x. O colapso

Custa meia hora e muita lábia convencer o diretor administrativo de que é preciso reforçar a segurança na terapia intensiva. O diretor do sanatório por fim autoriza dois homens por turno quando consegue entender que é um pedido oficial da Presidência da República. Coloco os dois primeiros na elegante sala de espera, que fica no segundo andar, e vou ver o doente. Está alojado em um quarto particular da ala de cardiologia e o chefe da guarda me explica que teve um infarto. Um clássico “ataque de novela”: dor no peito, transpiração, palidez, angústia e náuseas. É a melhor das possibilidades, porque um infarto maciço é fulminante, silencioso e traiçoeiro: parece uma indigestão e não dá avisos. Agora o paciente está estabilizado, mas certamente vai para cirurgia e será de peito aberto. Em sua idade, com esse peso desmesurado e os pulmões fracos por tantas décadas de cigarro, é um procedimento muito arriscado. Entendo. Agradeço a ele e me aproximo: Rada está deitado e entubado com soro, vendo um jogo do Barcelona em um televisor pequeno. Aperta o controle remoto com uma das mãos e com a outra maneja os botões que sobem e descem o encosto da cama. Tem a pele lívida e uma expressão desmoralizada e tímida. Só se vira para ver quem veio visitá-lo, mas volta a fixar a atenção no jogo: não se dá ao trabalho de responder a meu cumprimento. Sento-me na cadeira, como se fosse parente dele, e olho um pouco as evoluções dos jogadores. Ficamos assim mais vinte minutos, até que o primeiro tempo termina. Quando vem o intervalo, Rada me fala:

— Pode ser que eu saia do açougue, mas não acredito que consigam que eu pare.

Não existe drama em seu tom de voz, mais parece um prognóstico clínico. Se o tonto não se aquietar durante a cirurgia, o caçador de pombos ficará em coma induzido até que os pulmões consigam retomar o controle por conta própria. As perspectivas não são auspiciosas. Alguns pacientes conseguem e seguem em frente. Outros vão definhando dia após dia, até que ficam só pele e osso, e até que uma infecção hospitalar os mande para o paraíso, o purgatório ou o inferno.

— Não há motivo para ser otimista — acrescenta, e tenho certeza de que não suportaria uma palavra de consolo de minha parte. E assim, não o incomodo. Ele olha para uma das mãos peludas e gorduchas, e solta: — A verdade é que não foi tão ruim. Não sabe os calos que tinha quarenta anos atrás. Era um pobretão trabalhador. Quem diria que o pobretão chegaria tão alto e tão longe?

— A senadora nos pediu para protegê-lo — informo.

Agora ele me olha e esboça um sorrisinho cruel.

— Quanta consideração — diz, e volta os olhos para a televisão. Quer ver os replays. — Nem mesmo me telefonou.

Olho seu pescoço tomado de verrugas e pelos duros. Fico em meu lugar. Rada ouve meu silêncio e continua.

— Assim é o peronismo, companheiro. Só sucesso. Se você cai por fazer uma merda ou por doença, os elefantes te atropelam. Os perdedores são os únicos que verdadeiramente nos dão asco, Remil.

— Pensei que o senhor fosse seu mais fiel servidor.

— Para os fiéis, existe um Dia da Lealdade. — Ele ri. Mas os olhos não abandonam a televisão nem esse véu sombrio. — Também não vai se iludir. Ela acredita que pode comprar tudo com dinheiro. E às vezes eu também acredito nisso. Não imagina as coisas que compramos com dinheiro na província. Mas depois vem a onda. Quando vem, ela te leva ou te arrasta. E acho que Tana não chega, companheiro. Não chega, por mais que pague sem parar, e não sei quem vai ter o atrevimento de dizer isso, nem sei como a mulher vai reagir.

Vemos os comerciais, ouvimos a música, o segundo tempo começa.

— Me proteger. — Ele ri de novo. — Aqui não podem me proteger de nada.

Eu me levanto e lhe dou um tapinha no ombro. Ele nem mesmo vira a cabeça. Saio por onde entrei, volto à Belgrano R e tomo uma vodca, e outra para acalmar a pulsação. Sento-me para ver o History Channel, mas não consigo acompanhar a ação nem o fio dos argumentos. Por algum motivo, a morte certa de Rada me parece um mau presságio. Penso em coisas que nunca passam por minha cabeça: o cadáver de Lali, a cara de espanto do rottweiler, os estertores do pivete de Cipolletti. Sinto-me aflito, como se tivesse febre. Procuro entender o que está acontecendo. Tento imaginar o que Maca pensaria desse sentimento suspeito e o que contaria depois à amante pelo Skype: “Estou muito preocupada, amor, os animais preveem a tempestade. Conseguem senti-la no próprio corpo quando ainda não chegou”. Sirvo-me de outra vodca com gelo e passo a mão pelo estojo de veludo bordô que certa vez roubei de Nuria. “Talvez seja a hora de devolvê-lo, Remil”, ouço a voz de Maca em minha cabeça. “Não sei quantas outras oportunidades você terá. Ninguém sabe do dia de amanhã.” É difícil manter a temperança do nadador de águas abertas quando já não causa tanta indiferença continuar vivo. Como a vontade fica vulnerável nessas situações.

Quinze dias depois, quando estamos numa festa em Pilar, avisam-me que Rada esticou as canelas. Uma das empresas Menéndez Lugo fechou contratos para a construção de um condomínio particular e Nuria quis comemorar em um salão para eventos com um terraço cálido, onde fumo encostado, vendo a festa. Tem dança, champanhe e alegria. Nuria está vestida de preto com brilhos e Wila de verde. Parecem duas adolescentes comemorando o fim do período letivo; seus empregados dançam com elas e fazem brincadeiras. Alheio ao barulho, o coronel me chama para me dar a notícia fúnebre e ordenar que retire os guardas. Não foi convidado à comemoração e parece meio ressentido. Ou talvez seja simplesmente preocupação por esse contratempo que os pulmões do caçador de pombas nos legaram.

Dou um telefonema operacional, depois um passeio para verificar se o círculo de segurança em volta do salão está funcionando bem. Há muitos desconhecidos na festa e isso me deixa meio nervoso. Quarenta minutos depois, volto ao terraço e aceito uma Coca-Cola com limão. Nuria se aproxima de mim, suada e desinibida. Nesse estado, ela pode ser um perigo. Observo a meu redor para constatar que não daríamos um espetáculo e descubro o olhar afiado de Wila, de longe. Procuro fazer com que Nuria não revele nosso segredo com um simples carinho. Ela se encosta na balaustrada e me pergunta por que eu sempre pareço azedo.

— Rada morreu — conto, sem rodeios.

Ela fica quieta, com o rosto no escuro do jardim, e logo dá um soluço e uma gargalhada. Cobre a boca para reprimir o soluço e pede desculpas, desculpe-me, e continua rindo. Depois se vira e respira, procurando um pouco de ar e seriedade.

— Desculpe-me — repete e solta outro soluço e outra gargalhada mal contida. De repente consegue ficar absolutamente séria, até parece sóbria. — Quero que me coma — diz ela, mandona. — Como vocês chamam boceta? Ah, sim. A xota. Que palavra mais sem graça, tão pouco obscena. Muito bem, Remil, eu tenho o coração na xota. Vai nessa? — Eu olho, sem entendê-la. — Quero que me coma, aqui e agora — insiste. Sorrio e balanço a cabeça.

— Isto não é possível, doutora — digo.

— Você verá que é — ela responde e pega minha mão.

Meus olhos procuram os de Wila, mas não os encontram. Solto sua mão e a acompanho escada abaixo, dobramos por um corredor e saímos no estacionamento, que é enorme e coberto. Amparados pelos vidros polarizados, trepamos no banco reclinado do 4×4: é a coisa mais imprudente e mais idiota que fazemos em todos esses meses. Entretanto, parece a ela uma travessura deliciosa. Ela goza sem parar com o vestido na cintura e me ordena aos gritos que a emprenhe, que eu goze dentro dela. Custa algum esforço acatar essa ordem, e ela então me dá dois ou três tabefes. Eu a agarro pelo pescoço, como se fosse estrangulá-la, e gozo bestialmente. Em seguida ficamos abraçados por um tempo impreciso. Até que ela me diz no ouvido:

— Que merda é a morte.

Depois pede que eu a leve para casa.

Estamos em outro estacionamento, na saída de um shopping, quando volto a pensar naquela frase. Duas semanas se passaram desde a morte do caçador de pombos e saímos do carro cheios de sacolas, no subsolo do edifício. Andamos até o Audi prata. Estamos chegando de uma tarde de compras irracionais e soporíferas, e eu tenho um mau presságio. Imagino que seja uma reação a determinado som, talvez um ato reflexo provocado por uma imagem fragmentada. Algo me diz que a moto barulhenta está rápida demais e que tem algo de estranho no sujeito da garupa e no companheiro que a pilota. É uma coisa inespecífica, a forma como viram e freiam, aqueles casacos aparatosos, o jeito desafiador como nos olham. Pode ser o reconhecimento mútuo da ameaça; a experiência do perigo. “Que merda é a morte”, penso enquanto jogo o corpo por cima da dama de branco. É um ataque violento que a derruba.

Não consigo enxergar, porque o Audi está nos cobrindo, mas imagino que seguem o procedimento habitual: o gorila da garupa desce e dispara, enquanto o gorila da frente fica preparado para dar no pé. Sei que atira com duas pistolas, pelo barulho que fazem os projéteis ao pegar a carroceria blindada, ao perfurar outros carros, ao ricochetear nas colunas. Dois calibres bem diferentes, uma barulheira que nos deixa aturdidos. Ouço gritos distantes: clientes apavorados, pessoal da segurança. O gorila dá alguns passos até nossa posição. Tudo acontece em milésimos de segundos: se eu não agir rapidamente, ele encontrará um ângulo e nos fuzilará no chão. Já tenho a Glock na mão, não sei como foi parar ali. Levanto a cabeça o mínimo e disparo às cegas em um arco da direita para a esquerda, e volto a me esconder. Deixo cair o pente e encaixo o segundo. Abandono a Mona Lisa, que parece ter desmaiado, e ando dois metros de joelhos. Vejo no espelho quebrado de outro carro destruído pelas balas que o gorila tenta contornar o Audi em sentido contrário. Está muito perto, por um triz de encontrar o ângulo. Levanto-me de vez, colocando-me na mira do piloto da moto, que olha e espera, engatilhando sem precisão. Não consigo meter nem uma bala que seja no atirador, mas a saraivada é tão grande que o faz recuar. É nesse momento que noto que ele tem medo. Retrocede disparando, mas está apavorado. Procura a moto.

— Vamos, vamos — grita ao piloto.

— Escroto, filho da puta! — berra para mim seu parceiro, que também é um cagão.

Livro-me do segundo pente e insiro o terceiro e último. O gorila montou na moto e eles escapam cantando pneu. Lanço uma chuva de chumbo para cima deles, mas os caras saem como um torpedo, viram e sobem a rampa.

Nesse instante, não me serve de consolo o fato de que acabamos de nos salvar. Sinto que sou um verdadeiro inútil por não ter previsto o ataque e por não ter sido capaz de dar cabo desses dois bandidos. Com essa impotência, volto ao Audi para ver Nuria, que não mostra reação nenhuma. Tenho pânico de que uma bala perdida a tenha apanhado, e ao dar a volta vejo que está de olhos abertos e faz uma careta de dor. Eu a toco e a examino com brusquidão, procurando desesperadamente um ferimento, mas não encontro sangue em lado nenhum, então pergunto se ela consegue me ouvir, se está bem. Preciso perguntar mais duas vezes, porque ela parece em choque. E então ela recupera a lucidez e cai aos prantos, e eu a aperto em meu peito para que possa desabafar. Em seguida ela se afasta e me diz, embora eu não a entenda, que seu braço esquerdo dói muito. Precisa repetir com mais lentidão para que eu a compreenda: ela caiu em cima desse braço e é possível que o tenha quebrado. Que engraçado: seu guarda-costas causou mais danos que os matadores que vieram executá-la.

Aparecem vozes histéricas ao redor; pego o celular e tento fazer uma ligação, mas não tem sinal no subsolo. Eu me identifico como policial e peço que chamem uma ambulância. Há uma correria, ordens e solidariedade. Pego Nuria nos braços e a levo para um lugar iluminado. Ela é sentada em uma cadeira e as pessoas a abanam: está lívida, sua pressão caiu. Peço um telefone de linha fixa. Tem um a dez metros. Faço uma ligação curta: digo ao coronel que temos uma emergência total e explico onde estamos.

— Ai, Zeus — xinga ele. E põe mãos à obra. Começando pelo princípio: localizar um comissário da departamental que seja amigo da Casa para que ele intervenha de forma direta e limpe o terreno; depois enviar toda uma equipe de seguranças chefiada pelo saltenho e nosso médico numa ambulância falsa do same para que cuide da ferida. Mais tarde, quando a manobra já estiver em andamento, agirá sobre o tribunal e acertará com dinheiro e contatos a estrutura para que não seja aberto inquérito e o episódio seja transmitido à imprensa como uma simples tentativa de roubo. Cálgaris é especialista em apagar rastros. Ficará ocupado o dia todo.

Os primeiros policiais falam com o chefe de segurança do shopping e me interrogam de má vontade. Nuria nem mesmo responde a eles; segura o braço e aguenta a dor, de cara franzida. Há uma grande roda de curiosos e me sinto nu e irritado. Por sorte, o chefe da departamental chega rapidamente, acompanhado por um colega da Polícia Federal: Cálgaris mandou o Sétimo da Cavalaria. O shopping fica no limite entre a capital e a província, e ele não quer conflitos de jurisdição. Uma funcionária de uma loja se aproxima de Nuria com um copo de água. Os chefes conversam comigo em um canto. Encarregam-se da operação e autorizam que a ambulância entre no estacionamento subterrâneo e nosso médico examine a vítima. O saltenho aparece, tudo é mais lento do que aparenta. Ou mais rápido, segundo o ponto de vista. Injetam um tranquilizante na mulher e a deitam numa maca. Dou instruções ao saltenho, que organiza a caravana. Aperto as mãos dos comissários e vou no interior da ambulância, que dispara com as luzes e a sirene ligadas até uma clínica de Núñez. O médico tenta tranquilizar a paciente:

— É uma fratura leve, não se preocupe. — Tiro seu cabelo da testa e ela pestaneja como se estivesse adormecendo.

É recebida por um ortopedista que dá uma olhada e ordena uma radiografia de emergência. Só me separo de Nuria por alguns minutos para organizar a vigilância: temos um exército postado nos corredores, no térreo, nas entradas e saídas, e na calçada. Fico com a impressão de que hoje não acontecerá muito mais do que isso, mas não há como ter certeza. Talvez os colombianos queiram terminar imediatamente o serviço fracassado da tarde.

Quando volto, um médico me conta que engessaram o braço, colocaram numa tipoia, deram um ibuprofeno e a alta hospitalar. Peço que preparem um quarto para que ela durma na clínica esta noite. Precisamos pensar um pouco melhor nas coisas.

Quando ela sai da ortopedia com o gesso e a tipoia, parece ter recuperado certa calma. Empurro sua cadeira de rodas até o quarto e a ajudo a tirar a roupa.

— Por que não posso voltar para a Juncal? — ela me pergunta baixinho. Não reclama, só está surpresa.

— Porque agora nenhum lugar é seguro — digo com sinceridade.

Ela apoia a nuca no travesseiro, olhando o teto baixo, e uma lágrima escorre pelo seu rosto. Eu a enxugo.

— Olha meu pulso — diz ela, levantando o braço saudável: a mão ainda treme. Penso em Rada, naquela conversa do hospital, naquele pressentimento.

Nuria dorme e escrevo uma mensagem de texto para o saltenho. Quero que mande uma equipe à rua Juncal, verifique se o apartamento está em ordem e o mantenha protegido. O companheiro de Goose Green se apresenta e lhe entrego as chaves. Normalmente ele não tem sentimentos, mas desta vez revela-se mais nervoso do que durante a batalha de Cipolletti, quando teve de trocar tiros de rifle. Reflito um pouco sobre essa inquietação. Tem lógica. O submarino atravessou a linha de pressão e pode explodir em mil pedaços. Descemos demais e não temos como voltar. O casco range e está entrando água. A trégua acabou, dirá Cálgaris. Será a terceira guerra mundial.

Acordam Nuria para lhe trazer o jantar, mas eu o rejeito. Peço a um de nossos rapazes que compre comida confiável num restaurante japonês e um merlot para tornar mais digerível a tragédia.

— Não estou com fome — teima a galega.

Mesmo assim eu a obrigo a se sentar e a comer algumas peças de sushi, que levo à sua boca com os palitinhos. Quando bebemos o vinho em copos de plástico, ela me pergunta o que vamos fazer. É uma pergunta genérica, que pode ter muitos significados.

— Esperar o coronel — respondo. Ela me olha de um jeito estranho. Como se estivesse a ponto de me perder. Depois volta a se recostar e a chorar.

Recebo uma mensagem de Wila. Telefono para ela, resumo a situação e passo para a amiga. As duas conversam; Nuria fala como se tivesse perdido dois litros de sangue. Meia hora depois, chega o coronel, tem um derrame no olho direito e hálito de uísque. Tenta transmitir serenidade. Conto as medidas que foram tomadas para o controle da crise. Ele sugere ligar para García Roldán e elaborarmos juntos um diagnóstico e um plano de ação. Nuria fica indiferente. Acompanho Cálgaris até o corredor. Embora seja proibido fumar ali, acende o cachimbo e enche o ambiente de fumaça.

— Espero que Bragoni leve o que merece — opino.

Ele nega com a cabeça.

— Não precisamos nos precipitar, são nossos sócios que tomam as decisões. — Em seguida, me encurrala: — Eu te falei para não ir para a cama com ela, idiota.

Contenho a irritação. Pode ser desencadeada uma espécie de discussão, mas percebo que em todo caso não será neste momento, nem neste lugar.

— Estamos brincando com explosivo — comenta ele, antes de ir embora.

Volto ao quarto, tranco a porta por dentro e tomo outro golinho de merlot. Nuria abre os olhos e diz:

— Vem.

Mas desta vez não se trata de um pedido sexual. Tiro os sapatos, subo na cama e a abraço. É só isso. A não ser pela madrugada, quando ela roça os lábios em mim e muda de posição, como se sentisse dor no braço. As horas passam devagar quando alguém lida com a insônia e os fantasmas.

Na primeira hora da manhã, transferimos a Mona Lisa para seu apartamento. Parece um destacamento do Grupamento de Segurança e Inteligência da Casa Militar. Está abatida e não consegue sorrir. Tranca-se em seu quarto para falar por três horas com a Espanha. Depois recebe um telefonema de Nova York. Não comenta as deliberações comigo, me mantém à margem. Também não liga para Cálgaris a fim de informá-lo. Só distribui instruções a seus funcionários por telefone e pede que Wila venha na parte da tarde para lhe dar uma ajuda. Quando termina tudo, é mais ou menos meio-dia. Ela se deixa cair no sofá e suspira. Baixa a cabeça como se estivesse criando coragem e quando a levanta, faz uma careta de desgosto.

— Vou amanhã para Madri — anuncia ela com frieza. — Vou sozinha e não sei quanto tempo demorarei para voltar. Talvez não volte nunca. — Avalia minha expressão para ver que impacto a notícia causou. Depois sorri pela primeira vez: — Bom, talvez eu tenha sido um pouquinho alarmista. É claro que vou voltar. — Não manifesto o que sinto; fico calado e indiferente como um cachorro de pedra.

Wila lhe dá um calmante, ajuda a preparar as malas e escreve uma lista com os pedidos, as ordens e as sugestões de sua chefe. Nuria telefona para o capitão Ahab, Pico e Parisi. São diálogos curtos e comerciais, carregados de subentendidos. À noite, recebe Cálgaris para o jantar. Comemos os quatro na Juncal, tendo como música de fundo os solilóquios do velho. Só quem ouve atentamente é Wila. A imperatriz e seu centurião têm a cabeça em outro lugar. No final, acompanho a assistente e o coronel até o térreo, despeço-me deles na portaria e procuro no porta-luvas do 4×4 algo que guardo ali há dias, sem motivo aparente.

— Vou ficar aqui — anuncio a Nuria em tom profissional. Ela me pede que tire sua roupa e que seja muito suave. Mostro o estojo de veludo bordô, abro e coloco o colar de pérolas em seu pescoço. Ela chora, e assim continua do primeiro ao último orgasmo. E nem são muitos; basicamente trocamos carinho por toda essa madrugada, dormindo e acordando, falando bobagens aos sussurros.

— Espere por mim — diz ela meio adormecida. — Não telefone, não escreva, não vá até lá. Só espere por mim. — É uma ordem. Ela segura meu pau, diz que vai sentir muita falta. Cochila até que toca o despertador, e então ela entra no banheiro.

Vai para a sala de estar vestida e maquiada, mais ou menos recomposta. A Nuria de sempre, a não ser pelo gesso e pela tipoia que a ajudo a colocar, e certa careta de dor. Durante a ida para o Ezeiza, que fazemos com escolta especial, ela não fala nem uma palavra. Usamos o circuito vip e fico a seu lado até o último minuto, até a última porta. Vejo as maçãs altas de seu rosto pela última vez. Os olhos pretos, a boca carnuda. Muito rímel e batom. Um casaco ajustado de lapelas largas, blusa e saia na mesma cor, um cinto largo de couro para destacar a cintura, o colar de pérolas sobre o preto brilhante, a bolsa Louis Vuitton. Me dá dois beijos no rosto, à espanhola, como se eu fosse quem sou: ninguém. Mostra seu passaporte e o cartão de embarque e se afasta com os outros passageiros da primeira classe.

Nessa hora fria, tenho esperança de que ela vá se virar para me cumprimentar, ou me enviar uma mensagem de texto antes de decolar. Mas isso não acontece e fico ensimesmado por demais: o saltenho precisa vir me despertar para perguntar se dissolve a operação e dá folga à tropa. O que vou fazer com tanto tempo livre?, pergunto a mim mesmo. Autorizo a debandada e fico examinando uma das livrarias do Ezeiza: compro treze edições de bolso e me pergunto se terei concentração para ler. Dirijo ouvindo o que Nuria não gosta: tangos de Pugliese e Troilo; música de fossa de Buenos Aires. Pretendo levantar peso na Belgrano R, mas me falta vontade e força. Dedico-me à vodca e fico sentado.

Tento recuperar minha vida anterior no café da manhã: preparo um café, um suco de laranja, faço umas torradas com queijo branco e leio os jornais, sublinho os parágrafos com marcador amarelo. Olho de vez em quando o relógio e imagino o itinerário do avião da Iberia. Não falta muito para pousar no Barajas. García Roldán vai buscá-la. Terá dormido um pouco, o que estará pensando?

No decorrer desse dia, vivo olhando o telefone e os e-mails. Visito o escritório para ver se reiniciaram as atividades e se Wila está no comando dos negócios. Pergunto por Nuria, mas nem ela tem novidades. Depois passo pela base Chacabuco para saber como vai a operação de varredura e limpeza. Cálgaris está sereno, já jogou todas as cartas. Informa que García Roldán deu a ordem de não responder à agressão e por enquanto desativar as remessas. Entramos em um impasse.

— Espero que você se divirta um pouco — diz ele, sondando-me com seus olhos azuis. Sugere que eu procure agora mesmo Maca. Leio sua mente: a síndrome do guarda-costas. Mas quando me apresento em seus domínios, por acaso a gorda não está; saiu para comer. Aproveito sua ausência para fugir do divã. Estou muito fraco, quero me encolher.

Também não se comunica no dia seguinte. Evito ficar grudado no celular e no correio eletrônico, dedicando-me ao corpo: corro no circuito dos maratonistas. Hoje pelo trem de la Costa, amanhã por Agronomía, depois de amanhã pela Costanera Sur. Vinte quilômetros. E depois aparelhos, abdominais, pesos. Três vezes por semana, vou à academia de Saavedra e na sexta-feira até luto dois assaltos muito combativos com um campeão que está treinando para o torneio provincial. Se não me tiram de lá, eu acabo com ele. Perguntam se estou louco.

No sábado, sem ter a menor notícia da Espanha, visto o traje de neoprene e o snorkel, e nado no rio, apesar de haver alerta de vento sul. Sinto pontadas nas costas e a marola fica intensa. As ondas me sobem e baixam, e às vezes não consigo divisar a margem. Dou braçadas afastando-me com a percepção de que seria interessante recuperar a indolência perdida. Luto bravamente com a correnteza e o pânico, e tenho a impressão de que percorri uma distância perigosa. Agora fico boiando debaixo da garoa, vejo relâmpagos no céu e avalio seriamente se é possível chegar à margem. É possível que desta vez eu tenha cruzado a linha que não tem volta. Veremos. Nado para a margem num ritmo bom, tentando regular a energia que vai diminuindo, e na metade do caminho começo a sentir cãibras: são duas feras invisíveis que mordem a perna esquerda e a barriga. Boio um pouco mais para ver se passam. Faço massagem, mas não adianta: as dores e as contrações não cedem. Sigo adiante, mas perco o estilo. Avanço como posso: crawl, peito, over. Faço um esforço sobre-humano e quando ergo os olhos, por acaso a margem ainda parece longe demais. Se eu perder a calma estou liquidado, assim penso em Nuria, no ódio profundo que me dá sentir sua falta. Na ferida que essa fragilidade desconhecida produz em mim.

É a raiva que me mantém na rota. Uma fúria infinita contra mim, contra ela, contra todos. Dou braçadas potentes e agonizantes com essa raiva. E por várias vezes vejo se dá pé, sem sucesso. Consigo quando estou prestes a desfalecer e me abandonar, e me é tão custoso alcançar a margem que cambaleio, caio de joelhos, arrasto-me pela fadiga e pelo barro, finalmente me jogo de barriga para cima, derrotado pelo rio.

No domingo, é minha intenção visitar Rosita, mas ela tem um namorado e festeja seu aniversário. Cumprimenta-me com alegria e afeto, mas não me convida a Tolosa. E assim, passo a tarde lendo A carta esférica e bebendo vodca com gelo e limão. Perto do amanhecer de segunda, leio uma linha de diálogo: “Se acontecer alguma coisa”, disse ela de repente, “não me deixe morrer sozinha”. E me levanto do sofá para ver se tem alguma coisa no e-mail. Mas não tem nada.

A semana seguinte a essa é idêntica. Toda noite vou para a cama com os ossos e os músculos moídos, mas não consigo pregar o olho. Ou afundo em pesadelos, como se tivesse febre. Há noites em que sonho com Nuria Menéndez Lugo, que sempre desliza, trai, desaparece. De dia a imagino em seu apartamento do Paseo de la Castellana; à noite, gritando o prazer e as mentiras a seu velho amante naquela casa misteriosa à beira do mar.

Essa sopa grossa e tortuosa se estende por mais dez dias. Em uma sexta nublada, meu celular toca e noto que é Wila; mas a ligação é encerrada quando atendo, depois telefono dez vezes para o celular e o fixo e também para a engarrafadora. Ninguém atende, assim digito o número do chefe de sua segurança: está tomando um vermute em Mataderos; o coronel suspendeu o serviço nesta mesma semana. Telefono a Cálgaris para saber que merda está acontecendo e por que sou o último a tomar conhecimento disso. Cálgaris me atende apressado e ordena que eu me apresente na segunda-feira de manhã cedo na Chacabuco:

— Enquanto isso, não apareça aqui, nem faça nenhuma idiotice — acrescenta antes de desligar.

Sei que está acontecendo algo muito grave e que estou metido nisso. Entro no 4×4 e vou para o escritório, mas não consigo chegar porque a rua está interditada pela Polícia Metropolitana. Passo ao largo de mau humor e ligo o rádio para saber se levantaram a lebre, mas ninguém faz a menor referência. Não me aguento com meu gênio e me meto no segundo cordão da Grande Buenos Aires. Encontro a engarrafadora fechada a chave e cadeados, embora sem segurança. O coronel também suspendeu o serviço: prevê que de uma hora para a outra a Federal dará uma batida. Vou à pensão de Liniers, mas Rossi saiu faz uma hora. Não demoro muito para encontrá-lo em um bar da estação. Está manso e tranquilo na frente de uma cerveja. Sugiro que ele pegue um ônibus para o norte e se reporte diariamente. Não pergunta o que está acontecendo porque é uma raposa velha e porque não tem como falar, mas me faz um gesto com a polpa dos dedos: dou a ele todo o dinheiro que tenho comigo. Se Cálgaris se inteirar dessa transgressão, vai arrancar minhas unhas com um alicate.

Durante todo o sábado, fico postado diante dos canais de notícias, ouço rádio, espero e me desespero. De madrugada, cometo outra imprudência e percebo que não estou em meu juízo perfeito. Estaciono o 4×4 a dez quadras da Juncal e ando no escuro com a esperança de subir ao décimo quarto andar, entrar no apartamento de Nuria, vasculhar suas roupas, ouvir seus discos e levar para casa um frasco de Chance Chanel. Mas tem um patrulheiro na frente do prédio e dois vigias com armas pesadas e colete à prova de balas fumando na rua.

Na noite do domingo, o sinal vermelho se acende. Um procedimento em uma engarrafadora da província de Buenos Aires: “Traficantes tentavam exportar quatrocentos quilos de cocaína em garrafas de vinho”. Uma hora depois, vem um repórter transmitindo ao vivo. De cada três informações que ele verbaliza com dificuldade, duas são incorretas. O comissário disse que não foi confiscado cloridrato de cocaína no lugar, mas que encontraram elementos técnicos e químicos para sua diluição: são idênticos aos que foram utilizados em Munro durante aquela famosa investigação de 2004. A fonte garante que a essa mesma hora estão dando outras batidas em um galpão de Lanús e no porto de Mar del Plata.

Subo pelas paredes, xingo em todas as línguas, me borro de medo. Espero com ansiedade os jornais da manhã, visto-me e vou pegá-los na banca da Virrey del Pino. A notícia não tem muita importância, exceto para o Crónica, que a edita com um estardalhaço e fotos do interior da engarrafadora. O jornalista anônimo afirma que no Departamento de Drogas Perigosas é chamada de “Operação Dama Branca”, embora ainda não se tenha entendido qual é o motivo. Eu rio sob a ducha gelada. Não consigo acreditar. Depois visto a roupa preta que foi presente de Nuria e um impermeável, porque está chuviscando, e me dirijo cheio de ansiedade à Casinha. Quando entrego a Glock para passar pelo detector de metais, o oficial da guarda me pede que traga assinado o formulário G quando sair. Pergunto às secretárias de Cálgaris o que eles querem. Estão muito ocupadas destruindo documentos nas cinco fragmentadoras Dasa. Mas uma delas, a mais feia, para a fim de olhar uma pasta e pegar um papel para mim. O formulário G: como pude me esquecer? É a planilha que assino sempre que devolvo a arma regulamentar e me entregam uma nova. Um recibo com a história completa de minhas ferramentas, como mudança nos modelos, marcas e calibres, como o passar dos anos. Imagino que desta vez não haverá troca. Que a partir do depoimento, para a Secretaria de Inteligência, sou oficialmente um agente desarmado.

Assino, jogo na mesa de centro meus pentes e entro no gabinete do velho fumando um Parisienne. Até nos piores momentos, toca Mingus. Também flutua o aroma de cem cachimbos. Cálgaris está impassível, porém despenteado, e tem os sapatos sujos. Vejo que toma um copo de Talisker e pressinto que passou a noite toda acordado, destruindo a papelada confidencial. A cpu de seu Mac está guardada em uma bolsa esportiva e outra guarda pen drives, discos, pastas e fotografias. Tem em sua mesa a maleta, a nécessaire e sua 38 Special, que não está registrada no formulário G.

— Operação Dama Branca — solto com sarcasmo.

Ele não abandona as folhas de um caderno com capa de couro. Vai de um lado para o outro, como se procurasse uma anotação. Mas faz isso de pé, à luz de uma lâmpada e com os óculos bifocais.

— Estamos cercados — diz, e continua folheando as páginas. — Cercados de inúteis e filhos da puta.

Gostaria de lhe dar um tiro na têmpora, mas mantenho a compostura. Ele balança a cabeça e se dá por vencido. Coloca o caderno na mesa e começa a arrancar as folhas. Não é uma tarefa fácil: ele fica vermelho. Depois joga para mim e faz um sinal para que eu o destrua. Enquanto o destruo, ele toma outro gole de uísque.

— Vamos começar pelo início. — Ele me surpreende. — Eu te falei para não ir para a cama com aquela mulher.

— E o início é esse?

Ele dá um soco na mesa.

— Não, imbecil, isso é só uma cagada! Uma tremenda cagada!

— De novo? Que relação tem com toda essa confusão?

Ele fica me olhando por uns segundos, como quem brande uma foice.

— Nuria desapareceu há sete dias — diz por fim e tira os óculos. — Sete. E há três pediram resgate. O que acha disso?

Não saio de meu espanto, sinto algo parecido com uma náusea.

— Quem? — pestanejo.

— Sei lá. — Ele dá de ombros. — Concorrentes. Aparentemente a pegaram na rua. Estava em Vigo. Ia almoçar com os sérvios e não chegou ao local. Roldán pensou que seriam matadores de aluguel e que estavam terminando o trabalho do shopping. Mas não. Mandaram para ele uma prova de vida e pediram um milhão de euros. Mas pensamos que não se trata de grana, mas de outra coisa.

Solto o ar que tenho nos pulmões; o cigarro apaga entre meus dedos. Vem à minha cabeça as imagens de Nuria sob o jugo do terror. Sinto uma dor nas costelas, como se tivesse uma lança cravada ali.

— Não entende? — diz ele, revirando a lança. — Dormir com aquela mulher não saiu de graça. Tudo tem um preço.

Ele termina o uísque de um gole só e volta ao banheiro para urinar ou trocar de roupa. Me dá tempo de tentar me recompor. Ainda estou nisso quando ele sai transformado em um marinheiro de água doce: calça preta, camisa branca, lenço no pescoço, casaco de linho, tênis náuticos.

— É evidente que o sequestro está relacionado com essa jogada dos federais — digo para ganhar seu respeito. — Não pode ser uma coincidência.

Ele tira do gancho um sobretudo preto e o veste.

— Isso é óbvio, o óbvio não adianta de nada — responde. — A verdade é que não sabemos onde pisamos. Estamos enrolados.

Ele me ordena que leve as bolsas e lembra às secretárias que elas têm até o meio-dia para acabar de destruir os papéis. Depois virá o intendente, cortará a eletricidade e lacrará os andares. As mulheres laconicamente desejam boa viagem. Descemos em silêncio até o subsolo e colocamos sua bagagem no 4×4. Não preciso que me diga o destino final: é o porto de Olivos.

— Alguém passou os dados e não nos deu tempo de frear inteiramente a operação. — Ele se lamenta. — A federal perguntou no Ministério e deram carta branca. Depois tudo se acabou. Mas eu te garanto que eles sabiam muito bem o que procurar quando entraram no escritório. Foram rápidos e precisos. Prenderam Wila e os outros, e conseguiram que o juiz os autorizasse a dar uma busca em três contêineres de merluza que estávamos transportando.

— Quanto foi perdido?

— Mil quilos, mas isso não é nada. — O coronel abre um pouco a janela e acende o cachimbo. Passamos a vida nos preparando para situações inesperadas, mas quando elas chegam, mal podemos com elas. — O mais delicado é que na central estão muito irritados comigo. Por ora, vamos desativar a Casinha até que a poeira baixe. Ninguém sabe que nível de profundidade tem essa merda.

— É um ataque surpresa — digo.

O chuvisco passa a uma chuva forte. Penso em Wila, tenho pena de seu infortúnio. Lembro como Wila nos olhava naquela festa de Pilar. Deduzo que o telefonema que não consegui atender era um pedido de socorro: a polícia apareceu com uma ordem judicial e ela não sabia a quem recorrer. É evidente que algumas horas antes alguém da Casa soprou o que aconteceria a Cálgaris, por isso o coronel conseguiu levantar os guardas que havíamos posto.

— Se ainda entendo um pouco do riscado, vão tentar nos deixar à margem do processo por todos os meios — acrescenta com uma baforada. — Mas veremos, Remil. Veremos.

Tenho cem perguntas, mas não posso verbalizar nenhuma. A chuva não passa de uma pancada; diminui quando chegamos a Olivos. O Aubrey balança no ritmo da maré. Levo as bolsas a bordo e as acomodo no segundo camarote.

— Sabe qual foi a prova de vida? — pergunta ele a mim. Está preparando um café expresso. — Uma foto com o jornal do dia. Ela aparece calma, mas perdeu vários quilos. A primeira coisa que me perguntei é se era a cara de alguém que sofreu tortura. Não me pareceu.

— Não entendo — confesso com franqueza.

— Nuria era candidata a ser a informante. É raptada e canta sob tortura: não me parece despropositado. Mas não se preocupe, não vai incomodar.

— Isso não me preocupa — irrito-me.

— Sei que há uma sequência nisso tudo, mas não consigo decifrar qual é a pedra de toque. — Ele parece furioso.

Tomamos o café quente, sentados à mesa onde Nuria e eu mostramos as cartas pela primeira vez. “O que mais o desqualifica são essas medalhas por heroísmo. E que no íntimo você pense ser um herói infame, soldadinho.”

— Se a Casinha cair, a Casa cai com ela — acrescenta o coronel como se fosse um trava-língua. — E é aqui que está nossa força. Mas isto sim: somos obrigados a nos desligar, a sair do palco, a ficar mudos. Sumir do sonar.

— E o que isso quer dizer exatamente? — Sinto o café queimando minhas entranhas.

Cálgaris faz algo que me surpreende: morde com força a piteira, a parte e cospe, e joga o cachimbo inútil na parede. Depois parece recuperar a calma que o caracteriza.

— Estamos desmobilizados, Remil. Sumimos por um tempo para que eles não possam sumir com a gente.

— Eles virão atrás de mim?

— Sinceramente, não sei.

Terminamos o café sem saber o que dizer. O velho se levanta com dificuldade e me avisa que vai soltar as amarras. Subimos ao convés e, juntos, vemos o horizonte limpo. Parou de chover, mas a temperatura caiu. Faz muito frio.

— Some, Remil — diz ele, como despedida. — Some.

Não o abraço, nem estendo a mão, nem me curvo, nem o olho. Desço a terra, ando pelo píer e me sento em um tronco. Fumo um pouco com as golas do impermeável levantadas. O veleiro sai lentamente do porto. Sinto uma solidão opressiva.