v. A dama branca

O calor não deu trégua em todo fevereiro e parece que março será de temporais. De fato, agora mesmo caem umas pancadas a cada duas ou três horas e o sol volta a sair. Ainda assim, não há cancelamentos pelo mau tempo neste fim de semana prolongado no Delta. Somos apanhados no porto de Tigre por uma lancha veloz e depois de um tempo entramos no rio Carapachay. Nuria se deleita observando embaixo da lona a rotina dos vizinhos da margem. Não faz comentários, tem no rosto óculos escuros Versace que endurecem as feições. Mas de vez em quando noto que sorri como quem dá uma pincelada mínima, quase imperceptível. Voltou inexpressiva de Madri e, imagino, com a tarefa de me pôr em meu lugar e não dar margem a intimidades. Às vezes fico tentado a pedir a Palma que volte a grampear os telefones para ver o que diz, para não ficar tão no ar. Mas me contenho: isso seria passar dos limites com ela. Cálgaris prometeu que nunca mais usaríamos nosso equipamento para espioná-la. Sei que ninguém acreditou de todo nessa promessa, mas também sei que não sou eu que a quebrará sem permissão.

A questão é que a advogada se fechou em copas e não quer mais confraternizar com seu cão policial. Aceitou que eu a buscasse no Ezeiza com o Audi blindado, mas não fez nenhum comentário de alegria ou admiração ao ver essa bala prateada: só quis dirigir ela mesma até a rua Juncal para saber como se sentia. E também guardou para si sua opinião. A partir desse dia, todo o verão quente evoluiu para uma frieza absoluta.

Wila e Rossi se mantiveram ocupados com os trabalhos na engarrafadora, e nós cuidamos da seleção do pessoal. Um dos candidatos por acaso era um velho X9: o intendente recriminou o comissário por essa operação vagabunda e o chefe se desfez em desculpas. Jurou que não sabia. Cálgaris me pediu que varresse também o círculo íntimo do intendente. Palma agiu com rapidez e nos apontou uma suspeita. Uma mulher que ganhara a confiança do cacique, primeiro militando nos bairros, depois lhe fazendo companhia nos atos, finalmente convertendo-se em sua assessora mais fiel: até levava seus filhos à escola. A questão é que mandava informações secretas de seu Hotmail. Era uma agente infiltrada na Federal. Palma descobriu que ainda aparecia com nome e sobrenome no plano de saúde da polícia. Cálgaris mostrou as provas: o sujeito não conseguiu acreditar, armou um rebu com choro e gritos e a despediu, fazendo com que o escândalo não chegasse à imprensa nacional. A imprensa local é inteiramente comprada por publicidade da prefeitura.

Alheia a essas investidas, Menéndez ocupou-se durante toda a viagem com a detecção de novos nichos. “Mesas bambas”, como ela mesma chama. Pico recomendou que contratasse uma consultora específica, e esta passou a ele informações de pequenas e médias empresas com mercados reais ou potenciais na área de exportação. Todas compartilham o mesmo destino: estão na lona. Nessas oito semanas, a galega assumiu o trabalho de sobrevoá-las como uma ave de rapina. Mais insolventes, mais notificações judiciais, mais balancetes no vermelho. Falou com empresários modestos com problemas financeiros ou simplesmente quebrados. Procurou examinar os antecedentes de cada um deles para ver se entravam na categoria “não importa o que vier, desde que seja agora”. E quando registrou um tico de falta de escrúpulos, mandou que analisássemos a fundo, até a medula. Isso aconteceu pelo menos duas vezes. Tivemos que instalar o Spyware e armar vigilância fotográfica e perseguições de moto a um fabricante de móveis industriais e aos sócios de uma exportadora de carvão vegetal com depósitos em Buenos Aires. Utilizei o Serralheiro para entrar com gazuas em um apartamento de um deles, que por acaso era viciado em crack e zoofilia. Esses pecados menores importavam menos a Nuria do que a mim. Bem diferentes foram os resultados que obtivemos com uma varredura completa de dois novos candidatos a assistentes em tempo integral. Nos dois casos, a falha em questão garantiu-lhes o emprego: surgiram problemas judiciais vinculados a empresas fantasmas. Os rapazes haviam escapado por um triz, mas não aprenderam a lição. Os colaboradores perfeitos de sua nova empregadora. Cálgaris supervisionou as pesquisas, mas não me deixou recorrer aos arquivos da Casa, como era de costume.

— É preciso fechar tudo que pudermos, Remil.

Esses dois meses intensos e imperativos só tiveram uma espécie de impasse quando acompanhei Nuria à Costa Galana. O formigueiro humano das praias de Mar del Plata assombrou a Mona Lisa. Ela se hospedou na suíte presidencial para estabelecer negociações, sem testemunhas incômodas, com o principal acionista de uma empresa de pesca que possui vinte barcos e opera nesses portos e também na Patagônia. E pediu que o Audi dormisse no estacionamento do hotel e eu em uma pousada mediana a dez quadras dali. Pude nadar no mar e correr como quis, e até dormir na areia. O resto do tempo, passei no saguão, vendo a cara de quem entrava e saía e relendo um velho livro do Preston sobre a Guerra Civil espanhola. A morena nadava na piscina, comia no La Bourgogne, conversava com García Roldán por telefone e tinha seus debates com o capitão Ahab a portas fechadas, longe da multidão insolente que depredava a cidade. Nas três noites, pediu-me que a acompanhasse ao cassino. Por um bom tempo, jogou blackjack e bacará. No último dia, perdeu muito dinheiro na roleta e nos caça-níqueis, mas com elegância, sem a menor careta de contrariedade.

Só abandonou seu papel na estrada, quando voltávamos a duzentos por hora. Estava lendo o jornal, largou-o de lado por um instante e perguntou a mim:

— Acredita realmente que estou em perigo, soldado?

Fiquei sem fala, de emoção: a rainha pedia a opinião profissional de seu súdito.

— Ainda não senti nada — respondi, sem desviar os olhos da estrada. Tive a impressão de que ela sorria.

— Os sensores não registram movimentos sísmicos?

Fiz que não com a cabeça. Ela pensou em alguma coisa e voltou a levantar o jornal.

— Mas não falta muito — acrescentou num tom despreocupado.

— Com toda certeza não.

Esse foi o diálogo mais íntimo que tivemos desde 15 de janeiro. Agora, como sempre, estamos em silêncio ao avançar pelo rio Carapachay até o quilômetro 11 ou 12. Até o hotel que Javier Pico mandou construir, com seu salário de funcionário público, em um terreno gigantesco, cercado de juncos e coberto de bosques. O piloto do táxi aquático avisa pelo rádio que estamos chegando e Nuria olha atentamente o píer, a praia pequena, o prédio que assoma atrás das árvores densas. Sai primeiro e é interceptada por uma recepcionista que lhe dá as boas-vindas. Um mensageiro entusiasmado se encarrega de sua volumosa mala de rodinhas e de minha bolsa de viagem Adidas. O piso de madeira do cais estende-se terra adentro, atravessa um parque com árvores anãs e termina no grande saguão. Há cartazes dizendo que é proibido fumar, mas Nuria acende um Camel e preenche sua ficha. Olho pelas janelas e diviso uma área de bangalôs em construção. O hotel está vazio, duvido que já tenha sido inaugurado. Ainda assim, os camareiros andam como se estivessem fazendo um ensaio geral e passando por algum tipo de prova. Desmancham-se em cortesias exageradas. Há uma música ambiente new age, e nos convidam na entrada para tomar uma taça de champanhe, que eu rejeito e a patroa a leva erguida pelo corredor. Entro com ela em um quarto com vista para um córrego interior e revisto brevemente as instalações para saber se está tudo em ordem. Depois o mensageiro me mostra meu quarto, claramente menor, com vista para uma varanda cuja pintura ainda estão terminando.

Guardo a roupa no armário e passo a mão pelas cadeiras, olhando pela janela as quadras de tênis e a piscina. Em seguida, desço uma escada e passeio por esses lugares com as mãos nos bolsos, fingindo tédio. Vejo em seguida Javier Pico correndo de um lado para o outro e ajudando a cobrir a rede. Está vestido de branco e tem uma munhequeira Nike e uma raquete Wilson. Sua mulher é alta, magra, elegante e canhota: tem o cabelo louro natural preso num rabo de cavalo, e é visível que tem dentes muito brancos e feições clássicas. Olho seus peitos, as coxas elásticas e douradas, a cintura; parece de fato o que é: uma modelo quarentona que se retirou das passarelas não faz muito tempo. Noto que os dois estão muito concentrados e nenhum dos dois abre grande vantagem. Também noto que jogam a sério, como se ganhar ou perder fosse algo muito importante.

Na beira da piscina, esparramado nas espreguiçadeiras, cada um envolvido com sua música e isolado do universo, os dois filhos estão comendo batata frita e bebendo refrigerante gelado. Embora sejam de sexos distintos e devam ter quatro ou cinco anos de diferença, parecem gêmeos. Dois adolescentes estranhos, obesos e saturados que dormem ao sol, aproveitando esses raios fracos entre uma chuva e outra. Dois atletas geraram duas focas. Tenho certeza de que a gorda Maca tiraria muitas conclusões sobre esta família exemplar.

Ainda espero um pouco no hall pela patroa, que por fim chega de short e bandana. Enchem-na de sugestões na recepção: drenagem linfática, massagem com pedras quentes, redutoras e modeladoras, ducha escocesa. Nuria marca hora em tudo isso, mas declara o desejo de antes fazer uma caminhada. Dão a ela um folheto com um mapa; é um circuito pelo parque. Não faz objeções a que eu a acompanhe. Os tênis ficam cheios de barro, mas o ar é cheio de fragrâncias e o passeio, agradável. Vejo que na primeira volta une-se a nós um cachorro abandonado e, na segunda, dois labradores da casa. Na quinta volta, ela se senta na margem do Carapachay e faz carinho nos três sem muito entusiasmo.

— Os cachorros sempre me seguem — diz. — E quando estou menstruada e passo perto deles, latem para mim, como se ficassem furiosos ou excitados, ou como se tivessem medo. — Curvo-me para passar a mão na cabeça do órfão. Sinto que os olhos de Nuria recaem sobre mim. — Qual é sua opinião, Remil? — pergunta ela com ironia. — Fúria, desejo ou terror?

Olho para ela por uns segundos, mas guardo para mim o que penso. Ela espanta do rosto uma abelha que também a está rondando e me pede um cigarro. Acendo um Parisienne e ela tira quatro tragos. Não fuma nem a metade, joga o cigarro no rio e se levanta. Damos mais duas voltas e entramos no prédio. Os cachorros ficam do lado de fora, desconcertados, depois se dispersam. Os Pico vão almoçar. Os quatro vestem roupão branco com chinelos, e é evidente que vieram de um mergulho. Javier faz as apresentações. A mulher, de cabelo solto, é incrivelmente bonita. Calculo que para o gosto feminino seu marido metrossexual deva ser um tremendo galã e que também nessa partida secreta da beleza, nem ele nem ela querem abrir grande vantagem. Os gorduchos observam os adultos como figuras inchadas enquanto devoram as empanadas. Percebo uma leve tensão na Mona Lisa.

— Remil é meu chefe de segurança — esclarece e faz uma pausa como se fosse acrescentar alguma coisa. Mas, no fim, não fala e Pico diz que jantaremos todos juntos e deixaremos os negócios para o dia seguinte. Nuria concorda com a cabeça, mas não deixa de olhar fixamente a mulher esplêndida, que lhe demonstra um desdém sutil. Ora, ora. É um embate entre duas mulheres. Mas não disputam um macho, trata-se apenas de rivalidade. Rio comigo mesmo e imagino que Nuria agradeceria se eu a pegasse pela mão e a tirasse deste ambiente, fingindo que somos amantes. Imagino que esteve tentada a dizer que eu era algo além de seu chefe de segurança. Mas como voltaria atrás desse ridículo? Não poderia. Uma mulher extremamente frágil e suscetível por trás de uma armadura de guerreira. Que perigo para todos. Volta até a recepção, meio mal-humorada, e pede à encarregada que a leve para uma tarde de relaxamento e tratamentos de beleza. Uma tarde solitária. Não me dirige a palavra, e assim me considero livre das responsabilidades.

Os salões do spa não têm comunicação com o exterior, são uma espécie de labirinto fechado, desembocando em uma piscina coberta com jacuzzi. Entretanto, não quero ficar muito longe. Entro no mesmo corredor e à direita encontro a academia, que possui um bom equipamento. Corro na esteira, pedalo numa ergométrica, uso os pesos e faço abdominais por duas horas sem que ninguém me incomode, mas no final aparece Javier Pico com vontade de queimar calorias e puxar papo comigo. As endorfinas o deixam muito loquaz, e assim a conversa resvala rapidamente para um monólogo. Tem poder e imunidade, e isso faz dele um arrogante. Ninguém gosta dos arrogantes. Muito menos eu. Mas também é certo que habitualmente o pessoal da política, como os bêbados com o barman, abrem-se comigo. Pico é outro sujeito que queria mudar o mundo. Um amigo na faculdade o pôs em contato com um centro estudantil e o envolveu em uma campanha. Agiu com vontade e ganhou em uma tarde histórica. Depois se deu conta de que precisava de fundos para manter a posição e então entrou no negócio de escrituração e fotocópias, em seguida mexeu os pauzinhos para colocar o pai de um colega no arrendamento do refeitório. Os cartazes foram caros, mas a arrecadação lhe permitiu um bom desempenho. Era trabalhador e teve sucesso. Muito sucesso: apareceu gente do partido que lhe propôs jogar na primeira divisão. Como queria mudar o mundo, foi galgando posições e acabou aceitando uma candidatura. Para ganhar em seu próprio distrito, pediu emprestado a lojistas e donos de supermercado. Mais tarde, a empresas pequenas e médias, que beneficiou em licitações quando teve acesso a cargos mais importantes na administração pública da cidade. Como queria mudar o mundo e era economista, seus chefes de partido conseguiram para ele o cargo na Alfândega e pediram que ele militasse pela causa. Pico fez o que pediram: arrecadou sem parar. Não se pode fazer política sem dinheiro. Não é possível tirar o país da mediocridade sem arriscar o próprio rabo. Não dá para mudar o mundo sem sujar as mãos. Não dá para fazer uma omelete sem quebrar alguns ovos. Mas nos últimos tempos, a verdade é que a ilusão cresceu. Javier Pico tem o mesmo entusiasmo que tinha na faculdade, quando era um crente. Neste país, não há lugar para ninguém além de crentes ou céticos. Pico me garante que, visto de longe, ele pode parecer um cético, mas no íntimo bate o coração de um homem verdadeiramente devoto. Todo idealista precisa de uma religião. Um líder, uma ideia ou uma missão transcendental acaba com as vicissitudes. Quando se tem alguém como Elena Parisi, uma mulher perfeita com um projeto de nação, o resto são detalhes, letras miúdas. A vida se organiza numa direção e fazemos o que é preciso fazer.

— Conhece Elena? — pergunta-me por fim.

— Vi na televisão — respondo.

Balança a cabeça, passa a mão no cabelo branco.

— Uma coisa é o crescimento, outra é o desenvolvimento — explica. — Acredite em mim, essa mulher é coisa séria. Tem um verdadeiro plano nacional de desenvolvimento e coragem para torná-lo realidade. E eu participarei disso. — A quem terá de matar? Quando a fé é tão elevada, todo preço é baixo.

Ele me propõe ir ao spa. Espera por nós um massagista com copos de limonada e toalhas brancas. Passamos da sauna seca a outra a vapor. Uma, duas, três, quatro vezes. Por sorte, Pico perde a vontade de tagarelar. Depois se despede e vou tomar uma ducha preventiva na beira da piscina coberta e fico um tempo na hidromassagem pensando nos meios e nos fins. Dou a impressão de estar dormindo, mas não é verdade. Sinto que Nuria empurra a porta de vidro e hesita. Abro os olhos e vejo que está parada a três metros, enrolada em um roupão, com as bochechas vermelhas. Não por vergonha, mas por calor, e não está olhando para mim, e sim para essa água borbulhante e tentadora. Adivinho seu pensamento. Estou aprendendo a decifrar sua mente e nem sempre essa aptidão me deixa feliz. Posso sair e ceder o lugar, mas não será assim tão fácil. Quero que ela me diga: “Preciso da hidromassagem e preciso que você saia e me deixe sozinha”. Nem mais, nem menos. Assim, fico em minha banheira e ela passa um minuto inteiro ali fora, empacada na dúvida, tentando montar a frase. De repente, tira o roupão e fica de biquíni. Duas peças azuis e apertadas. Vejo primeiro a nudez de seu corpo, que ainda é harmonioso e juvenil. Não tem músculos trabalhados, nem cirurgia; não é notável, nem perfeito, mas de repente me sufoca essa brancura flexível e natural.

Ambos tentamos fingir que a situação não nos afeta. Ela fica olhando as vidraças por onde o sol se põe e eu a espero de braços recostados e abertos, fazendo um esforço enorme para não encarar cada centímetro de sua pele. Por fim, desce um pé para experimentar a água e vai entrando lentamente até os quadris. Estamos tão perto, a cena é tão íntima e ardente, que não consigo evitar uma ereção.

Para não ceder a uma visão que possa descobri-la, Nuria mantém o olhar perdido. A vontade que tenho de comê-la ali mesmo me faz tremer. Apalpá-la, sem lhe dar tempo, e acariciá-la debaixo da água, devorar sua boca, penetrá-la junto da borda. Mas fico em meu canto, olhando-a sem descaramento, embora talvez com certo regozijo. Ao fundo, só se ouvem o motor suave e a água agitada, e uma bobagem hiponga tocada com violões e flauta transversal. Desta vez, fecho os olhos de verdade e tento vencer a excitação e a ironia. Estou nadando no rio, suspenso nesse limbo que alcanço quando contenho a vontade.

— E o que é isso? — Ouço-a perguntar de repente. Abro as pálpebras. Sua voz produz um eco de caverna e ao ver seu rosto fresco percebo que recuperou a segurança e que está apontando minha tatuagem de coração.

Toco, meio surpreso, a águia.

— A prisão — respondo.

E sigo o impulso, fico de pé para que ela veja o tronco cheio de cicatrizes, dou a volta para que aprecie a espada e a caveira. Também para que me veja quase nu e saiba com quem está falando. Ela não diz nada, mas agora sinto seus olhos em meu corpo. Saio da banheira e vou ao chuveiro, e deixo a água gelada cair sobre mim. Quando acabo de me enxugar com uma toalha úmida, continuo com a impressão de que a dama branca não desviou os olhos nem por um minuto. Olha agora, que eu retribuo o olhar. Recosto-me em uma espreguiçadeira e vejo que acendem as luzes do parque. Nuria enfim sai da hidromassagem e se protege com um roupão. Faz tudo com muita rapidez, como se estivesse trocando de roupa na janela. Quando empurra a porta para sair, dá um meio giro de corpo.

— Não precisarei de você esta noite — declara num tom neutro e sai. Fico muito sério por um momento, olhando meus pés enrugados. Depois, dou uma gargalhada.

Do quarto, peço um sanduíche de frango e uma vodca, e leio um livro sobre a guerra das Gálias. Lá pelas onze, vou ao parque e dou uma longa volta no escuro para verificar se está tudo tranquilo. Os cachorros não se dão ao trabalho de me seguir. De uma árvore, nas sombras, vejo que Menéndez e Pico discutem, sem que eu possa ouvir, atrás das vidraças do restaurante. Ela fuma seu Camel, ele brinca com o celular e passa a mão mecanicamente no cabelo branco. Procuro um ângulo melhor para ver se a loura está com eles. Encontro-a em segundo plano: esplêndida, cabisbaixa e entediada, passando o dedo na borda de sua taça de champanhe. Os gorduchos foram dormir, estão na internet ou assistem ao canal pornô. Começa a chover de novo, atravesso os jardins da frente e me sento um pouco na escada de madeira para sentir o cheiro da umidade recente. Estou acendendo um Parisienne quando percebo o barulho da porta e passos no deque. É a loura, que vem de jeans e blusa, botas de cano alto e um lenço de seda para proteger o pescoço e os ombros.

— Que porcaria de tempo pegamos — comenta, mas não estou certo se fala do clima. Encosta-se na balaustrada da varanda e olha a natureza. As gotas que caem cortam os refletores e dão uma dimensão real da garoa. Ouvimos as rãs e os grilos, e o leve açoite da chuva.

— Sua chefe disse que você não se sentia bem, que passou mal por tantas horas no vapor — observa ela, tirando uma mecha de cabelo do rosto.

— Tenho cara de um sujeito fresco e sensível ao vapor?

Ela ri com os dentes e os olhos. É uma mulher radiante e ainda assim tem um brilho opaco. Carrega dentro de si um certo tédio e um sofrimento que não consegue dissimular nem com todo aquele incrível arsenal de top model. Mas lhe falta algo que Nuria tem de sobra. Algo que não consigo definir. Só o que me ocorre é que se a Mona Lisa estivesse encostada nesta balaustrada, já estaria cercada por todos os cachorros da propriedade.

— Me lembra uma amiga do secundário — fala, para minha surpresa, e sorri. — Uma ex-amiga. Jogávamos tênis desde os treze anos. O tênis nos trouxe muitos problemas pessoais. Nunca fui indiferente a ganhar ou perder. Mas, para ela, era um drama quando eu ganhava. E estou falando de algo muito grave, sabe? Um transtorno, uma patologia. No início, acabava comigo, mas depois fui melhorando muito o saque e ficamos em pé de igualdade. Ela não suportava. Sempre me agredia. Criticava minha casa, minhas roupas, meu marido, os meninos. Ao mesmo tempo, não deixava de ser carinhosa. Era tudo misturado e, embora discutíssemos, nunca chegávamos ao cerne da questão.

Agora ela me olha fixamente para saber se estou entendendo. Solto dois ou três anéis de fumaça. Ela se ajeita e cruza os braços, olha o céu nublado.

— Piorou quando comecei a ganhar. Às vezes sem fazer esforço. Eu lhe dava uma surra e isso me envergonhava. Ao mesmo tempo, eu queria lhe dar uma boa lição por ser tão cretina, tão competitiva. Mas duvidava. E havia dias que eu simplesmente a deixava ganhar. Fazia com sutileza, para não passar recibo. Meus outros amigos me contavam que ela andava dizendo por aí que Javier era um corrupto e que eu era uma louca frígida que não ligava para nada. Jamais consegui confrontá-la. Só que um dia permiti que a coisa se agravasse. Para ela perceber que eu era infinitamente melhor e que pegava leve para não humilhá-la. E justo isso foi tão humilhante que ela jogou a raquete longe, pegou a bolsa, atravessou o clube, entrou no carro e deu no pé. Não respondeu a meus e-mails, nem aos telefonemas. Nunca mais a vi. Só para você ter uma ideia, isso já faz dois anos. Três meses depois denunciaram Javier por improbidade administrativa e enriquecimento ilícito. Ele era um deputado da oposição, mas havia informações sobre nós que não eram do conhecimento de ninguém. Ninguém exceto ela.

Chove forte e um vento frio agita as árvores e as plantas, trazendo respingos de água ao deque. A loura, entretanto, não se mexe. Jogo a guimba fora e aguento o aguaceiro. Depois de um dia de calor, as gotas geladas não incomodam.

— Por sorte, Nuria não joga tênis muito bem — digo.

A loura parece despertar de um sono profundo. Olha para mim com certo estranhamento. Como se não tivesse tomado champanhe, mas pentotal, e como se o soro da verdade a tivesse obrigado a cometer alguma estupidez.

— O juiz rejeitou o processo — diz ela por via das dúvidas, e volta à porta do vestíbulo. — Está tarde e sinto frio. Durma bem.

Parisi controla o Conselho da Magistratura, penso. A lealdade eterna de Javier Pico saiu de graça. É curioso como às vezes as convicções políticas alinham os planetas: você luta por um ideal, esta fé o protege, o poder blinda e além de tudo você fica rico.

— Boa noite — respondo, e fico ensopado e sozinho na escada.

Depois de um tempo entro, pergunto na recepção se a srta. Menéndez já está em seu quarto, e quando confirmam, vou diretamente ao meu, me deito e leio ainda por uma hora antes de dormir. Tenho sonhos eróticos, mas não consigo me lembrar deles ao acordar. A tempestade se afastou, fica uma neblina londrina que cobre toda a ilha. Entro no salão para tomar o café da manhã numa hora em que ninguém se levantou. Cálgaris molha um croissant no café e lê os jornais com um marcador de texto. Veio na primeira lancha da manhã. Não somos muito efusivos. Sirvo-me de um prato de frutas e um suco de laranja, e me sento à sua mesa. Trazem para mim um expresso médio sem leite. Ele pergunta pelas novidades, que não são muitas. Traço um perfil de Pico e sua mulher. Nem por um segundo Cálgaris desvia os olhos das notícias, de vez em quando destaca um parágrafo ou circula um artigo. Em pouco tempo, fico sem ter o que falar. O coronel então se joga para trás, larga os óculos bifocais sobre o jornal e procura o cachimbo.

— Sua patroa me veio com a ideia de aumentar as operações e abri-las simultaneamente — diz ele, acendendo o tabaco. — Sabe o que isso significa? Um volume jamais visto. Uma mangueira de dinheiro e um aspirador de pó. Estamos impressionados. Balduin vem de Nova York e García Roldán de Madri. Chegam no mesmo dia. É uma visita rápida, vão andar pelo circuito financeiro. Mas ainda assim teremos de protegê-los.

Os irmãos Pico aparecem no salão. Não cumprimentam, vão diretamente ao café da manhã continental. Mas não gostam das frutas. Enchem os pratos com presunto, salsicha, bacon frito, ovos mexidos. Servem-se de milk-shake, comem com voracidade.

— Hoje vamos explicar tudo isso a Pico — diz o coronel e pede à garçonete que traga outro café. — E veremos se ele tem fibra.

— Quer que eu fique à distância?

— Sim, pode ser que ele fique nervoso e vamos ter de falar bem baixo. Mas tenho uma boa notícia para você: a sra. Holguín teve alta.

Uns dias atrás, Cálgaris me telefonou à uma da manhã. O patriarca estava alterado, chorava aos gritos. Peguei o carro e saí da cidade. Holguín tem duas casas: a residência oficial e uma mansão em Acassuso. Nessa noite, tinham dado folga às duas empregadas domésticas: sua mulher o esperava com uma cena romântica. O guarda-costas mais próximo tem a mesma idade e é um velho policial de Buenos Aires com problemas de lombalgia. A pistola costuma cair do cinto. Encontrei-o branco e petrificado no sofá da sala de estar, como se tivesse sofrido uma síncope. No térreo, não havia mais ninguém. Subi a escada com a Glock em punho e avancei pelo corredor até o fundo, à suíte. Havia sangue e coisas rasgadas pelo chão, e a cama estava desarrumada. Meti o pé na porta do banheiro e me agachei para disparar. Mas não havia nenhum inimigo à vista. Somente aquele ancião acabado e virado para a banheira; o pijama tinha manchas de suor e sangue. Holguín ainda estava enroscado e descalço e, quando me aproximei, vi que havia colocado a mulher nua sob a torneira. Deitou-a na banheira como uma boneca e molhava sua cabeça, tentando reanimá-la. Virou-se para mim com um olhar estranho. Parecia um velho de noventa anos. Guardei a Glock e pedi que ele saísse. Holguín não entendia nada. Eu o suspendi pelas axilas e o arrastei para a cama. Tirei a camisa do pijama, subi suas pernas e os pés. Ele me disse que queria ajudar, que a amava mais do que tudo neste mundo. Só faltou cantar um bolero. Depois eu mesmo me agachei diante da sereia desmaiada. Tinha pulsação e também sinais de ter sido espancada. O patriarca bateu com o punho fechado, três ou quatro vezes. Mas o galo na testa era outra coisa: possivelmente, esbarrou na ponta de um móvel ou algo semelhante. Esse golpe na queda a deixara fora de combate. Os silicones boiavam na água, os lábios estavam num tom de violeta e a pele tão pálida que as sardas pareciam desbotadas e sombrias. Tirei o casaco e a camisa e levantei seu corpo com muito cuidado. Sentei-me na tampa da privada com ela no colo, como se fosse uma menina e ela estivesse adormecida em meu peito, e a enxuguei com uma toalha. Fiz o que pude. Depois a enrolei em um robe de seda e a levei para a sala de estar. Quando me viu chegar com a patroa, o enfartado pareceu recuperar alguma vitalidade. Levantou-se trôpego e me ajudou a recostar a Cinderela no sofá, onde ele mesmo se deixara cair. Não trocamos nem um gesto. Procurei a cozinha, acendi a luz, abri os armários e encontrei um uísque. Servi uma dose dupla com gelo e despejei detergente e produtos de limpeza em um balde de plástico. Subi de novo a escada e voltei ao banheiro, limpei as manchas e as impressões digitais. Antes de fazer a mesma coisa no quarto, levei o telefone para Holguín.

— Sente-se — mandei.

Como o velho continuava em estado catatônico, falei com mais intensidade. Ele quase caiu da cama. Ajudei-o a se sentar e lhe dei o uísque. Tomou um gole longo e cauterizante, o pulso tremia. Pus seu próprio celular em sua mão.

— Me dê dez minutos para terminar o serviço no quarto — disse a ele. — Depois ligue para seu comissário, conte que sua esposa teve um acidente horrível e que precisa dele imediatamente em Acassuso. Não dê nenhum detalhe. Entendeu?

Holguín demorou a assentir. Entendeu? Desta vez precisei gritar para ele se mexer. Respondeu que sim, mas aos espasmos. Recolhi os cacos de vidro, os objetos quebrados e o pijama ensanguentado e enfiei tudo dentro de um saco de lixo. Arrumei a bagunça e removi as manchas e os respingos. Tenho jeito com essas tarefas, embora claramente neste caso a maquiagem ficasse forçosamente superficial: não passaria pelo exame profundo de um perito independente. Mas aqui não haveria perito nenhum, no máximo policiais e paramédicos. Ninguém notaria nada de estranho, caso contrário teríamos de subornar todo mundo. Enxuguei meu suor e lembrei a Holguín que estava na hora de dar a merda do telefonema. Vigiei para que o fizesse exatamente como havíamos combinado. Apesar de aturdido, cumpriu a tarefa com perfeição. O comissário estava a caminho. E o quarto tinha uma boa aparência. Vesti a camisa e o casaco e levei o saco de lixo e o balde para a cozinha. A dona da casa, que nesse momento não era minha prioridade, ainda respirava. O veterano a velava como uma gárgula, sentado em uma cadeira Luís xv. Liguei de meu celular para um médico da Casa, um pau pra toda obra que mantemos sempre de prontidão. Expliquei, em código, a urgência em que nos achávamos. E o médico entrou em ação: conseguiu uma ambulância particular e acordou o dono de uma clínica para que preparasse leitos, sala de cirurgia e pessoal. Antes que a dança começasse, subi pela última vez ao segundo andar, sentei-me em uma cadeira e acendi um cigarro.

— Por que está acontecendo tudo isso comigo? — perguntou Holguín; o resto do copo tinha virado na colcha. O homem tinha a cabeça pendida de lado e os olhos abatidos. — Quando não é a academia, é a boate ou a galeria. Por quê?

— Porque gosta de trepar — respondo. — E gosta de trepar com muitos. Igual a você.

Agora ergueu os olhos, como se os tivesse desobstruídos pela primeira vez.

— Só que cada um fode onde pode — acrescentei.

Deu a impressão de que ia sorrir, mas não o fez. Os dirigentes eternos só amam a si mesmos, e suas carreiras costumam ser uma longa sucessão absorvente de cópulas políticas e administrativas. Maca fora mais científica. Dissera que o patriarca pusera toda a libido no poder e que a mulher comprava em outro mercado, mas com a mesma moeda. A amante, de Madri, tinha escrito que na realidade ela não o amava ou que o velho já não a satisfazia sexualmente. No mundo da política, conheci muitos casos como aquele casamento desfeito, e não estava tão certo de que se tratava de vingança, abandono, impotência, interesse pecuniário ou falta de amor. Tantos anos de cautela e de intimidade violada me faziam duvidar um pouco desses diagnósticos breves.

O comissário subiu a escada ofegando. Era um gordo seboso e sujo que devia a vida e o cargo ao excelentíssimo. Fiz um relato superficial: a baronesa escorregou e teve uma concussão cerebral e o barão sofreu uma descompensação por amargura. Precisamos de patrulheiros e motociclistas para abrir caminho; estão nos esperando no hospital com as luzes acesas. O comissário recorreu a seu rádio. Começou a distribuir ordens enquanto andava pelo quarto e observava dissimuladamente a cena do crime. Depois se sentou na cama e começou a consolar Holguín como se fosse um filho. Percebi que tudo ia sair bem. E assim foi. Acabamos todos no hospital. A mulher em terapia intensiva e o marido em um quarto particular. O comissário, é claro, cuidou para que não houvesse nenhuma denúncia policial. O dono do hospital deixou que nosso médico fizesse e desfizesse, e depois dos exames e tomografias, um neurologista insone me explicou que não havia dano importante e que a paciente recuperara a lucidez, embora estivesse sedada. No momento, não podia falar com ninguém. Garanti que pusessem para mim uma cadeira junto a seu leito, para passar com ela o que restava daquela noite.

Sentei-me, cruzei os braços e cochilei. As enfermeiras vinham de hora em hora para controlar o soro e a evolução. Os médicos se revezavam para verificar seus reflexos e dar uma olhada nela. Ela continuava dopada, de boca para cima, sem saber onde estava e o que acontecera. Por volta do meio-dia, levaram-na para outros exames. Ao voltar, parecia mais desperta. Ofereceram uma sopa e a sentaram para lhe dar algumas colheradas. Na terceira, olhou para mim como se me reconhecesse. Havia se formado um enorme galo na testa, que avançava pela maçã esquerda do rosto.

— Foi um acidente doméstico, que pode acontecer com qualquer um — disse lentamente, sustentando o olhar.

Ela ficou uns instantes em silêncio, olhando-me de boca aberta. Acompanhava muito lentamente, mas tenho certeza de que se encontrava em pleno uso de suas faculdades.

— Seu marido está muito preocupado com a senhora, ele a ama muito.

Ela não se mexia. Apenas piscava. Dei a ela a última colherada da sopa e limpei os cantos de sua boca com um guardanapo. Em seguida, segurei sua mão e a acariciei com intensidade, como se eu fosse um bom amigo. Agora ela estava retraída e triste.

Na parte da tarde, empurrei a cadeira de rodas aonde Holguín exagerava sua convalescença e levei o velho patriarca até a terapia semi-intensiva. Ele se levantou com facilidade e lhe deu um leve beijo na boca, começou a falar aos sussurros e se inclinar sobre ela. Terminou encostando a bochecha no colchão, a seu lado, envolto em lágrimas e convulsões de amor e arrependimento. Ela passou a mão por seu cabelo e olhou por cima. Por cima de seu homem caído. Eu não poderia descrever o que havia naqueles olhos. Medo, zombaria, rancor, surpresa, aceitação. Não sei. Talvez tudo isso junto. Fechei a porta com suavidade e deixei os dois a sós. No corredor, o comissário me perguntou se eu conhecia a piada do bêbado e da feia.