vii. A rainha do peronismo caviar

Embora a senadora tenha dons naturais, uma atriz de telenovelas fracassada a instrui há dois anos na arte da atuação e da retórica. Dizem os frequentadores da Siete Alazanes que Tana, depois do jantar esplêndido, não deixa de presenteá-los com um stand up no salão de jantar com lareira e vista para os jardins. Para o general, são monólogos políticos de Tato Bores, atualizados e modificados com habilidade por ela mesma, ou textos famosos de Seinfeld e Woody Allen. O relatório da Secretaria sobre Elena Parisi é longo e colorido. Ela foi investigada várias vezes, e o fizeram a fundo. A gorda Maca participou com um surpreendente artigo em que detalha que ela não teve filhos e que “seu marido é um pusilânime invisível com bons ancestrais e fins decorativos. Nem mesmo dorme com ela. No início, acreditava-se que era lésbica, mas se trata apenas de uma pessoa assexuada”. Em seguida, Maca explica que mulheres como ela manifestam indiferença pelo sexo, apesar de poderem sentir atração amorosa. “Não estamos diante de um transtorno mental, mas de uma opção”, acrescenta Maca. “O que na medicina é chamado de um desejo sexual hipoativo. Podem sentir atração por outros homens ou mulheres, podem até se apaixonar, mas não precisam responder sexualmente a esse desejo.” Um especialista em linguagem não verbal, que viu por horas a fio seus discursos gravados, sustenta que Elena Parisi é “narcisista e rígida”, mas que ao mesmo tempo consegue transmitir emoções e a sensação de que seus motivos são sempre desinteressados. Diante do microfone, mantém o corpo inclinado para a frente, como se estivesse pronta para correr. Faz uso do que se chama tecnicamente “batutas”, gestos que marcam o ritmo do enunciado, e com o tempo soube limar dois sinais reveladores: o sorriso torto, que expressa arrogância, e os movimentos descendentes do dedo indicador, que representam seu caráter autoritário. Como Nuria, a senadora apoia os cotovelos na mesa, em uma clássica “postura dominadora”, e as duas mãos com as palmas para baixo, uma por cima da outra, que revelam “autocontrole”.

Depois de horas de viagem e de leitura, surpreende-me pouco vê-la sair de seu helicóptero com suas botas de couro, o casaco de pele e o chapéu australiano de palha. Talvez o mais significativo sejam seus olhos azuis, porque os fotógrafos não fazem justiça a eles, e também as rugas debaixo das maçãs do rosto e em volta da boca, que ela não consegue esconder nem mesmo por trás dessa maquiagem pesada e ao mesmo tempo sutil. É acompanhada de seu assistente e de uma barata perfumada que apresenta como “Fierro, meu assessor de imprensa e de comunicação”. O encontro da “rainha do peronismo caviar” com seus convidados se dá a poucos metros do helicóptero, na parte dos fundos do castelo, junto do lago, e antes de passar para a varanda coberta. É uma sexta-feira quase de outono, fruto de uma tempestade que encheu os campos de barro e baixou bruscamente a temperatura, e os convidados vestem roupas informais, embora um pouco quentes. Nuria tem um casaco de couro, botas altas, um lenço vermelho no pescoço e um chapéu preto, com cinto e óculos Gucci, estilo aviador. Cálgaris, por sua vez, parece um autêntico civil: calças, com cardigã verde e um chapéu de palha do tipo caçador. Os outros estão mais esportivos; alguns saem para recebê-la de jeans e boné de algodão, camurça ou poliéster. A exceção, naturalmente, é a mulher de Javier Pico, que parece uma modelo de um anúncio de serviços turísticos rurais. A senadora e a dama branca são mulheres interessantes, mas, por simples comparação, a loura baixa metade da pontuação das duas. Tornam-se senhoras comuns.

Pico está arrebatado pelo sol e age como apresentador oficial, mas Elena se adianta e abraça Osvaldo Balduin.

— Há quanto tempo! — exclama com um sorriso. — Está cada dia mais jovem e bonito.

Balduin responde com timidez, enquanto os outros formulam brincadeiras educadas. Cálgaris também não precisa de apresentações, tira o chapéu e faz uma mesura, como se fosse um cavaleiro do século de ouro espanhol. Pico volta à carga com Nuria e é propositalmente inflamado. A Mona Lisa avança de braços abertos e Parisi a examina como se a estivesse pesando, depois lhe dá dois beijos no rosto. Nuria apresenta García Roldán, que beija a mão da rainha, e nesse instante de vacilação o advogado sente a necessidade de sair da berlinda. E aponta para mim. Pico não dá meu nome, afirma apenas que sou o chefe de segurança da dra. Menéndez. Fierro preenche o vazio:

— Remil — fala ele. Agora Tana me olha de novo e estreita um pouco mais os olhos azuis.

— É um prazer — diz no automático, e sinto sua mão macia na minha. Sinto sua pele apenas por um segundo, porque ela retira de imediato, pega Nuria pelo braço e anda na frente da manada rumo ao interior do castelo.

Fico na varanda, recostado na balaustrada. E Fierro faz o mesmo. Como sempre, o baixinho está de branco e tira sua cigarreira de metal, oferecendo-me um Benson. Aceito e ele o acende com seu Zippo dourado. Se não pode tê-lo como inimigo, junte-se a ele. Fierro apoia metade do quadril na balaustrada e balança uma das pernas. Fumamos em silêncio, para não estragar o momento. Por aqui, não dão o prêmio Pulitzer, mas Fierrito bem que o merecia.

Primeiro há um chá com bolinhos, geleia e doces em uma sala de estar cheia de sofás, poltronas e armas antigas. Falam só generalidades. O andamento da economia, a crise europeia, o modelo de acumulação de matriz produtiva diversificada. A dona da casa tem a voz cantarolada, embora Pico não fique para trás. Elena pergunta a Balduin sobre o sistema financeiro e este passa a mão pela careca e balbucia algumas certezas técnicas. As perspectivas não são boas. Cálgaris fica ensimesmado, fumando seu cachimbo em um canto. A loura acompanha a conversa com uma apatia lânguida.

Mais tarde, Tana nos leva a uma visita guiada pelo castelo. Tem trinta e cinco quartos, seis salas especiais, nove banheiros, duas cozinhas, pátios e escritório. Um dos salões é um museu gauchesco, com peças da guerra da independência, das lutas federais e das batalhas contra os povos autóctones. Outro é dedicado à Austrália, sua cultura e política, documentos históricos, reproduções de seu folclore, objetos aborígenes, um livro de poemas de Henry Lawson, uma primeira edição de um livro de Adam Lindsay Gordon, uma maquete que reproduz o Royal Exhibition Building em Melbourne, e várias pinturas impressionistas. Cálgaris fica particularmente maravilhado com alguns originais da escola de Heidelberg: paisagens do rio Yarra e bandidos ao ar livre. O relatório da Casa garante que algumas dessas obras foram compradas no mercado negro e que valem muito dinheiro.

— Sou devota da idiossincrasia e do projeto desenvolvimentista da Austrália — confessa Elena a sua plateia. — Os australianos têm muito a nos ensinar. Eles também se veem como o celeiro do mundo. Mas, ao contrário de nós, conseguem se sair bem. — Sua voz é grave e alta, e ela faz o possível para que o sotaque cordobês saia suave e sensual, quase imperceptível.

— Uma coisa é o crescimento, outra, o desenvolvimento — acrescenta o funcionário da Alfândega, fazendo-lhe eco.

Terminamos a visita no terraço e no mirante. O entardecer dura um tempo. Servem bebidas para criar um clima. A fazenda tem campos cultivados, vacas e cavalos, e cento e vinte espécies de árvores. O pai da senadora, quarenta anos atrás, trouxe de Paris um paisagista para que fizesse a base do paraíso. Depois Elena foi acrescentando espécies de sua escolha. Ela nos libera para que nos preparemos em nossos quartos. O jantar será às dez da noite no salão principal. Quem tiver vontade de ler, é convidado a pegar livros na biblioteca. Só vamos ao local Cálgaris e eu, e passamos quarenta minutos vendo as estantes do chão ao teto, subindo e descendo a escada, comentando alguns títulos históricos e nos surpreendendo ao ver que esta é uma coleção incompleta e caprichosa. Cálgaris escolhe reler As vidas paralelas de Plutarco, e eu, A taça de ouro, de Steinbeck. Não podemos evitar alguns comentários maldosos e ameaçadores sobre Fierrito. Aproveito o tempo para dar uma volta nos arredores, mais para respirar o perigo do que por outra coisa: a senadora tem um pequeno exército de seguranças e um sistema de alarme muito sofisticado. Enquanto Nuria estiver junto de Elena, ficará completamente protegida.

Parisi conta também com um chef espanhol que parece Arguiñano e serve pomba flambada com cogumelos na chapa. Elena faz com que ele venha dar sua aula sobre a quantidade de bacon, os dentes de alho e a preparação do molho. Fala da caça de pombas de asa manchada, picazuro e pomba-rola. Um caçador, com um chamariz e um rifle calibre 12, pode matar cem pombas por dia. Como são uma praga, não existe limite legal.

— Nosso amigo Rada — diz a senadora com outro sorriso — é fanático por esse esporte. Está em uma fazenda do norte da província e há pouco me disse que está cansado e passará a noite por lá. Pede desculpas, mas amanhã sem falta se juntará a nós para as atividades. — É um trabalhador muito esforçado, podia ter dito. Mas não diz. Não há ironia nem surpresa em suas palavras.

Todos trocaram de roupa e, embora o banho e o perfume sejam patentes, é possível ver também que a viagem os cansou. Nuria não olha para mim nem por um momento em todo o jantar. Está sentada à direita da rainha e participa com sobriedade da conversa, que inclui a política nacional, as anedotas e traições que surgem na Casa Rosada, a história de Córdoba, os verdadeiros costumes dos camponeses, o valor da arte, a família Parisi, o locro e as bebidas locais. A sobremesa é servida na sala de estar com uísque e cafés, e pela primeira vez Parisi se permite aceitar um cigarro. Ninguém tem o mau gosto de falar em cocaína, matadores de aluguel, tráfico e lavagem de dinheiro. Esses assuntos prejudicam a digestão.

Vejo que Cálgaris leva Fierrito pelo braço até a varanda e ficam lá um bom tempo a sós. Parisi, García Roldán, Pico e sua mulher combinam uma partida de tênis para a manhã seguinte. Balduin fica enviando e recebendo mensagens com seu Blackberry. O assistente, o chef e os criados de Elena foram dormir. Nuria diz que está cansada e inesperadamente me pede que a acompanhe até seu quarto. Os homens continuam seu jogo, mas a senadora e a loura não perdem essa subida precoce pela escada para o segundo andar. Ao chegar ao corredor, Nuria se vira e me pergunta se revistei o quarto. O que ela quer? Dar a entender a esses babacas que tem um caso ou verdadeiramente quer tê-lo?

— Revistei esta tarde — respondo. — Mas posso ver se tem alguém embaixo da cama.

Ela sorri para mim.

— Nem sonhando — fala e aponta meu quarto com a cabeça. — Não desça, cão fiel. Fique por perto. Isto parece um romance de Agatha Christie. Um convidado pode amanhecer com uma faca nas costas.

Fingir um caso, para que as mulheres sofram um pouco. Mas à toa, porque a anfitriã não está nem aí se a nova sócia trepa ou não com seu guarda-costas, e não falta diversão para a loura: o metrossexual deve se jogar em seu corpo com a mesma precisão e frieza com que saca na quadra. Mas talvez as duas não sintam nada e tenham algum êxtase secreto por essa falsa possibilidade amorosa. Não dá para saber. Dou de ombros e vou para meu quarto. Tranco-me ali, lendo Steinbeck, e logo durmo.

Tenho imagens nítidas de piratas e barulho de abordagens quando os galos me acordam. Visto moletom e tênis, percorro o castelo na ponta dos pés, desço a escada e vou para a varanda. Há camponeses silenciosos e um movimento lento, porém abafado. Também quatro seguranças com fuzis e rádios, postados em diferentes ângulos. Corro em volta da mansão e depois da laguna, e tomo caminhos laterais, armando um circuito que não me afaste, mas exija bastante de mim. Depois de uma hora e meia indo e vindo entre araucárias, pinheiros e eucaliptos, e de dar voltas e mais voltas sob o olhar de meus colegas, entro no castelo pela porta dos fundos, subo a escada sem encontrar ninguém e no quarto me dedico ao alongamento, a abdominais e flexões de braço. Depois tomo uma ducha e desço para o café da manhã. Ao me aproximar da sala, ouço cochichos da rainha com a dama branca. Estão sozinhas, tomando café e comendo torradas com marmelada. É visível que flutua entre as duas mulheres um ar de cautela e uma falsa cumplicidade. São parecidas e diferentes. As duas usam roupas esportivas, mas nem por isso renunciam à maquiagem. Parisi dá bom-dia e me convida à mesa.

— Posso tomar o café na cozinha — digo.

Nuria me lança um olhar homicida. A senadora faz uma expressão de leve confusão; olha rapidamente para sua convidada.

— De forma alguma, querido — diz a espanhola e aponta uma cadeira. Uma morena simples de uniforme azul me serve o café puro e pergunta se desejo tomar um suco fresco.

— Pode trazer dois — digo com um sorriso.

Não me meto na conversa das mulheres, só ouço enquanto tomo o café, como pão caseiro com queijo de cabra e me distraio com os jardins. Logo se junta a nós o coronel, que parece ter saído de um sarcófago, e os Pico, prontos para Wimbledon. García Roldán desce fazendo piada com o match point. Só quando todos terminam e estão prontos para a ação, chega desalinhado e de olhos caídos Osvaldo Balduin, que gosta muito de dormir: tem a marca do travesseiro no rosto que não barbeou. Não responde às brincadeiras que lhe fazem, fica na cabeceira da mesa, como um menino de rua diante de sua caneca de café com leite. Desperta em mim uma mistura de pena e alerta, como se fosse um doce garotinho do inferno.

Nesse momento, Ernesto Rada chega em um furgão preto de vidros polarizados, seguido por dois carros de apoio. E Parisi sai para lhe dar as boas-vindas e fazer as apresentações. É um gordo analfabeto e grosseiro, de rosto quadrado e corpo redondo. Veste um ridículo traje de caçador africano, bermudas cáqui e calçados de golfe. Transpira até quando sente frio, e sua mão está sempre úmida. O grupo se detém para ouvir uma história dos pombos, enquanto seus criados retiram a bagagem, os rifles e alguns exemplares mortos para o chef. É uma conversa floreada e meio insolente, há gargalhadas e réplicas, e no fim Rada declina de acompanhá-los às quadras. Fica tomando o café da manhã com o coronel, que de imediato o monopoliza. São os únicos que ficaram à sombra do castelo. Os outros, como turistas desembestados, estão ansiosos para aproveitar as instalações e o dia de sol.

— E não precisamos de Remil? — pergunta Rada a Cálgaris. Fica repentinamente sério. Olha para mim como se eu fosse um guerreiro tútsi.

Cálgaris passa a mão por seus ombros e o acompanha para dentro, explicando por que minha falta não será sentida. Acompanho Nuria Menéndez às quadras, que ficam embaixo de imponentes plátanos e casuarinas. Há também um solário com uma piscina aquecida de raia olímpica. Balduin tira a camiseta e, com os óculos pretos de homem mosca, vai direto para a borda da piscina com teto de vidro. O tronco e as pernas brancas são depilados e na omoplata direita tem tatuado um dragão estranho. Vejo que uma assistente lhe oferece protetor solar. Essa brancura exige meio quilo de Dermaglós com fator de proteção oitenta.

Nuria e eu nos sentamos na arquibancada enquanto os quatro tenistas experimentam raquetes e começam a bater bola. A senadora e o advogado contra o funcionário público e sua mulher. Parisi ainda tem pernas boas e reflexos rápidos. Cede o saque ao sócio e se agacha junto à rede. Parece uma fêmea de guepardo em postura de caça. São quatro pessoas muito competitivas, e esta não será uma partida amistosa.

Quando o jogo começa, Nuria se levanta e anuncia que quer caminhar. Eu gostaria de acompanhar o desenrolar deste combate, porque é possível aprender muito sobre as pessoas vendo como lutam por cada ponto e como lidam com a resignação, mas não tenho alternativa senão acompanhá-la. A galega vai na frente. Seu passo é acelerado, quase um trote. Andamos por trilhas de terra junto a lavouras, subimos morros e penetramos em bosques frescos, repletos de aves, borboletas e perfumes.

— Como é Rada? — pergunta ela de repente, limpando o suor acumulado em uma ruga que divide o nariz do lábio superior.

— Um peronista de terceira geração — respondo.

— E o que isso significa?

— Os da primeira geração foram heroicos, os da segunda, revolucionários, e os da terceira são tremendamente ricos.

— Está generalizando, não é? — pergunta. — Está usando seu maldito cinismo comigo?

— Estou tentando não te chatear.

— Deve ser muito hábil: ganha todas as eleições do sindicato.

— São sistemas fechados — explico. — Não tem como perder. Esses caciques só são derrubados por juízes ou pela doença. Ninguém mais. E posso lhe dizer que os juízes são menos eficazes do que as coronárias.

— Parece que você o conhece bem.

— Em meados dos anos 1990, teve graves problemas com a lista Laranja.

— Laranja? — Ela se surpreende. — O que é isso?

— Trotskistas.

— O que quer dizer com “graves problemas”?

— De vez em quando os trotskistas dão um susto nos burocratas.

— E vocês, tocam que apito nessa confusão?

— O de sempre — digo e baixo inutilmente a voz: estamos no meio do campo, observados pelo gado que pasta e seguidos por sabiás e perdizes. — O coronel pediu que eu me infiltrasse em um grupo de terceirizados. O problema durou um mês em meio. Ou dois. Houve uma passeata e eu fiquei encarregado de que as coisas desandassem. Acidentes, correria, pau comendo, gás lacrimogêneo. Quinze acabaram presos, entre chefes e militantes. Saíram rapidamente, mas Rada manipulou os fatos a seu favor, houve intervenção do Ministério do Trabalho e de um tribunal do trabalho, e os caras da Laranja ficaram com ódio outra vez.

— E o que você sabe de trotskistas, Remil? — Nuria se curva, rindo.

— São pessoas interessantes — digo. — O coronel me obrigou a ler várias biografias de Trótski nos anos 1980. “As massas revolucionárias em ascensão jamais perdoam a covardia e a traição.”

— Ora, ora, você é um imbecil letrado. — Ela se espanta, como se só tivesse descoberto isso agora. Recupera a seriedade e fica me olhando. É uma avaliação geral, com um sorriso suspenso. — E agora, o que vou fazer com você, Remil?

Como não gosto de tropeçar duas vezes na mesma pedra, fico calado e parado, perto de uma cornija. Com uma vertigem daquelas. Ela balança a cabeça e pisca por um instante, depois suspira e continua caminhando. Anda com energia, mexendo os braços para trabalhar a flacidez. Nós nos afastamos muito do castelo, e assim a volta leva quase uma hora. Nuria não fala nada até chegarmos. Elena Parisi a espera com um gesto de avaliação, como se estivesse vendo se nós só nos dedicamos a um passeio. Os Pico venceram com tranquilidade a primeira partida e depois houve uma troca de pares, e o resultado foi mais apertado. Javier ganhou junto com sua mulher e voltou a ganhar com a chefe. García Roldán parece contrariado, como um amador que de repente topa com um profissional. Duas pickups nos levam a uma segunda casa, que fica a dez mil metros dali, no limite externo mais próximo da sede. Somos recebidos com um churrasco criollo. Carne crucificada em ferros e gaúchos servindo aqui e ali chouriço e frios. Muito vinho e champanhe gelado. Ao fundo, dois camponeses tocam chacareras, zampas e vidalas.

Parisi, Cálgaris e Rada estão afastados, conversando. Balduin ouve as contas que os Pico estão fazendo com Nuria. Fierrito anda sozinho, respirando o ar da planície com uma taça de Dom Perignon na mão. García Roldán se aproxima de mim e me fala dos embutidos. Em um segundo, deixa essa banalidade e me afasta um pouco dos outros.

— Em minha ausência, quero que você não deixe de vigiar Javier — diz ele. — Não podemos confiar em um sujeito com esses antecedentes.

Acho que foi doloroso demais para ele perder na quadra e não perdoa a humilhação.

— Dependemos de alguém que só está unido a nós pela grana — acrescenta. E tem o extremo cuidado de que sua voz continue fleumática para não despertar suspeitas. Dá as costas aos companheiros e mordisca o chouriço em pão francês, mas tenho certeza de que não consegue saborear. — Sua verdadeira lealdade é para com Elena. Todo o resto pode ser corrompido. É mais perigoso que um mercenário e um idealista juntos. É um cruzamento entre essas duas espécies. Não estamos convencidos de que exista lealdade para com os outros e que as ligações de Nuria sejam unicamente utilitárias. Se estamos ligados só pelo negócio, os laços são frágeis. Precisamos de muito mais do que isso.

— Não cabem também a Cálgaris as questões gerais da lei? — observo.

— Cálgaris tem recomendação de Miami — responde ele, sorrindo com todos os dentes, e toma um gole de Rutini. — Acredita sinceramente que teríamos feito um acordo sem ter garantias? Esse velho não tem outra saída senão a nossa. É isso, ou a aposentadoria. Está unido a nós por algo além do dinheiro. Demos a ele a oportunidade de lutar pela sobrevivência.

Pressinto que chegou minha vez. Deixo minha taça na bandeja de um garçom mestiço que passa oferecendo salsicha na brasa.

— Ficamos muito impressionados ao ver como você pôs Bragoni no lugar dele — diz Roldán, limpando os cantos da boca.

— Foi uma questão pessoal.

— E é exatamente isso que nos tranquiliza. Não acreditávamos que você fosse capaz de sentimentalismo, mas com o tempo verá que nesse ofício não existem “questões profissionais”. — Ele faz aspas no ar com os dedos. — Que todos nós estamos envolvidos por motivos pessoais de ordens diferentes.

Nós nos encaramos. Uma tradução livre dos pensamentos dele poderia ser: “Nuria precisa de lealdade que vá além dos negócios”. A pergunta é até onde Nuria vai chegar para criar esse tipo de fidelidade. Lembro-me da filosofia wakashudo, os grandes xoguns e seus jovens amantes dispostos a dar a vida por eles no campo de batalha.

Nenhum dos dois prova a carne durante o churrasco. No máximo, acompanhamos Balduin com as saladas. Elena Parisi ainda conta histórias da política e do campo, que são festejadas por todos. Mais tarde, somos levados a um estábulo e apresentados ao encarregado, um gaúcho gringo de cara avermelhada, boina basca, colete de vicunha e rebenque. Preparou e selou para nós onze ou doze cavalos ligeiros de pelagem distinta. Cinco deles são marrons e avermelhados. Há também um baio, um tordo, um ruano, um palomino e um zaino. Eu fico com o palomino, que tem uma mancha branca da testa ao focinho e que é de sangue-frio. O guia monta um alazão e se coloca à frente do grupo. Marchamos a galope leve por um vale. E fazemos uma parada para que o gringo mostre os mais recentes trabalhos dos peões, que ainda estão dando um banho contra carrapatos. Mais adiante, a rainha dá uma aula de botânica junto a uma lagoa minguante. Tem flores de todas as cores. A mulher de Pico vê que estou para trás e mente para mim que sente falta dos filhos.

— Há um ano, participamos com Elena de uma longa cavalgada por Capilla del Monte, visitamos um cemitério de comechingones e subimos até os ninhos de condor — diz ela como se eu tivesse interesse. — Ver os ninhos, e ver com os próprios olhos um condor sobrevoando você de perto é uma experiência única. Pode acreditar. O silêncio parece especial. É um deus majestoso.

— Mas para seus filhos foi uma chatice — adivinho.

— Ficaram muito entediados. — Ela confirma com pena, acariciando a crina do cavalo baio que monta.

Pela segunda vez desde que nos conhecemos, tenho a sensação de que ela quer me dizer alguma coisa e não consegue. Faço um esforço para imaginar do que se trata. Ela não é boba e sabe quem somos, o que estamos fazendo. Imponho um silêncio desconfortável para que ela não tenha mais a oportunidade de preenchê-lo, mas de imediato a valquíria puxa as rédeas e esporeia para que o baio saia desse canto.

Continuamos galopando sem vontade pelo entardecer. Nuria e Elena vão na frente, conversando aos murmúrios e risos falsos. Fierrito segue atrás delas, solitário e distraído. Rada, Roldán e Cálgaris não se separam e não param de falar de operações imobiliárias e obras públicas. Agora os Pico marcham juntos e absortos, como que irritados. Balduin e eu encerramos a coluna. O financista tem dificuldade para dominar o zaino, que é extremamente calmo. É visível que Balduin está tenso e pouco à vontade fora do ambiente urbano. Porém, quer dissimular sua inépcia e dar a entender a todos que é um cavaleiro experiente e um amante da natureza. Intuo que se apoia em mim para que possa socorrê-lo ao menor percalço. Por isso mesmo inicia comigo uma conversa à toa. Aponta a rainha e diz que admira seu instinto materno.

— E nunca teve filhos — respondo.

— Não importa, age como a grande mãe de todos nós — diz ele de maneira frívola. E franze a testa. — É estranho que nem mesmo tenha adotado, agora que você fala no assunto.

Como é uma conversa à toa e sem rumo, calo a boca.

— Mas entendo que as mulheres não queiram ter que enfrentar o parto — continua, passando os dedos cheios de anéis pelo nariz. É um gesto de cocainômano, mas penso que Balduin não prova necessariamente a mercadoria que vende. — Deve ser horrível. Tenho um limiar muito baixo para a dor física. Nisso eu sou muito covarde. Minha mãe morreu no parto. E a sua?

— Quando eu era um molequinho, não tenho quase nenhuma lembrança dela.

— Um órfão — diz Balduin, assentindo. — Era o que dizia seu perfil psicológico. Um relatório muito profundo.

— E, pelo que vejo, muito popular. Por que não postam logo no Facebook?

Balduin abre um sorriso tímido. Sua timidez é ao mesmo tempo comovente e sinistra.

— E seu pai? — contra-ataco.

O sorriso desaparece. Ele leva algum tempo para responder.

— Um grande ausente, sempre esteve presente como uma sombra — responde por fim, meio na evasiva. — Rigoroso. Muito rigoroso. Exigindo tudo de mim. Olha só, ainda me esforço para que ele goste de mim. E o seu?

Sem poder evitar, olho as costas de Cálgaris. Balduin segue a direção desse olhar fugaz.

— Meu pai verdadeiro morreu de cirrose quando eu tinha catorze anos, mas outras pessoas exerceram a paternidade. Uma em especial. E às vezes também tenho vontade de matá-lo.

A gargalhada de Balduin também é tímida, feito um tiro com silenciador.

Paramos para beber água em um riacho e contemplar o crepúsculo da vida. Nuria troca impressões com os espanhóis e Pico conta, com afobação, uma fofoca à sua rainha. Com essa luz, Elena mais do que nunca fica parecida com Vanessa Redgrave naquele filme delirante de espionagem. Joga a cabeça para trás e ri de forma elegante, mas com uma sensualidade inofensiva. De longe, é possível ver que existe afeto e cumplicidade naquela dupla; qualquer um poderia acreditar que a senadora e o funcionário são amantes.

Como se lesse meus pensamentos, a loura passa atrás de mim, puxando as rédeas do cavalo, e sussurra:

— Sim, meu marido ama essa mulher. Mas não do jeito que parece.

Pego as rédeas do meu cavalo e ando alguns metros junto da esposa de Pico. Sinto os olhos de Nuria na têmpora.

— Mas o fato de ele amá-la já parece bem grave, não? — digo.

A loura balança a cabeça, dando-me razão. De repente sente um forte cansaço e inclusive acredito que seria capaz de cair em prantos, a não ser pelo fato de estar acostumada a manter as aparências e porque não se permitiria semelhante vergonha. Uma mulher tão linda. Ajudo-a a montar e começamos o retorno. Percebo que estivemos cavalgando em círculos e que chegaremos ao estábulo em plena escuridão.

O chef espanhol brilha com um bufê argentino. Salames, mortadela, queijos, petiscos à milanesa, almôndegas, grão-de-bico, tortilhas, ovos de codorna, berinjela, croquetes, salmão e patês. Abre garrafas variadas de Catena Zapata. Elena Parisi senta-se ao piano e experimenta algumas melodias de Ariel Ramírez. É um ambiente relaxado. Onde ninguém espera nada. Vou fumar na varanda, lugar preferido de Fierrito. Nós dois nos acomodamos na balaustrada e olhamos pela janela. De dentro, vem a música, interrompida de tempos em tempos, e o murmúrio do encontro.

— Contratou um especialista em imagem no Brasil — ouço Fierro falar, observando-a com a distância de quem avalia um quadro. — Há três ou quatro anos. E o diagnóstico foi tremendo. Elena tinha um grave problema de comunicação.

— Ora, vejam só.

— O pai dela, que era um italiano meio mafioso, mandara a filha aos melhores colégios ingleses. E a transformara em uma dama refinada.

— E fria.

— Ele a estragou. Porque o eleitor argentino, embora não admita, quer líderes mafiosos e calorosos, transgressores, capazes de ser duros e até implacáveis. Sabe o que o sujeito disse? Se quer chegar a presidente, precisa fazer as pazes com seu lado italiano. Foi o que ele disse.

— Mais chouriço e menos caviar.

— De fato. — Agora é Fierro que brinca com a tampa do Zippo. Abre e fecha, enquanto solta baforadas azuladas do Benson. Quando volta a falar, não desperdiça um gesto a sua ama e senhora. — Tenho um telegrama de Tana para você, Remil.

— Para mim? — Levanto as sobrancelhas. — Mas que honra. E o que o telegrama diz?

— Que a relação com ela jamais será cara a cara. Que sempre terá de passar por mim.

— E por quê?

— Por uma questão de higiene.

— Ora, veja você.

— Mas não precisa se preocupar. Não sou rancoroso.

— Mas você me conhece, Fierrito. — Jogo a guimba na grama. — Eu sou rancoroso, e é você que precisa se preocupar.

Entro na sala quando estão servindo um sorvete de champanhe e limão. Junto da lareira, a rainha improvisa um monólogo.

— A vida é dividida entre o horrível e o miserável. O horrível seriam as doenças incuráveis, as grandes tragédias e desgraças. Depois vem o miserável, que inclui todo o resto. Assim, temos de dar graças por nos sentirmos miseráveis, uma vez que a alternativa é pior.

Fala tudo isso com graça e precisão, brilhando com desenvoltura e distinção. Talvez não seja mais uma inglesa, mas ainda é uma italiana refinada do norte. A morena olha para ela com condescendência e a loura com tédio. Pico e Balduin a observam arrebatados. Os outros acompanham com atenção e aplausos.

Quando subo para dormir, Cálgaris me alcança no corredor e me informa que passarão para nos buscar às cinco da manhã. Que eu esteja acordado e vestido. Nunca precisei de um despertador. Às quatro e meia, saio da cama, visto a roupa e vejo a Glock. Uma leve batida na porta me põe em movimento. Desço com o coronel. Rada espera por nós na sala de estar silenciosa. É visível que o sindicalista está insatisfeito e dormiu mal. O gringo que nos guiou durante a cavalgada nos leva para um Land Rover branco. Saímos antes do amanhecer. O gringo dirige, mas não fala nada. Cálgaris e Rada comentam o plano operacional. Meia hora de asfalto, estrada de terra e trilha nos colocam em outro limite da fazenda. Desta vez parece o canto mais distante. O gringo para junto de uma porteira e aponta no mapa exatamente onde estamos: passando deste portão e tomando o rumo sul, virando à direita e logo depois à esquerda, saímos em uma estrada de terra e, mais adiante, em uma rodovia provincial. Rada mete o dedo para nos mostrar a conexão e o possível traçado. Depois o Land Rover circula um bosque, sobe uma ladeira e desemboca de repente em uma planície pequena. No meio do nada, tem uma pista de dois mil metros com luzes de pouso. As luzes estão apagadas, mas podemos vê-las bem porque o sol saiu e o dia logo chegou. O gringo nos avisa que o voo está atrasado e nos oferece mate. Bebemos por uma hora, assinalando os pontos fortes e fracos do plano. Rada sai para urinar quando o avião aparece no céu azul, um Cessna Citation 500. Um jato moderno que desce rapidamente, toca a pista, corre e freia a uma curta distância. Nós nos aproximamos com o Land Rover e cumprimentamos o piloto. É um argentino bigodudo de pele morena. Um tenente que deu baixa na Força Aérea e agora pilota aviões comerciais. Mostra o Cessna por dentro: os bancos foram retirados e a aeronave está especialmente preparada para uma carga importante. Afirma ter também um Hércules antigo do Exército, à disposição e em bom estado. A Chancha, como dizíamos nas Malvinas. Cálgaris o interroga a respeito dos problemas de captação pelo radar. Sobre a vulnerabilidade do Escudo Norte. O piloto surpreende com sua brevidade e didatismo: é perfeitamente possível escapar dos radares e das patrulhas. Tem a localização, as patrulhas, os horários e as falhas do sistema. Não existe inimigo pior do que um amigo.

Voltamos no Land Rover até a sede da fazenda. Prepararam uma pequena festa gaúcha com rodeio e corrida de cavalos. O piloto é apresentado em sociedade, embora sem muitas explicações. Nuria ainda está junto de sua sócia, como xadrezistas amáveis que procuram dar xeque-mate dia e noite. Os homens assistem ao espetáculo camponês e fazem piada. E a loura fica sozinha e separada. Aceito uma empanada de milho e ouço o que ela me diz.

— É bom apreciar o zoológico humano. Especialmente quando te consideram burra, não? — Sua amargura começa a me dar no saco. — Javier disse que política é crueldade e que ele é filho da crueldade — conta como se fosse muito importante. Sustento novamente seu olhar.

— Há algo que eu possa fazer pela senhora? — pergunto.

Ela fica toda vermelha e baixa os olhos. Se eu fosse um comissário de Drogas Perigosas e quisesse quebrar essa quadrilha, começaria por essa loura neurótica. É um problema em potencial. Um grande problema.

Depois do almoço, concretiza-se enfim uma reunião de negócios. Pico abre as conversações. O gringo, o piloto, Fierrito e a loura ficam de fora. Monto guarda na varanda e vejo que o chef, convertido em um camponês de trajes civis, coloca seus instrumentos em um Peugeot e abandona o barco. Quando estou preparando minha bolsa, Cálgaris entra em meu quarto com o livro de Plutarco e mostra o prólogo, assinado por um catedrático. Lê em voz alta uma frase do historiador grego: “Um exército de cervos comandado por um leão é muito mais temível que um exército de leões comandado por um cervo”.