iii. A lealdade dos samurais

Chego tarde à reunião. As secretárias do coronel parecem duas professoras severas e escandalizadas com minha falta de disciplina. Sem perda de tempo, fazem-me entrar no gabinete que dá para a rua Chacabuco. Cheira a tabaco mesclado com cereja e ouço em seguida a voz metálica de Luciana Flores. A loura nariguda, por videoconferência, fala com entusiasmo e usa as mãos para se expressar. Parece uma correspondente da Al Jazeera. Sua namorada, a gorda Maca, ouve arrebatada, sentada em uma cadeira desconfortável de encosto alto: tem as pernas unidas e um caderno de notas no colo. O coronel não abandonou sua mesa, mas está apoiado no cotovelo, envolto em fumaça e fazendo desenhos incompreensíveis em um bloco com um lápis preto. Bem por baixo da tagarelice, toca Chet Baker. Cálgaris nem mesmo levanta a cabeça, apenas diz:

— Nos acompanha o excelentíssimo duque de Remil.

Cumprimento com a mão e me sento em uma poltrona vermelha que entra no campo de visão.

— Volte um pouco — ordena o coronel sem erguer os olhos. — García Roldán.

A srta. Flores se vê obrigada a parar a gravação, retribuir minha saudação e retomar. Sei que irá direto ao que interessa. Não quer brilhar comigo, mas com seu chefe.

— Provém de uma família de advogados de prestígio — diz ela, e é perceptível que o sotaque espanhol vai substituindo lentamente o portenho. — Ganhou muito dinheiro defendendo corporações multinacionais. Dentro e fora da Espanha. Seu escritório atende a assuntos civis e comerciais, mas a verdadeira especialidade é o direito penal.

— Defendeu traficantes? — pergunto, e Cálgaris me lança um olhar gélido.

— Algumas dessas corporações eram investigadas por lavagem de dinheiro — diz com cautela a loura oxigenada. — Não sei se especificamente do narcotráfico. Trabalhou muito nos Estados Unidos, mas não temos informações concretas.

— Seu passaporte traz alguma viagem à Colômbia ou ao México?

— Não.

— Conseguiu sua carteira de clientes?

— Está comigo — responde, mostrando alguns papéis com um ar de desafio. — Quer saber de alguém em especial?

— Belisario Ruiz Moreno — sondo.

— Francamente, não tenho a menor ideia, coronel — interrompe Flores, e olha claramente o fumante de cachimbo, que retribui com uma baforada de indiferença.

— Não quis interromper — digo.

— Não há certeza de nada — diz o coronel. — Continue, Flores.

Maca olha para mim com rancor; a namorada passa a mão na testa.

— Há quatro anos associou-se com um corretor e vem desenvolvendo negócios de importação e exportação. Todo tipo de negócio. Nada ilegal. Enviei a papelada por via confidencial, e é complexa e extensa. Talvez deva ser examinada por um perito, coronel.

— O que sabemos do corretor? — pergunto.

— Um falcão de Wall Street. Chama-se Osvaldo Balduin. Espanhol radicado na América há trinta anos, mas com raízes familiares em Valência.

— Mora no Queens? — Quero saber.

— Em uma área residencial. É fanático pelos Mets. Mas tem um apartamento em Manhattan. Insisto, coronel, que deveríamos pedir a ajuda da Casa para obter mais informações sobre Balduin e sobre as atividades profissionais de García Roldán nos Estados Unidos.

— Roldán negocia com que países? — pergunta o coronel como se não a tivesse ouvido.

— De preferência com o Leste Europeu. Esteve dizendo que tem interesse em ampliar os negócios para a América Latina. É fascinado por Buenos Aires e pelo Rio de Janeiro.

— Sua vida particular? — pressiona o coronel, que hoje tem um limiar de tolerância baixo.

— Casado, três filhos, uma amante. — Neste assunto, Flores parece mais à vontade. — Joga tênis três vezes por semana e vai à missa aos domingos. Um clássico testa de ferro. Decidido, vigoroso e atrevido. Roldán tem muita tenacidade e prudência, é um grande planejador. Embora seja lento, metódico, talvez um pouco rígido.

— Voltemos ao Ocidente — diz Cálgaris, e não consigo evitar uma risadinha. — Como é a ligação com Menéndez Lugo?

Luciana Flores de novo está aflita; Maca, enfurecida. Posso imaginar as frases que dedicarão a nós mais tarde em conversa particular.

— Foram colegas na universidade — informa com evidente tédio, mexendo nos papéis que tem na mesa. — Namoraram quando tinham vinte anos, depois ficaram amigos. Nuria é madrinha da filha mais velha dele. Trabalharam juntos em várias causas nos últimos vinte e cinco anos. Roldán e Balduin a convidaram para ser sua sócia na incursão latino-americana.

— Agora vamos concentrar as informações na dra. Menéndez — ordena o coronel.

— A mãe morreu no parto, exatamente como a avó — informa ela sem muito entusiasmo. — O pai era um pequeno comerciante, muito ausente. Deixou-a órfã aos quinze anos. Gente de classe média baixa de Madri.

— Se me permite — interrompe Maca —, essa árvore genealógica, essas privações materiais e espirituais, têm alguma relação com sua personalidade. Assim como sua compulsão por compras.

— Ela é uma compradora compulsiva? — Cálgaris estranha e limpa o cachimbo com a vareta.

— Não em termos absolutos, embora tenha uma tendência — começa a psicóloga, colocando os óculos bifocais e mordendo a caneta. — Nuria é dura e bem-sucedida, mas no íntimo menospreza a si mesma. Tem o contrário do que aparenta: autoestima baixa, insegurança, sensação de vazio. Combate a ansiedade e a depressão comprando joias, que simbolizam a ascensão social, e casacos de pele, que substituem a pele dos pais e dos avós que não puderam acariciá-la. Não pensem que é alguma extravagância. É comportamento padrão para os especialistas no assunto. Menéndez é incrivelmente controlada. E de vez em quando se descontrola em um shopping. Depois se arrepende.

Por um instante o coronel deixa as manobras com o cachimbo e anota uma palavra em seu bloco. Gorda vagabunda. Enfim deu uma dentro. Nuria e eu temos duas coisas em comum: nossa força e nossa orfandade. Cada um de nós se arranja à sua maneira para combater esse maldito defeito de origem. A galega não comunicou à polícia as perdas reais do roubo de seu apartamento na rua Juncal. Também não entrou em detalhes com o sócio naquele e-mail do dia seguinte. Não foi por questões de segurança nem de discrição, mas por pura vergonha.

— Ao contrário de seu amigo Roldán, que nasceu em berço de ouro, para ela a vida foi cheia de sacrifícios e privações — intervém Flores. — Da mesma forma, quinze anos atrás decolou e a partir daí sua situação econômica melhorou sensivelmente. Tem um apartamento no Paseo de la Castellana. Foi casada por três anos com um médico de Avilés e teve namorados, como qualquer uma. Nada de especial. É uma mulher divorciada e solitária, sem filhos, como tantas mulheres das cidades grandes. Posso explicar como pensa uma pisciana com ascendente em touro?

— Ai, Zeus — diz Cálgaris.

— Garanto que tudo isso coincide com minhas avaliações psicológicas, coronel — atalha a gorda, tentando salvar a namorada do ridículo.

O velho cretino olha novamente para mim, mas dessa vez com ironia e um gesto teatral de interrogação. Dou de ombros. Maca ataca novamente e nos lembra da importância que a astrologia teve na Grécia Antiga, no Império Romano, na Idade Média, no Renascimento, em toda a história contemporânea. Também a ligação dos grandes estadistas dos séculos xix e xx com astrólogos. O velho a fita com seus olhos aquosos e coça o bigode amarelado. Pensa em vários clientes nossos, pensa nos chefes de Estado a quem teve de servir. Suspira longamente.

— Bom — diz. O que significa, na língua calgarisiana: “Vamos ver o que a astróloga tem a dizer”.

Luciana Flores entende que recebeu a bola do estúdio central. Altera novamente a ordem de seus papéis e faz uma síntese. Enquanto fala, Maca concorda com a cabeça. De vez em quando introduz um pouco de psicanálise, uma frase do jargão, uma citação de Freud. Nuria Menéndez é de peixes com ascendente em touro e serpente de água no horóscopo chinês. Teimosa, sensível, mimada, ciumenta. Precisa aprender diariamente a controlar as paixões para não cair em excessos. Costuma submeter os outros a seus caprichos, usando até a chantagem emocional, se for necessário. Mais sorte no dinheiro do que no amor. Tendência ao materialismo. Gosta de apostar. E de se enfeitar e se cercar de elegância e beleza. Instinto evasivo, enorme astúcia, grande capacidade de análise. É calculista e, se tem um objetivo, age com frieza e de forma metódica e implacável. Quer manipular todas as cordinhas. Quando se aborrece, pode ser rancorosa e mortífera.

— Muito bem, muito bem — diz o coronel, apertando entre os dentes o cachimbo e abrindo as abotoaduras verdes e douradas. Percebo que fará o que nunca faz: arregaçar a manga da camisa branca impecável, como se o calor tivesse entrado. — Vamos ver, Remil, mostre suas cartas.

Abro minha pasta e retiro a primeira foto. Seguro com as duas mãos diante da tela e dos olhos perscrutadores de Cálgaris.

— Elena Parisi, Tana, senadora nacional — digo. — Fierrito descobriu que a dea teve a mulher na mira por algum tempo devido a uma empresa offshore dedicada à lavagem de dinheiro. Com a mesma metodologia, lavava a roupa suja um fazendeiro colombiano que havia participado dos estertores do Cartel de Cali e que em 2002 ainda andava com os caras do Norte del Valle.

— Belisario Ruiz Moreno — completa o coronel e puxa o catarro.

— A Casa não tem informações atualizadas.

— Para a Interpol, saiu de circulação há dez anos. Tecnicamente, está morto.

— É preciso ver se o corretor não arma sua engenharia financeira e se García Roldán não está legalizando seus negócios.

— Deixemos de especulações, vamos às informações concretas.

— Nuria passou alguns dias na fazenda da senadora. Palma me informou esta manhã que na página do Facebook de Parisi aparecem os convidados à sua festa de sessenta anos. Foi na Siete Alazanes, e algumas imagens foram inclusive publicadas nos jornais de Córdoba. Palma encontrou, entre juízes e políticos, este senhor.

Troco a imagem da senadora por outras duas fotos. Exibo à amável plateia.

— Javier Pico, um dos subdiretores da Alfândega. Aqui, é visto com Nuria em Puerto Madero. Aqui, na fazenda de Parisi. Posso especular um pouco mais, coronel?

— Sim, mas não exagere.

— Nuria pediu um contato a ele, Elena deu um telefonema a Javier. E Javier recomendou Nacho.

O coronel sorri. Dois dias atrás, enviei o filme mudo da Boca e tenho certeza de que ele mandou traduzir. Maca e Flores acompanham o diálogo mexendo a cabeça como em uma partida de tênis. Cálgaris desenha linhas verticais em seu bloco.

— E daí? — pergunta.

— Menéndez Lugo vem aqui com a intenção de detectar negócios de exportação. Estuda bem de perto todos os sistemas já utilizados para traficar cocaína para a Espanha e efedrina para o México. Merluza e camarões, morango e açúcar. E, sobretudo, o malbec. Tem fixação pelo vinho, sendo que é o processo mais complicado porque é preciso diluir a coca em Buenos Aires e recuperá-la em Vigo e Barcelona. Estuda os negócios que deram errado para ver as falhas e pensar em como melhorar o método.

— Seus sócios têm capacidade para fazer um investimento de porte, Flores? — pergunta o coronel, sem abandonar o desenho. Agora traça linhas horizontais. Flores e Maca parecem mortas. A loura passa a língua pelos lábios, dá uma olhada nos papéis e suspira.

— Tenho seus balancetes, coronel.

— Só estou interessado nos ganhos antes dos impostos e no índice de crédito bancário.

— Eu me sentiria mais segura se consultássemos um perito e se fizéssemos uma investigação das operações de Balduin na bolsa.

Cai um enorme silêncio. Creio que o coronel tem vontade de matá-la. Joga o lápis na mesa e cruza os braços. Tem o olhar no teto, deixou o cachimbo fumegando e adivinho que precisa de um uísque para que a irritação passe. Maca fecha a caneta e tira os bifocais, que caem sobre seus peitos enormes. Luciana Flores olha hesitante para ela. Guardo as fotos na pasta e acendo um cigarro. O coronel volta o olhar para mim por um momento. Por fim, empertiga-se e fala, sem se dirigir a ninguém em particular:

— Por enquanto não vamos fazer mais nada. Desativem as vigilâncias e os grampos. Não faremos mais perguntas. Silêncio total de rádio. Entendido?

Nós, os três vassalos, entendemos perfeitamente a ordem. O monarca se despede de Flores e a desliga. Lembra a Maca que tem uma reunião na tarde de terça-feira no comando do Exército e a dispensa. Maca passa por mim com um olhar de apreciação e ao mesmo tempo venenoso. Faço menção de me levantar, mas o coronel pede que eu fique na sala. Quando Maca fecha a porta e nos deixa a sós, Cálgaris atravessa o escritório e vai a seu banheiro privativo.

— Trouxe roupa para o fim de semana? — Ouço ele me perguntar.

— Tenho uma bolsa de viagem no 4×4.

— Quero crer que tenha escolhido uma roupa decente.

— Soube que não ia ser chique.

— Vamos passar dois dias em Colonia. Mas temos um jantar no sábado com alguém importante no Club de Yachting y Pesca. Não quero que você pareça um matuto.

— Sou um pé-rapado de merda e isso não tem jeito, coronel.

— Você não fez um trabalho ruim. Mas passou dos limites nas conjecturas.

— Por que tenho a impressão de que o senhor não está surpreso com nada disso?

— Minha capacidade de me surpreender está meio gasta.

— Sério que Parisi é sua amiga?

— Não existem amigos neste negócio, Remil, você já deveria saber disso. Só troca de favores.

— Preciso levar armamento especial a Colonia?

Cálgaris sai do banheiro transformado em um marinheiro de água doce: calça preta, camisa esporte branca, um lenço no pescoço, casaco de linho, tênis náuticos. Não traz bolsa de viagem, mas uma maleta e um nécessaire, mas pega na mesa seus apetrechos de fumante e um revólver 38 Special antiquado, mas prático, que foi presente em 1983 de um colega de Langley.

— Só vai precisar da Glock e da escova de dentes — diz, atravessando o escritório a passos largos. Fala ainda por um minuto inteiro com suas duas secretárias feias e lacônicas na antessala e descemos juntos no elevador. Tento voltar às descobertas de Fierrito e sobre Nuria Menéndez quando nos acomodamos no 4×4 e saímos do subsolo nessa manhã primaveril de sexta-feira. Mas o coronel foge do assunto e começa a me contar relatos históricos sobre os Bórgia. Tem relação com a admiração que Maquiavel professava por César. Por meio desses entusiasmos, sempre chegamos ao diário romanceado de Joan Francesc Mira. Evocamos aquelas maldades e traições e conversamos sobre aqueles personagens familiares como outros falam da guerra de vedetes da rua Corrientes.

O iate do coronel já está preparado quando chegamos ao porto de Olivos. É um veleiro de catorze metros de extensão e quatro metros e quarenta centímetros de largura, feito de aço naval, com motor Perkins a diesel. Um gerador eólico, um radar Raytheon e um bote de borracha para o desembarque. Suíte na popa e camarote com duas camas, banheiros com chuveiro de água fria e quente. Partiremos logo. Cálgaris será seu próprio piloto. Recebo dele instruções para que o ajude ou pegue objetos: anda a bordo com uma confiança e uma alegria que sempre me deixam assombrado. Veste um casaco acolchoado, consulta mapas, faz uma comunicação por vhf, examina os instrumentos, calça luvas e liga o motor. Manobra um pouco sem fumar, enquanto saímos lentamente em rio aberto. Depois, solta e levanta a vela principal, manipula os cabos e os laços, e deixa que o vento faça seu trabalho. O sol está alto e a água parece dourada. Sinto um pouco de frio, mas aguento firme ao lado dele, contemplando a paisagem. Ele veste um gorro de marinheiro e me passa um gorro de lã preto que me cobre até as orelhas. Ele parece um milionário de Long Island e eu, um assaltante do Bronx. Pega novamente o cachimbo e se ajeita para acendê-lo, apesar do vento forte. Fala de uma aquarela de Turner. Chama-se O castelo de Bamborough. Viu em um catálogo de leilão.

— Fica no mar do Norte, Remil. — Ele fala sem tirar os olhos alternadamente dos instrumentos e do horizonte: passam por nós iates e lanchas; vemos ao longe os catamarãs. — Toda a paisagem é dominada por um castelo fantasmagórico, sobre uma rocha, e abaixo, em um canto da direita, tem uma mulher com seu filho lutando contra as ondas. E um barco que encalhou e, mais além, um grupo de náufragos em um bote tentando se salvar das pedras e do mar bravio. É de tirar o fôlego.

A navegação, o jazz e a pintura são as únicas três manias que não me contagiaram. Mas o velho não se rende. Explica-me seus prazeres como se tivessem importância para mim. Põe tanta paixão e tanta arte em sua transmissão que, mesmo que às vezes eu não compreenda, acabo involuntariamente interessado por elas.

— Dizem que certa vez Turner estava desenhando uns barcos ao entardecer e na contraluz — continua. — E que mostrou o que fazia a um navegador experiente, um oficial da Marinha inglesa, que fez uma objeção: os barcos não tinham vigias e este era um problema técnico grave. Turner respondeu que de onde estava e com essa luz não era possível distinguir nenhuma vigia. Está bem, respondeu o navegador, mas você sabe que os barcos têm vigias, cavalheiro. Turner respondeu: é claro, mas meu trabalho consiste em pintar o que vejo, não o que sei.

As gaivotas e os patos desapareceram e o vento aumentou. Olho a vela principal inflada e ouço o coronel dizer que logo o vento terá mais de vinte nós. Avançamos a uma velocidade considerável.

— Não me faria mal tomar um mate — diz ele, sem soltar o leme.

Desço para prepará-lo na cozinha estreita. No caminho, dou uma olhada em sua pequena biblioteca marítima. Patrick O’Brian, Scott Forester, Alexander Kent e Dudley Pope. Também Cabo Trafalgar e Los barcos se pierden en tierra, de Pérez-Reverte, A linha de sombra de Conrad e um pequeno romance uruguaio: La cacería, de Alejandro Paternain. Preparo o mate e subo ao convés: sou um bom grumete. Cálgaris navega de memória, com uma tranquilidade eficiente e completa. Conhece cada boia, cada embarcação que passa por nós, cada sinal do rio e do vento, cada luz, cada som e cada cor. Na hora seguinte, falamos com maldade da política nacional e da economia, e mencionamos o destino de alguns de nossos velhos clientes. Depois passamos uma hora inteira em completo silêncio, ouvindo apenas os sons da natureza. As rajadas são de vinte e cinco nós. Chegaremos a Colonia em pleno entardecer; será um poente magnífico para observar do desembarcadouro.

— Estive lendo também sobre os samurais — diz ele, relaxado, voltando a encher o cachimbo. — Baixei da internet um ensaio e mandei traduzir. É interessante porque havia muita prática de homossexualidade entre guerreiros e discípulos.

— Está me fazendo uma proposta indecente, coronel?

— Que você não poderia rejeitar. — Ele ri com suas tosses catarrentas. — Estamos na metade do rio e você não tem a menor ideia de como pilotar este pedaço de barco.

— O senhor se esquece de que sou muito capaz de atravessá-lo a nado numa hora de desespero.

— Tinham um sistema moral que promovia as relações entre os senhores e os aprendizes. Essa filosofia se chamava wakashudo e garantia refinamentos e educação, e acima de tudo: lealdade absoluta no campo de batalha. Muitos xoguns tinham esse tipo de vínculo e seus jovens amantes davam a vida por eles quando era necessário.

— Vi alguns fenômenos assim na prisão.

— Não precisamos dessa filosofia do xogum para praticar a lealdade completa — diz ele com um sarcasmo enigmático.

— Por sorte, não.

Cálgaris ainda ri e balança a cabeça. Colocou óculos escuros e, com o reflexo do sol, não consigo ver bem o que seus olhos estão dizendo. Intuo que a lealdade dos samurais é algo que, tirando as brincadeiras e alusões sexuais, diz respeito a nós de forma pessoal. Neste lugar e neste momento concreto que estamos vivendo. Mas não abro a boca.

— Estou com fome — diz ele depois de um tempo.

Na geladeira, encontro salmão defumado e queijo Philadelphia, e no armário tem pão caseiro. Preparo quatro sanduíches e abro duas Coronas geladas. Levo tudo em uma bandeja e comemos sem trocar uma palavra, desfrutando do sol, que se põe, e do novo espetáculo da água, que a essa hora brilha e lamenta. Vemos de longe o Eladia Isabel, arrastando-se lentamente, com sua indolência de mastodonte.

— Teremos uma noite cheia de lua e estrelas — diz o velho, estudando o céu. — Fiquei pensando em nossas astrólogas e nos Bórgia.

— As mulheres às vezes são um pouco esotéricas.

— Hoje não se saíram tão mal. Lembra-se de Simón de Pavía?

— Não, coronel. Era um conselheiro de San Martín?

— Era o astrólogo do rei da França. Convenceu Carlos de que os astros o haviam destinado a ser o líder das cruzadas contra os infiéis. E também de que a certa altura poderia invadir Roma. Bórgia, aquele grandessíssimo filho da puta, já era o papa Alexandre. Subornou o astrólogo com uma fortuna e conseguiu que Simón de Pavía manipulasse o rei. Se Bórgia não o tivesse feito, as tropas francesas teriam arrasado o Vaticano. O rei da França, mal aconselhado, pensou na possibilidade de se apoderar de Roma, que julgava fácil, curvou-se perante o vigário de Cristo e chegou a um acordo. Subornar o astrólogo. Genial, não acha?

— Está tentando me dizer alguma coisa?

— Não me diga que você não vê uma relação entre o Império Romano, a Itália dos Bórgia e a máfia siciliana.

— Sim, vejo uma tradição da política argentina.

Ele pega o binóculo e percorre a margem oriental.

— Falta pouco — resmunga e continua pilotando.

As gaivotas voltam, nos acompanham outros veleiros e lanchas e chegam a bordo novos odores. Por esta tarde, não haverá mais aulas de história.

Desço e faço dois cafés instantâneos em xícaras de aço. Leio no convés o romance de Paternain e fumo, enquanto o perfil da cidade vai se definindo à distância. O sol está se pondo, prestes a derramar aquele laranja sobrenatural na água e na terra, quando o velho mete a proa no porto desportivo. Diviso o farol com sua baliza vermelha e me divirto como voyeur, olhando pelo binóculo os domingueiros em barcos a motor e a vela e os turistas na margem. No fim, o coronel pega as amarras, prende bem a embarcação, acende algumas luzes, anda de um lado a outro atarefado, dando novas ordens. Seu fiel grumete colabora pesadamente. Quando tudo parece preparado até para resistir a um vendaval, Cálgaris desce, coloca um disco de Marsalis e pega no armário uma garrafa de Talisker. Serve dois copos com gelo e tira o lenço de seda do pescoço. Saboreamos “a turfa, defumada e salobra, com notas de algas marinhas”. Não sou um grande degustador, mas percebo que é especial.

— “Uma mulher está sempre comprando algo” — cito.

Colocamos os cotovelos na mesa, dentro daquela caixa reduzida de metal e madeira e sobre o suave balanço das ondas do porto. Enfim estamos a salvo do vento e dos olhares. Verdadeiramente a sós, cara a cara. E o coronel parece acusar certa fadiga. Sei que depois de um curto descanso tomará uma ducha, voltará a trocar de roupa e sairá para jantar com a amante. Sei que se hospedará em sua mansão no centro histórico e que me deixará nesta suíte claustrofóbica e com este romance de Paternain. Mas, antes, teremos um acerto de contas.

— Também há uma relação entre a política, a máfia siciliana e os cartéis de droga — diz ele e se desculpa. — Veja bem, essa gente não precisa só de proteção política, Remil. Também vem comprar segurança operacional. Fazem uma licitação e a Bonaerense os corteja.

— Bragoni.

— E não será o único.

— Sem o apoio da polícia, não vai dar.

— Pois bem. — Ele dá de ombros e termina o copo. — Onde você viu que temos uma máfia mais organizada que a polícia?

Serve-se de outro uísque duplo e volta a olhá-lo contra a luz. Roda um pouco o copo, cheira o Talisker, toma um golinho.

— Todas essas remessas famosas foram apanhadas por acaso, ou porque não pagaram suborno. Ou porque pagaram às pessoas erradas.

— Bragoni manobra por fora, mas com ordens de dentro.

Ele concorda com a cabeça e roda com o dedo o pouco gelo que resta no copo. Acendo outro cigarro. Pergunto:

— E que jogo nós fazemos?

— Nós? — pergunta ele, como se tivesse encontrado por acaso o próprio cadáver. Sorri para mim, com pena. — Nós entramos na licitação.

Agora estamos nos encarando, calibrando as reações. Se neste momento o coronel solta uma gargalhada, eu me desarmo e o mando sonoramente à merda. Mas o coronel se mantém absolutamente sério.

— Por quê? — Quero saber.

Ele apenas pisca. Tem um pequeno derrame no olho esquerdo. Toma outro golinho e pega o cachimbo.

— O governo está nos estrangulando, quer fechar a base Chacabuco — diz ele, fazendo as contas com os dedos. — A Casa pede que nos autofinanciemos, mas faz isso para nos foder. Tem inveja e desconfiança de nós. E, o mais importante, eu virei um velho fraco e substituível. Precisa de mais motivos?

— Sim, preciso.

— Se não fizermos, outro fará. E se deixarmos passar, somos uns imbecis e estamos liquidados.

Tomo o que me resta de um gole só e volto a me servir. Só se ouve o ruído dos copos, os rangidos do barco e os arranhões da vareta de limpeza. Cálgaris retira as cinzas com a colherinha, mete a vareta, coloca o tabaco, comprime e volta a acender. Faz com a lentidão de sempre. Mas desta vez a mente não vaga por aí. Está concentrada na gravidade dos argumentos.

— Só oferecemos nosso serviço para a primeira fase — acrescenta ele, como quem se desculpa. Ouvimos no silêncio o estalido do isqueiro, a cabine se enche de fumaça. — E depois eles que decidam se querem continuar conosco, ficar com Bragoni ou combinar as forças. A primeira fase é a construção dos trilhos. Mais tarde veremos quem vai pilotar o trem.

— Vamos traficar cocaína, coronel?

— Não, vamos apenas proteger a Mona Lisa.

Não me surpreende que ele se lembre da anedota: tem uma memória prodigiosa. Apago a guimba, cruzo os braços.

— Não entendo bem qual é a diferença — digo.

— Estes não são pistoleiros, são gerentes. Querem fazer uso da gestão empresarial e precisam de um chefe de segurança. Nesta fase, é só isso. Você terá de confiar em mim. — Ele sorri.

— A lealdade dos samurais — ironizo.

Ele abre os braços, como quem se exime de responsabilidade. Não pronunciamos nem meia sílaba ao longo de três minutos e meio. Depois disso eu me levanto, subo a escada meio trôpego e me esparramo no convés. O ar fresco me livra um pouco do álcool, da fumaça e da verdade. Não tenho dor na consciência, nem sou moralista. Não acreditem que seja isso. Trata-se de algo mais complexo, uma mistura de contrariedade, uma sensação de estar encurralado. Não foi apenas Cálgaris que entrou em decadência.

A decadência é esse tobogã dirigido pelos jovens: a partir de agora as coisas são assim, vovô. E a velhice consiste precisamente em não poder escolher e em ter de se assimilar à força a esse bando de ignorantes modernos que metem na sua nuca um revólver do futuro. Acabou-se o que era doce. Ou gosta ou vai embora, ou se adapta ou morre.

O velho reaparece de roupa trocada e penteado, e com um lenço novo. Veste o casaco acolchoado e joga um sobretudo para mim. Apoia-se em um cabo, olhando a lua cheia e as constelações.

— Perdemos, Remil — diz ele. — Perdemos, como na guerra.

Depois salta para o embarcadouro e anda pelo píer de mãos nos bolsos, fumando as preocupações. Cubro-me por uns minutos com o sobretudo e olho a lua. Depois desço e me sirvo de outro copo, e ainda outro. Leio sobre a perseguição da goleta corsária e o veleiro português. Adormeço com o vaivém do rio e com uma profunda tristeza no coração. Quando acordo, sinto dor até nos dentes. Preparo três cafés seguidos, tomo um banho de água fria e saio para andar pela cidade. É um domingo radiante de baixa temperatura e, ao me voltar para trás, vejo com outros olhos o barco que nos trouxe. Pela primeira vez, descubro que se chama Aubrey.

Há grupos de turistas o dia todo em todos os pontos cardeais. Alguns são insuportáveis, me dão vontade de praticar tiro ao alvo com eles. Atravesso a avenida e ando pelo calçamento colonial de pedra, paro pela enésima vez na igreja, caminho pelas praças e ouço os tambores de uma murga. Atravesso a porta da cidadela, demoro-me na ruazinha dos suspiros e visito os museus. Especialmente a casa doada por Brown. Subo a escada e me entretenho com a grande coleção de mariposas, o gliptodonte e o grande tigre-dentes-de-sabre. “Maus e filhos da uma puta, passamos a vida limpando a bunda deles e agora nos deixam de lado”, penso por uma estranha associação. Estou muito aborrecido. É preciso ter muito cuidado comigo quando chego a esse nível de cabeça quente.

Almoço em um restaurante onde dois guitarristas flamencos tocam com sotaque charrúa. Tiro a sesta ao sol no pasto, perto da muralha. E retorno ao Aubrey com um enorme desânimo. “Vou embora daqui, mas levarei muitos comigo”, penso em voz alta, enquanto desmonto a Glock, limpo e volto a montar. Para homens como eu, o problema não é o que deve ser feito (fazemos o necessário), mas o motivo que nos obriga. E acreditem em mim: no clima da política, não há muita gente agradecida, mas o mundo dos serviços é cheio de traíras.

Ao final do novo entardecer, não me resta nada além do desenlace da caçada e um copo tímido de Talisker. Não posso evitar a pontualidade britânica: às oito e meia, tomo um banho e visto uma camisa e um casaco preto. Encontro graxa e passo quinze minutos dando brilho nos sapatos. Estou parado no píer quando Cálgaris se aproxima num elegante paletó esporte e dá uma olhada em mim.

— Bom, bom — aprova e me dá um tapa nas costas.

Também me pede que pegue sua maleta. Deixou perto da cama, trancada com um sistema digital sofisticado de três combinações. Já voltou a ser noite em Colonia. Há música e vozes por todo lado. A lua está oculta: nuvens densas avançam do rio. A iluminação do restaurante do Yatch Club de Pescadores confere ao lugar a impressão de um transatlântico no escuro. O coronel reservou uma mesa na lateral. Sentamo-nos lado a lado de forma que nosso convidado ocupe, de frente para nós, a cadeira junto da janela.

O velho aceita a carta de vinhos e começa a examiná-la com espírito crítico. Desanimado como estou, pergunto a ele quem estamos esperando.

— Nuria — diz o coronel sem erguer os olhos. — Nuria Menéndez Lugo. Não sei se a conhece.

Juro que fiquei menos nervoso em alguns tiroteios. De novo meu coração bate forte, como se minha vida estivesse em jogo. Até agora, Nuria era uma figura abstrata feita de vozes gravadas, fotos furtivas e objetos perdidos. Às vezes nem parecia real. Mas neste momento entra pela porta com uma saia de antílope que chega até o peito do pé, combinada com botas e casaco de couro. Olho para ela como se fosse um fantasma ou uma celebridade distante. Ela tira o gorro e faz uma pergunta a um garçom. Quando os dois se voltam para olhar o salão, já estamos de pé e Cálgaris lhe faz um sinal. Ela sorri, assente, e começa a caminhar por entre as mesas. Descubro que é um pouco mais alta do que eu imaginava, e está muito maquiada. Não consigo evitar certa comoção íntima. Chamem, se quiserem, de excitação. Mas não acredito que seja algo mais do que isso. Sinto sem cheirar, com a memória, Chanel Chance.

A mulher e o coronel seguram-se pelos braços e trocam dois beijos no rosto. De cara, Cálgaris decide chamá-la pelo nome. É estranho ouvir da boca desta mulher o nome “Leandro”, que não é pronunciado na Casinha. Quando o velho me apresenta, diz que sou Remil, sem esclarecer se isso se trata de um apelido, nome ou sobrenome, e sem explicar que diabos estou fazendo ali. Ela então estende a mão para mim, me olhando de cima a baixo, fazendo um exame visual rápido e prático, sem sentimentos, e de imediato conclui que não sou ninguém; assim, tira a jaqueta de couro, pendura em um cabideiro, senta-se junto da janela e se dispõe a jantar com o dono do circo.

Veste uma blusa de seda branca e um colar de pérolas. Não me esqueço de que tenho em meu apartamento, dentro de um estojo de veludo bordô, um colar idêntico. Cálgaris já está lhe contando a história da uva tannat, aquela viagem a partir do sudeste da França aos vinhedos do leste. Sugere que experimentemos uma combinação com o cabernet sauvignon. Ela, naturalmente, aceita a proposta e não deixa de comentar o quanto aprendeu sobre os vinhos da região nas últimas semanas. É evidente que gosta de ouvir a própria voz.

Para não estragar o tannat, Cálgaris também sugere um espaguete com um molho forte, ou uma carne assada. Ela prefere a massa e o coronel a imita. Peço um churrasco malpassado que não importa a ninguém. A conversa não se desvia do vinho e me enche de impaciência. Vejo que ela come sem apetite e aceita que Cálgaris leve o diálogo para o que chama de “a situação argentina”. E dá a impressão de que nunca entraremos no assunto, porque ela faz um longo desvio sobre o que viu e leu a respeito da política e dos negócios. O coronel tampouco toca no prato, mas isso não parece importar para ele. Eu, por minha vez, faço um grande esforço para não devorar a carne toda durante o monólogo. De repente, Nuria pega a bolsa e pergunta ao coronel se ele se importaria de acompanhá-la ao píer. Quer fumar. O convite não é extensivo, assim fico sozinho com esta carne gelada extraordinária, vendo pela janela como a espanhola fuma um Camel e passa frio, e como o velho enche o cachimbo e fuma cheio de si, sob a luz da lua. O monólogo agora é do coronel. A espanhola está de braços cruzados e faz desenhos imaginários com a ponta da bota no chão. De vez em quando ergue os olhos e fita o rio escuro, fuma, solta uma baforada e pronuncia uma frase. Cálgaris definitivamente tem as rédeas ali. Demoram tanto que o garçom se aproxima e me oferece esquentar os pratos em um micro-ondas. Não resta nada do meu. Digo que já pode retirar, que nem a senhora nem o cavalheiro vão reclamar o espaguete.

— Será que chove esta noite? — pergunto.

O serviço de meteorologia afirma o contrário, mas essas nuvens de última hora não são um presságio nada bom. Saboreio com rancor outras duas taças do tinto e espero que voltem. Eles retornaram e não perguntam por seus pratos, nem me dão nenhuma desculpa pela demora. Não têm por quê. São dois imperadores selando um pacto na torre de um castelo e eu, um centurião anônimo que monta guarda nas portas. Não percebo, à primeira vista, ter mudado alguma coisa no olhar, nem na atitude da rainha. Mas noto que Cálgaris está menos diplomático, como se tivessem ganhado intimidade ali fora.

— Remil conhece muito bem o amigo Bragoni — diz ele de pronto.

Ela faz um esforço para me olhar. Vejo que a seda às vezes fica transparente e tento adivinhar sua lingerie. Provavelmente usa um corpete branco. Nossos olhos se encontram francamente pela primeira vez. Cálgaris, à sua maneira, está contando a operação secreta da up 63. Nuria não se abala, nem para o bem, nem para o mal, mas agora não deixa de observar o rosto e as mãos do centurião. Percebo que não está desacostumada a ouvir histórias truculentas, nem façanhas policiais.

— Defina-o em duas palavras — fala comigo de chofre, e demoro um pouco para entender que se dirige a mim, referindo-se a Bragoni.

Dou um pigarro e digo:

— Traiçoeiro e negligente.

Pela primeira vez, aparece-lhe um sorriso.

— Essa impressão eu tive. — Ela balança a cabeça. — Negligente. Como é possível confiar em um homem que fez tamanha besteira? Como entregar sua Ferrari a um vilão que se deixou ser preso?

— Pode ser que nesta fase você não precise de Bragoni — intervém o coronel. Usa um tom filosófico que em geral tem por objetivo esconder sua sagacidade. — Mais à frente, porém, você se verá obrigada a dar uma fatia do butim a seus chefes. Os autônomos não prosperam na Argentina.

— Se devo dividir os ganhos, por que não fazer o negócio integralmente com eles? — Nuria não morde a isca de Cálgaris e devolve na mesma moeda.

A resposta é tão óbvia que o coronel a deixa flutuando no ar. Limita-se a abrir e fechar os braços. Os dedos das mãos se cruzam.

— Estamos andando em círculos. — Ela olha as próprias mãos. Tem vários anéis e um Rolex Presidente no pulso. — Em uma coisa você tem razão, Leandro. Não é hora de força bruta, e sim de criatividade.

O garçom traz o cardápio de sobremesas. Ela o rejeita sem abrir e pede um cafezinho. Não podemos pedir outra coisa. Nuria não ergue os olhos da toalha; brinca com um saleiro que ficou para trás, mas é como se estivesse pesando que destino dar a uma peça de xadrez. O coronel não interrompe seus pensamentos. A galega gosta tanto de ouvir a própria voz que desaparece em seu silêncio. Muda de posição quando chegam as xicrinhas. Cálgaris termina rapidamente o café e me pede a maleta, que tenho escondida entre a minha perna e a da mesa. O velho põe a maleta nos joelhos, entra com o código digital e a estende, destrancada, porém fechada. Age de maneira discreta, deixando a maleta em uma cadeira vazia, junto da bolsa de couro. Nuria pergunta com seus olhos negros do que se trata.

— Há uma antiga tradição em nosso serviço — explica o coronel, acariciando o bigode amarelado. — Sempre que um presidente novo chega à Casa Rosada, seu dossiê lhe é entregue.

— Seu dossiê?

— Tudo que foi investigado sobre ele, a família e os amigos.

— Que cortesia estranha. Mais parece uma ameaça.

— Tenho certeza de que achará esses relatórios da inteligência muito ilustrativos. — O coronel coça os olhos. — Apenas tenha em mente que é material bruto e que algumas transcrições são malfeitas. Nós a investigamos porque também nos preocupamos com a qualidade de nossos sócios, doutora.

— Sei — diz ela, mas não parece verdadeiramente surpresa nem ofendida. — Invadiram minha privacidade.

— Não tivemos alternativa — digo, e ela me olha de banda. Há um toque de ira e outro de curiosidade neste dardo envenenado.

— Talvez possa avaliar melhor nossa capacidade operacional, doutora — acrescenta o velho, que lhe mostra um pouco os dentes. — Remil a acompanhará até seu hotel.

— Não é necessário, fica aqui perto.

— Eu insisto.

O coronel paga a conta com dinheiro uruguaio e nos levantamos todos juntos. Ajuda Nuria a vestir a jaqueta de couro, e quando vou pegar a maleta na cadeira vaga, a mão de Nuria chega antes.

— Obrigada pelo jantar, Leandro — diz ela, voltando a me ignorar. — Prefiro andar sozinha. Pelo menos enquanto me decido. Ou enquanto assim posso fazer sem correr riscos.

— Como quiser, madame — diz inesperadamente Cálgaris e aperta sua mão. Ela não dedica a mim nem este último olhar. Vemos que ela bate os saltos no escuro, até o movimento do centro histórico. Cai um chuvisco. O velho reacende o tabaco e eu, um Parisienne.

— O que acha? — Ele me pergunta.

— Aqueles relatórios vão dar insônia — digo, encostando-me em um corrimão. — É orgulhosa e desconfiada, e talvez não nos perdoe por isso.

— Vai ficar muito cabreira. — Ele ri. — Mas, veja bem, não coloquei na maleta apenas nossos relatórios. Também pus as fichas de Pico e Parisi. Para que ela veja que boi puxa o arado.

— Sim, mas está se esquecendo, coronel: ela vai ficar roxa de raiva com a parte das astrólogas. A compradora compulsiva, os complexos e toda aquela besteira. E vai se enfurecer quando perceber que tivemos algo a ver com o roubo na Juncal. E vai reagir, isso eu garanto. É muito inteligente.

— Uma vez conheci uma mulher que era obcecada pelas mãos dos escultores. Deixavam-na cheia de tesão. Sabe por quê? Porque pensava: “Se esse sujeito é capaz de fazer essas obras de arte com essas mãos, o que não faria com meu corpo”.

— A natureza feminina?

— E a arte da guerra.

Ele me dá um último tapinha e anda com as mãos nos bolsos do casaco.

— Um ataque surpresa — diz enquanto se afasta.

— Que seja total — respondo.

Ele não se vira, continua andando, mas ainda ouço sua voz no escuro:

— Total.

Jogo a guimba no rio e volto ao Aubrey. Ainda passo duas horas lendo um romance de Dudley Pope. Ao acordar, o chuvisco continua. Preparo um café e o tomo ouvindo rádio e olhando pelo binóculo o horizonte enevoado. Depois visto um moletom e saio para correr. Preciso vestir o capuz porque a chuva fina é fria e penetrante. Corro quinze quilômetros pela margem e pela calçada, e ao chegar ao veleiro encontro a maleta encostada no convés. Saco a Glock e a empunho, pego a maleta e desço com extremo cuidado. Menéndez bebe o próprio café. Está sentada à mesa com o livro de Pope aberto no glossário de termos navais. Veste a mesma roupa da noite anterior, como se não tivesse pregado o olho, ou como se dormisse vestida. Ou como se não tivesse tido tempo, esta manhã, de dedicar nem um minuto que fosse a seu esmerado vestuário. Parece um pouco mais pálida e cansada, apesar da maquiagem em ordem. Porém, seu cabelo sutilmente arruivado não sofreu danos. Nuria não se assusta quando me vê descer encapuzado, com a pistola na mão. Outro sinal de que esses olhos escuros e brilhantes têm milhagem e presenciaram a violência mais de uma vez.

— Creio que lhe devo um pedido de desculpas — diz ela em um tom apenas irônico, e vejo que sua voz se mantém controlada. — Ontem à noite não sabia com quem estava jantando. Nenhum de meus maridos me conheceu tão fundo.

Às vezes a uma frase mortal pode se seguir um tiro na fuça, mas não me parece que hoje estamos nesses limites; assim, travo a arma, deixo a Glock a meu alcance, baixo o capuz de Unabomber e tiro o casaco. Ela continua tão controlada e elegante que faz com que me sinta suado e maltrapilho. Ofereço-lhe um suco de laranja. Ela não agradece. Preparo um copo gelado e tomo. Agora Nuria não para de me olhar, como se estivesse compensando a grande indiferença noturna. Faz um gesto para a maleta e me diz:

— Seu chefe é muito hábil, sabia que, me entregando seu dossiê, compensaria um pouco o tremendo ódio que você me provoca, soldadinho, por andar fuçando minha vida.

Então o velho filho da puta entregou a ela meu dossiê secreto. Não se pode confiar em ninguém.

— De qualquer forma, a informação é útil — diz ela, tranquila, e toma o resto do café. Uma careta prenuncia um bocejo, seus olhos estão caídos. — É sempre conveniente conhecer os pontos fracos de um candidato.

— Fracos? — pergunto como se não soubesse.

— O relatório psiquiátrico o desqualifica. Você tem um parafuso a menos, soldado. Ou algo menor.

Gorda vagabunda. E como é possível que eu tenha deixado passar esse texto fundamental? Nuria pega um Camel e acende. Coloca um cotovelo na mesa, com o cigarro aceso no alto.

— Eu não confiaria tanto nessa psiquiatra — digo. — Não consigo acreditar que você tenha autoestima baixa, insegurança e sensação de vazio.

Nuria dá uma gargalhada. Assente como se eu tivesse acertado na mosca e dá outro trago no Camel. Depois fecha o livro e bate a cinza no cinzeiro de metal. Quando levanta o queixo e o cabelo se acomoda, sinto uma onda de admiração. Uma onda erótica.

— E suponho que não pode me devolver as bijuterias e joias que comprei com meu dinheiro. Porque, sabe de uma coisa, soldadinho? Gosto muito do dinheiro e faço o que quero com ele.

Balanço a cabeça em negativa. Não posso devolver nem mesmo o colar de pérolas do estojo bordô. Termino o suco e entendo que a mulher veio desabafar e que para ela o assunto não está encerrado. Se assim fosse, não teria nem mesmo o trabalho de me encarar. Talvez Cálgaris estivesse certo ao pensar que a mulher sentiria o início de uma bronca irreprimível e depois a tentação de usar essa arma poderosa a favor dela. Se são capazes de cometer essa violência, quanta violência poderiam cometer por mim?

— Mas o que mais o desqualifica são essas medalhas por heroísmo — diz ela, mordendo um lábio, como se uma grande dúvida a entristecesse. — E que no íntimo você pense ser um herói.

— Infame — acrescento num tom acre. — Um herói infame.

— Ainda assim, um herói. — Ela toma ar, como se precisasse. Dormir mal tira o fôlego. — Pelo que li, você dedicou todos esses anos ao lado sujo da política. E a essa altura deve ter mais calombo na pele que uma tartaruga das Galápagos. Mas este negócio é outra coisa, soldadinho. E gostaria de saber verdadeiramente o que você pensa.

Estou meio surpreso. A moral nunca foi o meu forte.

— Para sua informação — diz ela, agressiva. — Não produzo, não consumo e nem julgo aqueles que o fazem. Eu transporto o produto, soldadinho. Sou uma empresa de transporte com seguro. Nada mais do que isso.

— E eu sou aquele que protege a rainha do transporte — replico e dou de ombros. — Sou eu quem cuida do seu rabo, rainha.

Nós nos olhamos com gravidade por seis segundos completos, depois ela se joga para trás e dá uma gargalhada. Aponta para mim os dedos que seguram o cigarro e dá a entender que voltei a acertar.

Me han traído hasta aquí tus caderas, no tu corazón — canta baixinho. Depois é ela que dá de ombros. — E o que faria se começasse amanhã mesmo? — pergunta.

— Colocaria um escudo protetor em seu correio eletrônico e lhe daria linhas fixas e móveis novas e seguras. Instalaria um sistema de alarme e outro de câmeras de circuito interno em seu escritório e em seu apartamento. Sugeriria que alugasse um Audi A7 com blindagem de nível cinco. Eu seria seu motorista e teria de me dizer todas as manhãs qual seria nossa rotina.

— Muito barulho por nada — diz ela, pensativa. — É tudo muito prematuro.

— Neste meio, a concorrência gosta de cortar o mal pela raiz.

Agora a dra. Menéndez Lugo fica sem fala. E isso já é muito. Especialmente considerando seu amor pelos monólogos. Vejo seus cílios subindo e descendo, no ritmo das ideias. Descarto que seja por medo. Acredito adivinhar que sente uma espécie de nostalgia. Como se as férias tivessem terminado.

Ela joga a bituca no cinzeiro e se empenha muito em amassá-la no fundo. Depois pega a bolsa e o gorro e se levanta. Acompanho-a ao convés e a ajudo a saltar. Antes de partir, ela para de olhos fechados sob a chuva fina e veste o gorro. Não olha para mim quando fala.

— Volto esta tarde no Eladia Isabel. Diga a seu chefe que enviarei a ele uma mensagem de texto com minha decisão quando chegar a Buenos Aires. — Não espera resposta e não se vira para uma despedida. Anda lentamente pelo píer como se a chuva não a molhasse.

Tomo um banho e almoço a bordo uma salada de atum e ovos com uma Corona, lendo os relatórios da inteligência. Sinto certa vergonha das idiotices que Maca escreve sobre minha concepção muito pessoal da ética e sobre o “emocional reprimido”. Surpreende-me que eu não tenha conseguido uma aposentadoria precoce. O dossiê de Javier Pico é muito mais interessante. Há dez anos, era um funcionário público menor. Hoje tem uma ilha no Tigre no nome de um testa de ferro. É um hotel cinco estrelas, com spa, quadras de tênis e um parque de vinte mil metros quadrados junto do rio Carapachay. E está construindo no terreno dos fundos outras vinte cabanas. Na Casa, garantem que foi aliado político de um dos suspeitos no caso da alfândega paralela, embora seu sobrenome não tenha chegado ao processo judicial. Lembro-me de um brigadeiro que se suicidou misteriosamente, de um comissário baleado em um trem, de outro policial que levou uma bala na cabeça. Pico continua vivo, e na riqueza. Tem talento.

Quando menos espero, o coronel chega. Estou lendo o relatório da senadora Parisi. É apaixonante. Um manual do poder. Uma conjunção de todos os trabalhos da política com as maracutaias mais obscuras das corporações. Entretanto, Tana tem boas intenções e muitas vezes as realiza. Dá vontade de votar nela.

— Estou meio atrasado e temos vento contra — diz Cálgaris, de novo imperativo. Tem bafo de Talisker e outro derrame no olho.

Ajudo-o a preparar o veleiro e a largar as amarras. O chuvisco se esvaiu, mas a névoa persiste. O coronel me pede o binóculo e consulta os instrumentos. Zarpamos há alguns minutos, seguimos a mais de cinco nós, e a vela principal e a genoa estão a meio mastro. O vento nos inclina para estibordo e as ondas balançam o Aubrey. Faço mais café, visto o gorro de mendigo e tento começar uma conversa com o velho. Mas ele não responde: parece preocupado com a navegação e com o tempo. Talvez esteja meio bêbado e não queira distrações. Abandono-me ao passeio e ao tédio. Consigo uma manta e durmo um pouco na intempérie. Cálgaris me acorda para pegar a garrafa térmica.

— Vinte e cinco nós — anuncia com um sorriso.

Parece mais desperto, mais sóbrio e mais otimista. Enquanto tomamos um mate, comprovo que a névoa se dissipou e que um sol tardio atreve-se a lançar os últimos raios.

— Do que vocês falaram? — pergunta, embora imagine tudo.

— Minha saúde mental a diverte muito — respondo.

Ele ri sem vontade. Conto a visita de Nuria em quatro frases. Parece não importar nada a ele. A não ser pela notícia de que encontrará uma resposta definitiva quando estiver pisando no porto de Olivos e abrir seu celular.

— Fui dormir tarde, quase de madrugada, e sonhei com um quadro enorme, no estilo de Velázquez, mas talvez durante seu período italiano — diz ele como se eu conhecesse história da arte. Sinto também uma espécie de calafrio: nunca, em trinta anos, Leandro Cálgaris me confessou um sonho. — Nesta fase, tinha deixado para trás o tenebrismo de suas obras anteriores e os corpos saíam precisos, e não como meras extensões das sombras. Em sua viagem iniciática à Itália, Velázquez ficou fascinado por Rubens. Mas, então, aquele quadro tinha uma visão particular, aquele mesmo pulso. Chegou a enganar um especialista. Em primeiro plano, havia uma dama branca. Uma mulher feita de giz. Tinha uma presença imponente e ao mesmo tempo sinuosa. Como eu imagino Lívia, a mulher de Augusto e mãe de Tibério.

— A envenenadora — digo.

— Repito: não foi pintada como a retrataram os informantes do Império, nem tendo como modelo as imagens que criaram depois de convertida em deusa. É algo inteiramente subjetivo: não era Lívia, mas em meu sonho eu sabia que se tratava dela. E que aquela brancura radiante não era giz. Em segundo plano, de perfil e entre cortinas, insinuava-se a sua cara, Remil, e a espada romana que empunhava na mão direita. Estava protegendo a imperatriz, mas também é possível interpretar que estava a ponto de degolá-la. Era uma postura ambígua. E perigosa.

— E que lugar o senhor ocupava nesta pintura, coronel?

Cálgaris recorre de novo ao binóculo e avista por fim a margem e os edifícios de Buenos Aires. Ainda estão distantes, mas já passamos da boca do canal Mitre. Vira suavemente o leme para bombordo. Joga o gorro para trás e tira por um instante os óculos para esfregar os olhos. Parece exausto.

— Que lugar? — responde sem sorrir e recoloca os óculos. — Era eu que estava pintando.

Chegamos a terra com as últimas luzes da tardinha, e Cálgaris toma um banho antes de desembarcar. Ofereço-me para levá-lo a seu duplex na Recoleta, mas ele me anuncia que vai esticar as pernas, jantar em Olivos e dormirá no Aubrey. Sente falta do balanço e da solidão. Pego o celular para ele, que dorme apagado junto de seu nécessaire e do revólver 38 Special de Langley. Ainda estamos no convés quando ele o liga: com vários toques, o telefone acusa as chamadas que chegaram e as mensagens de texto. O coronel passa por alto quase todas e se detém na última. Agora sorri como um lobo, levanta a cabeça e o devolve a mim. A mensagem de Nuria é muito curta e brilha nas sombras do porto: “Quero Remil”.