viii. O punhal de Nuria
Passaram-se seis semanas e um dia e aqui estamos de novo, dentro do Land Rover, bebendo mate e esperando que o Cessna Citation volte a pousar na pista iluminada. Foi uma longa noite. Há oito horas, quando o avião pousou pela primeira vez, o caminhoneiro, os dois motoqueiros e o saltenho de Goose Green fizeram uma corrente humana e puseram quatrocentos pães coloridos no caminhão. Trouxemos um Volkswagen climatizado, pintado de branco e com um reforço conveniente de rebites novos. O piloto do jato estava com ótima disposição, trocou piadas em voz baixa com o gringo e aceitou um amargo. Examinei os pacotes na luz. Todos tinham impresso, para sua identificação, um nome cifrado com uma grafia estranha: Dragão. Quando o avião levantou voo, o gringo apagou as luzes e o caminhoneiro abriu algumas marmitas, nos convidou para uns sanduíches e dividiu a cerveja que mantinha em uma geladeira na cabine. Comemos todos em silêncio, ao redor dos faróis, ouvindo as aves do morro.
O caminhoneiro é sobrinho de Rada: cabelo preto de capivara e corpo de meio-médio. Não tem dois dedos da mão esquerda, mas ainda assim não perdeu a carteira de motorista profissional. Foi acusado de “homicídio numa briga”, porém, por influência do sindicalista, o processo foi arquivado. Se o pararem em um pedágio ou em uma blitz e entrarem com seu nome no computador da Gendarmaria, não encontrarão nada além dos registros particulares de um cidadão inocente. Os outros dois são ex-metalúrgicos: fazem entregas e segurança em passeatas. Os barras-pesadas do caçador de pombos. Investiguei um por um e em seguida tive de instruir os três, antes desta longa madrugada no campo.
Todos temos rádios e uma rota estrita. Cálgaris se encarregou do saltenho. É mais calado que uma pedra e deve lealdade sem fazer perguntas ao mandachuva da Casinha. O homem era suboficial da artilharia e ao voltar da guerra tentou seguir sua carreira normalmente. Certa noite, já em casa, em Llavallol, sacou a pistola e deu um tiro em si mesmo. Vê-se que também teve pouca sorte nisso. O coitado ficou três meses em terapia intensiva e depois mais dois anos no Hospital Militar, em recuperação física e psicológica. Enfim lhe deram alta e Cálgaris o recrutou de imediato. O saltenho é a pessoa mais introvertida que conhecemos, um sujeito literal, um robô. Perfeito para realizar missões de alto risco e muito rigor. O coronel quer que ele lidere sempre a equipe de transporte e que os homens de Rada lhe obedeçam sem reclamar. Mas nesta primeira incursão quem deve cantar de galo sou eu: estamos abrindo caminho e vendo como é a questão, passo a passo. Depois as coisas ficarão mais rotineiras. Se é que existe rotina possível nesse negócio turbulento.
Antes da meia-noite, o caminhoneiro liberou alguns colchonetes para que os motoqueiros pudessem tirar uma soneca, e neles estão de madrugada, quando cai a temperatura e uma densa neblina do céu. O gringo, o saltenho e eu cochilamos no Land Rover, cercados pela escuridão. A ordem é de não fumar e de ficar calado. Ao gringo e ao saltenho, não custa nada fechar a boca. Sei que não dormem e também estão nervosos. Alguns soldados tem uma fé cega nas ordens que recebem e se entregam a elas sem dúvidas ou medos. Cumprir a missão e agradar ao chefe são prioridades que estão muito acima de se manter vivos e íntegros.
Às quinze para as seis recebo uma mensagem de texto: “A tachã está na área”. Repito em voz alta para que o gringo saia do carro e ligue de novo as balizas da pista e para que o saltenho vá até o Volkswagen e acorde seu grupo. Quinze minutos depois, estamos tomando mate e olhando a neblina através de binóculos. Mando uma pergunta de meu celular: “A névoa dificulta a visão?”. Não tenho resposta. O mate fica mais amargo do que antes. Olhamos os relógios: já se passaram mais de quarenta minutos da hora combinada. A merda da neblina. No total, são oitocentos e cinco pães prensados de cocaína pura. Pesam 841.699 quilos. Custam vinte e um milhões de dólares no mercado local. Postos em qualquer país da Europa Central, valem o dobro. E a tachã não aparece. Se em trinta minutos não baixar, nem eu receber uma mensagem, tenho ordem de levantar acampamento. Levaremos a metade por uma rota alternativa. Não podemos correr riscos.
Mijo em uma árvore e vejo como a luz do amanhecer se demora pelo céu nublado. Volto rapidamente, ponho as mãos nas costas e me estico para trás. Minhas costas doem. De repente sinto uma vibração no bolso. Pego o celular e leio a mensagem: “Começa a descer”. Pego o binóculo, olho o firmamento e não desvio os olhos até perceber ao longe uma sombra e uma luz. Em seguida o Cessna vai se definindo contra a névoa branca e cinza, cresce cada vez mais sobre a pista iluminada. O barulho dos motores troa e manda para o espaço toda a nossa discrição. A tachã bate no asfalto, continua rodando e gira, parando junto do caminhão.
O gringo apaga rapidamente as luzes e o piloto desce pela escada: desta vez, parece exausto.
— Dois seguidos é demais — reclama e aceita um mate morno. Tem os olhos vermelhos e sopra o hálito nas mãos fechadas. O gringo já tem preparada comida e cama quente em uma cabana para que ele reponha a energia. Em dez horas, terá de devolver o Cessna a seu verdadeiro dono.
O caminhoneiro organiza a corrente humana, enquanto abrimos a porteira. O resto dos pães passa do Cessna Citation ao Volkswagen climatizado. Os motoqueiros pegam suas motos, que esconderam em um charco. Não quero ficar nem mais um minuto na Siete Alazanes. Cumprimento os que ficam e salto para a cabine do caminhão. O saltenho vem atrás de mim. Os motoqueiros esquentam os motores e o caminhoneiro faz o mesmo. Quando estamos todos prontos, aperto o botão do rádio e dou a ordem:
— Vamos.
O primeiro motoqueiro acelera e sai pela trilha. O segundo espera que o caminhão arranque. Quando o faz, coloca-se na retaguarda. É uma operação sui generis, percebo que no futuro trocaremos essa moto por um carro com dois homens. O saltenho tem de ir atrás, controlando o comboio e preparado para defendê-lo, se for atacado, e para fugir a tempo, se for detido. Mas desta vez fará como mandaram.
Sem tropeços nem surpresas, pegamos a estrada provincial e atravessamos o amanhecer. Não vamos a Buenos Aires, mas à Patagônia. É uma volta muito longa, porém, para a polícia, os caminhões que vêm do Norte são mais suspeitos do que aqueles que sobem do Sul. Os documentos dizem que carregamos produtos do Alto Valle, e não queremos problemas. O dia nasce, mas o sol não sai, e pelo caminho enfrentamos uma chuva forte. É melhor assim. Quando tem tempestade, os policiais e os gendarmes se entocam e são mais permissivos. O primeiro motoqueiro se adianta bastante e vai nos informando das novidades. Vejo pelo retrovisor que o motoqueiro da retaguarda veste capa com capuz. Há trechos em que praticamente não topamos com nenhum carro e momentos de aguaceiro em que o perco de vista.
Fazemos uma parada em um posto de gasolina para abastecer e nos revezamos no almoço em uma churrascaria. Praticamente não falamos. O caminhoneiro conhece muito bem a estrada, mas eu o obrigo a olhar o mapa de vez em quando. Nem uma vez o rádio toca para nos avisar de algum perigo. Parece que estamos sozinhos no mundo. A chuva nos persegue pelo resto da travessia e ainda cai ao anoitecer, quando atravessamos Neuquén e deixamos o Volkswagen em um depósito. Outro afilhado de Rada nos dá as boas-vindas e tranca a carga com uma chave. O saltenho e um dos motoqueiros podem montar guarda e ir dormir um pouco em um quarto imundo com duas camas de campanha. Nós outros nos hospedamos em uma pousada que fica em frente, onde nos dão uma comida gordurosa. Telefono para Cálgaris e explico, sem dar detalhes, que a operação não teve revezes nem novidades dignas de nota. Antes de dormir, dou uma volta pelo depósito e converso com o saltenho. Fumamos um pouco debaixo de uma chapa de metal onde a garoa ressoa, eu mexendo os braços e ele ouvindo frugalmente minhas ordens. São conselhos técnicos para os transportes seguintes, quando o guerreiro de Goose Green terá de ser o chefe do procedimento. Cuido para que o caminhoneiro e o motoqueiro não bebam demais e durmam o quanto antes. Programo o despertador para as seis da manhã e os obrigo a tomar um banho e fazer a barba, e a se servirem de um café da manhã leve. Enchemos várias garrafas térmicas com café quente e levamos croissants. Por enquanto, a chuva parou. Saímos cedo e pegamos o caminho mais direto. Não convém passar por Bahía Blanca: é um porto marítimo, e isso sempre levanta suspeitas. Vamos por dentro, atravessando La Pampa e entrando na província pelo noroeste. Primeiro por estradas retas e monótonas, aridez pura, depois General Acha, e mais adiante Santa Rosa. O motoqueiro nos avisa que há uma blitz em um cruzamento de estradas. Alerta vermelho. Estão parando caminhões no acostamento; revistam a carga e a carroceria de alguns. Examino o mapa e as anotações: há um desvio para o leste, por uma trilha sem uso, e uma estrada esburacada que nos permite retomar mais adiante, embora represente um atraso de duas horas. Não teremos outra chance. Ordeno ao motoqueiro que volte e nos metemos naquele lamaçal. Marcha lenta e tortuosa, com chuviscos isolados, mas sem problemas à vista.
Um motoqueiro corre para a saída, que é uma bifurcação, e canta que não há perigo. Saímos na superfície com os nervos à flor da pele e metemos o pé no acelerador por horas a fio, sem ligar para a fome, nem as tentações. Pellegrini, Trenque Lauquen, Bragado. O caminhoneiro reclama, não dá para continuar sem relaxar um pouco. Os motoqueiros avançam um quilômetro até uma lanchonete e nós paramos por meia hora para comer em um boteco.
Em uma mesa, quatro policiais da Bonaerense jogam truco. O saltenho e eu nos olhamos. Sabemos que se eles resolverem tomar uma atitude e quiserem fazer uma revista, vamos terminar todos em um tiroteio. Comemos um misto-quente sem olhar para os policiais, mas esbarro em um deles no banheiro e peço desculpas. É um veterano e me observa com atenção enquanto lavo o rosto. Muitas vezes o olfato é uma maldição profissional. Quando pego o papel para me enxugar, pergunto a ele se este é um povoado tranquilo. Luta com o fecho da calça, mas não deixa de me observar. Não sei como, mas ele e eu sabemos, neste instante dramático, que a vida dele depende de que ele vire a cara. Ficamos assim por alguns segundos, suspensos no ar, e então o veterano pisca, coça a têmpora e se adianta para abrir a torneira e lavar o rosto. Lava-se como se fosse com água benta. Eu mesmo ofereço o papel e ele o aceita sem dizer se este povoado é ou não tranquilo. Sai por onde entramos e piso em sua sombra dois segundos depois. O veterano olha por um momento nossa mesa e em seguida passa ao largo, senta-se e pega as cartas que o companheiro deixou viradas para baixo. Estão falando de futebol. O veterano não voltará a erguer os olhos até que tenhamos ido embora. Disso eu estou certo.
Mais cem quilômetros e, em um pedágio, um policial solitário e inesperado sai de uma guarita e pede nossos documentos. Imagino que o veterano comunicou por rádio que uns sujeitos estranhos rodavam em um caminhão Volkswagen branco com rebites novos. Mas o sujeito não passa da papelada. E até chega a ponto de sair para se despedir de nós. Chegamos à engarrafadora à noite. Aviso pelo celular a Wila e ela me garante que está tudo pronto. Rossi vem abrir as portas. Tem cinco empregados preparados para retirar os pacotes e guardá-los. Enquanto fazem o trabalho, Wila paga o caminhoneiro, os motoqueiros e o saltenho, que me pergunta com os olhos se tem de aceitar o dinheiro. Concordo com a cabeça e ordeno aos recrutas de Rada que se retirem e procurem não chamar a atenção.
— Só o que queremos, chefe, é dormir um pouco — diz o caminhoneiro.
Guardam as motos no caminhão e desaparecem. Ligo para Rada e sugiro que ele aperte seus rapazes. Não podemos vigiar cada um deles, e se um dos homens criar confusão, tomar um porre e falar demais, estamos ferrados. Rada me pede que não o subestime e encerra a ligação.
Wila está magra e emaciada, mas não perdeu a postura. Dá algumas ordens breves, e no escritório, a portas fechadas, oferece-me café requentado e me faz sete ou oito perguntas. É uma mulher estritamente profissional, que jamais pronuncia um comentário emotivo, nem uma linha que fuja do manual meticuloso da assistente perfeita. Em seu último relatório da Espanha, Flores contou que Guillermina López, depois de se separar do comerciante sevilhano, ocasionalmente foi amante de García Roldán, embora suas fontes não fossem de todo seguras e confiáveis. Quando estiveram juntos, aqui mesmo e há pouco tempo, a assistente e o advogado se trataram com muita confiança, embora eu não tenha percebido nenhum gesto de cumplicidade erótica entre eles. É verdade que, depois de algumas trepadas seguidas da rotina do trabalho e passado algum tempo, não ficam sequer restos visíveis do antigo ardor. Talvez Roldán tenha lhe dado um emprego em sua firma quando ela se separou, e eles foram para a cama algumas vezes. Talvez até ela, agradecida e deslumbrada, tenha se apaixonado pelo sujeito, mas se impôs o espírito prático e a coisa evoluiu para uma longa amizade profissional, sem direito à cama. A conjectura se encaixa perfeitamente na lógica de Roldán: nesse negócio, os empregados devem estar ligados aos chefes por vínculos mais fortes do que os simples interesses comerciais.
Quando terminam as histórias da estrada, Wila pergunta pelo círculo de segurança que colocaremos no depósito. O saltenho disponibilizará quatro vigias rotativos que a Casinha escolheu no universo das agências de segurança e das comunidades de inteligência. Quando o processo se completar, ficarão apenas dois. A engarrafadora continuará ativa, porque conseguiu contratos legais com cadeias de hotéis e restaurantes da zona metropolitana. Garrafas a serem lavadas, enchidas, tampadas, lacradas e etiquetadas. Caminhões que entram e saem; empregados que batem ponto com o cartão magnético. Aparência de uma pequena empresa normal e ativa.
— Mas a principal medida de segurança vamos tomar esta noite — esclareço e ela me olha com expectativa. — Bragoni.
Envio a ele uma mensagem de texto enquanto Wila telefona para Nuria e confirma que os cosméticos chegaram. É uma ligação curta e Bragoni demora mais a atender do que se encerra a chamada com a dra. Menéndez Lugo, que está em seu apartamento na Juncal, correndo na esteira, com champanhe no freezer. Imagino que escreve, sem sair da esteira, dois sms idênticos: um para Madri e outro para Nova York. “Adorei os cosméticos e chegaram intactos. Bjs.” Bragoni é mais direto: “Em uma fábrica de canos em Isidro Casanova, às três em ponto”. O saltenho bate na porta de vidro e se aproxima: metade de sua equipe está na rua, vai posicioná-los na frente e na rampa traseira.
— Não pode dar muito na vista — sugere Wila.
Peço que mande o químico até mim. Rossi está animado, como se os pacotes do Dragão tivessem alterado seu caráter.
— Leve cinquenta para o 4×4 e nada de cheirar — digo a ele.
— À suas ordens, meu general — responde.
Enquanto carregam o carro, ligo para o coronel e o coloco a par das novidades. Sei que Palma blindou nossos telefones, mas não consigo resistir a uma conversa em código. Cálgaris tosse e pigarreia, parece que vai morrer. Não transmite nem tristeza nem alegria; ouço ao fundo algo parecido com o saxofone de Charlie Parker.
Digito o endereço de Isidro Casanova no gps e dirijo devagar. Não há pressa. É melhor inclusive chegar um pouco tarde. Penso por um momento que Bragoni pode querer vingar a sorte de seu rottweiler, mas descarto a ideia de imediato: seria o mesmo que matar a galinha dos ovos de ouro por uma mera questão sentimental. E Bragoni é um empresário com uma família para sustentar. Uma família grande. Sou intocável, pelo menos esta noite, com este presente e essa companhia. A fábrica de canos fica em uma avenida cheia de terrenos baldios. Toco a buzina e abrem o portão para mim. Entro com o carro e os faróis acesos em um lugar mal iluminado. Deixo a Glock no porta-luvas antes de descer. Bragoni sai para me receber com três peruanos que fazem sua segurança. Todos estão armados. Nem mesmo nos cumprimentamos. Mostro a mercadoria e me afasto para acender um cigarro e deixar que a examinem, provem e descarreguem. Bragoni me olha como se eu fosse um cadáver bem conservado. Quando o porta-malas do 4×4 se esvazia, comunico que vamos precisar de um patrulheiro que abra caminho em algumas regiões.
— Não creio que haja algum problema, não? — comento ao me sentar ao volante. Vejo que Bragoni move a cabeça sem abrir os lábios. Não, problema nenhum. Abrem novamente o portão para mim e saio por onde entrei. Agora sim piso no acelerador e vou voando para a capital. Quando chego à Belgrano R, tenho sede e me sinto esgotado. Tomo uma vodca, depois outra, e me jogo vestido na cama. Durmo dez horas seguidas e quando acordo não sei qual é meu nome, nem por que me chamam de Remil.
Nuria manda que eu a leve no Audi ao Patio Bullrich e mais tarde ao Unicenter. Está de excelente humor e, enquanto vamos de um shopping a outro, obriga-me a contar como foi a travessia. Tento fazer suspense, mas ela leva várias vezes a mão à boca, como uma menina que ouve aventuras emocionantes e até solta umas risadinhas nervosas. Arrasa as lojas de roupas e joalherias. Esta tarde, compra coisas que nem mesmo usará, entre elas sapatos inacreditáveis com salto agulha de um rosa fosforescente que não combinam com seu estilo, mas são de um tal Christian Louboutin, um sapateiro de celebridades. Figurinhas para um álbum. Caprichos para alguém que tem cartão diamante e está comemorando uma boa notícia.
O engarrafamento da cocaína diluída dura um mês inteiro. Nesse intervalo, mando instalar câmeras, sensores e alarmes no depósito, e supervisiono o trabalho do saltenho, que é obsessivo e conduz tudo com um rigor militar. A empresa montada por Wila e desenvolvida por Rossi é admirável e funciona com uma eficiência muda. Não precisa de elementos muito sofisticados, mas de muita experiência humana. O químico está em seu meio: dilui duzentos gramas em garrafas de setecentos e cinquenta centímetros cúbicos e dirige o minucioso processo de recolocar o lacre. As dez mil primeiras garrafas são embaladas em caixas de seis e unidades destinadas a um contêiner, cujo transporte Wila ordena ao porto de Buenos Aires. Vão cem garrafas de vinho sem lacre para que o pessoal de Pico faça a “coleta de amostras” e análise de laboratório.
Enquanto Rossi segue com outras dez mil, o empresário da pesca envia de Mar del Plata um caminhão com segurança particular para retirar duzentos e setenta quilos de pó: serão despachados em barco próprio até um porto do norte da África, camuflados em um lote de merluzas. Nosso malbec viaja a dois pontos cruciais: Cádiz e Vigo, onde García Roldán tem um trato com funcionários da Alfândega e armou em zonas rurais “cozinhas” clandestinas dentro de pequenas empresas que são meras fachadas. Ali será feito o aquecimento para que o vinho evapore e mais tarde a filtragem, que permite resgatar a cocaína em sua pureza máxima. Uma parte fica na Espanha, outra segue caminho por toda a Europa. Quanto mais avança, mais cara fica. Pode chegar até a Rússia.
Durante esse mês, não deixo de praticar boxe em Saavedra, nem de esvaziar vários pentes da Glock no estande de tiro subterrâneo do serviço naval. Nem de nadar todos os domingos no rio da Prata com o traje de neoprene. Também não deixo de acompanhar Nuria, que passa da alegria à preocupação e se encontra várias vezes com Javier Pico. O cachorrinho de Parisi também não está feliz: chegou a hora zero, e embora tudo tenha sido planejado detalhadamente, pode descer pelo ralo graças a qualquer pequeno equívoco. Só quem permanece calmo e se diverte é Cálgaris, que observa o carnaval com um prazer íntimo. Como de hábito, guardo minhas dúvidas e contradições em uma caixinha em meu cérebro e dou duas voltas na chave.
Os últimos dias são muito longos. Wila fica o tempo todo na Alfândega, grudada nos trâmites de exportação. E numa sexta-feira o químico, que dormiu todas as noite em uma cama pequena no depósito, passa por mim tirando o jaleco e limpando as mãos:
— Não dá mais, cara. Quero tirar o fim de semana.
Está em frangalhos, embora o estresse não o tenha obrigado a emagrecer, mas o contrário: só o que pôde fazer nesta nova penitenciária foi comer sem parar, e o fez sem freio nenhum. Eu o levo no 4×4 até a sua pensão em Liniers e o espero no pátio enquanto ele troca de roupa. Os resultados na escuta que instalamos nos primeiros dias não nos revelaram muitas surpresas.
— Só o que tem de interessante é a obsessão dele pelas putas — disse-me Palma. — Uma por noite, e às vezes até parece que quer regenerá-las. Dá pra acreditar? Fala de seus dez filhos. Chora. Diz que sente falta de San Luis. Quer que as putas gozem ao mesmo tempo que ele. Diz que se apaixonou por elas e chora sem parar.
Quando o químico sai feito um galã e com a carteira abarrotada, pergunto onde fica a boate. Vamos à rua Ventura Bosch: parece um lugar luxuoso demais para esse vagabundo.
— Não pira, cara — alerto, e ele percebe que não estou de brincadeira. — Xota é que nem soro da verdade. Se amolecer com as garotas, se pagar algum mico, juro que não chegará vivo à segunda-feira. Vou ficar te vigiando. Não faça nenhuma cagada.
Ele jura pelos dez filhos que não fará. Quando sai do carro, aviso para reativarem a escuta e para ficarem em alerta por mais quarenta e oito horas.
Mas ele não faz nenhuma cagada. Ninguém faz. E na quarta-feira Wila entra triunfante no escritório e anuncia que os contêineres passaram na prova e já estão em alto-mar. Nuria a convida a uma milonga em San Telmo, para comemorar a façanha. Wila fica animada para dançar e o faz razoavelmente bem. Nuria e eu a olhamos da mesa, como pais orgulhosos. Três dias depois, a galega me informa que iremos juntos em um voo da Iberia.
— Querem nossa presença lá quando o carregamento chegar — diz Nuria.
Não me atrevo a perguntar por que ela não viaja sozinha, porque a questão me deixa intrigado o suficiente para informar a Cálgaris, que dá de ombros:
— Querem te conhecer.
— Quem quer?
O velho filho da puta carrega o cachimbo e me mantém por uns segundos em suspense. Acende-o com um fósforo, tira-o da boca e solta uma enorme baforada.
— Os chefes de Nuria — responde.
— Sou tão importante assim? — pergunto com sarcasmo.
— Parece que sim.
Nuria mostra uma passagem da primeira classe e me confina em um lugar na classe econômica. É um voo calmo e eu me entrego à leitura da longa reportagem de David Stafford sobre o desembarque da Normandia. No Barajas, espera por nós García Roldán, vestido num traje esporte elegante e com uma bmw Essential Edition Serie 1 preta. Só quando estamos a bordo, o advogado me dá os parabéns pelo trabalho. Mas é um cumprimento frio, como quem se nega a aumentar demais o preço de um subordinado. Tampouco responde ao otimismo de Nuria. Não vai cantar vitória antes do tempo. Deixa-a em seu apartamento no Paseo de la Castellana e me leva a um albergue no bairro de Chueca. Do quarto, telefono para o escritório do Palacio de las Cortes e deixo um recado e um número para a srta. Luciana Flores. Sou acordado no meio de uma sesta. Sua voz é gentil e forçada. Combinamos de nos encontrar na Librería del Prado. Ela chega tarde e me permite ver aquelas gravuras e livros antigos. A ex-policial federal também parece mais arrumada e reluzente do que da última vez. Ainda é uma loura oxigenada, nariguda e bunduda, mas agora tem um penteado moderno e roupa da Corte Inglés. Dá dois beijos em meu rosto, à maneira espanhola, e sugere que tomemos uma cerveja a três ruas dali. Quando vamos para a calçada, ela tira um pacote da bolsa de couro que usa atravessada no peito e entrega a mim. Coloco debaixo do braço como se fosse o pão daquele dia e andamos juntos pela tarde tépida.
— O coronel me pediu para abortar toda a investigação sobre essas pessoas — ela me diz quando nos servem a bebida. — Mas você já sabe como a coisa funciona: quando você lança os anzóis, os peixes vão chegando, mesmo que não tenham fome. — A cerveja está gelada; trazem uns espetinhos e pedimos outra. — Encontrei algumas informações sobre a mãe de Balduin — acrescenta. — Foi uma mulher muito bonita, gerente de um banco de porte médio que não existe mais. De repente viaja para uma convenção internacional e ao voltar explica que se apaixonou. Um homem muito bem de vida, ela diz aos amigos íntimos. Mas não dá detalhes. Muda-se para Barranquilla e dois anos depois para os Estados Unidos, já grávida.
— Morreu no parto — concluo. — Balduin vem muito à Espanha?
— Quatro vezes por ano, fica em hotéis. Desaparece. Aparece por aqui em Barcelona, ou em Cádiz. Anda livremente.
— Tem um amante fixo?
— Não faço a menor ideia. Se Cálgaris quiser que eu entre com tudo, será um prazer. Mas insisto: ele mandou que esperasse até segunda ordem.
— Quais são os outros peixes?
— Quem tem amante fixa é Roldán. — Ela baixa a voz, os olhos brilham. — É uma geminiana clássica, tradutora do alemão. Uma alemã bonitona.
— Essa informação não é nova.
— A novidade é que ele comprou para ela um apartamento em Chamberí que é de cair o queixo. Ela deve encher os ouvidos dele. Quer saber como são as geminianas clássicas?
— Preciso ir ao banheiro.
Dentro de um reservado, sento-me, tranco-me por dentro e abro o pacote. É uma Glock gêmea. Vejo os dois pentes. Vem com um coldre para prender na cintura. Tiro da caixa, jogo o papel no cesto e volto ao balcão.
— E soube também que Roldán tem um processo em aberto na Venezuela — diz Flores, que está pagando a conta provisória. — Por obstrução à justiça. No dia que em Cálgaris der carta branca, vamos fazer uma festinha.
Ficamos um tempo fumando e bebendo outras cervejas, comendo novos espetinhos. Ela me fala de astrologia. Faz boas tentativas com Roldán, entra no signo do boi de metal e em suas zonas obscuras. A conta final quem paga sou eu. Volto a pé para o albergue, em uma Madri quente que, entretanto, se apaga e refresca.
Roldán monopoliza inteiramente Nuria, que não me telefona nem uma vez. Nenhum dos dois precisa de proteção, então não sei muito bem o que estou fazendo na mãe pátria. Organizo-me para correr pela cidade, levanto peso e nado na piscina de uma academia, e leio Cartago, de Franco Forte. Passo uma tarde inteira no Reina Sofía, tentando ver aquelas imagens com os olhos de Cálgaris. Mas não consigo grande coisa. Naquela noite, quando chego ao albergue, a garota da recepção me avisa que tenho um recado e me dá um pedaço de papel. Ligo para Roldán antes de me deitar para ler. Amanhã vão me buscar, vamos passear. Anuncia isso de forma cordial, com ruído de fundo. Está em um restaurante e parece que bebeu demais. Nuria também: tira o telefone da mão dele e me pergunta se já consegui uma namorada em Madri. Divertem-se muito. Estão em casa.
Às sete da manhã, não parecem tão joviais. Os dois estão de óculos escuros e têm cara de múmia. Entro na bmw preta pela porta traseira e descubro então que vamos a Vigo. São quinhentos e noventa quilômetros e me chama a atenção o nome de uma rua: La Virgen de los Peligros. A noitada os mantém em silêncio, mas Nuria coloca uns discos de Amy Winehouse e Diana Krall e contemplamos a paisagem enquanto ouvimos essas vozes melodiosas que não me dizem nada. Quando o sol sai inteiramente e são nove da manhã, o advogado me pede que explique as pontas soltas da operação. Detalho, mas também conto que Bragoni nos dará respaldo em alguns percursos. De repente a conversa ganha intensidade e passamos o tempo com questões de logística. Nuria interfere pouco, mas não deixa de me olhar pelo retrovisor. Chegamos a Vigo depois do meio-dia. O céu e o mar são de um azul intenso, há um leve vento seco e um navio de cruzeiro gigantesco acaba de desembarcar duzentos japoneses. Ficamos hospedados em um hotel pequeno de La Alameda e esticamos as pernas pelos calçadões e pelos jardins lotados da Plaza de Compostela. Sinto calor e Nuria também, mas Roldán atravessa a jornada sem transpirar. Temos um encontro em um restaurante perto do Ayuntamiento. É um lugar com reservados e ali se come um ótimo polvo. Na dúvida, sento-me a uma mesa próxima, de onde é possível ver todos os movimentos. Os advogados pedem vinho e água gelada e olham constantemente para fora. Passam mais de quinze minutos esperando seus sócios, que por fim chegam. São dois brutamontes de barba cerrada e corpo robusto. Bastou uma olhada neles para eu perceber que não são espanhóis e que estão armados. Por acaso são sérvios, e é muito custoso para eles manter uma conversa amena. Nenhum dos dois consegue deixar de olhar o decote da mulher. Falam entre murmúrios e com meias palavras, mas estou a um metro e meio e entendo tudo. O contêiner passou sem incidentes pela Alfândega, só foi necessário um pagamento extra a um funcionário. As garrafas estão em uma fábrica trancada em Puentecaldelas, perto do parque industrial de O Campiño. Começaram na quinta o aquecimento e a filtragem.
Dividem o polvo e falam de preços e entregas. O restaurante não para de encher e parece uma reunião de negociantes de vinhos. Os sérvios se dirigem a Roldán com respeito, quase com temor. Sempre que Nuria pergunta alguma coisa, os sérvios respondem como podem, porém sem olhar para ela, com os olhos fixos em seu verdadeiro chefe. Quando trazem os cafés, o advogado sai por um instante para atender a um telefonema no celular. Nuria junta as migalhas na toalha de mesa e os sérvios se viram para sustentar meu olhar. Só de ver o tom dessa encarada, qualquer cliente ou turista paga a conta e vai embora assoviando baixo. Roldán volta e lhes confirma que irá à Puentecaldelas nesta mesma noite. Combinam uma hora para ir juntos em sua bmw. Despedem-se na calçada e eu fico de pé, vigiando os sérvios, que em nenhum momento tiraram as jaquetas de couro, apesar da temperatura. Andam juntos, roçando os cotovelos, e viram uma esquina.
No saguão pequeno do hotelzinho de La Alameda, Roldán explica a Nuria que em algumas horas virão nos buscar e que faremos uma viagem curta. Não falam com liberdade, porque estou presente, mas dois pontos ficam claros para mim: Nuria sabe do que se trata e eu estou de saída. Separamo-nos nos três quartos dos fundos, que revisto antes para ver se não esconderam algum presentinho para nós. Depois continuo a ler, incapaz de dormir a sesta, e tomo dois banhos por puro tédio. “Derrotara o grande Aníbal, fora o primeiro e único comandante romano a conseguir a façanha depois de dezesseis anos de guerra, e sua realização se deu em solo africano, não muito longe de Cartago.” Quando fecho o livro, tenho uma crise de sono; acredito até que cochilo um pouco enquanto ouço o rumor distante da cidade de Vigo, já iluminada e escura. As batidas na porta me tiram da cama. Pela fresta, vejo que Menéndez Lugo, renovada e recauchutada, diz que já recebeu o aviso. Acabo de me vestir e vou ao corredor. No saguão, Nuria conversa com um negro com dobras na barriga e cabelo esponjoso, com pinta de lutador. Apresenta-se como “Manolo” e noto o sotaque da América Central e a desconfiança. Também as joias de ouro que usa, como os ciganos, nos pulsos e no pescoço de touro. É um personagem que só passaria despercebido em uma favela ou em um bairro pobre de Medellín. Uma imprudência ambulante.
Somos levados para uma Kombi branca com vidros polarizados que Manolo chama de “o furgão”. Abre para nós as portas traseiras para que entremos e sobe atrás, sentando-se em uma das três cadeiras de braços: a Kombi foi adaptada para fazer as vezes de uma sala de estar, com mesinha e frigobar. Não há comunicação entre a carroceria e a cabine, e todas as janelas estão pintadas de preto. É um calabouço confortável, pensado para transportar gente amiga que não pode saber aonde vai.
— Se eu te dissesse, teria de matá-lo. — Manolo exige que entreguemos os telefones e relógios: sem tempo, não dá para calcular a distância. Depois pede a minha Glock e eu obedeço porque sei que não partirá antes que as regras sejam cumpridas. Diz para ficarmos à vontade, sai dali com dificuldade, fecha as portas e tranca. Não demora nada para ligar o motor e deslizarmos por essa rua.
— Tomara que eu não tenha vontade de fazer xixi — ouço Nuria reclamar entredentes. Não dou muita atenção, procuro identificar que rumo tomamos. É difícil, dá tantas voltas que me obriga a desistir. Depois, toma um caminho reto, talvez paralelo à costa do Cantábrico. Quando estou resignado e relaxo, descubro que Nuria não parou de olhar para mim com a cabeça inclinada e um sorriso lânguido. Encontro ao lado uma garrafa de uísque e outra de vodca: um Chivas Premium e uma Absolut Level. E, na geladeira, champanhe Cristal, que sem dúvida é da preferência da senhora. Sirvo a vodca e a champanhe, e ela abre uma lata de caviar e um pacote com salmão defumado. Em uma caixa de uma pequena despensa, encontramos toalha de mesa, talheres, saquinhos de frutos secos e, embrulhado em papel roxo, um pão redondo. Nuria ri.
— Parece que fomos sequestrados, mas são verdadeiros cavalheiros — ela levanta a taça e propõe um brinde sem palavras. Comemos em silêncio, nessa intimidade a meia-luz, simpática e forçada, que ela rega com mais algumas taças. Não saio do primeiro copo; depois pego com cuidado duas águas, esperando que a patroa se renda.
— Estou acabada — por fim ela suspira e repousa as pernas na terceira cadeira. Apago a luz interna e lhe estendo uma almofada. É divertido ver que não custam nada a dormir as pessoas de consciência limpa ou aquelas que simplesmente não têm consciência.
Permaneço inutilmente acordado pelo resto da viagem, com vontade de fumar, mas sem me atrever a acender um cigarro dentro desse caixão de metal. Perco completamente a noção do tempo e do espaço e, o que é estranho, repasso essa questão desde o começo. Desde que ativei Lali e Palma para verificar quem era aquela galega recém-chegada que interessava tanto a Cálgaris. Até que a conheci pessoalmente, no Club de Yatching y Pesca de Colonia. “Quero Remil.” E as vezes em que se insinuara a síndrome do guarda-costas. Aqueles quatro gins-tônicas em San Isidro, aqueles desencontros na hidromassagem do Tigre, aquela ordem e contraordem em seu apartamento na Juncal. Sempre que me aparece, no escuro de um sono leve, Nuria usa roupa e óculos pretos e um batom violentamente vermelho. Nessa foto pessoal e imaginária, a dama branca veste-se de preto e tem as feições duras e ao mesmo tempo sensuais. Parece uma assassina de aluguel, mas na realidade é uma imperatriz que tem um punhal. E por acaso esse punhal vem a ser eu.
Por algum motivo que não consigo entender, sinto que estamos perto de nosso objetivo. Há trechos em que saímos do asfalto e sacudimos pela terra. Em seguida voltamos ao asfalto e rodamos. No fim, as manobras são tão marcadas que a imperatriz acorda e acende a luz.
— Chegamos? — pergunta, desorientada.
Dez minutos depois a Kombi para e ouvimos que o motorista desce no cascalho e se aproxima caminhando. Volta rapidamente e o furgão parece entrar em uma garagem. Ouvimos que desliga o motor. Abre as portas e diz que podemos sair. Descemos do carro como se fôssemos prisioneiros de uma solitária, atingidos pelas luzes de um lugar que parece uma oficina. Tem todo tipo de ferramentas e noto que também tem um motor de popa para conserto. Não se vê nada pela claraboia, que também é pintada de preto. Mas adivinho que ainda não amanheceu e que estamos perto do mar.
Por uma escada interior, subimos ao térreo, que é amplo e sólido. Um salão com lareira, sofás e poltronas, e mais adiante uma mesa longa com seis cadeiras estilosas. Móveis de castanheira e carvalho. Não tem objetos de decoração, nem quadros. É tudo perfeito, porém impessoal. As persianas também são automáticas e estão hermeticamente fechadas. Ficaremos o tempo todo com luz elétrica e ouviremos, ao longe, o murmúrio do mar. É tudo. Penso que no segundo andar deve haver quatro ou cinco quartos e pelo menos um banheiro. Alguns desses quartos estarão trancados e cheios de objetos que os convidados ocasionais, como nós, são proibidos de ver. Estamos, portanto, em um lugar sem sinais de identidade, que não pode ser reconhecido. Um chalé de pedra, cimento e madeira, a uns cem metros de uma praia solitária e à mercê de um negro irritado que porta uma Uzi. Porque Manolo, agora a salvo de olhares indiscretos, tem pendurada no ombro uma carabina Uzi de trinta cartuchos, culatra fixa e cano longo. Ele também não se importa que eu veja minha Glock metida naquela cintura cósmica. Aponta o banheiro para mim para que nos aliviemos e depois a cozinha: me dá permissão para preparar um café. Mais do que permissão, parece uma ordem. E percebo uma espécie de prazer em seu tom de superioridade. O escravo dá ordens ao escravo. Enquanto preparo o café coado, Nuria se penteia e se maquia, e volta a passar o batom furioso. Só o que me chama a atenção é um chaveiro vazio pendurado em um prego. Custo a entender o que são essas duas figuras. Parecem dois tamancos pequenos de prata, com uma letra A microscópica entalhada dentro deles. Sirvo o café e esperamos. Nuria não puxa assunto com Manolo, mantém-se altiva e pintada, de pernas cruzadas, na expectativa. Sua roupa parece ter acabado de sair da lavanderia; é uma morena de parar o trânsito bebendo aos golinhos um café medíocre, esperando uma pessoa importante. A mais importante de todas.
A primeira coisa que interrompe a espera é uma chamada no celular de Manolo, que para de passar a mão no cabelo e atende como se estivesse levando uma agulhada. Não consigo decifrar o que ele responde, porque ele baixa a voz. Mas vejo que se levanta, cambaleia e se dirige à porta. Espera junto dela, como um cachorro aguardando seu dono, ouvindo de longe. Por fim abre a porta e lhe dá passagem. Nós também nos levantamos. É um homem de estatura mediana, cabelos brancos e bochechudo, com camiseta de gola redonda e casaco marrom listrado, anel de ouro e titânio, um Girard Perregaux Opera Three de quinhentos mil dólares e sapatos italianos. Vem com um chapéu na mão e o olhar atento.
— Meu amor — ouço Nuria exclamar, e a vejo atirando-se nos braços dele. O homem não se altera com essa repentina demonstração de afeto; não deixa de me examinar como se eu fosse a origem de seus males. Há uma única foto no arquivo da Casa e corresponde ao início dos anos 1990. Belisario Ruiz Moreno tinha mais cabelo e menos bochecha. Ainda não era independente do Cartel de Cali, mas já nessa época tinha problemas com a dea. Na Argentina, não há nenhuma outra imagem do velho fazendeiro do norte do Valle del Cauca. Para a comunidade do serviço secreto ligada ao narcotráfico, este é o homem invisível. O desaparecido, talvez o esquecido.
Belisario pisca e se separa de Nuria para olhar em seu rosto. Só então sorri com todos os implantes e a beija com ardor. A cena parece um pouco arrebatada e me envergonho de testemunhar. E este não é o único sentimento que desperta em mim. Nuria parece uma desconhecida: afasta-se dele por uns segundos e enche de beijos todo seu rosto, como se estivesse morta de saudade. Fala:
— Meu amor, meu amor, senti tanto a sua falta. — Belisario volta a abraçá-la, como se quisesse que ela sentisse o coração em seu peito. Francamente. É uma novela venezuelana.
Mesmo beirando o ridículo, ela de imediato se recupera e fala.
— Preciso lhe apresentar a pessoa que cuida de mim.
Belisario assente e de repente os dois estão me olhando. Nuria, como se o fizesse pela primeira vez, metida na pele da amante dele. Belisario, assentindo e ostentando poder para ver o que há por dentro desse pé-rapado argentino de braços longos e queixo quadrado. O velho então avança, balançando a cabeça, sem se desvencilhar completamente da amada, pega um braço meu, depois o outro. Agarra-me pelos bíceps, como se os estivesse avaliando, mas não deixa de me penetrar com os olhos.
— Remil — pronuncia. Está provando o sabor desse nome na boca. — Me contaram coisas interessantes sobre seu escritório, soldado — acrescenta. A palavra soldado parece uma ironia. Um soldadinho. Uma das mãos solta meu braço e me dá um tapinha na cara. — Você sabe que nesse negócio é preciso ter colhões, mas não pinto. Ou, como vocês dizem, che? — Tenta imitar o sotaque argentino e Manolo acha graça.
Belisario não para de me olhar de perto, como se procurasse um gesto mínimo que me delatasse. Algo que permitisse se virar e pedir a Manolo para disparar cinco ou seis tiros em mim com sua carabina.
— Bagos sim, pica não — digo, olhando para Nuria, que baixa os olhos. — Imagino que esta seria uma boa tradução.
Por uns segundos, ficamos ainda cara a cara, até que Belisario dá uma gargalhada e ergue um dedo para mim.
— Presta atenção, não confio muito em quem é instruído. Quem lê demais tem ideias próprias. E aqui só quem pensa é um servidor, para sua informação.
Tudo quase parece uma grande piada. A piada hospitaleira de um bom anfitrião. Mas preciso recuar, não o ofender com minha inteligência e entender que não passo de um de seus humildes legionários.
— Como o senhor quiser — digo e recuo literalmente dois passos. Agora Ruiz Moreno sorri, aprovando o gesto de submissão, e diz a Nuria:
— Você escolheu bem. Vamos a meu quarto, quero mostrar o que trouxe para você. — Passa um braço em torno dela e sobem os dois juntos a escada, trocando palavras aos sussurros e rindo.
Manolo e eu nos sentamos nas poltronas, junto da lareira, como dois anciãos que precisam matar o tempo. Quando se esparrama, ele parece um rematado obeso. Uma das mãos está sobre a arma e a outra não para de empurrar a cabeleira preta e gordurosa para trás. Tem as pálpebras caídas, como se não se importasse com absolutamente nada.
— Pôquer, bisca, damas, xadrez? — proponho. Faz que não com os cachos. Vê-se que é um sujeito com muita vida interior.
Dez minutos depois, começamos a ouvir os gemidos de Belisario e os rangidos da cama. Deixou a porta aberta para que eu escutasse. Belisario gosta de falar e que sua mulher lhe conte o prazer em primeira mão. Nuria pronuncia frases inesquecíveis. Mas como é grande, mete mais fundo, você é um cavalo e essas coisas. Ouço que Belisario a chupa, e Nuria confessa que nunca ninguém a chupou melhor. Caem objetos e há mais risos, e o homem forte solta um grito e esclarece para nós que está gozando na boca da mulher.
Manolo nem mesmo sorri. Há um intervalo, depois voltam à carga. Ela está por cima e, segundo declara, sente a ponta da pica na boca do estômago. Mais tarde, ele a come pelo rabo e volta a gritar um orgasmo como se estivessem extirpando seus testículos com um alicate. A batalha dura duas horas, talvez três. Porque Belisario volta a lançar seu sêmen, desta vez bem lá dentro, enquanto obriga Nuria a gritar: “Quero um filho seu!”. É o fim. Percebo pelo silêncio prolongado que chega e pelos barulhos do chuveiro. Só então constato que tenho dor no maxilar, como se estivesse apertando os molares. Passo o dedo pelas gengivas doloridas. E quando o tiro, vejo que se soltou um pedaço do esmalte do dente. Uma lasca pequena e branca. Uma prova penosa.
Lá em cima, toca um telefone. O toque é um bolero de Luis Miguel. Belisario atende, mas trata de fechar a porta. Precisa de privacidade. Em seguida desce sozinho, vestindo o casaco listrado.
— Sabia que tinha pouco tempo, mas surgiu um inconveniente e preciso ir embora antes e depressa, soldado — diz ele a mim, atravessando o salão rapidamente. Vai para a porta, mas pensa por um instante e se desvia para pôr a mão no meu ombro: — Já sabe o que significa para mim. Será responsável por sua vida, entendeu? — É claro que entendo, dom Belisario. E como eu gostaria de meter um tiro na sua boca. Um no senhor e outro na sua cadela.
Ele põe o chapéu e a fera do cabelo crespo o acompanha à porta e a fecha com duas trancas e taramela. Avisa-me que descerá para recarregar o frigobar e que devemos nos preparar para a volta. Sirvo-me outro café, encostado na cozinha. Acendo o único cigarro que me resta. Agora também sinto dor em todos os músculos do corpo, como se tivesse nadado no rio da Prata. Nuria chega cabisbaixa, impecável como sempre. Não consigo nem olhar para ela. Por sorte, o irritadinho vem nos buscar. Sentados nas cadeias, trancados sozinhos, Nuria tenta bater papo comigo. Mas não faço nada além de tomar vodca com gelo, sem experimentar a comida e sem responder às perguntas. Bebo quatro copos seguidos. Na metade do caminho, Manolo encosta para encher o tanque e nessa hora me dou conta de que Nuria nem consegue dormir. Está pálida, quase chorosa, encolhida. Olha para mim como a um carneiro degolado. Eu a ignoro pelo resto da viagem e também quando chegamos ao hotelzinho de La Alameda. São cinco horas da tarde. Manolo sobe no furgão para nos devolver os relógios, os celulares e a Glock. Não é uma despedida muito afetuosa. No saguão, García Roldán usa freneticamente o wi-fi e fala com Madri. Ao ver Nuria, anuncia que a carga também chegou perfeita a Cádiz e que tem muito que contar.
— Não estou me sentindo bem. — Nuria pede licença com a voz trêmula e sobe a seu quarto.
Roldán me pergunta com os olhos como foi.
— Maravilhoso — respondo. Sinto-me meio instável, com cinco vodcas no sangue. Mesmo assim, cochilo, acordo e cochilo pelo resto da tarde e toda a noite. Tinha acabado de pegar no sono profundamente quando me chamam da recepção para fazer o check out.
A bordo da bmw, os dois advogados colocam-se a par das novidades. Nuria explica que Belisario está muito bem e teve uma impressão muito boa de Remil. Roldán conta como os sérvios organizaram a recuperação química e já têm a distribuição armada. Falam dos gastos extras, em Vigo e Cádiz, e passam as quatro horas seguintes avaliando os custos e benefícios de lidar com o pescador da Patagônia. Nuria parece recuperada, eu fico à margem da conversa. Tomo conhecimento de que partiremos amanhã mesmo num voo da Aerolíneas. Telefono para Luciana Flores para que vá buscar seu pacote no albergue do bairro de Chueca. Ao chegar, telefono também a Cálgaris para informar que a operação foi concluída com sucesso e que chego ao Ezeiza, se não houver tempestade nem greve aeroportuária, em dezoito horas.
Para minha surpresa, desta vez vou na primeira classe e compartilho o banco com a imperatriz, a quem procuro não dirigir a palavra. Depois do jantar, com os bancos reclinados e cobertos por uma manta, tentamos dormir quando as comissárias de bordo apagam as luzes. Mas ainda não consigo. Fico acordado, acossado por imagens violentas, e de repente sinto a mão de Nuria. Pousa o dorso da mão em minha face. Estou virado para o corredor e finjo que não notei. Mas até meu apêndice late. Durante um tempo incalculável, ela mantém a mão ali, que é um carinho passivo ou talvez um chamado, em meu rosto. Depois retira. E eu aperto os olhos, como se fosse chorar. Mas não choro, apenas afundo no sono. Mesmo que de uma forma inquieta, porque sou atacado pelas mesmas cenas, de novo partidas de futebol onde tentam me matar, fazendas onde se escondem perigos, uma multidão de mulheres, e todas são Nuria, e em dado momento, no meio da confusão e da raiva, aquela palavra estranha e a grafia tão peculiar: Dragão. O nome da cocaína. A razão social de Belisario Ruiz Moreno que vem desenhada nos tijolos. “Balduin”, penso e dou um pulo no assento. Não estou sonhando mais. O avião voa a dez mil metros de altitude sobre o Atlântico e Nuria está desmaiada junto à janela. “Balduin”, repito com completa lucidez. Naquela vez, na fazenda de Elena Parisi, quando tirou a camiseta para tomar sol na beira da piscina com teto de vidro. O tronco e as pernas brancas e depiladas, e a omoplata direita, aquela tatuagem de um estranho dragão. A mesma grafia. A marca do diabo. Lembrei-me da voz de Roldán: “Se ficamos ligados apenas pelos negócios, os laços são frágeis. Precisamos de muito mais”. Lembrei-me de Nuria dizendo “meu amor” a um ator pornô. Meu doce amor. Quem são essas pessoas, na verdade?