo na casa dele — diz ele com alguma aflição. — Mas queima pra valer. Um dia desses aparece querendo contar tudo sobre nós e vamos em cana.

— Não vai acontecer nada, coronel. Esse cara sempre foi um idiota periférico.

— Tem o suficiente para ir para o Noticias — diz ele e olha a parede. Há três pinturas náuticas e uma primeira página de jornal emoldurada onde se promete em uma manchete enigmática a história do “homem que ajeita os problemas” dos políticos argentinos.

No começo, Cálgaris teve um princípio de úlcera. Tinha vergonha de ser trazido à tona por uma revista. Desde então, duas comissões de deputados pediram explicações sobre ele aos superiores, mas no fim o escândalo foi se apagando e entrou num beco sem saída graças a três fatores: tivemos alguma sorte, operamos em outros níveis e ficou comprovado que no fim das contas nossos clientes de toda a vida tinham muito a perder se o caso não fosse esquecido. Desde sempre aquilo não passou de um mero quadro, quase uma condecoração, uma piada interna.

— “Fala Fierrito, o primeiro arrependido do serviço secreto” — recita o coronel, rindo e tossindo. Tem também um catarro crônico e aquoso.

— Quem é Nuria Menéndez? — pergunto à queima-roupa.

Ele fica sério. Estou acostumado a saber que existem muitas coisas fora de minha alçada e que nesta agência investigamos as pessoas para terceiros sem fazer perguntas demais, quase sempre às cegas, com indiferença e má-fé. Executivos com grandes responsabilidades, funcionários públicos em áreas delicadas, candidatos a cargos legislativos, astros do rock e atrizes, criminosos fichados, delinquentes da política e os falsos bonzinhos do show business. Mas sinto até a medula que Menéndez é assunto especial e que me deram a ordem de abrir sem anestesia e com bisturi sem me dizer o que vou encontrar por dentro. Penso também naquele mau pressentimento de Lali: “Essa mulher é muito fodida, Remil”. E agora mesmo confesso uma inquietude, uma estranha curiosidade, que não me deixa dormir tranquilo. Eu, que consigo apagar como um bebê no pavilhão de assassinos em série de Sierra Chica.

Como o cachimbo se apagou há um bom tempo, Cálgaris se estica e amarra um cadarço. Separa as cinzas com uma colherinha, mete a vareta para lhe dar mais oxigênio, coloca o tabaco, aperta dentro do fornilho e volta a acender. Age com lentidão e com a cabeça em outro lugar. Estou prestes a pegar outro cigarro, mas mudo de ideia. Vou fumar essas longas baforadas que ele me atirar na cara. Monk terminou seu álbum e recomeçou. Pode tocar o dia todo, por uma semana inteira. Ou pode também ser que uma das duas secretárias troque por uma sessão de improviso com Stan Getz. O coronel conseguiu inculcar em mim a história, mas não conseguiu nada com o jazz. Um pé-rapado de merda como eu sempre vai preferir o tango.

— Já sei que você não leu Ovídio — diz ele por fim, de testa franzida. — Mas não deve ter se esquecido de como caiu em desgraça com César Augusto.

— Foi mandado ao exílio — confirmo. Eu o tenho mais como personagem de uma conspiração do que como poeta. É o seguinte: poesia não é a minha.

— Sabe o que Ovídio dizia? — pergunta o coronel com uma suavidade de dar calafrios, e ele próprio responde. — “Uma mulher sempre está comprando algo.”