ii. O guardião da Mona Lisa

Estaciono o 4×4 a cinquenta metros da academia e vejo pelo binóculo os alvos por trás das vidraças e depois a placa dos poucos carros estacionados no quarteirão. Não vejo nem o Mini Cooper da mulher, nem o cupê Megane do homem. Deixo o binóculo e saio para dar uma volta. A manhã é cinzenta em San Isidro. Em uma transversal, na sombra, encontro o cupê amarelo. Dentro de um estacionamento, ao fundo e à direita, detecto o Mini Cooper. Há seis meses nós os seguimos por três semanas; na maioria das vezes, usavam o carro dela. Mas, numa manhã de chuva, o cavalheiro retirou o Megane e não nos deu tempo de raciocinar. Perdemos o homem. A rotina era sempre a mesma: Panamericana, ramal Tigre, pedágio e um motel na avenida Uruguay. Tenho certeza de que não mudaram o hábito. Volto ao 4×4 e ao binóculo, e fico à espreita.

É por esse tipo de besteira que somos motivo de riso no 25 de Mayo. A base Chacabuco foi aberta por pressão política. A Casa foi se convertendo no serviço secreto e exclusivo do presidente e os outros reclamavam. Os outros, devo esclarecer, têm poder e influência territorial e econômica, enchem o saco, votam projetos de lei. Sentem-se também parte do Estado. Por isso, na Secretaria decidiram financiar, fora do organograma, uma agência que se mantivesse ligada à Casa, como um sidecar em uma moto, para que não fosse contaminada por essas calúnias e biscates menores. O coronel é um personagem exótico e não representa perigo político nenhum para os funcionários públicos de carreira: sempre que a chefia lhe ofereceu promoções, ele as rejeitou, sempre se manteve fiel ao diretor-geral de operações e ao diretor de contrainteligência, e tudo, ou quase todas as informações, é reportado à Casa. Quero dizer: cada atividade nossa, cada caso em que nos envolvemos, forma uma ficha e sua cópia vai parar no escritório de Antecedentes, que fica no térreo da Central. O coronel guarda alguns arquivos especiais, não se sabe onde. Por via das dúvidas. Para ter algo contra os amigos e aliados, se por acaso um dia, Deus nos livre, todos enlouquecerem. Eles fazem exatamente o mesmo. Eu te seguro pelo pau e você por meus bagos, e ficamos todos tranquilos e nos amamos como irmãos.

A Casinha se sustenta em parte com fundos secretos, mas há dez anos tem direito de autogestão. As regras são abertas. Às vezes interferimos sem cobrar em moeda sonante, embora no fim os clientes sempre acabem pagando com algum favor. Em outras ocasiões, que Cálgaris chama “bicos”, agimos diretamente como uma empresa de segurança privada. Uma pequena empresa no fundo de despesas. Mas os favores de nossos clientes mais poderosos não são de pouca monta: a Casinha tem investimentos legais e ilegais, e o dinheiro lubrifica a engrenagem e a mantém rodando. Só o coronel sabe a quem cobramos e como.

Minha relação com a Central não é ruim. Pediram-me emprestado muitas vezes. Sobretudo para que me infiltrasse em quadrilhas de sequestradores, para substituir alguém na segurança presidencial e para o serviço de campo, espionando piqueteiros ou sindicalistas, armando tumulto em manifestações. Em troca, mandaram-me ao exterior duas vezes em vinte anos para fazer cursos de inteligência e criminologia. “Não quer se mudar para o 25 de Mayo e deixar de uma vez por todas esse galinheiro, Remil?”, perguntou-me um dia um mandachuva da Sala Patria. “Sou o escudeiro do coronel, senhor”, respondi com cara de mordomo. “E estou preso a esse destino.” Na Casa, valorizam um pé-rapado de merda que leu Massimo Valerio Manfredi.

Vejo uma Julieta e um Romeu. Ela é um produto da academia e do silicone; ele parece o Jean Claude Van Damme depois de uma gripe. Acompanho os dois pelo binóculo, seguem pela calçada como dois amigos inocentes, sem se tocar, nem se olhar com devoção demais. Os infiéis sempre andam assim, juntos mas separados, bancando os bobos. Ligo o motor e engreno a marcha. Pela direção que tomaram, acredito que hoje rodamos no Mini Cooper. Alcanço os dois sem esforço nenhum quando estão pegando a Panamericana. O carrinho vermelho entra costurando no trânsito e fica na pista da esquerda: a mulher pisa fundo e me obriga a correr. Só que é uma correria inútil, porque terminamos no lugar de sempre, mas não quero equívocos. Vai que nestes meses descobriram outro motel e tenho de ficar duas horas esperando no final da rua Uruguay. Enquanto avançamos, meu celular toca, ligo o viva-voz e atendo. Palma me cumprimenta:

— Nuria é uma chata.

— Nada? — Estranho.

— Estou mandando algumas gravações para seu e-mail. Não sei. Talvez empolguem você.

— E o e-mail?

— Trabalho puro e simples. Nem uma frase carinhosa. E nem mesmo parece uma terrorista islâmica.

— Está no Facebook, tem conta no Twitter?

— Nem sonhando. É supercalada. Invisível.

— Usou o Spyware?

— Ainda não.

— E está esperando o quê?

Encerro a ligação para pôr o cara um pouco na linha. O Spyware é um programa que permite acompanhar em tempo real toda a movimentação na internet. Preciso saber em que sites entra, quais palavras digita no Google. Agrada-me pensar que esse babão de boné e pirulito está se remexendo na cadeira, porque acredita que sabe de tudo e eu flagrei um erro dele.

Agora estamos na fila do pedágio. Não teremos surpresas. Tem lugar para estacionar em frente ao motel. Comprovo que o Mini Cooper de fato para ali e freio um pouco antes, em cima da grama. Pego o notebook na mochila, ligo, entro em meu e-mail e baixo quatro arquivos de som. Conecto o iPod e toco. Depois de um tempo, conecto o iPod no mp3 do carro e coloco o primeiro arquivo num volume médio. A voz de Nuria Menéndez Lugo de imediato enche o ambiente. É uma voz executiva, grave e meio áspera. Mas de uma aspereza sensual. Com sotaque de Madri e um vocabulário muito espanhol, embora mesclado com palavras em inglês e francês. Tem uma convicção absoluta. Está falando de expedientes e de procedimentos de exportação. Pede algo para almoçar no restaurante da esquina: salada e água mineral, e de sobremesa iogurte desnatado de baunilha. Exige de uma assistente um café curto e forte, sem açúcar nem adoçante. Descubro que fuma Camel. Baixo o vidro um centímetro e acendo um Parisienne. Nuria recebe uma ligação da Espanha. É um sócio, conversam sobre um negócio que deu merda na Bélgica. O sujeito pergunta sobre Buenos Aires. Nuria está enjoada de comer carne e diz que aqui os peixes não têm gosto. Ela passeou bastante. Foi ao caminho de San Telmo e comprou uma faca de prata. Explica que se trata da faca dos gaúchos, mas fabricada especialmente para turistas ignorantes. Não usa a palavra turistas, usa gringos. Ri um pouco. Tem um riso cínico e erótico. Deram-lhe um ingresso para o Colón: apresentam A viúva alegre. Explica ao sócio que é uma opereta muito divertida. O sócio não se atreve a se meter em sua intimidade; ela muda de assunto e volta aos negócios. Não entendo porra nenhuma, mas a voz é tão fascinante que o cigarro queima meus dedos. Jogo a guimba fora e acendo outro. Talvez, no fim das contas, Palma tenha razão. Essa voz pode me excitar, mas é incapaz de transmitir alguma merda que interesse. Quem é esta mulher, veio fazer o quê, por que estamos revirando o armário. “Uma mulher está sempre comprando algo.” O que ela veio comprar?

Entretenho-me na hora seguinte escutando os outros arquivos de som enquanto lá dentro Jean Claude revira o estofado da mulher de Holguín. Nuria está em casa, explica a assistente que contratou uma empregada paraguaia de segunda a sexta-feira. Parece muito eficiente e confiável. Foi recomendada pela esposa de um advogado argentino com quem ela jantou outra noite. Pauso o arquivo e ligo para o Serralheiro pelo celular. Demora a atender. Enfim atende, está em um lugar muito barulhento.

— Tem empregada, mas vai embora ao meio-dia nas sextas-feiras — informo. — Como está indo com o lixo?

O Serralheiro diz que não consegue me ouvir, preciso gritar para que ele entenda.

— Perfeito, garoto, então na próxima sexta na hora da sesta — confirma ele. — Porque a cinesióloga do apartamento B também não está. O consultório fica fechado.

— E o lixo? — insisto.

— Vai bem, demoramos um pouco para identificar, mas já vamos separar tudinho. — Ele ri.

— Tem certeza de que não vou encontrar o lixo da vizinha, não?

— Tem restos e papéis amassados em nome de Nuria não sei de quê.

— Fuma Camel?

— Importado. E bebe licor Anís del Mono. Não é qualquer um que bebe Anís del Mono, fuma Camel e se chama Nuria, né?

— Como foi a coisa?

— A Velha jogou todo o lixo do prédio na carroça e depois, na praça, revistamos saco por saco. Os idiotas sempre comem e bebem igual, Remil. São tão…

— Previsíveis.

— Isso. — Ele volta a rir.

— Você também — digo. — Está no hipódromo perdendo tempo e jogando dinheiro fora.

— Desde que eu não te deixe na mão…

— Não me deixe na mão, Serralheiro, ou te desço o cacete. E trate de preparar tudo para mim na favela bem cedo na sexta-feira.

— Assim será. — O Serralheiro para de rir. — E dali saímos juntos e arrombamos o cafofo, beleza?

Não respondo para que ele sinta a pressão e o asco. Ele me diz que o crédito está acabando e precisa desligar. Ao fundo, por um alto-falante, dá para ouvir o anúncio da próxima corrida. Desligo o celular e volto à gravação. Nuria pergunta a um funcionário sobre um trâmite comercial. Licor e Camel, penso. Como será que essa morena passa as noites? Vê pornografia, masturba-se na banheira? Em quem ela pensará? Figura como divorciada no passaporte, e é uma mulher atraente: é estranho que não tenha namorado ou amante, nem vontade de tê-lo. Ou terá, e Palma não conseguiu descobrir ainda? Quem sabe?

Fico um pouco surpreso ao ver que o Mini Cooper reaparece e pega de novo a saída da Panamericana. Faço uma manobra completa e imprudente, sigo os dois e os alcanço sob a ponte de acesso. O carrinho reduz para virar e subir, eu o ultrapasso da direita para a esquerda. Num segundo, manobro em sentido contrário e dou uma fechada na traseira, jogo o 4×4 em cima deles e a mulher dá um golpe no volante para escapar de mim. Segue em linha reta ainda por alguns metros pela transversal e para no acostamento: com o susto, o motor morreu. Foi uma manobra rápida e estranha, e os dois se encontram em estado de choque. Freio atrás deles, ponho o gorro e saio do carro com a Glock na mão, apontada. A jaqueta e o gorro são azuis e trazem as iniciais pfa, Polícia Federal Argentina. Aponto para eles e grito. Ela baixa a janela, tem os olhos verdes arregalados de pânico.

— Polícia Federal, coloque as mãos no volante, senhora! — ordeno.

Às vezes tenho um vozeirão que paralisa. A mulher de Holguín está com o cabelo molhado e a boca seca. Vejo pelo decote as sardas que sobem pelos peitos siliconados e as lágrimas. Só falta fazer beicinho. Também vejo que o professor se curva sobre ela para falar comigo. Tem a testa franzida de preocupação, porém nada além disso. É um homem do mundo, já foi fisiculturista e no ano passado ganhou o torneio de kick boxing do bairro. Chamo o homem pelo nome e o intimo a sair do carro. A mulher faz um gesto de quem vai acompanhá-lo no infortúnio e grito que ela não o faça, que fique sentadinha e me dê a chave. Ela obedece como um robô. Guardo o chaveiro e explico grosseiramente que se trata de um procedimento determinado por um juiz e tenho ordem de interrogar seu namorado no tribunal. A mulher diz, como uma garotinha, que o homem não é namorado dela. E o bonitão se faz de bobo. Puxo a trava da Glock e grito o ultimato. Noto que Jean Claude fica impressionado. Contorno o Mini Cooper pela traseira e espero por ele do outro lado, de pés plantados, segurando a arma com as duas mãos. Ele é quase da minha altura, veste uma camiseta apertada e exibe bíceps volumosos, porém sem orgulho. O cagão fecha a cara e a verdade é que não dá para brincar com esse monte de músculos, com essa montanha de carne e autoestima.

— Deve haver algum engano — queixa-se ele. Nessas circunstâncias, as pessoas soltam clichês.

— Vire-se — ordeno, empurrando o homem no automóvel. — Me dê suas mãos. — Ele obedece, enquanto jura que eu o confundi com outra pessoa. Coloco as algemas. Só então meto a pistola no cinto, seguro o homem pela nuca e o puxo pelo braço. Estamos contornando o Mini Cooper em sentido contrário. A mulher, aflita, sentindo-se culpada pela falta de solidariedade, aparece e me interroga. Quem sou eu, quer ver minhas credenciais, que acusações existem contra este pobre homem. Diz até uma frase original: “Meu marido é muito amigo do chefe de polícia”. Rio um pouco, não consigo evitar. Encosto-me de leve na janela aberta e mostro a ela o chaveiro.

— Diga a seu marido que você estava em um motel em San Fernando com seu personal trainer — estimulo. — E que a polícia o levou para interrogatório por delitos contra a integridade sexual.

— Delitos sexuais? — O carateca se escandaliza e faz um movimento instintivo. Na dúvida, pressiono a cabeça dele no teto do Mini Cooper e o prendo ali à força, enquanto falo com sua amável benfeitora.

— É loucura. — Ela nega. Não chora mais e passa a língua pelos lábios de colágeno. Também passa a mão sardenta na testa. Tem no pulso um relógio diminuto de diamantes. — É uma completa loucura.

— Vou lhe dar um conselho — digo. — Pegue a chave e vá para casa.

— Não, não. Vou acompanhar vocês até o tribunal. Não posso deixá-lo assim.

— Pegue a chave e vá para casa, senhora. Haverá jornalistas.

— Mas isto é um absurdo! — Ela se desespera.

— Vou prometer uma coisa. Você pega a chave, vai para casa e o imbecil aqui telefona para você em duas horas para contar onde está e como a coisa vai. E tenha em mente que será um grande favor. Porque ele ficará incomunicável enquanto estiver no tribunal. Isso eu garanto.

Ela mexe a cabeça, tentando decidir se pode seguir minha sugestão. Está pensando em todas as implicações dessa catástrofe.

— Não acredito que o sr. Holguín tenha muita vontade de mover um dedo que seja por seu amigo, senhora — eu a ajudo.

A mulher me olha e morde o lábio. É uma mulher recauchutada, mas atraente. Todo o escândalo passa diante de seus olhos neste exato momento.

— Diz a ela que vai ficar tudo bem — recomendo ao vagabundo, aproximando-me de sua orelha de repolho.

— Vai ficar tudo bem, meu amor — obedece o bobalhão. — Eu não fiz nada.

— Diz a ela que você vai telefonar daqui a duas horas — digo.

— Te ligo daqui a duas horas, meu amor. Não se preocupe. Tudo vai se esclarecer.

Não espero nem um segundo, devolvo o chaveiro para a mulher, agarro de novo o bonitão pelo cangote e pelo braço e o levo ao 4×4. A mulher de Holguín não me segue, nem se abaixa: está me olhando pelo retrovisor, porém mordendo o lábio grosso e com a chave fechada no punho. Abro a porta do 4×4 e acomodo o professor na traseira. Ando com correntes para imobilizar as pernas dos detidos. Certa vez tive uma surpresa desagradável com um deles, e este particularmente sabe usar os pés, assim eu os prendo e me sento ao volante. A mulher não decide ligar o motor. Espero em silêncio, sustentando o olhar pelo espelho, como se fosse um duelo. Por fim ouço a ignição e vejo que ela liga a seta e arranca. Passa do nosso lado e sobe a rua. Enquanto isso, Jean Claude não parou de me falar de sua inocência. Mando que ele se cale, como se me desse dor de cabeça. Ele se cala. Vamos para perto dali, a um cemitério de trens que faz esquina com um cemitério de almas. Estaciono o carro entre vagões enferrujados e mato alto. Não há nada além de cachorros sarnentos e magros.

— O que foi, por que paramos? — pergunta, mais inquieto. O volume de sua vozinha não combina em nada com a sua caixa torácica.

— Vamos ver um filme — explico, deixando o gorro e a pistola, e tirando com dificuldade a jaqueta. — Depois vamos fazer um treinamento. O que acha de uma sessão de full-contact?

Agora não ouvimos nem mesmo os cães. Abro o notebook e procuro alguns ícones.

— Quem é você? — pergunta. O tom é de alguém que espera o resultado de uma biópsia e que tem um mau pressentimento.

— Olha só como você ficou bem nesta cena — falo e aproximo a tela do focinho dele. Depois de segui-lo por três semanas, há seis meses instalamos duas minicâmeras em seu apartamento na Martínez. Em particular no quarto, onde o professor dá e toma de um babaca que também é musculoso: dezesseis anos completos e faixa preta em taekwondo. Muito futuro. O professor se afasta da tela como se pudesse queimar os beiços. Ouço sua respiração agitada. Parece um pobre camponês que foi empalado.

— Filho da puta — resmunga.

— Quer que eu aumente o volume? — pergunto.

— Filho da puta.

Fecho a gravação e baixo a tela do notebook. Deixo o computador de lado e mostro umas folhas de papel que trago amarradas. Vejo que ele está chorando, com a cara virada para a esquerda, olhando sem ver uma velha locomotiva. Seu peito sobe e desce. Eu o seguro pelo maxilar e o obrigo a ler a lista.

— Reconhece os nomes? — pergunto.

Ele lê por alto, com a visão anuviada. São os nomes, telefones e endereços de e-mail de todos os parentes e amigos, de todos os clientes da academia e de toda a comunidade de kick boxing. Seria tão fácil enviar a eles pelo correio eletrônico essa pornografia barata.

— Vou te falar a verdade — confesso, em voz baixa. — Sou a favor do casamento gay. Por mim, qualquer um pode fazer de seu cu o que bem entender. Mas as pessoas são muito más, meu irmão. Muito más. Além disso, com um menor, cara. Isso é imperdoável. Ainda assim, já que estou nesse assunto, vou falar outra coisa. Isto não serve como prova porque foi obtido de forma ilegal. Mas garanto que se os tribunais receberem, ou se eu mandar a algum canal de televisão, seu pescoço vai para a guilhotina. Você vai se dar mal, entendeu?

Ficamos por um bom tempo sem dar um pio. Até que de repente o professor grunhe de raiva. Guincha como um porco sendo agarrado. Contorce-se, puxa as correntes, fica vermelho com o esforço, uma veia no pescoço salta. Espero sinceramente que ele não bata as botas, seria uma cagada. Suspiro e proponho:

— Vamos fazer um pouco de exercício.

Saio do carro, tiro a camisa e, com tédio, penduro em um galho. Abro a porta traseira e solto as amarras dos seus pés. Faço com muito cuidado, para evitar qualquer surpresa. Depois o arrasto para fora, dou uma chave de braço por trás e digo em seu ouvido:

— Vou te soltar, garoto. E vamos trocar uns socos, o que acha?

Ele não entende, fica calado. Alerta e incrédulo. Pensa que posso lhe meter uma bala na nuca, e ele tem certa razão.

— O que significa tudo isso? — pergunta por fim.

Solto as algemas e o empurro. Ele cambaleia por alguns metros, tropeça e me olha, primeiro como um carneiro degolado, depois furioso. Confirma que estamos sozinhos, que sou um veterano e que estou convidando-o para uma luta. Quase sorri, mas o sorriso não sai, então fica sério e frio, e de repente tira a camiseta. Fico admirado com a velocidade com que o faz. Luto boxe duas vezes por semana, mas uma coisa é lutar de luva e no máximo arrebentar um nariz, outra muito diferente é lutar pela própria vida. Nunca deixo passar uma oportunidade dessas. Em meu trabalho, nunca se deve perder o toque mágico.

Quando levanta os braços, sei nas entranhas que de uma hora para outra me dará um chute e que quando tiver esse atrevimento terei de usar do logro e castigar seus ovos. É um movimento proibido, e os lutadores de salão não se dispõem a abandonar as regras. Dançamos juntos, como pugilistas profissionais ao sol, olhando nos olhos e sacudindo os punhos. De imediato noto que ele não quer tomar a iniciativa, prefere esperar por mim e dar um contragolpe eficaz. Ameaço e dou um soco, faço uma finta e volto a socar. Nem mesmo roço nele e o professor enfim me lança a perna pesada, porém para baixo, obliquamente, e eu a rechaço com o antebraço e o acerto no queixo com uma cotovelada ilegal que o surpreende. Enquanto recua, trabalho na cara dele. Um, dois, três. E ele devolve golpe por golpe. Nem os dele nem os meus machucam muito. De novo somos pugilistas convencionais, experimentando jabs e ganchos, dançando e tentando intimidar o outro com fintas e gestos ferozes. De repente ele me lança um cruzado no maxilar e eu me esquivo por um centímetro, pegando-o abaixo da linha da cintura, dou um clinch e ficamos agarrados por uns instantes, sem fôlego, enquanto ele me dá pontapés tailandeses sem mira. Até que me empurra e me solta uma patada elétrica. Caio no chão e giro, porque ele já vem para cima de mim. Atinge-me com três ou quatro marretadas no ombro e nas costas. Levanto-me até onde posso, avanço de cabeça baixa em seu corpo e o obrigo a cambalear enquanto tento me pôr de pé. Sei que preciso acertá-lo onde ele não espera: meto um golpe de canhota em seu quadril com toda a minha força e arranco um grito de dentro dele. Agora estamos mais uma vez cara a cara, trocando murros. Os ossos de minha mão esquerda doem, mas ainda a uso. É um combate sem assaltos, sem tréguas, nem educação. O professor está tão quente que já se esqueceu das próprias instruções. Porém sei que cedo ou tarde tentará me dar um chute na cabeça e que, se eu permitir que me surpreenda, me deixará rendido para o nocaute. Estamos sangrando porque aqui não trocamos carinhos, mas acredito que nós dois pensamos o mesmo. Ganhou muitas lutas de academia com esse chute clássico e tenta me levar a uma lógica de luta de rua ou de boxe comum e selvagem para me abalar, e quando eu menos esperar virá o pontapé penetrante de carateca. Faço de conta que entro no jogo dele, que é muito duro, e levo um cruzado. Pim, pom, pam. Então por fim entrevejo, como que em câmera lenta, que ele levanta a perna direita e gira de fora para dentro, muito alta e perigosa, querendo me pegar na têmpora. A meio caminho, encolho-me um pouco e meto a direita de baixo para cima, um murro que faria um cavalo rodar. Tenho sorte, porque pego nos testículos, como atingiria o saco de pancada na academia. Juro para vocês que enterro o punho até o braço onde não devo. E o bonitão solta um gemido e parece ter sido derrubado sobre meu corpo dobrado, agarro sua outra perna e o levanto como um animal ferido, seguro-o por alguns segundos no ar e o pressiono contra o mato queimado. Ele se vira enquanto sente a base das costas, com o que resta de suas energias, e assim bato com toda minha alma, usando todos os truques sujos do mundo, atingindo seu joelho e acabando com o cara a socos. Quando paro de bater, seu rosto está desfigurado. Paro com dificuldade, cuspo sangue e seguro a mão esquerda, que parece ter sido quebrada. Não vou mentir para vocês: não quebrei, nem o mago do kick boxing é tão bom assim. Uns torneiozinhos, qualquer um ganha.

Agora ele está derrubado no chão, ofegando em decúbito dorsal, como se fosse um bebê gigante. Vou até o 4×4, pego a Glock e uma toalha que levo na mochila. Olho-me no espelho, enxugo o suor e limpo meu sangue. Não fui eu que levei a pior. E parece que estou vivo. Aproximo-me do homem caído e lhe dou um tapinha amistoso, como se quisesse acordá-lo. Ele me olha através do choro, da transpiração, do sangue e da baba. Jogo a toalha para ele.

— Deixa de ser frouxo, professor — digo.

Armo-me de paciência, espero fumando um Parisienne. Ofereço um cigarro quando ele consegue se sentar. Já vesti a camisa e estou apoiado no estribo da locomotiva. Fumamos em silêncio. Os cães estão longe, mas voltam a latir. Vendo-o de perfil, Jean Claude não está assim tão mal: terão de colocar o septo no lugar e ele vai passar vários dias com hematomas na cara, mas o pior ficará para o dentista, porque quebrei alguns de seus dentes.

— Espero que tenha um bom plano de saúde — digo.

— O que eu preciso fazer? — pergunta com o olhar perdido.

— Antes de tudo, ligar para a mulher de seu telefone e lhe dizer que você está ótimo, que deu uma declaração convincente e que esta noite vai dormir em casa.

— E depois?

— Depois você some da academia por uma semana e não retorna nem as mensagens.

— E você vai fazer o quê?

— Vou te mandar por e-mail seu filme pornô. Amanhã ou depois de amanhã. O amor não resiste a esses desgostos.

Ficamos em tal silêncio que até os cachorros se atrevem a nos farejar. Uma ave dá um voo rasante, trinando.

— Grampeamos seu e-mail — minto para ele. — Também o e-mail de suas outras namoradas. Vamos te monitorar por alguns meses.

— Nunca mais eu vou vê-la — promete ele com a voz opaca.

— Se você vir essa mulher só mais uma vez, vai sair no Crónica tv[1] — alerto. — Vão pixelar seus olhos para que você depois não alegue invasão de privacidade. Mas a verdade é que até a sua tia Alberta vai te reconhecer. Aquela que te dá uma mesada e vai muito à igreja, não é?

Ele assente e volta a passar a toalha na cara. Andamos até o carro. Jogo a toalha na grade e volto a usar as algemas. Sei que ele não tem vontade de me aborrecer, assim deixo seus pés soltos. Levo-o ao Hospital de Tigre e o abandono na guarita. Vou diretamente para o Hospital Fernández para tirar uma radiografia de minha mão esquerda, receber curativos e para que me tratem um pouco. Ao chegar em casa, sirvo-me de uma vodca e ligo no History Channel. Está passando um documentário sobre a ascensão e a queda do Império Otomano. É sempre bom lembrar que somos simplesmente um instrumento da história.

Aos domingos, bem cedo, quando o sol está despontando, volto ao norte. Atravesso a cidade vazia e procuro um píer em uma praia municipal de livre acesso, bem na desembocadura de um canal. A esta hora, porém, não há ninguém além de um pescador sonolento, mas até o meio-dia o gramado estará cheio de guarda-sóis, isopor e cadeiras de praia. Ainda não há sinais da polícia, que logo andará por aqui com um bote e vários salva-vidas em jet skis tentando evitar que os bons cidadãos entrem na água contaminada por zinco, chumbo e merda. Deixo sempre o 4×4 embaixo de um arvoredo, fico completamente despido e visto o traje de neoprene. Depois pego nadadeiras, luvas, touca, óculos, snorkel e faca, e coloco o chaveiro imantado embaixo da carroceria, perto de um compartimento invisível com abertura de pressão, que contém uma pequena Walther P99. Por precaução. Um sujeito como eu nunca sabe quando precisará de uma segunda opção. Só sabe que deve estar preparado quando isso acontecer.

Hoje o rio está um pouco cheio e violento, e sei que terá muitas marolas, uma atrás da outra, e uma conjunção de correntes de baixo e de cima. Talvez redemoinhos. Não será tão difícil como nos piores dias, mas dará trabalho. Em 1987, Cálgaris nos obrigou a fazer um curso rápido de mergulho tático na base naval de Mar del Plata. Foram oito meses divertidos e intensos. Desde então, procuro não perder o hábito de nadar em água aberta, um desafio sobretudo emocional. Enquanto nado, reflito sobre muitas coisas que me vêm à cabeça e se tornam claras, depois se apagam e desaparecem. São como relâmpagos. Mas quando já estou a salvo em casa, algumas horas depois, as endorfinas acendem a luz, as peças se encaixam e sempre sai algo interessante.

Entro rapidamente e começo a nadar de peito, em seguida passo a um crawl compassado. Esta manhã tenho muito no que pensar, mas me sinto confiante, de moral elevado. Quando me encontro neste estado, fantasio uma proeza: um dia sair com meus três velhos camaradas do Clube Náutico de San Isidro e nadar sessenta quilômetros em vinte horas ininterruptas até o balneário Brisas del Plata, em Colonia del Sacramento. O maior problema é que meus velhos companheiros ficaram pelo caminho. Um morreu em um confronto policial, o outro se enforcou em casa, em Temperley. O terceiro teve uma “crise de consciência”, renunciou a tudo e foi morar na Suécia. Dos loucos do Campo de Mayo recrutados pelo coronel, só sobrou o desencaminhado do Remil. Os demais são fantasmas de Tumbledown, Monte Kent e Dos Hermanas.

Nado rio adentro, fujo de troncos e boio um pouco, vendo de perto a passagem de lanchas e veleiros. Continuo por um bom trecho, depois me viro e dou braçadas para o sul, mais em paralelo com a margem. Nado sem parar e penso em Nuria Menéndez. Venho escutando sua voz há três dias: está no iPod quando corro, no carro quando dirijo, em casa quando cozinho. Fala, como todos, de detalhes. Mas no escritório parece muito concentrada em trâmites alfandegários. Vai a um despachante da alfândega e ao voltar comenta com o sócio espanhol que ele ainda tem algumas dúvidas, embora não tenha explicado por quê, nem quais são. Seu sócio se chama Claudio García Roldán e não faz perguntas: entre eles, há entendimento e todo cuidado do mundo. Como se soubessem que estamos gravando. Nossa garota em Madri revira as cuecas de Roldán, sua firma de advocacia e sua empresa de importação, mas ainda assim o coronel não me passou seus relatórios parciais. É uma tática antiga de Cálgaris: compartimentalizar a investigação e no fim reunir os pedaços, de forma que só ele conheça o quadro como um todo. É evidente que Nuria é sócia de uma firma oportunista: pescam oportunidades nas águas turbulentas das importações e exportações. E parece interessada, principalmente, em um negócio clássico: o vinho argentino. Palma me mandou alguns resultados do Spyware e por acaso ela vai diariamente às sedes de vinícolas grandes e médias. Inclusive pediu a seu assistente para organizar uma viagem a Mendoza. Quer ver o processo do malbec e fazer o circuito de enoturismo. Prepara uma lista de contatos nesse mundo: gerentes, proprietários, especialistas. Pergunta quais são as principais distribuidoras do país. Fala de Luján de Cuyo, de marcas e vinhas. Janta em Palermo Hollywood, a poucas ruas da casa de Lali. Que já me mandou algumas fotos por e-mail. Nuria faz compras duas vezes por semana, primeiro no Paseo Alcorta, em seguida no Patio Bullrich. Gasta muito com seu cartão de crédito black. Palma analisa em tempo real seu extrato e entra nas suas contas bancárias: tem vinte mil dólares em uma conta de poupança e cento e setenta mil pesos em outra. As compras não variam: roupas, joias, perfumes. Palma jura que em dois meses ela levou vinte pares de sapatos. “É uma compradora compulsiva?”, eu me pergunto enquanto nado. As fotos de Lali mostram-na muito sorridente, avaliadora e mais verborrágica do que de costume: os olhos pretos brilham nas lojas. Dois dias depois, Lali faz algo muito perigoso: tira umas fotos em uma milonga da rua Cabrera. Nuria está com seu assistente bebendo de uma taça e vendo como os dançarinos veteranos de tango escolhem cuidadosamente as companheiras da noite. Depois a fotografa em Puerto Madero: come com vista para o dique, acompanhada de um homem alto e elegante, que tem o cabelo precocemente branco penteado para trás e firmado com gel. Lali se esmera e o pega de ângulos diferentes. Segundo Palma, tanto pode ser um dono de adega arruinado da província de San Juan como um mero burocrata da Secretaria de Comércio. Descubro que ela fala nele ao dar um nome a García Roldán: Pico. Procuro nas listas do funcionalismo público: existem muitos de nome Pico, mas tem um em especial que é subdiretor da Alfândega. Não é a Secretaria de Comércio, mas chega perto. Procuramos fotos oficiais, pensando que não tem página no Facebook. Mas ele tem. E confirmamos: é Javier Pico, funcionário público de carreira, mas com bom acesso político. Subiu fotos dele na internet em reuniões de partido e festas de luxo, abraçado com atores e dizendo gracinhas a dois ministros de gabinete federais. Solicito formalmente seu dossiê à Casa. Pico é influente e presta favores. Não deve ser nada fácil ser uma galega recém-chegada e ter acesso a Pico de uma hora para a outra, penso enquanto boio de costas e recupero um pouco o fôlego. Sei lá, tem alguma coisa aqui.

Neste momento passa uma lancha veloz e as ondas me balançam. Giro sobre o corpo e começo a voltar. Dou-me conta de que agora a parte mais difícil me aguarda. Eu me afastei demais. Preciso me concentrar e usar toda minha capacidade mental. Não posso desanimar, mas a verdade é que dou braçadas sem concentração, pensando novamente em Nuria. E se estivermos investigando a mulher, mas na realidade quem queremos é ele?, pergunto. Não seria a primeira vez que Cálgaris faria este jogo conosco. Javier Pico. Há pouca coisa em seu dossiê, como que confirmando que ele é um chefão e que tem o rabo sujo. Não é nada estranho neste país, amigos. Nada raro. Mas, sei lá, talvez o coronel tenha cismado com Pico por alguma rasteira, e então o verso de Ovídio deve ser lido de outra maneira. Palma me mandou também a lista completa de buscas no Google. Por que Nuria não procurou por Pico no Google? A única explicação é que veio da Espanha com todas as informações. “A doutora passeia um pouco pela pornografia”, Palma me confirma e imagino seus lábios vermelhos e úmidos, o pirulito trocando de lado na boca. Quer me fazer acreditar que é importante saber um detalhe mórbido, porém inofensivo: só visita três categorias no Pornhub.com: “Maduro”, “Anal” e “Brinquedos”. Parece-me muito mais relevante que jogue pôquer a dinheiro na internet, apostando firme. O sol nasce inteiramente e continuo atravessando as marolas, evitando galhos e gosmas podres que flutuam, batendo as pernas contra a correnteza e às vezes me beneficiando dela, pegando um atalho na diagonal, intimamente lutando contra o cansaço e a dor na mão esquerda. Em terra, a consequência daquela cotovelada no quadril de Jean Claude é uma enfermidade leve; na água, é uma tremenda agulhada. Assim mesmo, não dá para comparar essa bobagem com uma cãibra. E em muitas ocasiões nadei quilômetros com cãibra nas pernas ou na barriga. Da mesma forma, em alguns momentos parece impossível chegar à margem. Procuro tirar da cabeça esse mau presságio, que afunda qualquer banhista no desespero e nos mares, e dou braçadas regulares, com um bom ritmo. Eu me conheço: estarei esgotado em quinze minutos. Ainda assim, faltam outros quinze para alcançar a praia.

Estes últimos são os piores. Termino com uma espécie de penoso estilo over, arrastando-me no barro, até que me levanto, saio e tiro o snorkel e o visor. Tem mais gente na praia, as crianças correm daqui para lá e todos me olham como se eu fosse um astronauta. Tiro os pés de pato e o gorro, ando até o 4×4 e faço alongamento por algum tempo. Em seguida pego a chave e dentro do carro termino de me despir e começo a me enxugar. Tenho muita sede: tomo um litro e meio de água, enquanto recupero o fôlego e a sensatez. Ligo o mp3 e ouço um breve monólogo de Nuria. Estou nu e despenteado, com o banco reclinado, e respiro pela barriga como um cachorro exausto enquanto a escuto cecear em seu inglês magnífico. É uma ligação de longa distância. Fala com alguém do bairro do Queens, em Nova York. Está tudo arranjado para uma viagem, só falta marcar a data. Noto que o sujeito tem sotaque latino, e então me concentro e presto mais atenção. Um tapado que sabe falar espanhol, mas não quer usá-lo por telefone, e a morena que não o contraria: não é um ato de diplomacia, é pura segurança; falam em outra língua para se proteger um pouco das escutas. Em nenhum momento mencionam para onde ela viajará, nem com quem se encontrará. Nem qual é a natureza desse encontro. Menéndez despede-se em um tom amável, mas falso. Me dá arrepios. Vejo a hora e percebo que devo me apressar se quiser chegar a tempo. Visto-me com rapidez, enfio na mala a roupa de mergulho, sento-me ao volante e saio do arvoredo. O trânsito do meio-dia é lento nas duas pistas. Demoro muito para chegar ao centro. Estaciono a duas quadras da rua Arroyo. Fierrito está tomando o café da manhã no bar do Sofitel.

É um baixinho careca e pretensioso, que se veste de branco e usa anéis nos dedos mínimos; lê jornais estrangeiros e come croissants grandes em um dos lugares mais caros de Buenos Aires. Não há um só dia em sua vida adulta que Fierrito não tenha vivido acima de suas posses. Deve uma vela a cada santo, deixou rastros, trapaceou sem remorsos e só não foi preso porque Deus, apesar de tudo, ainda é argentino. Nos anos 1980, Fierro cobrava dos políticos, linha por linha, as menções em suas longas colunas dominicais. Nos anos 1990, faturava passando informações e delações de pouca importância à contrainteligência. Nos últimos dez anos, agiu no rádio e na tv a cabo a favor de qualquer dirigente que molhasse sua mão. Ficou incontrolável e lhe deram baixa da “corrente da felicidade”. Como autônomo foi um desastre e se meteu em muitas outras confusões. Se aparecer morto, certamente a fila de suspeitos será tão grande que dará a volta três vezes pela Plaza de Mayo. A mim, particularmente, suas picaretagens não afetam em nada, mas confesso que me enoja o jeitão de barata perfumada.

— Então agora trabalha para Tana — diz ele sem baixar o exemplar do Washington Post. — Paga bem?

Vem o garçom e peço um café puro. A essa hora eu comeria um bezerro, mas não vim aqui para comer. Estendo-me nessa poltrona elegante, esfrego os olhos e bocejo. Fierrito olha mais detidamente.

— A senadora está meio preocupada — solto por fim.

— Já te falei que eu também, Remil? Que tudo que encontrei me preocupa? Me preocupo com o país, Remil. Entenda bem isso.

Dobra o jornal e come outro croissant. Nós dois parecemos profundamente entediados. Mas só o meu tédio é autêntico.

— Era uma biografia política — acrescenta ele, simulando falar consigo mesmo. — Mas me pareceu um livro denuncista.

— Dizem que aqui não ganha o Pulitzer.

— De fato. Uma pena.

Trazem o café, está delicioso. Peço outro.

— No que você pensou? — pergunto.

— Hmm… Pelo menos duzentos e cinquenta mil. São oito meses dando meu couro. A vida do jornalista investigativo é muito dura.

— Imagino que sim.

— Então, estamos de acordo?

— Quer ver antes.

— Como é? — Ele se encrespa.

— Parisi quer ver antes de pagar.

— Ficou louca?

— Sabe que da última vez foi um engano.

— Eu não enganei ninguém.

— Não tinha livro nenhum, Fierrito. Apenas uma pasta com arquivos de revistas.

— E quem foi que contou essa merda a ela?

— Eu.

Fierro fica me olhando por um instante, depois tira os óculos e os guarda no bolso da camisa, põe dinheiro na mesa e age como quem vai se levantar. Finge estar ofendido.

— Sente-se — ordeno com suavidade, olhando-o de frente pela primeira vez.

— Não temos mais nada para conversar.

— Sente-se, Fierrito — digo num tom paternal —, ou eu extraio suas amígdalas com um garfo.

A barata já esteve em muitas fraudes e enrascadas e sabe quando não vai se foder. E por acaso hoje não vai. É por isso que de repente fica branco e obediente. Trazem um segundo café para mim. Fierrito se senta logo, como se afundasse numa montanha de diarreia. Tomo o segundo café com lentidão, gole a gole.

— Posso te dar um ou dois capítulos — diz ele por fim, com extrema cautela.

Faço que não com a cabeça. Vejo que ele tem na mão uma cigarreira de metal e um Zippo de ouro.

— Com dois capítulos, não vai dar — aviso.

— Garanto que sim. — Ele se aflige. Põe a mão no meu ombro. — Desta vez não estou de trapaça, cara. Você vai ver, vai me dar razão.

Observo também que Fierrito nem pestaneja. Pego meu maço de cigarros.

— Vamos fumar lá fora — proponho.

A barata perfumada solta um suspiro e volta a se levantar. Às mesas, há turistas e clientes. Descubro, entre eles, um juiz famoso em transações com um advogado criminalista no fundo, junto da lareira apagada. Vamos para a calçada. Ele fuma Benson. Acende meu Parisienne com sua pequena joia. Fumamos ao sol. Ele reclama que o ambiente está cheio de espiões, jornalistas e políticos que o odeiam e o caluniam.

— A metade do que dizem é besteira — reforça. A metade do que dizem corresponde a dez por cento das merdas que Fierrito fez.

— Vamos para a sua casa — proponho. Ele me olha como se eu tivesse feito uma proposta sexual ou o convidasse para passar o dia no Parque de la Costa.

— Está de sacanagem? — pergunta, começando a transpirar.

— Eu te levo em meu 4×4 — acrescento. — Leio o manuscrito enquanto você me oferece uma taça de vinho, e esta noite terá a resposta.

— Na minha casa, não — diz ele, meio tenso. — Na minha casa não entra ninguém. Qual é o problema? Por que essa pressa toda?

— Porque eu sou um táxi — respondo, batendo o dedo no relógio. — Cobro por minuto.

— Não está na minha casa — diz ele e fuma o Benson, exasperado.

— Não enche meu saco, Fierrito — falo, agora numa voz rouca e ameaçadora. Ele toma um susto, percebe tudo. — Vamos a esse chalé vagabundo que você tem em Floresta e você me convence de que não é o mesmo malandro de sempre.

— Juro pelo que há de mais sagrado que desta vez tenho coisa de peso. — Quando quer, ele é muito histriônico. Ou quando pressente que pisa em terreno minado.

— Veremos — digo, pegando-o pelo braço com energia e o empurrando pela Arroyo até a Nueve de Julio. Ele bate na minha clavícula e sinto que poderia andar de cavalinho em meu ombro. Como tenho passadas largas e Fierrito um passo curtinho, vai flutuando, como se ele fosse o boneco e eu o ventríloquo. Só lhe dirijo a palavra quando estamos sentados. Em duzentos metros, Fierro tentou me explicar por duas vezes que era sincero e não estava mentindo.

— Coloque o cinto — ordeno. — Não quero que sofra um acidente. — Ele obedece, mas com a resignação trágica do preso que avança ao paredão sob a ponta de uma baioneta. Pego rapidamente a Rivadavia e vou para o oeste.

— Posso explicar já o que consegui — diz a barata, dando a última cartada.

Não respondo. Fierro se remexe no banco como se tivesse formiga na bunda. De pronto faz um esforço e toma fôlego:

— Ainda está de conchavo com Cálgaris, não é? Ele te contou que Tana quer ser presidente? Leu as pesquisas? É peronista, tem suas chances.

— Você está me propondo um negócio? — Sorrio.

— Não pode ter um escândalo agora. O trem vai descarrilar antes de sair da estação.

— Sei.

— Pelo que sei, isso vale mais de duzentos e cinquenta. — Seu tom recupera certa segurança quando fala de dinheiro. — Vale um milhão.

— Então, por que não pediu um milhão?

— É preciso agir aos poucos. Não podemos ser impulsivos.

— Não vou te contradizer, o especialista é você.

— Sim, sei como tirar as rédeas dele, Remil. Não há ninguém melhor do que eu em toda esta cidade para isso.

— E podemos ser sócios.

— É claro, cara. Trinta por cento.

— Aviso a ele que a merda vai até as tampas e fico com trinta por cento.

— De um milhão. E não precisará mentir para ele.

Entro em um posto de gasolina. Abro o porta-luvas, pego o coldre com a Glock e encaixo no cinto, mas bem atrás, coberto pelo casaco. A barata está abatida.

— Trinta por cento — digo, assentindo, e saio do carro com a chave na mão. Peço ao garoto que encha o tanque e dois galões que tenho na mala. De um rádio, ouço uma cumbia popular e acompanho o ritmo batucando no teto do 4×4 como se fosse um tambor. Sei que Fierrito ouve a percussão e pensa se precisa abrir a porta e desatar a correr. Avalia suas possibilidades. Percebe que são muito poucas. Depois pensa que talvez possa me convencer a participar da extorsão. Sabe que tenho estômago de aço e que poderia aceitar sem nem mesmo pestanejar. “Se está ficando velho, talvez tente obter uma aposentadoria decente.” Tenho certeza absoluta de que Fierrito trama tudo isso enquanto flerta com a ideia de fugir. Mas fugir para onde? “Esse energúmeno me encontraria rapidamente e me daria uma sova”, raciocina a barata perfumada. Bailen cumbia, cumbiancheros, que llegó el fumanchero, berra a música. Fumanchando de la cabeza, empinando una cerveza. Nos pinta el indio cumbianchero: estamos hechos unos pistoleros. Pago em dinheiro e sigo pelas ruas laterais, procurando o chalé detonado que fica perto da ferrovia.

— Vai poder ler tudo — anuncia Fierrito como se fosse uma grande novidade. — Ficará tudo à sua disposição, Remil.

— Que bom.

É um quarteirão bucólico. Ao chalé faltam telhas, pintura e reboco. Fierro não tem carro porque não dirige. Entro com o 4×4 e vejo o jardim malcuidado. A barata se transformou em um anfitrião bajulador e servil. Entramos em uma sala de jantar desarrumada e coberta de livros. Em cima de um móvel, a fragata de Bouchard dentro de uma garrafa. Há reproduções de grandes pinturas naquelas pranchas perfeitas que alguns anos atrás eram vendidas como encartes de uma revista. É de péssimo gosto pendurar As meninas na sala de estar e um Goya ou Van Gogh no corredor. Mas Fierrito não é um sujeito refinado, apenas um esbanjador. E jamais gasta em tesouros do lar. Só em viagens, restaurantes e bagatelas. Na casca. Como esses advogados de luxo que se vestem de Armani para dar a entender a seus possíveis clientes que são importantes e que ganharam casos grandes. Dinheiro atrai dinheiro, o luxo tranquiliza, e um pobre-diabo pode ganhar uma boa grana se conseguir circular na alta-roda como se fosse um deles. Fierrito não poupa para o futuro: é do tipo de pessoa que vive em hotéis de luxo até que mexe com a polícia, aí se refugia em seu covil para pensar na próxima picaretagem.

Pede que eu fique à vontade, que já me trará a mercadoria, e grita que eu me sirva de uma bebida. Espero por ele de pé, sem copo, nem cerimônia. Traz, de um cômodo nos fundos, uma pasta e um pen drive. E também uma expressão falsamente cordial. Ponho o material na mesa sem olhar e lhe dou um empurrão de surpresa. Fierro parece feito de algodão. É lançado na parede e cai de bunda. Agacho-me sem lhe dar tempo de balbuciar e fecho uma algema em seu punho e outra no pé de um guarda-louças que deve pesar pelo menos duas toneladas e meia. Pego o isqueiro de ouro e o celular em seus bolsos e vou até os fundos: o cômodo é um escritório pulguento, com uma mesa e um computador portátil, mas meio antiquado. Ouço-o implorando baixinho que não o mate, garantindo que é tudo verdade e que, se eu quiser, posso avisar à senadora Parisi que ela não tem com o que se preocupar. Que se esquecerá de tudo, jura por seus ancestrais, também por sua filha que mora nos Estados Unidos, com quem não fala desde 1995. Fecho o computador e o coloco numa maleta. Jogo o celular dentro dela, mas fico com o Zippo dourado. Depois atravesso a sala de jantar sem responder aos apelos do prisioneiro, saio por um momento e abro o porta-malas do carro, onde estão o traje de neoprene ainda úmido e os galões. Retiro os galões com gasolina Premium e acomodo a maleta. Quando me vê entrar novamente, Fierrito cai aos prantos. Abro um galão e começo a espalhar gasolina pela sala de jantar, corredor e quartos. Depois abro o outro e molho a cozinha e o banheiro. Com o que resta, ensopo Fierrito de cima a baixo. Agora Fierro dá um grito. Pego na mesa a pasta e o pen drive e me sento lentamente em uma poltrona. Folheio o tijolaço e brinco com a tampa do isqueiro: abro e fecho, e o barulho metálico parece uma detonação neste oceano de combustível. A barata me olha, apavorada. Estamos em silêncio. No silêncio do fim.

— Me pediram que queimasse sua casa — digo, tentando ser sincero e didático. — Você cansou muito os homens. Muito. Muito mesmo. Além disso, não posso confiar que você não fez cópias de segurança, ou que algum amigo seu não ficou com outra pasta. Nem podemos estar certos de que você não voltará a procurar informações e, acima de tudo, que não cairá na tentação de voltar ao vício quando o susto passar. Entendeu bem? Estamos fodidos.

Fierro arqueja como se tivesse chegado agora à margem depois de nadar durante horas nas águas agitadas do rio. Não consegue articular uma frase inteira. Cospe palavras soltas, parece hiperventilar. Depois se cala. Engole um litro de saliva e pergunta com um fio de voz, olhando os próprios sapatos molhados:

— Tenho alguma alternativa?

Brinco um pouco mais com o Zippo. E com o desespero dele. Depois me levanto e me apoio no encosto da poltrona. Estou pensativo. Levanto um dedo.

— Vai fazer o que eu mandar? — pergunto. Ele assente, uma lágrima escorre pelo rosto e resvala no queixo. Agacho-me e retiro as algemas. Levanto-me e dou um chute em suas costelas: tenho cuidado para que não seja forte demais. Porém, para Fierrito, é como se o metessem num torno sem anestesia. Ele se contorce e chora em voz alta, com a mão nas costelas. Volto a levantar o dedo.

— Você vai se esquecer de Parisi — começo. — Não vai apenas abandonar o livro. Vai fazer com que ninguém publique nada. Vai velar por essas informações. Se alguém a usar numa campanha suja, venho aqui e queimo sua casa. Se você continuar no trabalho jornalístico, venho aqui e queimo sua casa. Se passar pela sua cabeça se meter comigo ou com ela de alguma forma criativa, venho aqui e queimo sua casa. Se Tana pegar uma gripe, vou culpar você. Se for publicada uma linha que seja contra mim, vou te culpar e atear fogo em você, imbecil. Em você e na merda da sua casa, e vou me sentar na frente e curtir o espetáculo. Adoro as chamas. E o cheiro de carne assada.

A barata está feito uma bola. Pergunto se ele me entendeu bem. Mexe a cabeça. Não basta para mim, dou outro chute. Volto a perguntar se ele realmente entendeu. Agora levanta a cabeça e jura por Jesus e Maria que entendeu tudo e que será melhor que Marcelino Pão e Vinho. Ainda fico um tempinho ponderando a situação, como se me perguntasse se não estou sendo benevolente e crédulo demais. Depois deixo o Zippo junto da fragata de Bouchard, vou para o jardim, limpo a sola dos sapatos na grama amarelada, devolvo os galões vazios ao porta-malas do carro, enfio a papelada na maleta e dou a ré com o 4×4 até a rua, avançando a toda velocidade pela paralela. Detenho-me às ruas secundárias, que estão vazias e ainda ensolaradas. Passo pelo edifício da Chacabuco e deixo na guarita, após assinar um protocolo, a maleta com a ordem expressa de que seja entregue no dia seguinte ao coronel Leandro Cálgaris. Mando uma mensagem de texto para lhe contar as novidades e sigo para a Costanera Sur. Tem uma churrascaria abjeta que faz uns chouriços extraordinários. Recomendo. A cozinha do Sofitel é incapaz de um manjar semelhante. Como três chouriços olhando o rio e tomando um tinto popular. O rio parece uma piscina depois de ter sido tão injusto comigo. Vejo quatro veleiros que voltam ao porto no final de um domingo agradável. Apalpo o bolso para comprovar que o pen drive de Fierrito não se perdeu. Dou uma mijada longa e espumante em uma árvore e volto feliz, ouvindo uns tangos de Pugliese. “Recuerdo”, “La Besa”, “Negracha”, “Malandraca”, “La Yumba”. De vez em quando só tenho vontade de dormir.

É cedo e entro a pé pela rua da morte. Em frente à igreja, um grupo de pessoas conversa animadamente com o padre. Preparam uma procissão em agradecimento à Virgem de Caacupé. A maioria dos moradores da favela é de gente honrada, pedreiros e domésticas, muitos trabalhadores informais e vendedores ambulantes. Só cinco por cento se dedica aos negócios do crime. Mas cinco por cento de quarenta e cinco mil significa um exército. E a rata e a raposa que verei são membros destacados dessa imensa minoria. Cumprimento o dono do armazém e me sento a uma mesa. Serve sem que eu peça uma cerveja com amendoim. Para matar o tempo, comenta as partidas do sábado. Tem um garoto muito bom que vão testar no San Lorenzo, mas que outro dia chegou “mancando”. Tem um zagueiro que joga na reserva do Boca e à tarde caçaram as pernas dele. Finalmente foi quebrado por um que é pirata do asfalto e tiveram de levar o garoto ao Hospital Piñero. Mas demoraram uma barbaridade, porque a ambulância do same não queria entrar sem o apoio de um patrulheiro, e o zagueiro estava aos urros. O dono do armazém teve de anestesiá-lo com um pouco de cocaína diluída, ou ele teria um infarto.

Um dos filhos da Velha afasta as tiras da cortina de plástico e se aproxima da mesa de fórmica com os olhos diabólicos. Rouba meus amendoins do pratinho, diz algo em um idioma gutural que nem o dono do armazém nem eu entendemos, e fica parado de lado, como se fosse me dar uma facada. Quando me levanto, o anão passa a mão no copo de cerveja; toma de um gole só e arrota. Em qualquer outro caso, o patrão teria dado uma bronca nele, mas desta vez nem se mexe: não quer problemas com a Velha. Acredita que a Velha é bruxa e que faz macumba. Pago com oito moedas e vou para a rua com o garoto. O negócio é o seguinte: tenho de segui-lo por um labirinto de corredores onde qualquer um pode te fazer em pedacinhos para roubar o seu relógio. E onde todos me olham, na melhor das hipóteses, como um ladrão velho ou um cana corrupto. Digo isso porque o pior que pode acontecer nesse curral é que você seja confundido simplesmente com um pateta. Um pateta não dura meia hora nas vielas da Villa Costal. É por isso que abro o casaco e mostro a pistola. Para que não haja confusão nenhuma.

Depois de várias voltas aceleradas, damos em uma mansão de folha de flandres e madeira. Na porta, montam guarda outros irmãos e companheiros do idiotinha. Todos parecem zumbis a ponto de dormir e a ponto de acordar. Piranhas. Piranhas famintas. A Velha sai para me receber com sua cara inexpressiva de sovina. Entro, sinto um cheiro podre mais para os fundos e uma lâmpada miserável que deixa enxergar muito pouco. De um lado, o Serralheiro faz um mate em um fogareiro e joga cartas com um compadre a quem falta um olho e meia orelha. O Serralheiro, que não tem o menor glamour, parece Fred Astaire nesta casinha. Aproxima-se de mim, tentando ganhar minha confiança.

— Arranja uma lanterna, Velha, que não enxergamos nada aqui — ordena ele.

Traz luvas de borracha, que eu ponho e me agacho sobre a lona que abriram no chão de terra. Parecem quinquilharias de um camelô da Flórida. Mas não passa de uma coleção irregular de papéis, lixo e papelão. A Velha me dá uma lanterna pesada de metal. Examino o manual de uma bicicleta ergométrica magnética e outro de uma plataforma vibratória. É assim que a dra. Menéndez Lugo mantém as cadeiras no lugar e as pernas bem torneadas: montou uma pequena academia em seu apartamento na rua Juncal. É daquele tipo de mulher que tem as calorias acumuladas nas partes baixas. Vejo também que toma vitamina e antioxidantes. E Neuryl 0,5, clonazepam. A morena é ansiosa e tem insônia. Há vários papéis escritos à mão em um bloco de folhas quadriculadas. Nada me parece importante. Fico com um deles porque talvez a gorda Maca queira fazer um estudo grafológico. É uma lista de supermercado: vinho, maçã, morango, merluza, camarão, farmácia. Depois encaro as faturas. São muitas. É incrível a quantidade de casacos sob medida, blusas, saias, cintos, bolsas, jaquetas de couro e sapatos. O Serralheiro aponta que o melhor está num canto da lona: recibos amassados de relógios, anéis, pulseiras, gargantilhas, alianças, um broche de ametista e, sobretudo, pérolas. Vários colares de pérolas. O tesouro de Nuria.

A Velha me chama de outro canto. Aponta um montinho de papel picado. Seguro um punhado e deixo cair entre os dedos.

— Quase todo dia, picota e picota — informa a Velha em sua língua mal falada, batendo no braço com o canto da mão. Menéndez tem, como eu, uma fragmentadora, talvez uma Dasa, uma guilhotina média para colocar na mesa, junto da cpu. Esse objeto sempre entrega: seu dono sem dúvida tem algo a esconder. Se não usasse a fragmentadora poderíamos reconstituir inteiramente seu quebra-cabeça. Tenho certeza. Outros mais cautelosos já caíram no descuido e a lixeira os traiu. Nós somos o que guardamos e o que jogamos no lixo. É assim.

Encontro evidências de que comprou livros sobre comércio exterior, direito alfandegário, um código civil e outro penal, e que cedeu a alguns caprichos turísticos: letras de tango, contos de Borges, uma biografia de Evita. Fico boquiaberto ao ver os cosméticos: frascos, potes, vidros, tubos, estojos. Máscara para cílios, corretivo de olheiras, base para o rosto, um delineador para os olhos e outro para os lábios num tom rosa paixão, batons hidratantes de longa duração L9 rosa e L27 marrom, creme para pálpebras, creme antienvelhecimento, fluido reparador, creme redutor e contra a flacidez dos braços, ampolas contra celulite, soro para atenuar as rugas, soro contra manchas, esfoliante para o corpo e dezenas de substâncias indecifráveis. Um kit gigantesco que inclui toda sorte de perfumes, mas essencialmente dois: 3 Aguas Perfumadas e Chance Chanel.

Percorro a lona com a lanterna, mas não encontro muito mais. Desligo a lanterna e rejeito um mate. No olhar do delinquente, descubro um ponto de interrogação. Quer saber o que eu acho.

— Pouco — digo. Aponto a lona.

— Essa mulher não deixa rastros, amigo.

A Velha vem em seu auxílio com o braço e o canto da mão:

— Picota e picota tudo. — Devolvo a lanterna e olho o relógio.

— Não temos muito tempo, espero os dois na esquina da Juncal.

Dou as costas a eles, saio e tiro as luvas. Ouço a voz da raposa:

— Não vamos falhar com você, amigo.

E a voz da rata:

— Mulher esperta, picota tudinho.

Na soleira, o bobão tagarela sem parar. Um dos irmãos me leva pelas vielas. Saio na rua da morte e passo de novo na frente da igreja. O padre é jovem e barbudo. Parece o Che. Está falando com um paroquiano, mas me acompanha com os olhos. Como se estivesse me sondando. Abro o casaco e o olho fixamente. Procuro não ser muito durão. E então de imediato o padreco abre um sorriso para mim. Como se me perdoasse. Nessa igreja, Deus perdoa os assassinos. O que mais pode fazer?

Atravesso a avenida, entro em um bar e como um prato de lentilha. Pergunto-me quantas horas do dia madame Menéndez dedica à sua aparência física. Três, quatro? E é uma compradora compulsiva, como parece? O que isso quer dizer, Maca? Que no fundo tem baixa autoestima? Parece bem o contrário, gorda. Parece que vive atropelando o mundo. Por que não aparecem lugares relevantes ou específicos em sua busca no Google? Por que não escreve na ferramenta de busca uma só palavra que preste? Alguém faz isso por ela? Talvez, se implantássemos uma escuta ou se Palma instalasse o Spyware no pc de seu assistente, saberíamos a verdade. Saberíamos o que veio comprar e que merda está fazendo em Buenos Aires. Imagino a mulher pedindo para seu assistente imprimir materiais de diversos assuntos. E depois levando para casa a fim de estudá-los enquanto fuma um Camel e toma um copinho de Anís del Mono. Eu a imagino na madrugada metendo um por um desses impressos na fragmentadora. Sabe que estamos vigiando e não dá um passo em falso. Nunca vi ninguém tão sigiloso. Com exceção de alguns agentes do serviço secreto que conheci nesses trinta anos, mas duvido muito que Nuria pertença a essa comunidade.

Tiro o 4×4 do estacionamento e entro no Bajo. Sei que o Serralheiro está com a Velha e dois de seus filhos em sua picape amassada na mesma hora e pelo mesmo caminho. Deixarão o veículo a quatro quadras do alvo e caminharão por calçadas opostas até a rua Juncal. A Velha posicionará um garoto em cada esquina e fingirá que pede roupa nas imediações. Tem um celular simples que o meliante lhe deu e a ordem de dar o toque de retirada se cair a noite. O porteiro não faz a sesta, mas a Velha o manteve sob vigilância: depois de almoçar, dá uma volta pelo quarteirão e se diverte por uma hora ou mais jogando conversa mole com uma dona de banca de jornal na Arenales.

Chego ao edifício à uma e meia em ponto. O Serralheiro vem com uma bolsa de viagem. Não tem a aparência ruim. Parece exatamente o que é: um apostador mediano que perde tudo que ganha. Há uma semana, como é de praxe, pôs várias gotas de parafina na fechadura e esperou que alguém metesse a chave e entrasse. De imediato, retirou seu protótipo e fez o molde. Com esse molde, fabricou sua própria chave em casa. E com essa chave nova e reluzente entramos rapidinho. Há um silêncio de sesta no hall. Volto a vestir as luvas de borracha. O Serralheiro não toma nem mesmo essa precaução. Sabe que a perícia policial deste país não consegue levantar nem a pegada de um elefante em uma poça de farinha. Subimos no elevador até o décimo quarto andar. Sinto palpitações, como se tivesse medo. Mas fiz isso tantas vezes que não tenho nada além de curiosidade e pressa. O coração acelera por outros motivos.

O Serralheiro deixa a bolsa no chão por um momento, examina com o olho clínico a porta chapeada e as fechaduras do apartamento B e pega o ponteiro. Usa um pedaço de pano para abafar o barulho. É um veterano baixinho e fraco, mas tem músculos de marinheiro. Mete a ponta do ponteiro e alavanca. Conhece todos os pontos fracos das portas, trabalha nelas com paciência e muita habilidade. Para trás e para a frente, para trás e para a frente, ganhando centímetro por centímetro, curvando a madeira e torcendo o aço grosso dos dentes das fechaduras. Eu o ajudo na última arremetida. A porta cede e se abre de chofre. Sempre parece que explodiu uma bomba em todo o prédio. Mas não é assim. Foi um ruído razoável que os vizinhos mais próximos não perceberão e que, se perceberem, pensarão que é fruto de um acidente doméstico ou de alguma mudança malfeita. O Serralheiro enxuga o suor da testa e entra no apartamento vazio. Cumpre sua rotina com rapidez. Não o interrompo. Examina os armários, mete a mão no café e no açúcar. Passa aos banheiros e aperta os potes. Deita abaixo os livros na sala de jantar e nos quartos. Tira a roupa do armário embutido principal e joga na cama. Isto é, finge que procura às cegas joias e dólares. O veterano, na realidade, tem certeza de que as joias da dona da casa estão num cofre e seu cálculo está correto. O cofre é embutido na parede do fundo do segundo armário. O Serralheiro usa três gazuas e abre como se fosse uma lata de feijão. Começa a soltar suas risadinhas de louco. Todas as compras e muitas outras estão escondidas nesse cofre. Sei bem o que é: o Serralheiro ficará com a metade e dividirá o resto com a Velha, que não tem como saber quanto é o butim. Antes que ele assim o faça, mando que me entregue um dos colares de pérolas, o mais imponente. Está dentro de um estojo de veludo bordô e a raposa resiste por uns segundos. Seus olhos estão me dizendo: “O trato não era esse”. Mas meus olhos lhe dizem: “Me dá ou não chegará vivo à noitinha, Serralheiro”. Por fim desiste e o estende para mim. Ri como quem tosse. Continua com suas coisas e passa ao 14 A, o apartamento da cinesióloga. Deixa-me sozinho neste apartamento silencioso onde flutua o fantasma de Nuria Menéndez.

A primeira coisa que vejo são seus discos. Norah Jones, Diana Krall, Amy Winehouse, Whitney Houston, James Blunt. Depois dou uma olhada na pequena biblioteca derrubada: tem livros de ciência política e de economia. Krugman, Rifkin, Lipovetsky. Também relatos jornalísticos de sucessos políticos modernos da Argentina. Pelo menos cinco obras relacionadas com a história do peronismo. Que pena que não costuma marcar as páginas, nem fazer anotações a lápis nas margens. Há quatro armários embutidos e três comuns. É um guarda-roupa descomunal. Os sapatos e as bolsas podiam equipar vinte mulheres ricas. Meto a mão nos bolsos, mas não encontro nada. A não ser em um casaco de pele, pendurado no cabide. Em um bolso interno, dobrado em quatro, ficou esquecido um panfleto da fazenda Siete Alazanes. Suponho que não poderia perder um dia no campo em uma autêntica fazenda criolla em seu périplo pelas rotas turísticas. Passo para o terceiro quarto e toco os aparelhos: a bicicleta, a esteira e, dentro de uma caixa, um consolo. Detenho-me em sua mesa de escritório. Sorrio ao descobrir a fragmentadora. Eu me enganei. Não é uma Dasa, é uma Securio B22. Em uma mesa, guarda vários relatórios da Cepal. Às vezes, Nuria não parece nada além de uma tecnocrata. As gavetas e prateleiras contêm papéis que não entendo, ou que estão além de minha compreensão. Em um aparador, descubro um tríptico de fotos dela. A primeira foi tirada há uns vinte anos: tem o cabelo comprido e encaracolado; parece uma mulher livre. A segunda não deve ter mais de dez: tem um penteado rígido, muito mais curto e preso por grampos; parece uma mulher disciplinada. A terceira é atual: Nuria Menéndez Lugo não é uma hippie, nem uma reprimida; é uma mulher altiva, despachada e segura, fria e ambiciosa, que chegou aonde queria. No banheiro, toco as toalhas, abro os perfumes e cheiro para tentar entendê-la. O Serralheiro me arranca desse devaneio.

— A médica piranha é uma dura, não tem porcaria nenhuma, só bijuteria — diz ele, aproximando-se. — Vamos?

— Não deve ser tão ambicioso, Serralheiro.

Saímos sem cruzar com ninguém e vamos para a rua sem que ninguém nos intercepte. Não há despedidas. A Velha assovia com os dois dedos para que os filhos abandonem os postos de observação, e vão os quatro quase juntos, andando rapidamente pela Juncal. Quando me sento ao volante, preciso respirar fundo e esperar um pouco que as palpitações se acalmem. O que está acontecendo comigo? Volto para a Belgrano R com a cabeça meio confusa. Começa a chover, e quando entro e desligo os alarmes, livro-me de tudo. Tiro a roupa e vou para o chuveiro. Esfrego-me com a esponja como se tivesse crostas e sarna. Depois me jogo na cama e adormeço instantaneamente. Acordo à meia-noite, no escuro, e por um momento não sei onde estou. Olho pela janela da sala de jantar; o temporal não diminuiu. Sinto um pouco de frio: visto uma camiseta velha e um short, sirvo-me de uma vodca e verifico que não tenho mensagens na secretária eletrônica, nem e-mails em minha caixa de entrada. Acendo um Parisienne e me pergunto por onde começar. Abro um arquivo do Word e escrevo tudo que sei sobre a personalidade e os gostos íntimos de Nuria. Para minha surpresa, o relatório me consome quase uma hora. É impressionante o quanto acredito conhecê-la. Ao mesmo tempo, tenho consciência de que não passam de indícios e que por baixo desta vida à mostra há outra, oculta, à qual não tenho acesso. Por mais que eu a vigie, que tire fotos, que a escute durante dias, grampeie o computador, revire seu lixo. Quando fico sem palavras e ideias, mando o texto por e-mail a Maca e me sirvo de outro copo, levando à minha mesa uma tigela de frutos secos. Agora a tela parece a folha em branco de um escritor. Fico uns minutos mastigando incessantemente, sem saber que palavra tenho de jogar no Google. Junto do chaveiro, da carteira e da Glock, há duas folhas de papel: o panfleto dobrado da fazenda e a lista de supermercado. Escrevo Siete Alazanes e pressiono Enter. Enquanto isso, estendo a mão para o controle remoto do sistema de som e o ligo. Toca bem baixo Troilo y Sus Muchachos quando chegam os primeiros resultados. Quase caio da cadeira. Siete Alazanes é uma fazenda de dois mil hectares situada no sul de Córdoba. Sua proprietária deu uma entrevista exclusiva de “seu lugar no mundo”. Elena Parisi fala de tudo em La voz del interior e posa ao lado de um busto romano. Insinuam-se por trás um castelo no estilo espanhol e uma lagoa. Depois encontro uma nota da revista Hola, onde explicam que os avós da senadora construíram a fazenda em três etapas, que trouxeram matéria-prima e mobiliário da Itália e da Inglaterra, e que ampliaram a sede com toques criollos e coloniais. Há várias gerações de argentinos envolvidos nessa fazenda, e Parisi, quando fala da família, parece falar do país. Não fica constrangida em mostrar seus cavalos dourados e pardos. Ri dos críticos, que a chamam de “aristocrata peronista” ou “a rainha do peronismo caviar”. É uma mulher alta e madura, de cabelo curto e olhos claros, e o jornalista diz ser parecida com Vanessa Redgrave.

Abaixo-me junto do rodapé falso e pego o pen drive de Fierrito. Conecto-o em meu pc e baixo os arquivos de seu livro inacabado, enquanto me faço todo tipo de perguntas. O que descobri sobre Parisi? Que relação tem a senadora com Nuria? Em que tipo de tramoia Cálgaris está me metendo? “Há uma senadora cordobesa. Elena Parisi. É amiga. Ou algo assim.” Leio em diagonal, procurando os capítulos que convenceriam Tana a soltar toda a grana e comprar o silêncio. Por meia hora, leio de forma errática, tentando localizar alguma conexão. Até que encontro. A rainha do peronismo caviar era sócia minoritária de uma empresa offshore que certa vez foi vigiada pela dea. Suspeitava-se de que essa empresa lavava dinheiro sujo da política latino-americana e certos ganhos inexplicáveis de um fazendeiro do sudoeste colombiano, oriundo do norte do Valle del Cauca. O sujeito se chamava Belisario Ruiz Moreno, acusado duas vezes de contrabando com agravantes nos Estados Unidos e presumivelmente um ex-capitão do Cartel de Cali, agora desmontado. Segundo Fierrito, o interesse dos ianques nunca chegou a Parisi, a empresa foi dissolvida em 2002 e as acusações contra Belisario prescreveram ou foram retiradas. Ninguém sabia de seu paradeiro.

Digito o nome completo do colombiano no Google e não encontro nenhuma referência. Escrevo a razão social da empresa offshore e também não consigo nada. Vou à estante e procuro o livro de um jornalista do Los Angeles Times: William Rempel. Cálgaris o comprou em Miami e devorou numa noite. Rempel conseguiu convencer o chefe de segurança do cartel a contar a intimidade dos patronos. Na realidade, é uma história falaciosa. O chefe de segurança se entregou à justiça norte-americana, revelou toda a trama da organização, contou tim-tim por tim-tim onde estavam seus bens e quem os administrava, e conseguiu que apagassem a identidade dele e de sua família, lhes dessem asilo nos Estados Unidos e metessem todos em um programa de proteção a testemunhas. No epílogo, Rempel mostra como o cartel é derrubado e os generais dão lugar a coronéis da droga, que matam uns aos outros. Como o assunto me interessou, pedi mais informações à base Coronel Díaz, dedicada ao serviço secreto no exterior. Os arquivos se concentram no cartel do Norte del Valle, chefiado por Los Comba, e nos vínculos ainda incertos com a Argentina, país de passagem, uma rota aberta para chegar à Europa e quintuplicar os ganhos em seu avanço para o Oriente. Um embarque de quatrocentos e quarenta e quatro quilos de cocaína a bordo de um veleiro atracado no rio, um avião que leva novecentos e noventa e quatro quilos a Barcelona. Tudo em pacotes coloridos e inconfundíveis.

No fim das contas, Fierrito, mesmo no escuro, achou um veio de ouro. Algo que pode cair muito mal na mídia, mas não pode causar danos judiciais concretos: muito barulho por quase nada. Barulho suficiente, porém, para arruinar uma carreira política. Nem Belisario nem a empresa offshore são conhecidos ou importantes, o assunto não passou de uma suspeita fugaz, a dea continuou com sua vida e esqueceu a possível lavagem de dinheiro, e esse livro é assinado por um jornalista de má reputação a quem não se pode dar muito crédito. De todo modo, Cálgaris não quis que ficasse nem essa ponta solta. Por quê? Foi uma encomenda ou um presente? E que papel tem a advogada espanhola em toda essa historinha?

Levanto-me para fazer um café e volto a olhar a tempestade. Só agora percebo os relâmpagos e trovões. A cidade está se inundando e receio, meio paranoico, que falte luz. E que isso me desconecte da caçada. Estou excitado, quase eufórico, enfim sinto que chego perto. Um orgulho íntimo me leva a descobrir tudo e esfregar na cara do coronel. Se é que o coronel não está a par. Vamos em outra direção: Nuria veio comprar alguma coisa. O quê? Ela lava dinheiro? Quer lavar a grana preta da corporação política? Foi contratada por Elena Parisi? Aproximo-me da mesa com a xícara fumegante e de repente me detenho na palavra camarão. Em seguida na palavra merluza. Lembro-me neste mesmo instante de sua conversa com Roldán. Sua voz dura e peculiar. “Estou cansada de comer carne e aqui os peixes não têm gosto.” Idiota, digo a mim mesmo, atirando-me ao teclado. Uma gota de café mancha a lista de papel quadriculado, mas tenho olhos apenas para a ferramenta de busca. Operação Camarão: 12 de julho de 1988, Buenos Aires e Avellaneda, quase seis toneladas de cocaína pura em caixas de crustáceos congelados para exportação, com o selo secreto do Cartel de Medellín. Operação Merluza Branca: quinhentos e oitenta e nove quilos em duas operações, a primeira em um depósito de contêineres em Retiro, a segunda alguns meses depois em Barcelona, quando, por ordem de um juiz de Mar del Plata, foi feita uma busca no porão de um navio de bandeira liberiana que havia zarpado do porto de Buenos Aires. O pó dos deuses disfarçado entre filés de merluza e do peixe inteiro. Fevereiro e março de 2006. Vinte e nove milhões de dólares.

Olho novamente a lista escrita à mão. O jogo de adivinhação ficou tão fácil. Como não compreender agora tanto interesse pela rota do vinho e pela produção do malbec? Não é o paladar que manda, é o bolso. Viñas Blancas: maio de 2004, depósito em Munro, duas toneladas em tijolos de um quilo e dez mil garrafas de vinho tinto embaladas em caixas de seis, destinadas ao mercado europeu. Cocaína diluída. Seria recuperada na Espanha por um processo de “cozimento” que não exige mecanismos sofisticados: o vinho tinto é aquecido para que evapore e depois filtrado, obtendo-se o pó com a mesma pureza. A fachada era uma operação de exportação, mas havia iugoslavos encarregados de joalherias, restaurantes e compra de propriedades para lavar os ganhos, e gente de muito poder na República Dominicana para facilitar os trâmites iniciais.

Passemos ao morango. Bem antes. Em 1o de maio de 1997. Da Operação Strawberry eu participei, embora como pessoal de apoio. Quinze batidas, dois mil e duzentos quilos escondidos em porões carregados de polpa congelada de morango. Um galpão em General Pacheco, destino Alemanha. Foram dezesseis detidos e nenhum culpado.

A palavra farmácia me freia um pouco. O que significa? Faço combinações no Google com narcotráfico. Rapidamente surge o conceito de “precursores químicos”. E a efedrina, utilizada pelos cartéis do Golfo e de Sinaloa para a produção de drogas sintéticas. A Comissão Federal para a Proteção de Riscos Sanitários do México tornou sua comercialização ilegal, a Argentina foi convertida no país ideal para sua triangulação: aqui, a efedrina é livremente fabricada em laboratórios e vendida em farmácias. Existem quadrilhas que a exportam pelos mesmos métodos da cocaína. Em 8 de abril de 2008 abriram no México um contêiner que vinha do rio da Prata; transportava duzentos e noventa e quatro quilos de efedrina, escondida em doze mil quilos de açúcar. Lembro-me de tudo que aconteceu depois, não preciso ler novamente: outro caso naquele mesmo ano, o fuzilamento de três homens, o escândalo na imprensa, a rota da efedrina e muito depois as audiências em tribunal. Foi um ano fatídico: em julho, quatro matadores de aluguel haviam abatido também a tiros dois colombianos quando saíam do Unicenter.

Fumo sem parar e navego por artigos, relatórios, curiosidades. Refresco a memória. Já não tento vincular Nuria Menéndez Lugo a nada. Sei que ela faz parte de tudo isso. Falta Luciana Flores confirmar de Madri que Claudio García Roldán é advogado criminalista e defendeu traficantes dentro e fora da Espanha. Melhor ainda, na Flórida e em Nova York, ou em Cali e Bogotá. Talvez na própria Buenos Aires. Uma empresa de importação e exportação com dois escritórios, um em Buenos Aires, outro em Madri. Um contato na alfândega e uma senadora nacional. Estou inteiramente desperto e lúcido, avanço pela madrugada com uma fé renovada. Nessa fazenda cheia de cavalinhos podem pousar aviões à noite. Quem terá a coragem de incomodar a senadora com um mandado de busca ou uma investigação? Tenho outro pensamento revelador. Escrevo na ferramenta de busca “Conselho da Magistratura”. É claro. Elena Parisi integra o corpo que decide os julgamentos e a carreira dos juízes. É claro. Já parou de chover. Tomo mais duas vodcas. Sinto falta de um clonazepam de Nuria para conciliar o sono. Não estou alegre nem triste, nem mesmo surpreso. Mas sei que não vou parar de rolar na cama, e que só conseguirei um cochilo de duas horas antes que tudo recomece. Quando isso efetivamente ocorre, encontro um e-mail urgente e criptografado do coronel. Fala no programa de cooperação entre agências. Querem minha presença no Grupamento de Segurança e Inteligência da Casa Militar. É uma missão de vinte e quatro horas. Tenho de proteger a presidente.

Um grupo de produtores rurais invade a pista de uma unidade da Força Aérea onde acaba de aterrissar o Tango 01, e quer entregar de improviso uma petição à mulher. Cinquenta ambientalistas pretendem acabar com ela durante uma visita a uma escola do interior. Os relatórios da inteligência avisam que vinte ou trinta piqueteiros trotskistas preparam uma emboscada na saída de outra cerimônia. O clima vem esquentando por esses dias e a Casa Militar solicita pessoal designado para reforçar a comitiva que viajará à província de Santa Fé. Vários camaradas da Casa, dos Granaderos e da Polícia Federal devem voar na noite anterior para examinar o epicentro, infiltrar-se nas manifestações e preparar as rotas de entrada e saída. Não é a primeira vez que colaboro com operações de proteção. De fato, Cálgaris quis que eu passasse uma temporada na Divisão de Segurança Especial, encarregada da segurança de ex-presidentes, juízes e embaixadores. Eu estava presente naquela tarde de fevereiro de 1991 em San Nicolás, quando um ex-policial transtornado saiu da multidão durante um ato político e tentou matar Raúl Alfonsín com seu revólver calibre 32. Também fui eu o sujeito que tentou convencer os radicais a suspender a operação depois de um jantar partidário em um clube local, porque tínhamos informações de que iam executar aquele galego cabeça-dura se insistisse em desafiar a morte. Alfonsín não deu importância: “Mentira, mentira, querem nos foder”, dizia ele a nosso chefe operacional. “Vamos comer assim mesmo.” Entrei antes com a brigada de explosivos e logo fechamos todos os acessos. Não houve um segundo atentado no clube, mas eu andava de um lado para o outro com os maxilares tensos e a mão na culatra do 357, que agora guardo em um cofre do Banco Francés.

Sete ou oito anos depois, o coronel me colocou no corpo de segurança presidencial que acompanhava uma missão diplomática à França e confraternizei uma noite no bar daquele hotel cinco estrelas com um espanhol transplantado que trabalhava no Louvre. Ainda me lembro dos tragos que tomamos no balcão usando minha conta de despesas, enquanto um francês tocava melodias deprimentes em um piano de cauda.

— Sou o guardião da Mona Lisa — disse ele com certo orgulho. — E de quebra ainda conheci o lendário León Mekusa na casa de meus tios.

— Não tive o prazer — respondi, para decepção dele.

— Olha só, nos anos 1970 Mekusa era um famoso segurança da Mona Lisa. — Entusiasmou-se, tagarelando num castelhano que poucas vezes podia utilizar. — A mulher dele se afeiçoou ao pincel e às cores, e pintava o cavalheiro junto da dama de sorriso misterioso uma vez ou outra. Fez arte com a arte.

— E você seguiu seus passos.

— Fiz carreira na polícia francesa, quando meu pai morreu e minha mãe nos trouxe definitivamente para Paris. Mas vi que esse negócio não era para minha sensibilidade. Fui segurança em bancos e supermercados e acabei onde havia começado Mekusa. Protegendo a Mona Lisa e a Vênus de Milo. Veja só a ironia. E que bela história.

— E como é a experiência?

— Não é uma tarefa fácil — disse ele, e os olhos ficaram velados. — Oito milhões de pessoas passam por ali para vê-la. E tentaram destruí-la muitas vezes. Muitas. Há alguns meses, sem dar em nada, uma turista russa quis estragá-la atirando nela uma xícara de porcelana que trazia no bolso. Felizmente, temos o quadro coberto por um vidro blindado. Mas ela produz uma estranha obsessão em algumas pessoas. Uma obsessão destrutiva. Além disso, já leu sobre a doença da beleza?

— Confesso que não — lembro de lhe ter dito, meio ressentido.

— É muito popular no Louvre. Chama-se “síndrome de Stendhal”.

Por acaso eu tinha onde me agarrar: o coronel havia me obrigado séculos antes a ler A cartuxa de Parma, que lhe parecia fundamental para entender o período napoleônico e para depois entrarmos de sola nos verdadeiros livros de história. Assim, a referência mudou meu humor.

— Conheço Stendhal — eu disse.

— Depois de visitar um museu em Florença, Stendhal disse em algum lugar — começou meu companheiro, erguendo o olhar e tentando citar de memória. Pigarreou um pouco e recitou com voz de cavaleiro das cruzadas. — “Chegara àquele ponto de emoção no qual se encontram as celestiais sensações dadas pelas belas-artes e pelos sentimentos apaixonados. O coração disparava, a vida em mim esgotara-se, andava com medo de cair.”

— Estava drogado?

— O amor é uma droga psicossomática — respondeu ele, sorrindo. Falava depressa. — Taquicardia, vertigem, confusão, alucinações. Imagine ter sessenta e cinco mil pessoas expostas a essa radiação em um domingo de entrada franca? E você ser responsável para que ninguém enlouqueça e destrua esse tesouro? É um estresse, rapaz. Um grande estresse.

O piano começava, naquela madrugada em Paris, uma canção famosa que eu não conseguia reconhecer.

— Piaf for export — ele esclareceu, erguendo a taça.

— Mas, então, por que é um emprego tão bom? — parti para o ataque.

— Já viu a Mona Lisa?

— Uma gorda feia.

— Pelo amor de Deus, não diga isso. É uma mulher belíssima. A mais bonita da história da arte. E eu sou seu guardião. Você também é, à sua maneira. Todos nós, que nos dedicamos a proteger pessoas importantes e pedras preciosas, somos guardiões da Mona Lisa. Saúde! Saúde, colega, por este trabalho arriscado que escolhemos e que vão todos tomar no cu!

Sempre me vem à lembrança esses diálogos de soldados cansados, de guarda-costas embriagados e anônimos que procuram uma desculpa para seu destino de sombra e de merda. Aqui estou em Santa Fé, protegendo a Mona Lisa, falando com dois delegados da polícia provincial, com um funcionário do cerimonial da Presidência e com um assessor do Ministério de Governo. Verificamos o itinerário, do pouso até a rota que leva ao ginásio coberto, onde o ato será realizado. Verificamos o percurso de ida e volta: regressaremos com a Mona Lisa a Buenos Aires no Tango 01, quando a festa acabar. Dividiremos as tarefas entre nós. Os dois agentes da Casa e um dos oficiais federais vestirão camisa, calça de brim e chinelo e se misturarão com as colunas de militantes. Não aposto minhas fichas nesses sujeitos. Em localidades tão pequenas, as caras desconhecidas se destacam como espantalhos cobertos de tinta fluorescente. Não poderão pedir muitas informações: quem se abre para eles fede a deduragem. Os informantes civis da polícia provincial já são outra coisa: juram que uma célula de Quebracho pensou em se fazer passar por uma facção dos peronistas com a intenção de entrar e armar confusão. Mas não estão certos de que vão se atrever ou conseguirão. De todo modo, nenhum idiota viu nada que parecesse nem remotamente a ameaça de um atentado. Então é um assunto de rotina e vou me entediar revistando o ginásio junto com um especialista em bombas e, na hora marcada, montando guarda, de traje a rigor e gravata, de um lado do palco, onde falará ao país a presidente dos quarenta milhões de argentinos. A única diversão será revistar os bolsos e equipamentos dos cinegrafistas e apalpar de cima a baixo os irritados repórteres que transmitirão o evento ao vivo e não poderão fazer nenhuma pergunta direta. Já estou por perto para impedir que inventem alguma coisa. E para deter algum louco que queira jogar uma xícara de porcelana na Mona Lisa. Porém, não muito mais do que isso. Se eu vir alguém no meio do público sacando uma arma para disparar, tenho ordem de lhe abrir o crânio com uma bala. Mas isso não vai acontecer, amigos, e assim esta será seguramente uma viagem mais ou menos tediosa, com o único atrativo de voltar a ver de perto essa celebridade da política, ouvir os cantos folclóricos e ler os cartuns do Nestornauta.

Trazem para nós pães com presunto e queijo e Cocas, e aproveito a folga para entrar na internet pelo notebook de um técnico. As novidades não são muitas. Pelo menos, não há novidades que eu possa visualizar desta máquina estranha sem cometer uma imprudência. Na primeira hora de ontem, o coronel me enviou as fotocópias escaneadas das denúncias feitas por Nuria e a cinesióloga a dois policiais cansados e analfabetos na delegacia do bairro. Li enquanto tomava o café da manhã e ri bastante. A vizinha aparentou indignação, fez um inventário falso com os vultosos valores em dinheiro e os objetos caros que supostamente foram levados pelos criminosos. Tem o apartamento no seguro e supõe, embora obviamente não o declare, que os delinquentes jamais serão presos e, portanto, pode mentir sem medo. Da advogada, por sua vez, não roubaram nem um vaso de barro. No cofre só tinha documentos, que encontrou jogados pelo chão, e assim não se sente particularmente prejudicada, exceto pelo infortúnio, pela invasão à privacidade e pelo estrago na porta, senhor policial. Nesse momento, telefonei para Palma e perguntei se Menéndez havia conversado com seu assistente e com o sócio espanhol sobre o roubo na rua Juncal. Ela comentou algo com o assistente por telefone e mandou um e-mail a Roldán assim que pôde. Mas tanto na forma oral como por escrito a mulher se mostrou assombrosamente serena, como se fosse uma apostadora acostumada a perder milhões sem pestanejar.

— Até nisso ela é uma chata — acrescentou o babujento da Caverna.

— Você vai ter uma surpresa — eu disse e desliguei.

Naquele mesmo instante me dei conta de que Lali acabara de enviar mais seis fotografias. Baixei no computador de mesa para vê-las bem. As duas primeiras fotos foram tiradas em movimento, da Yamaha fz16: Nuria anda em um ônibus amarelo aberto, ouvindo atentamente as palavras de uma guia e olhando os prédios e monumentos históricos. As outras duas fotos flagram-na nas grades do campo de polo de Palermo, acompanhando as jogadas de uma partida. As duas últimas me dão arrepios: a morena fala em uma sacada com um gordo achinesado que conheço muito bem. Bragoni. Ignacio Bragoni, Nacho, ex-comissário de polícia, ex-membro da Divisão Antinarcóticos de Buenos Aires, processado por tráfico de substâncias ilícitas, preso por quatro anos na Unidade Penitenciária 63, libertado por bom comportamento e redução de pena. Trabalho atual: desconhecido. Busquei seu nome no Google. Não havia nada posterior a esses acontecimentos. Pedi sua ficha à Casa e me informaram que demoraria dois dias. Um funcionário do arquivo, com quem tenho uma espécie de amizade, quebrou meu galho e deu uma lida rápida. Bragoni trabalha em uma empresa de segurança particular com sede em La Matanza. De imediato liguei para o celular de Lali e olhei o relógio. Nesse momento ainda me restavam algumas horas antes de embarcar na viagenzinha noturna a Santa Fé. Como a motoqueira não atendia, vesti minha roupa, preparei a bolsa de viagem, juntei as armas e fui para a Casa Rosada, mas pensando em fazer uma escala em Palermo Hollywood. As últimas notícias e a noite em claro converteram minha mente em um liquidificador de pessimismo, satisfação, temor, esperança, resignação, inquietude e, sobretudo, intriga. Não conseguia deixar de pensar em Nuria nem de imaginá-la nua, andando por seu apartamento. Ainda sentia o cheiro de Chance Chanel. Como seria seu corpo de verdade? Será que ainda estaria com tudo em cima sem as roupas sob medida e seus cintos? Essa morena que não se rende à maturidade nem à mediocridade é forte, bonita e tirânica, e evidentemente topa tudo. Não me envergonho de admitir que tenho fantasias sexuais com ela de madrugada. Domar a fera, domá-la com o pau. É com esse tipo de besteira que fantasia um homem que bebeu três doses de vodca.

Toquei a campainha na casa da rua Honduras, mas Lali não atendeu. Tive de amassar de novo a porta aos chutes para que ela saísse. Saiu, como da última vez, um desastre, sonolenta e nua em pelo. Cortara o cabelo louro e colocara piercings novos. Parecia um garotinho andrógino e emaciado.

— O que houve? — perguntei. Não me respondeu. Atravessamos a sala de estar e fomos ao cômodo principal. Notei que a cama estava ocupada. Dois galãzinhos de tv dormiam profundamente. Estavam abraçados como marido e mulher. — Estou interessado no gordo da sacada — digo a Lali, apontando para a ilha de edição. Lali pareceu despertar um pouco.

— Por quê? — perguntou. — Quem é esse cara? — Ela acende um cigarro.

— Um policial da Narcóticos — respondi. — Você o filmou também, não? — A loura abriu a geladeira, pegou uma jarra de café com leite e o esquentou no micro-ondas. Isso pode realmente ser chamado de café, meus amigos? Bebeu um pouco, queimando os lábios rachados, e se sentou em uma banqueta, de frente para sua ilha de edição. Havia filmado Bragoni com uma pequena câmera digital de alta definição. Pôs o filme e continuou tomando a bebida, segurando o copo com as duas mãos e inclinando a cabeça para a esquerda. Na realidade, a sacada é o segundo andar da Fundação Proa. Especificamente, o restaurante que dá para a Riachuelo. Nuria fuma Camel e olha para a Caminito. Fala sem olhar para seu interlocutor. Ele a contempla com as mãos nos bolsos da calça bege: a barriga chega quase um metro antes de Bragoni, de todos os lados. O ex-comissário tem um anel de sinete. A mulher parece uma atriz francesa dos anos 1960; o policial parece um açougueiro dos tempos de Tita Merello. Corta, e estão andando pela Caminito. Bragoni tagarela, ela finge ouvir e olha as bugigangas das barracas. Na Casa, há um agente que decifra a linguagem dos surdos-mudos e que consegue traduzir essa conversa desapaixonada. Despedem-se na entrada de uma escola pública. O comissário quer lhe dar um beijo no rosto, mas Nuria rejeita o gesto, estende a mão e ele a aperta. Depois entra no prédio.

— É o Museu de Quinquela — disse Lali e tirou um cigarro de entre meus dedos; deu um trago longo e acrescentou: — Ficou uma hora vendo quadros. — A câmera, porém, segue Bragoni, flagra-o entrando em um Renault Fluence 2.0 preto e brilhante como sua alma. Entra pelo lado do carona, porque espera por ele um rottweiler fazendo as vezes de motorista particular. Há um zoom muito oportuno: o rottweiler tem uma cicatriz na testa e cabelo à escovinha.

— Vende drogas? — perguntou-me Lali.

Apertei o botão Eject, peguei o disco, enfiei dentro de uma capa e guardei no bolso. Recuperei meu Parisienne e me virei para a saída. Os dois atores mudaram de posição, mas continuaram dormindo: agora estavam de conchinha.

— Deixa de ser grosso, vende drogas? — insistiu Lali de longe.

Voltei-me e falei, olhando-a nos olhos.

— Isso não é da sua conta.

Fechei a porta rapidamente e segui meu caminho. E agora estou aqui, neste ginásio abarrotado de Santa Fé, esperando a chegada da Mona Lisa, a gritaria do público e a chuva de papeizinhos prateados. Estou aqui, parado como boneco de bolo de noiva, ouvindo os cânticos fervorosos e vigiando as caras, as expressões, os movimentos. Entretanto não estou aqui, penso em Bragoni. Nesse sujeito sinistro que conheci no refeitório da prisão.

Logo nos dão o código de pré-aviso. Em dez minutos entrarão os chefes da operação e a escolta principal se posicionará discretamente. Ministros, intendentes e dirigentes da “cápsula” vão subindo ao palco e ocupando as cadeiras segundo o mapa cuidadosamente planejado pela Secretaria Geral. As paredes já vibram. As organizações sociais e juvenis entoam: “Não toquem em Cristina! Vamos arrebentar!”. É o prelúdio da marcha peronista. Cantam com vontade os meninos de La Cámpora e do Movimento Evita, e os fiéis companheiros da Frente Transversal. Há um clima de arena de esportes e de show de música popular, mas hoje não haverá outros jogadores nem artistas. Somente ela falará. E o fará durante exatos quarenta e cinco minutos. Já estão acesas todas as luzes e vejo movimentos nervosos. A Mona Lisa surge dos flashes e dos abraços e saúda a multidão. O público urra. Só consigo vê-la de relance. Usa, como Nuria, roupas escuras sob medida e um cinto grande, mas de perto é visível um esgotamento e uma espécie de amargura velada que Menéndez Lugo ainda não conhece. As coisas se acalmam um pouco e então a presidente avança para os microfones do púlpito enquanto recebe gritos de amor. Pede silêncio e obedecem na terceira tentativa, e então começa com um sorriso:

— Obrigada a todos e a todas.

Uma das obrigações de um segurança é se abstrair dos discursos e se concentrar nos olhos e nas mãos da massa, identificar prontamente os suspeitos e detectar qualquer anomalia nesse oceano de espectadores. Posso fazer isso mecanicamente e ao mesmo tempo me dividir. Ir às nuvens enquanto estou em terra firme. Vem-me à cabeça a última imagem de Bragoni. Está sentado em um sofá do cassino de oficiais da up 63. Toma champanhe, fuma um charuto, tem no colo uma puta. Há uma festa na prisão, o diretor faz aniversário e os presos vips compartilham de sua alegria de sábado à noite. Estou aqui porque houve um problema no banheiro: feri um presidiário com uma facada.

O assunto exige uma explicação, meus amigos. Isso aconteceu há cerca de dez anos e, embora eu tenha sido premiado e promovido graças a essa operação secreta, e às vezes meu amor-próprio seja alimentado por saber que sobrevivi ao inferno, não me agrada nada tê-lo tão presente. Infiltra-se em meus sonhos e salta na minha cara quando baixo um pouco a guarda. Sua lembrança é quase tão amarga como a guerra do sul. Para mim, que me esquivo de tudo, aqueles dois combates me perseguem pela noite como cães raivosos.

O caso é o seguinte. Havia a certeza de que funcionava dentro do serviço penitenciário uma quadrilha que vendia drogas em quase todos os presídios e que, além disso, à noite retirava os presos mais perigosos para roubar carros. As suspeitas recaíam sobre a up 63, e então precisavam infiltrar alguém diretamente nos pavilhões porque os caras tinham cúmplices na Direção-Geral de Recursos Humanos e não era possível enganá-los com um policial honesto, nem com um agente de outro serviço. Também não poderiam infiltrar um policial entre os presos, porque Bragoni conhecia todos os policiais corruptos deste país de merda, e a verdade é que os bostas que mandam nos refeitórios sentem o cheiro de um cana a cem metros. O ministério precisava de um desconhecido de colhões bem grandes.

O coronel me levou para jantar e me contou todo o plano. Voltei para a Belgrano R totalmente bêbado. Teria de raspar a cabeça e fazer duas tatuagens de presidiário em um dos braços e no peito. Eu receberia novos documentos com o nome de Miguel Bruguera, assaltante de bancos que passara por presídios federais em Mendoza e San Juan, e havia fugido para o Chile. Cálgaris me jurou que tinham analisado ficha por ficha e que ninguém o conhecia pessoalmente na up 63. Embora fosse famoso, um bom ladrão que havia enganado dois patrulheiros, “Brugo” ou “O Pássaro”, como o chamavam, não tinha nenhum camarada naquela população de malandros, era praticamente um estrangeiro naquele cárcere de Buenos Aires. Eu devia memorizar todo seu histórico. Depois, foi guardar minha pistola e levar uma Browning 9 milímetros com a numeração raspada, preparar uma mala com roupa modesta e pagar um quarto em uma pensão na Once. Um X9 da polícia me recomendaria a uns pesos-pesados que frequentavam um salão de sinuca na Constitución: entre as cervejas, eu teria de lhes contar meu currículo e conquistar sua confiança. O X9 impunha como condição um golpe que iam dar no distrito financeiro; tinha a informação de que numa determinada quinta-feira de julho, às cinco e meia da manhã, um carro-forte estacionaria na frente do prédio de um sindicato. No térreo, tinham instalado havia pouco um caixa automático para os afiliados e os canas transportariam quatrocentos e cinquenta mil pesos em sacos. Trouxe para nós o mapa das ruas e nos mostrou como era o movimento. Neste mesmo dia a fita seria cortada e haveria a inauguração.

Roubamos dois carros e estacionamos por perto: um de frente para o outro na esquina. Examinei a Browning quando ainda não havia amanhecido e me perguntei seriamente se os seguranças estariam inteirados da questão. Percebi, enquanto esperava naquele carro sem aquecimento, que essas boas intenções só funcionam nos filmes. O mundo real é muito mais cruel. Nem o ministério, nem o coronel, nem o X9 disseram uma só palavra: aqueles seguranças andavam armados e com colete à prova de balas, mas não tinham a menor ideia de que estavam prestes a ser assaltados por quatro imbecis e que, se não liberassem a grana, encheríamos o couro deles de buracos. São esses momentos arrepiantes da vida real em que todos os riscos são assumidos e brincamos com a sorte.

O carro-forte chegou com três minutos de atraso. Abriram a porta e primeiro saiu um segurança de apoio que se postou na calçada. Em seguida, como exige o regulamento, saíram dois fantoches com os sacos e as escopetas. O primeiro foi surpreendido por trás pelo energúmeno escondido no vestíbulo do prédio, que pôs o cano em suas costas. Os dois restantes nós enfrentamos com pistola e metralhadora. Foi uma ação rápida e aos gritos. Naquele que era de minha responsabilidade, dei três golpes inesperados e preventivos com a culatra que o deixaram fora de combate e arranquei os sacos de sua mão. Não quis lhe dar a menor chance de reagir, nem me ver obrigado a disparar. O outro agiu melhor: soltou os sacos e levantou as mãos sem que precisasse de um carinho que fosse. Não queria confusão. Existem alguns assim. Apontei para a porta blindada e disparei. As balas batiam, marcavam, ricocheteavam, aturdiam. Essa não estava nos planos. Já estávamos de posse da grana e meus camaradas apostavam que dariam o fora sem precisar disparar um tiro, mas agora estavam dispostos a matar o motorista se por acaso ele saísse para se fazer de valente. Como eu também não queria correr esse risco, esvaziei o pente sem tocar em um fio do cabelo dele. Entusiasmado, histérico, o barra-pesada que me acompanhava disparou uma longa rajada de metralhadora nos pneus do carro-forte.

— Vambora, idiotas, vambora! — gritava o que havia rendido o segurança de apoio. Levava o homem como refém.

A essa hora, não apareceu nem um vizinho, mas começamos a ouvir umas sirenes ao longe. Metemos os sacos em nosso carro, manobramos com o sangue fervendo e saímos pela Carlos Pellegrini para entrar na Libertador. Abandonamos o carro na avenida Montes de Oca e entramos numa Trafic que havíamos levantado em Morón. Os outros soltaram o refém em uma favela do oeste e também trocaram de veículo. Voltamos todos a nos encontrar em uma churrascaria em Isidro Casanova. A polícia esperava por nós. Foi um tiroteio breve e intenso. Dois dos nossos caíram um depois do outro. Escondido atrás de uma coluna, no meio da saraivada, disparei um tiro superficial na minha coxa, joguei longe a Browning e me deixei ser capturado com vida. O companheiro da metralhadora ficou sem projéteis. Quando viu de longe que eu não respondia mais, também largou a arma e se entregou. Fui mandado algemado e incomunicável a um hospital interzonas; dali, diretamente à cadeia. Fomos reunidos, propositalmente, em uma cela até que nos transferiram para a up 63. Interrogaram-nos e decretaram nossa prisão preventiva.

— Fica tranquilo, Pássaro, nesta prisão tenho muitos amigos — dizia-me para levantar meu moral.

Foi importante que o sujeito me apresentasse naquela ratoeira. Fez isso com prazer, enquanto cumprimentava velhos conhecidos e contava, com certo exagero, como a polícia provincial se cagou toda com nossos tiros. Esse feito, saído dos jornais, e meu ferimento recente a bala eram medalhas no submundo dos condenados. Um merda qualquer desconfiado me disse naquele primeiro dia:

— O Pássaro de que meu compadre de Mendoza me falou tinha uma águia no coração e uma espada com caveira.

Tive de tirar a camisa para que todos vissem as duas tatuagens. E depois calar a boca de um preso com um chute nos dentes. Rituais de boas-vindas.

O presídio era menor do que Olmos, porém muito parecido. Tinha um corredor úmido e escuro que levava ao panóptico. Dali, os carcereiros vigiavam os presos e conseguiam controlar os corredores que davam nas celas dos cinco andares: quatro por pavilhão, capacidade para seis pessoas em cada uma. No primeiro andar ficavam os evangélicos. No segundo, os traficantes. No terceiro e no quarto, os que agiram à mão armada. E no último, os homossexuais passivos e ativos. Não havia iluminação nem aquecimento, assim usávamos náilon, lençóis e cobertores para tapar os buracos e fugir do frio de agosto. Também não havia aquecedores, nem água quente. Só o fedor de mijo e fritura.

Deram-nos duas camas de beliche e dois colchões gastos que eram um verdadeiro luxo. E enquanto comíamos e nos exercitávamos, foram nos contando como funcionava o setor vip, isolado e perto dos escritórios do diretor. Nesse lugar, quem mandava era Nacho Bragoni, que tinha um “quarto” com televisão, computador, celulares e armas. Cocaína, maconha, pasta base e Rivotril dependiam de sua boa vontade. Era preciso pagar a ele. Bragoni atendia a telefonemas e pedidos o dia todo: gente de outros presídios fazia encomendas, e o ex-comissário conseguia do lado de fora o que era necessário. O comandante ficava com uma porcentagem; eram amigos íntimos. Mas os prisioneiros não se metiam nesses negócios. Para eles, para alguns especialmente escolhidos, havia outras paradas.

Em todo aquele tempo, ninguém de fora se comunicou comigo. Eu não recebia visitas e não dava telefonemas. Não podia pisar na bola. A parte mais difícil, como acontecia quando eu nadava horas e horas no rio, era controlar as emoções e não perder a fé. Ficar pianinho, invisível, não me meter em tretas nem fazer perguntas, e por nada deste mundo dar com a língua nos dentes. Boiar em meio a tubarões.

Como eu não queria despertar a menor suspeita, rejeitava a possibilidade de ler os livros da gasta biblioteca do presídio e passava por iletrado. Quando as luzes eram apagadas, tentava pensar na história e me reconfortava imaginar que eu fazia parte da retirada dos Dez Mil, aquele exército perdido de mercenários gregos comandado por Xenofonte que voltava à pátria através de um país perigoso e sangrento.

Tive a sorte de me inscrever no time de futebol do pavilhão e de participar com algum sucesso do campeonato selvagem jogado às terças e quintas-feiras nos pátios dos fundos. Apostas eram feitas e depois cobradas nos refeitórios. Isso não me impediu de levar uns esbarrões nos chuveiros, nas celas, na academia e nas oficinas, porque o encarceramento, o tédio e a cocaína empurravam os imbecis para duelos permanentes. Brigava-se por um travesseiro, por um maço de cigarros, por uma “mulher”, por uma rixa, por uma palavra infeliz. Eu também não me saía mal no corpo a corpo, tinha treinamento de comando militar. Ainda assim, precisei aprender os truques do combate na prisão, fabricar uma faca e entrar para o clube dos facões. Quase sem que eu percebesse, participava das internas, forjava alianças e me metia em refregas diárias. O único jeito de salvar o rabo era se converter em um gladiador. E a penitenciária, por dentro dos muros, era um coliseu romano onde dávamos espetáculo e ficávamos sempre a um passo da enfermaria ou do necrotério.

Certa tarde, um suboficial que estivera me observando ofereceu-me cigarros e tentou saber se eu queria ganhar mil pesos. Não caía bem confraternizar com carcereiros, e assim dei de ombros e o deixei falando sozinho. O condenado à prisão perpétua que trabalhava na padaria me confirmou que existiam “saídas especiais”. Era de conhecimento público que funcionava um desmanche no setor das oficinas da unidade. Discretamente, travei relações com um evangélico que era mecânico e tinha suas contradições. O sistema era simples e eficiente: os diretores escolhiam presos com colhões e lhes ofereciam escapadas noturnas. Forneciam uniformes do Serviço Penitenciário, uma pistola e um celular com o número de um taxista, e as marcas e os modelos cujas peças tinham melhor cotação em diferentes oficinas da Grande Buenos Aires. Na maioria das vezes, proporcionavam também alvos marcados, para que não se perdesse tempo. A empresa de táxi agia de conluio e cobrava uma comissão pelo transporte. O ladrão saía, roubava à noite na rua, avisava pelo celular, entrava com o carro pelos fundos, devolvia o uniforme, a arma e o telefone, e de madrugada estava dormindo novamente em sua cela com dez notas de cem nos bolsos.

O irmão do evangélico, que também dormia no primeiro andar, conhecia o caso de um vizinho da favela que se negara a trabalhar para o serviço e um preso do terceiro andar o esfaqueou no chuveiro. Um velho que trabalhava na cozinha me contou que três prisioneiros resistiram, ou chegaram tarde, ou falharam e suas mulheres e seus filhos foram violados e incendiaram suas casas. Um travesti doidão me contou que o “marido” de uma “amiga” tinha aproveitado a ocasião para fugir e retiraram dois matadores do meu pavilhão e lhes deram armas de fogo. Os matadores balearam o pai do cara e ameaçaram, na frente de vários parentes, a voltar toda noite e executar todos os membros da família, um por um, se o fugitivo não se entregasse, o que ele fez logo em seguida. Torturaram o cara afogando-o na privada e dispararam várias vezes a arma descarregada contra ele nos escritórios do subdiretor enquanto o interrogavam e, em seguida, nas celas, ele foi cercado por quatro presos que o esmurraram, e com uma vareta fina castigaram seus testículos e gritaram “dedo-duro e cana”. Terminou esfaqueado, duas semanas depois, pela própria “mulher”. O travesti dizia que a “companheira” o amava, mas que não podia perdoar o abandono e que, além disso, o chefe do turno o havia advertido de que ele seria castrado se não desse uma “prova de confiança”.

Meu perfil não se encaixava. Não tinha família que pudesse servir de garantia e era novato. Por que, então, esse suboficial me fez essa proposta? Comecei a pensar que tinham suspeitas e me colocaram sob vigilância. Imaginei que talvez Bragoni e o comandante tivessem recebido minha ficha, e que talvez houvessem telefonado a algum amigo da polícia de San Juan. Se continuassem interessados, logo descobririam que o verdadeiro Pássaro havia voado e que eu era um impostor. Porém logo me acalmei. Eles tinham presos demais com que se ocupar e estavam ocupados com vários negócios e outras atividades. “Não sou importante”, dizia a mim mesmo. “Se fosse, estaria morto.”

Apesar disso, a paranoia aumentou. Quase não conseguia dormir uma hora seguida, e sempre o fazia agarrado à faca. Sonhava que Cálgaris tinha se esquecido de mim e que houvera um mal-entendido. E que ficaria para sempre naquelas masmorras imundas. Enfim um dia decidi fazer uma ligação do telefone público. Disquei um número seguro e deixei um recado na secretária eletrônica:

— Já estou pronto.

Três dias depois, o sargento me empurrou contra um gigante. Na prisão, não dá para pedir desculpas. Dei uma trombada no gigante que teria derrubado um cavalo. Mas não surtiu muito efeito. Trocamos socos, numa luta digna do campeonato mundial de pesos médios. Como nos separaram a tempo, o gigante gritou que eu era um bundão e um merda, e que os soldados preparassem as facas porque aquele assunto só podia ser resolvido na marra. Segui a corrente. Por várias vezes, havia feito esgrima criolla com outros presos, mas sempre no calor do momento, de forma que a coisa toda terminava no máximo com cortes ou ferimentos superficiais. Um duelo com aquela fera era outra história.

O pessoal de serviço não se meteu, e à medida que se aproximava a hora do confronto, eu ia me convencendo de que o acaso não podia fazer parte de tudo isso. Chegamos ao encontro com aliados, que estavam ali como padrinhos e nada mais. Lutamos com facões e com o braço esquerdo enrolado em um cobertor. Alguém filmou com um celular. Depois, ao ver os movimentos, tive a impressão de que eram mais gritos e fintas do que uma luta concreta. O gigante era melhor com os punhos. Tirei-o do pátio com uma facada na perna, muito perto da femoral. Foi nessa noite de sábado que me levaram ao cassino dos oficiais. E ali vi como Bragoni e seus sócios festejavam com putas e champanhe o aniversário do comandante. Bragoni se aproximou de mim com um charuto entre os dentes e me olhou de suas frestas pretas.

— Mais vale um pássaro na mão do que dois voando — disse ele de forma enigmática.

O subdiretor me convidou a cheirar umas carreiras de cocaína num prato. Na prisão, também não dá para rejeitar um manjar. O pó nunca me fez bem e sempre fiquei longe dele. Mas, naquela noite, não rejeitei. Deram tapinhas nas minhas costas, entregaram-me um copo e avisaram que iam me confinar por uma semana em uma solitária, mas que depois tinham grandes planos para mim. Bragoni balançava a cabeça, como se não estivesse de acordo, e continuava acariciando uma peituda vulgar que ainda assim esquentava meu sangue. Fiquei uma semana sem luz em um buraco de dois por dois, e ao voltar ao terceiro andar, enquanto comia com alegria um ensopado repugnante, um dissimulado de repente me meteu a faca na barriga. Usou uma lâmina pequena e eu, ainda enfraquecido pela reclusão, tive um último reflexo: dei-lhe uma cotovelada na cara enquanto o preso me furava o braço. Na dor da surpresa, não consegui nada além de me virar: a lâmina entrou rapidamente em meus rins e na nádega. Caí em uma poça e ouvi palavrões e gente brigando, e desmaiei. Depois soube que tentaram me remendar na enfermaria, mas que o comandante decidiu me transferir para um hospital público. Alguém do Ministério do Interior interveio de imediato e ordenou uma internação de urgência no Churruca. Fiquei em terapia intensiva por cento e vinte horas e depois em uma névoa de anestésicos, soros e remédios, urinando sangue e engolindo bile, até que uma noite acordei de um sonho e vi que Cálgaris dormia em uma cadeira junto de minha cama. Juro para vocês que chorei. Mas fui incapaz de acordá-lo e me mostrar um maricas. Quando enfim abriu um olho, eu já havia me recomposto.

— A boceta da senhora sua mãe, coronel — eu disse. Cálgaris riu.

Hijo de remil putas, não vai morrer nunca?

Dei um depoimento como testemunha protegida e apontei os presos que saíam para roubar: era possível fazer um bom trato com eles. Também dei nomes e sobrenomes do evangélico e de seu irmão, do velho da cozinha e do travesti. Podiam reduzir a pena e melhorar a ficha deles em troca de cooperação. Toda a cúpula da up 63 foi relevada e processada, e ao fim de um ano fecharam a penitenciária. A maioria da população foi distribuída, mas Bragoni se defendeu com astúcia e na hora da verdade ninguém conseguiu apresentar provas contra ele. Saiu livre sem um arranhão e, até onde sei, o radar nunca mais o pegou.

Seu corpo de lutador de catch, a cara achinesada, as frestas pretas que ainda me olham, aquele último gesto de ceticismo, sua voz dizendo: “Mais vale um pássaro na mão do que dois voando”. Essas imagens me vêm neste ginásio coberto onde a presidente desperta amores e delírio. “Cristina, Cristina, coração, somos nós os meninos da libertação.” Somos avisados pelo rádio de que em um minuto e meio ela encerrará com chave de ouro, se aproximará do meio do palco, abrirá os braços e levantará as mãos com o sinal da vitória peronista, depois sairá pela direita. Temos ordens de ainda permanecer na frente do palco, protegendo da maré humana o resto da comitiva. Quando metade do ginásio estiver desocupado, tomaremos novas posições nos fundos. E, a uma ordem, entraremos nos carros e nos juntaremos à caravana. Informam que o caminho está liberado. O Quebracho não se atreveu a dar as caras.

Não falta muito para acabar a operação. Detecto entre os convidados ao Tango 01 Holguín, o barão da Grande Buenos Aires cujo casamento salvamos. Holguín se rebola todo, mas a presidente não lhe dá muita atenção. O clima é relaxado, o perigo já passou. A Mona Lisa parece cansada, como se a adrenalina lhe tivesse sido retirada de repente e agora precisasse se deitar com urgência. Nós nos adiantamos. Entramos antes de todos e examinamos o interior do Boeing 727 que já havia sido revistado. Fico com a área presidencial: a área de jantar com revestimento de mogno, o escritório com mesas e cadeiras, as duas suítes. A cama de casal com guarda de couro e o emblema nacional onde a presidente se deitará para recuperar o fôlego. O banheiro com a torneira dourada. Tudo parece em ordem. Olho o relógio. Em duas horas estarei em Belgrano, me servirei uma vodca e tentarei me esquecer de Nacho Bragoni. A presidente passa por nós, séria e concentrada. O secretário particular anda a seu lado sussurrando-lhe notícias preocupantes. Os demais convidados ocupam as trinta poltronas privilegiadas. Não consigo evitar uma saudação a Holguín. O vereador tenta se levantar, mas o cinto não deixa, e vou para o fundo sem lhe dar tempo de agradecer. Um granadeiro me diz que atravessaremos uma frente de tempestade.