xi. O fundo do poço

A primeira atividade da manhã consistia em injetar um vírus destrutivo no computador da Belgrano R e depois preparar a mala, retirar os pen drives do rodapé secreto e esconder tudo na traseira do 4×4. Por enquanto não vou a lugar nenhum, mas fui treinado para prever qualquer contingência. Vou à filial do Banco Francés, na esquina da Cabildo com a Pampa, e peço para ser levado ao subsolo, onde estão os cofres de segurança. Guardo em uma pasta as cópias de meus arquivos digitais, que contêm muitos segredos de Estado e que são um verdadeiro seguro para negociação, e enfio na cintura o velho revólver 357. Tem um coldre e duas caixas de balas dentro de um cofre. Volto a sentir de corpo e alma o peso dessa bazuca no rim esquerdo.

Em um café da esquina, olho os jornais, mas só destaco com o marcador os textos ligados a meu interesse particular. Não são muitos. Quase todos os editores tomaram a notícia como ponto de partida para uma série de artigos sobre o avanço do narcotráfico na região e também sobre os motivos pelos quais a Argentina se transformou em um dos principais exportadores de cocaína do mundo. Detenho-me em um boxe que fala do juiz responsável pelo processo: é da Federal, mas há anos ajeitamos para ele um conflito incômodo que tinha com um cunhado. Em um jornal de economia de cor salmão, leio duas vezes o comunicado do capitão Ahab à mídia, onde se isenta de toda responsabilidade pelos procedimentos policiais realizados em um barco de sua empresa. O barco estava atracado em um píer do porto de Mar del Plata. De fato, o capitão se dá ao luxo de sugerir nas entrelinhas que a pista era falsa: os detetives não encontraram nada em seus contêineres. E se encontraram — penso eu com um sorriso forçado —, ficaram com a mercadoria e meteram a viola no saco. O juiz não os chamou para interrogatório, nem mesmo para testemunhar. Ahab se salvou por pouco, mas tenta limpar seu bom nome e sua honra, e curar a saúde.

Fumo ao sol, enquanto peço outro americano, e me pergunto até onde essa merda vai subir. A Casa está ocupada em acobertar o problema, porque tem suas próprias maracutaias para esconder e porque é politicamente responsável por Cálgaris. E os detidos não sabem muito: Nuria sempre compartimentalizou seus negócios e lidou com células desconexas em toda sua empresa de transporte. Os “aviões” e os armadores de empresas fantasmas podem fazer a lavagem de dinheiro, mas não têm ideia da origem da cocaína. Nem como chegava e por onde saía. A equipe de transporte e segurança montada pelo coronel e apoiada pelo falecido Rada foi retirada da rua bem a tempo: o piloto, os motoristas e os vigias estão fora e mais ou menos a salvo. E Elena Parisi não pode ser tocada. Talvez nem mesmo saibam realmente que ela esteja relacionada com o tráfico. Um juiz federal intui o perigo. E uma senadora nacional que vota na promoção dos juízes do Conselho da Magistratura merece pelo menos uma distração.

O lado mais fraco ainda é Wila. Se ela ceder, vamos todos em cana. Porque, perante um testemunho de tal calibre, um juiz assustado pode subtrair dos autos parágrafos comprometedores ou divergentes num golpe de caneta, mas não pode fazer ouvidos moucos ao núcleo: Nuria, Roldán, Balduin, Pico. Será o poder de Parisi suficiente para proteger Javier Pico? E será verdadeiramente possível que o juiz ignore o sujeito que trabalhou diante de gregos e troianos como o guardião da Mona Lisa? Não há motivos para ser muito otimista.

Nestes dias de clandestinidade, abandono minha rotina. Apago os circuitos habituais e tiro da cabeça a ideia de lutar com qualquer um no ringue de Saavedra. Procuro uma academia simples na periferia e passo seis horas levantando pesos, pedalando na bicicleta ergométrica e lendo sem muita vontade romances sobre cartagineses e gregos. Estaciono o 4×4 e tiro uma sesta prolongada. À noite fico acordado, sóbrio e atento, com o revólver à mão, assistindo aos noticiários da tv a cabo e vigiando os movimentos da rua. Nessas horas, penso em Nuria, evoco o sabor de sua pele e os quatro ou cinco tons de sua voz, e me vêm imagens de nossas viagens e de nossas conversas. Procuro montar um quebra-cabeça. Desenvolvo minhas ideias num bloco, com um lápis e uma borracha. Escrevo e apago sem conseguir fechar o círculo, e de madrugada sempre chego às mesmas hipóteses. São duas. A primeira me faz tremer: um falso sequestro. Belisario e Roldán acreditam que as coisas foram longe demais, que os colombianos não vão ceder até arrebentar com ela e então abortam o negócio, tiram-na do país e queimam tudo pelo caminho. Entregam informações como quem divide carne entre as feras, para que fiquem satisfeitas. E sacrificam Wila. Correm o risco de ser envolvidos, mas talvez imaginem que podem conseguir com suborno uma pena menor e retirá-la o quanto antes. É uma hipótese ridícula: ninguém dá um tiro no próprio pé. Ninguém que chegou tão longe se assusta com tanta facilidade. Ninguém que se dedicou a articular um sistema de proteção e de lavagem de dinheiro se retira entregando todo mundo.

A segunda teoria parece um pouco mais sólida. Os colombianos que não conseguiram liquidar Nuria a sequestram em Vigo para negociar uma indenização e fazer seu chefe entregar os pontos. Ao mesmo tempo, alertam a Polícia Federal sobre o funcionamento da organização. Matam três coelhos com uma cajadada: comem a rainha, o rei é acossado e seus bispos e peões, destruídos. Xeque-mate. Mas me parece estranho e bombástico. Não tenho ingenuidade suficiente no sangue que me permita engolir esse filme inteiro. Deve haver outra variante, mas não consigo chegar a ela e termino riscando o bloco e mordendo os lábios.

Os jornais do fim de semana trazem reportagens muito longas sobre a “Operação Dama Branca”. A mesma fonte espalhou as mesmas informações. Reflito sobre o que está escrito, parágrafo por parágrafo, mas não consigo acreditar em quase nada. Não falam em Nuria Menéndez Lugo, mas fazem alusão a ela como uma traficante de drogas espanhola temível e misteriosa que fugiu para o exterior. Em uma lan house, passeio pelos portais dos jornais de Madri; só a descoberta tem cobertura. Parágrafos, notas de pé de página, pouca relevância. Há anos que descobrem esse tipo de operação: que diferença faz uma mancha a mais no tigre?

Quando cai a noite de domingo, insiro o cartão em um caixa automático para sacar dinheiro e descubro que está cancelado. Com a boca seca, telefono para o 0800, mas não podem me dar informação nenhuma. Janto sem vontade um frango xadrez em um restaurante do bairro chinês e tento pagar com três cartões diferentes. Nenhum dos três tem crédito. Ligo para Palma de um telefone público da Juramento com a Obligado, e ele me passa com pressa um número direto e pede que me comunique em duas horas. Ando cinquenta quadras, tomo uma cerveja na Colegiales, volto à área de Álvarez Thomas e por fim dou o segundo telefonema.

— Você está grampeado — diz ele rapidamente e aos sussurros. — Precisa se livrar de tudo. Também do notebook. O 4×4 está limpo, mas é melhor não confiar. A Caverna não pode te ajudar. E não volte a telefonar para nós. Fico muito triste com isso, é sério. Somos amigos. Mas não volte a telefonar, ou eu te entrego.

Vou ao 4×4 e prendo o cinto de segurança. Dirijo com cuidado, olhando o retrovisor, cheio de paranoia e de raiva, até o canto final da Costanera Norte. Piscam luzes no rio; as carrocinhas já fecharam. Jogo o notebook na água com toda a força, depois faço o mesmo com os dois celulares que levo comigo. Atravesso a General Paz, desço uma ladeira, viro para a direita e estaciono embaixo de uma tília. Pretendo dormir, mas o cérebro não para de rodar e os vidros ficam embaçados. A merda vai me afogar, penso. E sinto rancor e um gosto metálico na língua, uma nova acidez no estômago. Ligo o rádio e ouço os jornalistas lendo em voz alta os jornais e tirando conclusões precipitadas. Tomo o café da manhã em uma pizzaria e olho o relógio umas cem vezes. Pressinto que me coloquei em evidência ao me desconectar: se eu fosse meu perseguidor, conseguiria uma ordem judicial para dar uma busca no apartamento. Ponho gasolina em um posto de Maipú e toco para o centro. Primeiro passo na frente do escritório, que tem um policial uniformizado na soleira; depois passo pela Chacabuco só para confirmar que o prédio ainda está fechado e às escuras; enfim insisto com a Juncal, vendo-me na mesma paisagem cercada e desoladora. O giro pela cidade termina na Belgrano R: são três patrulheiros, um carro de assalto e dois veículos civis. Não tenho trabalho, nem cartões de crédito, nem casa, amigos ou refúgio. Tudo que um dia ganhei, eu perdi. E isto é só o começo.

Toco para o sul, usando mecanicamente o plano B, e dirijo entre raivas e ódios. Também com a sensação de ter sido abandonado à própria sorte. Quem sou eu agora, sou um proscrito? Quem vai ficar comigo, agora que não tenho armadura? Engulo a saliva, admito que a garganta dói um pouco. Se eu fosse meu perseguidor, pediria imediatamente ao juiz meu mandado de prisão. A Casa não pode permitir que minha cara apareça na mídia: estaria violando a lei de Inteligência e o regimento interno. Mas não poderia fazer muita coisa diante de uma ofensiva judicial dessa envergadura. Imagino com perfeição o teor das discussões dos diretores de Contrainteligência e de Operações na sala oval. O melhor que pode nos acontecer é Remil não mostrar a cara. Pelo menos até que o entusiasmo passe e possamos manipular o escritório e amortecer os efeitos colaterais. A Federal vai aproveitar para jogar a culpa em nós. Estão loucos por isso. Muito bem: se Remil é tão idiota de se deixar caçar, que pelo menos deixe a vida tentando. O fuzilamento, neste caso, é mais conveniente para nós do que a prisão.

Percebo que é uma guerra fria e surda, e que os ganhos e as perdas serão computados acompanhando a saga pelos jornais. Não restará outra alternativa ao governo senão negociar discretamente para não ser manchado pela porqueira. E a oposição vai pisar em ovos quando souber que Cálgaris está acossado nas cordas: o coronel fez favores sem discriminar partidos nem bandeiras. Essa visão do conjunto, porém, não melhora minha situação pessoal. Posso ser moeda de troca, isto é: variável de ajuste e bode expiatório. Eu valho mais morto do que vivo.

É perto do meio-dia quando chego a La Plata. As persianas do chalé da esquina continuam abertas e noto que Rosita mandou pintar a fachada. Coloco o 4×4 na rampa da garagem e toco a buzina duas vezes. Há um movimento em uma janela, depois ela abre a porta. A viúva vem pelo caminho do jardim com um sorriso curto; enxuga as mãos no avental. Observo que tingiu o cabelo e não o usa mais preso.

— Que milagre — está dizendo.

Pergunto se posso guardar o 4×4. É claro. Volta segundos depois e sai com o chaveiro. A garagem cheira a desinfetante. Nós nos cumprimentamos com um beijo no rosto e um abraço assexuado e amistoso.

O interior do chalé já não me parece tão sombrio. Rosa trocou os móveis de lugar, comprou alguns novos e redecorou os quartos. Aquele onde morreu o meu sargento está irreconhecível. Sento-me à mesa da cozinha e ela me pergunta se quero comer uma lentilha requentada. Retira do freezer e a põe no micro-ondas. Abre um vinho barato.

— Vendi o Peugeot e o terreno na Gonnet — explica Rosita. — E decidi dar uma sacudida. Esta casa precisava de uma levantada, e eu também.

— Esse visual fica lindo em você — digo, com cansaço.

Ela dá de ombros enquanto arruma o jogo americano e os talheres.

— Cada um se arranja como pode, Remil.

Vejo através da tela o quintal, a parreira e as plantas floridas.

— Está com um namorado.

— Um senhor de Tandil — confirma. — Representante comercial. Separado, três filhos. Uma boa pessoa. Vou apresentar a você.

— Não acho que seja necessário.

Ela me olha por dez segundos para entender minha resposta, depois me serve o prato enquanto põe o dela para esquentar.

— Vai comendo, não espere por mim. Come, senão esfria.

Provo a lentilha, que tem pedaços de presunto, toucinho e chouriço vermelho. Está gostosa, mas não tenho muito apetite.

— E seu namorado é do tipo falador, ou calado? — pergunto.

Antes de me responder, Rosita pensa um pouco. O apito do micro-ondas a desperta. Ela retira seu prato fumegante e se senta de frente para mim. Sopra um pouco a lentilha antes de provar. Ataca a primeira colherada e assente.

— Calado.

Há muitos anos não tomo um vinho tão ruim. A boa vida me estragou. Coloco soda do sifão.

— As coisas vão mal? — Ela me pergunta.

— Muito mal.

Rosita viu e viveu o suficiente para encerrar o assunto e não fazer perguntas idiotas.

— Nós nos vemos nos fins de semana — diz apenas. — Um aqui, outro lá. Posso dizer a ele que tenho parentes e que prefiro ir a Tandil dois sábados seguidos.

— Mas eu não sou parente seu.

— Ele é ciumento.

— Entendo.

Não falamos muito mais durante o resto do almoço. Ela fica lavando os pratos enquanto vou à garagem e pego a mala. Monto o forte num quarto lateral que dá para os fundos. Visto uma roupa esportiva, coloco o 357 no coldre da mesa de cabeceira e vou para o quintal. Rosita fumiga umas flores. Deito-me na rede paraguaia e me balanço. Ela está falando do bairro e de novidades miúdas, e acabo dormindo com esse arrulho banal e familiar. Ao acordar, entendo que a sensação de segurança é completamente enganosa. Olho pela janela à direita e à esquerda com o binóculo para saber se não há movimentos estranhos, mas tudo me parece muito tranquilo. Noto que Rosa me observa e fujo de seu olhar. “Que cagada te trouxe aqui?”, ela está tentada a perguntar. Mas sabe que, nessas paragens, é melhor não saber.

Só conversamos um pouco de banalidades enquanto vemos televisão e tomamos mate. Noto que quando estamos sentados juntos no sofá da sala de jantar, ela se afasta o máximo que pode, cruza os braços e as pernas, nunca toca no cabelo, e olha para mim de forma errática. Somos treinados na linguagem não verbal: Rosita, inconscientemente, repete o gestual clássico. Mas não precisa de tantos para-choques, porque não tenho ânimo de trepar com ela, nem com ninguém.

De noite, na sobremesa, ela me fala um pouco do namorado. Não cai nunca na vulgaridade, mas me dá a entender que é um projeto importante. Pergunto se posso ir ao bunker. É claro. Mas antecipa que o tesouro do sargento foi consideravelmente reduzido. Empurro com o ombro a cristaleira do aparelho de jantar; encontro o fecho prateado, puxo, abro o alçapão e me agacho para acender a luz do sótão. A escada apodrecida range quando desço. Acendo outra lâmpada e também o sol da noite que fica pendurado em uma viga.

Como não tenho pressa, passo a mão na farda de combate e nas medalhas. Experimento a Fal, que está travada e estragada pela ferrugem, e passo algum tempo olhando as fotos de Monte Longdon. Quase não me reconheço em uma delas, junto do sargento e de outros sete rapazes. Quase não reconheço aquela expressão imberbe e aquele corpo magro e comprido. Parecia um adolescente disfarçado de soldado.

Mais tarde, coloco em uma bolsa Adidas o ak-47S, os pentes curvos, todos os cartuchos que cabem e algumas balas de ponta oca para a Magnum 357. Dentro da maleta, reencontro os maços de euros e dólares. Diminuíram, mas ainda há alguma coisa. Pego também os três passaportes e separo especialmente o que pertence ao falso professor Conde para dar uma olhada: minha foto tem barba e o cabelo cortado à escovinha. Conseguir essa barba vai me consumir sete dias; talvez Rosita tenha a máquina para o corte militar, porque o sargento raspou a cabeça até sua morte. Fecho tudo, apago as luzes e subo com o armamento. Depois baixo o alçapão, que é muito difícil de detectar, e empurro a cristaleira de volta. Levo a bolsa para a garagem e troco pelo traje de neoprene, o snorkel e os pés de pato. Não vou poder nadar no rio nesta primavera. Tiro uma chave de fenda da caixa de ferramentas e troco a placa atual, que também é falsa, por outra que pertence ao carro de um constitucionalista. Preciso preparar o 4×4 como se fosse uma casa sobre rodas, porque não sei quando terei de sair, mas sei que quando a hora chegar será tudo rápido e não haverá muito tempo para juntar as mochilas. Os três passaportes vão para o porta-luvas.

Programo o despertador para as quatro e meia da manhã e durmo desassossegado. Quando por fim caio no poço do sonho, não troco tiros com a polícia, nem vago pelas trincheiras de Monte Longdon, nem mesmo converso no “paiol” com o fantasma de meu sargento-mor. Sonho com Nuria, e são cenas domésticas, sem significado nenhum. Mas, ao acordar, tenho uma nova angústia. Uma vez ouvi em um documentário dedicado ao funcionamento do cérebro que em certas ocasiões lembramos para esquecer. Passamos de vez em quando sobre os sulcos do mesmo disco a fim de apagá-los. Como se a repetição eliminasse a memória em vez de preservá-la. Talvez eu esteja tentando esquecer a Mona Lisa para sempre, fazendo uma espécie de duelo íntimo quando fico obcecado por aqueles dias.

Preparo uma mochila e saio para correr de tênis e moletom. Corro dez quilômetros de ida e dez de volta entre a escuridão e os primeiros raios do sol. A essa hora, quase não cruzo com ninguém, e compro quatro jornais em uma banca. Paro a trezentos metros e avanço com cuidado, atento para evitar o nascer do sol e que a entrada no chalé seja o mais rápida e discreta possível. Rosita me espera com um café coado e biscoitos amanteigados.

Tomamos o café da manhã, repassando as notícias. Não há nenhuma referência à Operação Dama Branca. Sempre há um descarrilamento de trem, com seus mortos, ou falam das sequelas trágicas das enchentes, ou revelam casos de corrupção, e assim umas calamidades cobrem as outras e a vida nacional segue seu rumo.

Leio os jornais por horas a fio, como se escondessem uma verdade oculta, e à tarde me dedico aos abdominais e às flexões. Fico exausto. E Rosita me prepara um banho de banheira. Dentro da água e do vapor, a portas fechadas, flutuo em uma terceira hipótese. Belisario descobriu que Nuria o traía comigo, enlouqueceu de vingança, assassinou-a e cancelou todo o negócio. Saio da banheira com a certeza de que isso é uma bobagem. Mas fico acordado até tarde, virando-me na cama. “Todos nós estamos envolvidos por motivos pessoais de ordens distintas”, pensava Roldán. “Nuria precisa de uma lealdade que vá além dos negócios.” A filosofia wakashudo: os grandes xoguns e seus jovens amantes dispostos a dar a vida pelos senhores no campo de batalha. Ao voltar a correr na madrugada escura, me pergunto se não estaria nos planos de todos, inclusive na cabeça de seu velho amante, o fato de que o guarda-costas se envolveria com a rainha. E se não foi uma exibição de raiva, ciúme e resignação aquele espetáculo barulhento que o chefe máximo dedicou a mim na casa vazia do Cantábrico. Ele sabe que ela terá de me receber entre os lençóis, ele mesmo ordenou, mas não permite que o faça sem antes marcá-la com seu pau. Como faz um macho animal ou um cafetão.

Na volta, estou tão distraído que não consigo ler bem os jornais. Nuria fingiu sua paixão? Para ela, foi tudo uma questão de lealdade e dinheiro? A dúvida dói em mim o suficiente para que eu me castigue como nunca na malhação. Digo a Rosita que não sinto fome quando ela vem anunciar que a mesa está servida, e continuo até a exaustão. Ofegante, deito-me na rede e penso, envolto em suor e endorfinas, que gente como Belisario Ruiz Moreno jamais deu fim a um empreendimento milionário por um mero impulso hormonal. Não, não. Vamos repensar tudo. É possível que Nuria tenha cumprido a missão de me colonizar com seu corpo e que depois a brincadeira tenha saído do controle. Só o que é certo é que a sequestraram e ao mesmo tempo delataram a organização.

De banho tomado e razoavelmente acordado, vigio a rua com o binóculo, depois entrego a Rosa todos os maços de dinheiro do subsolo. Peço que guarde a metade que lhe corresponde e que amanhã mesmo trocarei o resto em uma casa de câmbio. Que procure usar no mercado negro para que nem mesmo fique registrado seu documento. A viúva aceita o pedido com submissão e enche meu prato de macarrão. Há dias não tenho apetite, sinto dor no estômago, mas devoro a comida por educação e também por conveniência nutricional. Esta noite, levo os jornais para a cama e desmaio sem ter lido. Nem nesse dia nem nos dias que se seguem, aparece notícias de meu interesse. Só se fala, em uma breve nota de boato, que Elena Parisi viajou com o marido à Austrália para receber uma condecoração por seu trabalho longo e contínuo no fortalecimento da amizade entre os dois países.

Na sexta-feira, a viúva não sai da cozinha. E à noitinha me diz, tirando as luvas de borracha, que deixa na geladeira para mim comida para os três dias de ausência. Pegará um ônibus pela manhã e voltará na terça-feira. Imagino que seria justo agradecer a ela por todo o incômodo, mas não estou disposto a isso. Jantamos com a televisão servindo de fundo, cheios de muitas vozes que não são as nossas. Quando volto de minha maratona de madrugada, ela já partiu. É estranho o silêncio na casa. Depois dos exercícios, tento ler um livro sobre Nefertiti, mas ainda não tenho a paz interior necessária. Ando pelo chalé como um tigre enjaulado, olhando gavetas e passando a mão em objetos. Descubro que Rosita guarda no armário de seu quarto o relógio Omega do sargento e a caderneta com sua última vontade. Também vejo pela primeira vez, em um quarto de cacarecos, a cadeira de rodas dobrada. Algo me leva de volta ao sótão, talvez o tédio pela nostalgia. Fico a tarde toda sentado, lendo jornais velhos sobre as Malvinas. Também recortes da imprensa sobre a batalha de Monte Longdon. O major Carrizo Salvadores se comunica com seus chefes de Puerto Argentino: “A situação é crítica. Ordeno ao tenente Hugo Quiroga um contra-ataque. Outra luta corpo a corpo. Há baixas de ambos os lados. Foi possível estabilizar a frente de ataque inglês, mas o fogo da artilharia inimiga continua. Os projéteis estão por toda parte, a metros de onde tínhamos o comando. Os ingleses estão nos cercando. Peço reforços e chega uma tropa sob o comando do tenente Raúl Castañeda. Faz um contra-ataque pelo setor noroeste. São três horas da madrugada. Castañeda tem sucesso. Os ingleses batem em retirada”.

Repasso cada dia, cada evolução e cada morto como se o sargento estivesse do meu lado pedindo que eu recitasse a velha lição. Mais tarde volto à realidade: se a Casa não conseguir manipular a investigação judicial, nem impedir a influência dos federais, este chalé pode ser descoberto com certa facilidade. O que acontecerá com esse arsenal se o acharem? Para começar, Rosita ficaria comprometida até as tampas por posse de armas militares.

De imediato, entendo o que devo fazer. E o propósito é tão pesado que me distrai por quatro horas e me enche de um entusiasmo raro. Terapia do trabalho para um preso. Enrolo as armas, a munição e os explosivos em sacos de lixo e lacro a vácuo. Transfiro a mercadoria para o 4×4 em várias viagens e procuro picareta e pá no quintal. Janto algo leve, espero pela noite fechada e abro as portas. Dirijo com extrema cautela e vou para a rua. Faço trinta quilômetros e me desvio por uma estrada secundária, depois por outra, atravesso uma antiga porteira e estaciono debaixo de uma árvore. É o descampado que usamos tantas vezes como estande de tiro. Só ouço os grilos sob a lua minguante. Procuro uma área de terra mole, tiro o casaco, o pulôver e a camisa, e ilumino o lugar com uma pequena lanterna de acampamento. Então, começo a abrir a cova. Um buraco considerável que me consome três horas de picareta e pá. Quando termino, estou todo suado e dolorido. Xingo a mim mesmo em voz alta ao sentir a sede arrasadora e perceber que não trouxe nem uma garrafinha de água. Coloco os sacos, que a essa altura pesam uma tonelada, e também a mala com o pen drive e os discos do rodapé e do cofre; vão para dentro de um náilon preto, com uma Smith & Wesson carregada, por precaução. Um cara como eu nunca sabe quando precisará de uma segunda opção. Só sabe que precisa estar preparado para quando isso acontecer.

Levo mais duas horas para tapar o fosso retangular e longo, piso o terreno e encho sete sacos com a terra que sobrou. Olho o trabalho com certa objetividade e de diferentes ângulos, e me convenço, talvez erroneamente, de que, se por acaso alguém andar por esse campo intransitável, não notará nada de estranho. É um lugar sumamente inóspito, com ondulações e de relevo irregular; teria de possuir as informações precisas para saber onde cavar, e isto só pode ser arrancado de mim sob tortura.

Ainda fico um tempo contando os passos a partir de um barranco até uma corticeira inclinada. Procuro memorizar essas coordenadas, na esperança de um dia voltar e desenterrar tudo. Enxugo o tronco e os braços com uma toalha e me visto. Depois avanço quatrocentos metros com o 4×4 e espalho a terra do primeiro saco. E sigo adiante. Depois de cada trecho, paro e repito a ação: vou espalhando os restos ao longo de vários quilômetros de serranias e de nada. O pó que volta ao pó. Quando entro na cidade, paro em uma caçamba e me livro dos sacos. É quase dia e estou despedaçado, sem energia nem tempo para correr, para fazer flexões ou abdominais. Tomo um banho e durmo até as seis da tarde. E no domingo retomo a rotina. Os jornais não publicam uma única linha sobre a dama branca. Penso em Nuria. Hora após hora, inclusive quando durmo. Não consigo tirá-la da cabeça. Janto uma carne com batata que me faz lembrar suas experiências gastronômicas. E cai tão mal que tenho um pesadelo: sonho que alguém está parado em um furgão com a porta aberta observando como eu sonho com ela. E que ao me sentar na cama, com o 357 na mão, descubro que é o meu sargento. Um espectro cadavérico e afundado em sua farda de combate roída. Acordo coberto de um suor frio e olho a porta com uma apreensão de menino. O coração bate a mil por hora.

Aquela sombra, aquele mau presságio, aquele episódio infantil incomodam até segunda, quando descubro nos jornais que houve um assalto violento à casa de Javier Pico.

A notícia aparece em um texto curto metido no pé de uma página par, e é registrada apenas pelo jornal mais conservador de todos. Crimes, acidentes e brutalidades mais espetaculosas enterram a notícia com o peso do dia. No fim das contas, foi apenas uma desgraça com sorte: ninguém bateu as botas, nem saiu ferido, e para a agência que escreveu a notícia com informação oficiosa, a mulher que foi assaltada é apenas uma vizinha anônima de San Isidro. Três sujeitos portando armas longas tocaram a campainha, renderam as empregadas e as trancaram no banheiro; depois apontaram a arma para a patroa e a obrigaram a entregar joias e dinheiro. Escaparam com o butim num cupê Alfa Romeo e em um Bugatti conversível, que pertencem à família. Um jardineiro daquele quarteirão viu movimentos estranhos e avisou um vigilante, que deu queixa à polícia. Do marido da dona de casa, só se sabe que está viajando: ninguém liga a valquíria a Pico. Vê-se que a Bonaerense foi especialmente instruída a diminuir a importância da questão. E é bem improvável que ela cresça, a não ser que um editor com muito faro intua alguma coisa ou um sabujo da imprensa escrita tropece em uma informação precisa. Mas ainda assim: estão muito ocupados com os tubarões para prestar atenção nas sardinhas.

Medito longamente sobre o episódio e sobre o destino da loura. Antes se dizia “que pareça um acidente”, mas em uma sociedade com tal nível de violência nas ruas, hoje é mais prático dizer: “que pareça um assalto”. Tento adivinhar quem ordenou o ataque. Ocorrem-me várias alternativas, mas nenhuma tão segura quanto Elena Parisi. Fico tentado a fazer uma burrice e passo seis horas ruminando, esforçando-me para não cometê-la. Mas enfim lembro-me da voz da loura: “Não espero que um homem como você me entenda”. E então visto o casaco, meto o revólver na cintura e, depois de verificar se há vizinhos ou desconhecidos nas calçadas, tiro o 4×4 de ré, fecho a porta da garagem e pego a rua no sentido contrário, para a capital.

É um dia nublado, mas como a clandestinidade costuma ser surda e monocromática, a cidade agora me parece barulhenta e colorida. Por várias vezes, penso ver Nuria atravessando uma rua, ou na traseira de um ônibus. Morenas elegantes que não chegam nem aos pés dela, mas à primeira vista são a morena única, a mulher perdida. Contorno o parque Lezama e paro em uma rua de San Telmo, em frente a um cibercafé. Numa cabine telefônica, ligo para o celular de Fierrito. Como ele não atende, deixo um recado amável:

— Atende, idiota, ou te corto os bagos.

Sei que vai reconhecer minha voz, não esquece facilmente. Continuo digitando seu número, com uma paciência de estatístico, até que ele aperta a tecla correta e ouço sua respiração.

— Remil, querido — cumprimenta ele.

— Me dá um número fixo — ordeno.

Não concorda, está em um hotel seis estrelas; me dá o número do quarto. Procuro no Google as informações de que preciso; volto à cabine telefônica e a ouvir sua vacilação aflautada.

— Pegue o carro e suba a Panamericana acesso norte — indico. — Entre na Uruguay, e depois que pegar à direita tem um cemitério. Em frente, você vai ver um pátio ferroviário cheio de vagões enferrujados. Espere por ali um tempo, batendo punheta.

Ele se escandaliza:

— Tem que ser agora mesmo?

Respondo com brusquidão:

— Deixe o celular no quarto e não demore. Falo isso para o seu bem.

Ele pede que eu repita o caminho, está tomando nota. Encerro a ligação para reforçar sua angústia.

Evito os pedágios e as câmeras e desço o pé pelo Bajo, atravesso a General Paz e, chegando na Olivos, subo para Maipú. É um percurso mais lento, porém mais seguro. A avenida vai mudando de nome até Victoria, entro à esquerda e atravesso as pistas, passo na frente dos dois cemitérios de almas e trens, e sigo viagem até um posto de gasolina que fica no cruzamento da rua. Vou ao banheiro, compro um sanduíche de salame e uma garrafa de água aromatizada e espero dentro do 4×4, explorando o trânsito com o binóculo. Não sei em que carro Fierrito virá. Se em sua vida infeliz teve dinheiro para procurar um. Mas deduzo que a senadora não o tenha deixado a pé, agora que é um colaborador tão importante. Assim, verifico cada motorista que roda por ali e me entretenho por meia hora com essa roleta-russa. Já penetra em mim uma espécie de inquietação violenta, quando o localizo dentro de um Toyota creme que passa de longe. Vejo que ninguém o está seguindo e que não há movimentos furtivos, e faço uma manobra para ficar na cola dele. Ao chegar ao prédio onde me embolei com Jean Claude Van Damme, encontro o Toyota estacionado na sombra. A barata perfumada fuma um Benson, encostada no capô. Usa seu ridículo paletó branco e brinca com a cigarreira de metal: parece calmo, mas tem os nervos à flor da pele. Paro a seu lado e abro o vidro da janela.

— Vamos — ordeno.

Ele dá de ombros:

— Não podemos conversar aqui? — resiste.

— Vamos — repito.

Ele joga o Benson fora, guarda a cigarreira, ativa o alarme do carro e sobe, resignado, no 4×4. Saio em zigue-zague para Tigre e o rio, enquanto o apalpo de cima a baixo com uma das mãos.

— Ei, babaca — ele reage. — Não estou grampeado, está pensando o quê?

Ele não mente, mas fico com seu isqueiro. Olho pelos retrovisores, decido não perder tempo.

— O que está acontecendo? — pergunto.

— Você está fodido — responde ele. — Mas a culpa não é minha.

— O que você sabe de minha patroa?

— Não muito. Parece que estão pedindo mais do que ela vale.

— Quem?

— Os colombianos?

Ele dá de ombros.

— Não têm pressa. Lembre-se das Farcs. Mas só estou chutando.

— E Tana?

— Vai ter de baixar a bola, porque está na mira da Casa Rosada.

— Ela manipula ou não o juiz?

— Mesmo que o manipule, se o governo pressiona, o cara vai com tudo contra a senadora. Não tem alternativa.

— Rada dizia que a candidatura não ia pegar.

— E não vai. Mas o governo não está tranquilo. Tana terá de tranquilizá-lo e baixar a bola. E ela sabe disso. Perdeu. Tem outra coisa.

— E a mulher de Pico?

— Não faço nem a mais remota ideia.

Agarro os poucos cabelos de sua nuca e arrebento a ponte de seu nariz no porta-luvas. O baixinho sangra como um porco. Uiva de dor, surpresa e fúria. Dirijo por ruas meio vazias. Começo a brincar com o Zippo de ouro. Abrindo e fechando. Clic, clac, clic, clac. Fierrito coloca um lenço no nariz e joga a cabeça para trás, tentando estancar a hemorragia. Os filetes vermelhos jorram como lágrimas e mancham o paletó branco. Ele chora um pouco.

— Eu posso te levar a um lugar escuro e dar no teu couro por seis dias — digo. — Também posso te encher de gasolina e te queimar vivo. Entendeu?

Acendo o isqueiro e aproximo a chama de um olho dele. Ele afasta a mão com um gemido. Fecho o Zippo com o punho e lhe dou duas ou três bifas para amolecer sua vontade. Ele suja o vidro, o estofamento e o tapete. Não paro, continuo rodando por Tigre e San Fernando, ida e volta, para cima e para baixo, fugindo dos fardados e dos quarteirões mais povoados. Estranho um pouco o silêncio obstinado de Fierrito. Não é um homem de convicções, nem de resistência firme. Entretanto, está calado, engolindo o muco ensanguentado. De repente entendo tudo.

— Bragoni? — pergunto.

Ele ainda não responde. Agarro-o de novo pela nuca e meto seu focinho no porta-luvas. Agora ele chora aos berros, tapando a boca com o braço dobrado.

— Foi Bragoni? — insisto.

Ele assente como pode, nauseado e confuso.

— Fala, escroto! — grito. — Fala!

A barata limpa o sangue com a manga, perto de uma síncope cardíaca e da hiperventilação. Engole saliva, sangue, orgulho.

— Voltou a ficar nervosa — diz ele, fazendo um esforço entrecortado e louvável. — Quis chamar a Departamental.

Reincidente, louca, incontrolável. Deram um corretivo nela para se redimir. Agora rodamos calados. Parisi e Bragoni: formaram uma dupla. Claro, claro, as pontas soltas. Não sei de quem devo ter mais medo, se de Bragoni ou da Justiça argentina.

Fierrito lança outro espirro ensanguentado. Deixo-o em um hospital municipal:

— Sai, escroto — convido-o, e devolvo o isqueiro.

Ele fica na calçada, falando com um enfermeiro. Volto do norte para o sul pela Libertador, com a cabeça fervendo de ideias. Levo duas horas para chegar a La Plata, guardar o 4×4 e jogar um jato de água por dentro para limpar os fluidos da surra.

Não consigo esperar o amanhecer e a volta de Rosita para casa. Deixo nos ímãs da geladeira um papel com uma só frase: “Precisei sair rápido”. Visto moletom, macacão e tênis; escolho as roupas mais rústicas da mala e passo a uma bolsa de tamanho médio que Rosita comprou em La Salada. E olho a bolsa Adidas onde guardo o Kalashnikov, os pentes curvos, as caixas de cartuchos e as balas soltas de ponta oca. Em um bolso interno, enfio os maços de dinheiro que trouxe da casa de câmbio e os passaportes falsos. Ponho tudo no banco do carona, dou uma olhada geral no chalé para ver se me esqueci de alguma coisa e apago todas as luzes. Antes faço um xixi longo e espumante no banheiro grande e descubro dentro do armário os remédios velhos do sargento e um objeto inesperado: a máquina de cortar à escovinha. Guardo no bolso e saio. Não são dez horas quando chego a Barracas e paro o 4×4 no estacionamento. Saio com as bolsas e negocio com o empregado velho, a quem convenci que sou policial. Às vezes até aparecia com o casaco e o gorro azul da pfa. Pago um mês adiantado em dinheiro e lhe dou uma propina suculenta. Não vou deixar a chave com ele porque não quero que fique fuçando o 4×4, assim preciso deixá-lo em um lugar discreto e que não atrapalhe ninguém. O velho manobra vários carros do fundo e me aponta um canto privilegiado. Estaciono entre dois veículos empoeirados e agradeço a ele.

Entro a pé na favela com as bolsas, olhando para os quatro lados e ouvindo, ao longe, uma cumbia. Passo na frente da igreja e sigo pela rua da morte até o armazém, que está para fechar. Quando o patrão me vê chegar, abre uma cerveja gelada e se senta comigo à mesa de fórmica. Há dois bêbados retardatários que animam o ambiente. Dou a ele umas notas de dinheiro e digo em voz muito baixa o que preciso. Que ele avise ao Serralheiro e me arrume um celular com carga. Está acostumado a não se meter onde não é chamado, vai ao balcão e dá um telefonema enquanto prepara para mim um especial de presunto e queijo. Já comi tudo quando entra o Serralheiro, que está mais gordo e menos enrugado. Dá uma risadinha e toma um gole da minha bebida.

— O que está fazendo por aqui tão tarde? — pergunta ele com alegria. Sempre teve faro para os negócios.

— Preciso me esconder.

Decí, por Dios, qué me has dao, que estoy tan cambiao, que no sé más quién soy.[2] — Ele se diverte e desafina: — El malevaje extraño me mira sin comprender.[3]

— Por alguns dias.

— Tem aluguel barato — continua ele.

Faço que não com a cabeça. Ele come os amendoins com voracidade.

— Um cafofo, algo que não chame a atenção.

Parece pensar com uma seriedade imobiliária.

— Não posso te hospedar porque minha mulher me mata — diz ele por fim, enquanto o patrão traz outra garrafa e outro copo. — Mas a Velha pode te dar uma luz.

Sirvo seu copo até a boca e a espuma transborda. Ele se empertiga e seus lábios ficam brancos. Arrota ruidosamente.

— Sim — diz ele, limpando-se com o dorso da mão —, vai precisar pagar aos paraguaios, porque por aqui a fofoca corre rápido e essa gente é cheia de melindres.

— Eles vão aceitar um braço?

— Uma arma é sempre necessária — diz ele. — Deixa eu falar com eles e vamos ver.

Eu o acompanho por vielas estreitas e miseráveis, onde espiam e esperam fofoqueiras e piranhas, até a mansão de folha de flandres e madeira que guarda as múmias de fuça queimada. A raposa bate palmas e entra sem permissão no barraco da rata, que está tomando mate junto de um aquecedor, cercada de outros moleques. Mais para o fundo, o compadre caolho que teve meia orelha arrancada joga cartas com uma coisa que parece uma mulher. Um cheiro mais repulsivo do que o futum da prisão e o suor das feras humanas, uma coisa nauseabunda do corpo e da alma se concentra neste cômodo, onde só o que brilha é a televisão. Um aparelho de plasma recém-saqueado que transmite no volume máximo um desfile de moda em Punta del Este.

— Olha quem apareceu no pedaço, Velha — cumprimenta o Serralheiro, e ela se levanta com dificuldade. É a primeira vez que a vejo sem as calças de lona e os tênis. Está de vestido e sandália, e as pernas são uma cartografia completa de varizes, cicatrizes, escaras e perebas.

Os moleques da lata olham minhas duas bolsas com cobiça. O Serralheiro pega a sócia pelo braço, a puxa de lado e conversa com ela em voz muito baixa, como se não confiasse nos presentes. De vez em quando, a Velha dá uma olhada em mim como se estivesse assimilando a notícia. No fim, aproxima a boca da orelha direita do Serralheiro e lhe despeja quatro ou cinco frases. Então a raposa lhe dá um tapinha no ombro e solta uma de suas gargalhadas.

— Eu falei que a Velha podia te dar uma luz, bobão — anuncia ele. — Mas nem pensei em tanto assim.

A rata manca até uma cômoda desmantelada e procura em uma gaveta. Interrogo o Serralheiro com os olhos.

— A casinha daqui de trás é de um sujeito que está na cadeia — revela. — Os filhos dele também e a mulher morreu há dois meses. A Velha ficou cuidando de tudo. Tem de pagar a ela o aluguel adiantado. O cara morre de fome na penitenciária de José C. Paz.

A Velha volta com umas chaves, junta os dedos da mão, faz um gesto de comer e passa a mão na barriga.

— Pro estomo — ela me diz e sorri com sua cara gorducha: vejo as gengivas escuras e de poucos dentes. Esfrego o polegar no indicador: quanto? Ela dá de ombros e joga uma cifra. Com esse dinheiro, eu poderia alugar um apartamento de dois quartos em Santa Fé e na Callao, mas não posso pechinchar. Também preciso comprar seu silêncio. Ponho a mão no bolso e pago três meses para que não encha meu saco. A velha conta de novo as cédulas e guarda o maço na calcinha. Por uma porta dos fundos, saímos no jardim, um quadrado chamuscado onde dormem sua carroça de catadora de papelão e três cães sarnentos. A poucos metros dali, esconde-se uma casa de tijolo e folha de flandres, fechada a cadeado e correntes. A velha abre caminho e entramos para ver meu novo lar: um quarto de tamanho médio, um banheiro mínimo e um fogão a gás. O ambiente é sufocante e deprimente, e está cheio de roupa e de quinquilharias inúteis. Tem uma cama de casal e dois catres. Tenho certeza de que os lençóis estão sujos e têm pulgas.

— É melhor se apressar com as compras, o patrão não espera nem por Deus — a raposa me aconselha, entregando-me a chave, as correntes e o cadeado: sugere que tranque bem tudo sempre que sair. Obedeço. O material que guardo na Adidas vale ouro em Villa Costal. Voltamos juntos pelas vielas e o Serralheiro se despede numa curva. Eu continuo andando e compro no armazém detergente, desinfetante e provisões para vários dias. Também duas garrafas de gim barato, uma caixa de cerveja e três maços de cigarros. O patrão tira de uma caixa pequena um celular com carregador:

— Leva o meu, eu não ligo nunca — diz ele sem emoção na voz. — Ainda tem algum crédito e está gravado o número da minha casa. Mas use apenas numa emergência.

Quero pagar também por esse favor, mas ele rejeita: só me cobra os produtos de limpeza, a bebida e os comestíveis. Passo duas horas limpando e tentando deixar decente o chiqueiro do amigo da rata, e ligo o rádio enquanto lavo os lençóis e a colcha à mão, estendendo em frente à única janela, um buraco demarcado por grades de prisão.

Não sinto fome, mas certa depressão no ânimo, e assim me sirvo um copo de gim e vou bebendo aos golinhos em cima do colchão descoberto. Antes da meia-noite, o Serralheiro reaparece, deixo-o entrar e ele pega dois copos para recuperar o ânimo. Nunca sai de graça visitar os chefões da favela.

— O paraguaio é chamado de Guitarrista — ele me informa. — Tem cinco irmãos, todos iguaizinhos. Parecem retardados mentais, mas é melhor não confiar. Cortam você em pedacinhos e fazem uma empanada.

A noite é nublada, custamos a nos acostumar com a escuridão mais completa. Penetramos no centro do labirinto, mais à frente das casas decentes e limpas e também das primitivas e detonadas. Vamos a um trecho inexpugnável, no coração da favela. Não tem muita gente na rua e chegam os ecos de cumbias e polcas de todos os pontos cardeais. No interior dos barracos e das casas, tagarelam os televisores e os fiéis ardorosos de Gauchito Gil.

Peço à raposa que me avise quando faltarem duzentos ou trezentos metros. Não posso entrar armado no quartel-general. Ele me avisa quando passamos em frente a um prédio de três andares que está em plena construção. Escondo o 357 atrás de uma coluna e seguimos apressadamente, sabendo que estamos expostos ao pior. Cinco minutos depois, dois magricelas nos param, portando metralhadoras. O Serralheiro os cumprimenta e eles nos apalpam, procurando armas. Um deles põe a mão na boca como um megafone e grita algo em guarani. Vem nos buscar das trevas um urso vestido de couro e nos introduz por uma porta em uma casa de teto baixo e cômodos improvisados e sucessivos. No penúltimo, há mulheres e garotos com lenços na cabeça cortando e embrulhando droga atrás de uma cortina de plástico transparente, e na última bebem uísque e fumam um baseado dez ou quinze sujeitos escarrapachados. No meio do escritório de ladrilhos, o Guitarrista faz cálculos sob uma luz mortiça. É um garoto envelhecido que tem um par de dentes de metal e unhas muito compridas. Dá para reconhecer seus cinco irmãos, idênticos e bovinos: estão jogados em poltronas rasgadas e cuidam de suas costas com pistolas metidas no cinto. O Guitarrista não ergue os olhos nem quando o Serralheiro me apresenta num tom inseguro. Só o que ouço é uma música chata: No sé qué voy a hacer sin vino ni mujer. Aproveito para me adiantar e largar na mesa quatro maços de notas de cem. Vejo ali que o Guitarrista tem à mão uma pistola Beretta 92 para atiradores de elite. De quem teria roubado? Volto e espero, sem transmitir submissão nem insolência. A música do bêbado continua e o teclado parece uma galinha que estão estrangulando. Pergunto como um guitarrista de unhas tão grandes pode suportar semelhante afronta à música.

O sujeito olha o dinheiro, arrebenta o elástico e conta as notas. Cheira. Depois deixa de lado e continua com sua calculadora.

— Uma vez, quatro anos atrás, quase arrebentei a perna no campinho — diz unicamente, sem desviar os olhos dos números. Tem voz de cantor melodioso, estragado pelo cigarro. — Parece que você tem colhões, cana.

Os irmãos estão muito sérios, olhando-me de cima a baixo, mas dois ou três sócios riem no fundo, onde corre o álcool e a fumaça cobre tudo. O Guitarrista mexe os dedos, como quem diz: “Vaza, que estou ocupado”, e o Serralheiro me pega pelo braço e me tira pelo buraco por onde nos metemos. Voltamos pelas mesmas vielas, seguidos de longe pelo urso, que nos abandona um pouco depois. Bem a tempo de eu entrar no prédio em construção e recuperar o 357. A raposinha solta o ar como se tivesse prendendo a respiração durante uma hora. E se despede rapidamente em um terreno baldio, quando percebe que já posso encontrar sozinho o hotel cinco estrelas do amigo da rata. Encontro e me tranco por dentro com a corrente e o cadeado, mas também com a mesa bamba que empurro e escoro na porta. Tiro da bolsa o Kalashnikov e encosto junto à mesa de cabeceira, e faço uma pilha com os pentes curvos ao pé da cama. “Nada de futebol, nem de passear, porque posso ser reconhecido”, penso. “Preciso me entocar e não meter nem um dedo para fora.” Apago a luz e tento dormir, mas é impossível não comparar essa angústia com aquela que senti na primeira noite na up 63, e então a insônia me acossa. Estou ressentido e desanimado. Procuro me adiantar aos acontecimentos e imaginar os possíveis desfechos dessa enorme cagada. Tento também não jogar a culpa em Cálgaris ou em Nuria. Ouço a palavra vem de forma intermitente, como se estivesse atacado de febre, e logo me levanto de um salto e digo a mim mesmo que seu sequestro deve ser uma mentira cabeluda. Mais tarde já não tenho tanta certeza. Bebo do gargalo da garrafa um longo gole de gim e me pergunto o que posso fazer para descarregar a energia e manter a mente ocupada. Olho as posses dos honrados donos da casa e encontro uma bolsa comprida e furada pelas traças e pelo uso. Se eu encher de roupa, pode servir de saco de pancada. Encontro uma corda e uma caixinha onde só tem alguns pregos grossos e um alicate. Procuro o lugar adequado, que fica na porta do banheiro, subo na única cadeira e dou alguns golpes para cravar três pedacinhos de ferro no teto. Depois passo a corda e me penduro nela para saber se vai resistir. Como a viga não vem abaixo, espremo a roupa dentro da bolsa, fecho e a penduro com um nó de marinheiro. É um saco de pancadas tosco, mas não sou um pugilista muito pretensioso. Passo uma hora dando murros às cegas, como se estivesse na academia de Saavedra, depois faço uma longa sessão de flexões e abdominais. Termino com demasiada rapidez e não tenho muito mais o que fazer. Então penso. Outra vez me vejo pensando em tudo que aconteceu, às vezes cochilo, em outras ocasiões ligo a televisão velha e corro os canais abertos e cheios de chuvisco onde só dá para ouvir as vozes dos atores, dos fantasmas e finalmente dos jornalistas, que dão notícias triviais. Trouxe dois livros de história das guerras púnicas, mas não tenho vontade e não me atrevo a pedir à Velha para comprar os jornais: chamaria muito a atenção se os pentelhinhos fossem todo dia buscá-los na banca da avenida. Esses cretinos são um perigo em potencial, porque se acabam cheirando cola e porque nem mesmo a Velha consegue controlá-los.

À medida que os dias transcorrem sem nenhuma alteração, aumenta minha paranoia. De vez em quando, o Serralheiro vem tomar um mate e falamos de cavalos e fofocas da favela. Ele me traz provisões desnecessárias e umas revistas gastas para que eu não fique entediado. Todo contato humano se limita a essas visitas curtas. O resto é abulia, fastio, pena, raiva, especulação, ginástica, o ruído televisivo e tiros distantes que ouço ao amanhecer. O encarceramento e a tristeza deixam uma pessoa inapetente. Me dá uma enorme preguiça cozinhar, e quando o faço, quase não como. Sei que estou emagrecendo e experimento uma estranha sensação de abandono pessoal. Até os exercícios começam a pesar em mim. Noto uma nova fraqueza; não tenho forças nem para tomar um banho frio. Pego gripe e fico quatro dias acamado, delirando acontecimentos monstruosos e sentimentos contraditórios. Quando me recupero para me levantar, cometo uma ousadia: saio às três da madrugada, caminho sigilosamente pela favela adormecida, cumprimento o vigia do estacionamento e entro no 4×4. O cheiro de limpeza produz em mim o efeito de um pico de cocaína: os bancos confortáveis, o brilho dos espelhos, a música de Troilo, o ronco do motor que responde depois de duas ou três tentativas e que logo fica arquejando como um cavalo fiel. Minha antiga vida. Um toque de irrealidade que me arranca por algumas horas da cela.

Repito essa pequena folga como quem tem de volta um vício: não é conveniente que eu o faça e até pode acabar comigo, mas sou incapaz de largar essa pequena felicidade temporária. De vez em quando acordo de uma sesta pesada com a falsa ideia de que Cálgaris vigiou meu sono e agora está sentado ao meu lado: “Está tudo arranjado, Remil, vamos voltar para casa.” Como aquela manhã no hospital Churruca. Mas desta vez não passa de uma alucinação. Quem sabe como está o coronel, quem sabe se um dia voltarei a vê-lo? Há momentos em que a última esperança me faz fantasiar que sou como aqueles soldados japoneses que ficaram escondidos na selva durante décadas, sem saber que a guerra tinha acabado. Mas depois raciocino e chego à conclusão de que, se pudesse vir à superfície, Cálgaris já teria entrado em contato. Teria concluído que me escondi no submundo da favela e localizaria o Serralheiro. Não aconteceu nada disso; a sentença de morte não foi suspensa.

Como perco a noção dos dias que fico escondido, não sei com certeza se é quinta ou sábado quando a raposa me avisa que os guitarristas precisam de mim esta noite. Com certa lerdeza, visto a jaqueta e me olho no espelho: cabelo comprido e sujo, barba crescida de qualquer jeito e gordurosa, um esqueleto com olhos injetados e assassinos. Alguém irreconhecível. Até o revólver pesa uma tonelada.

Desta vez o encontro é em uma casa pobre de portas abertas que funciona como centro comunitário. O Serralheiro faz sinal para o bookmaker e o Guitarrista, que tomam vinho lado a lado e fazem negócios, enquanto retumba o ensaio geral de uma murga. De imediato, um dos irmãos dele me reconhece e o alerta. Estão ali os cinco, em um raio de vinte metros, postados como se fossem guarda-costas presidenciais. O Guitarrista me deixa esperando um pouco, depois apaga o cigarro e vem andando devagar, como um galo esnobe. Antes de chegar, joga para mim um chaveiro, que não consigo pegar no ar. Essa disfunção fugaz me deixa alarmado, sinal de que estou embotado e lento. Preciso me abaixar para pegar as chaves e quando me levanto sinto uma leve vertigem. O Guitarrista parece perceber que algo não vai bem.

— Andou fumando, cana? — ele me provoca com um sorriso de metal. — Olha que aqui não é como o tribunal. O bombeiro não vai te salvar. Aqui, quem vai ao ar perde o lugar.

Concordo com a cabeça, sem responder: não me ocorre nada; estou perdendo a capacidade de elaborar uma frase e pronunciá-la sem titubear. Passo dias inteiros sem falar com ninguém e hoje me sinto doente. Mas não posso permitir que esse carniceiro perceba.

— Na avenida, vai encontrar um Fiat, levantamos hoje de manhã — ele me informa e continua me olhando fixamente. A murga berra e tenho dificuldade de ouvir bem sua voz. — Você deve trazer um filho da puta. — Ele me dá um papel. — Meus irmãos não podem ir porque eles já sabem da tramoia — diz ele, balançando-se. — Você vai ter de se fazer de cliente. Entendeu?

Mexo de novo a cabeça e sinto dor. Pergunto-me por um instante se não estão pondo veneno na minha comida. Por cima da batucada, alguém copia uma declamação: Si la timba y la fiesta es de unos pocos, para este murgón de locos las penas se han acabado[4]. No papel, consigo ler, borrado, um nome (Alcides) e dois sobrenomes, e um endereço de um prédio na avenida Garay. O garoto toca o Rolex.

— Atende até tarde, vai da parte de dona Tula, e vai devagar porque é da turma.

Agora o Guitarrista sorri e cospe um catarro amarelado. Enfio o papel no bolso e olho na diagonal: sinto nas costas os olhos desdenhosos e desconfiados dos seis.

Por várias vezes, tenho de esfregar as pálpebras para ter uma visão mais clara. É um grande risco sair da tumba e dirigir à noite um carro roubado, e ainda por cima nesse estado de anestesia geral. Mas não tenho alternativa. Ultimamente, todos decidem por mim: perdi, entre muitas outras coisas, a faculdade de assumir as rédeas. Caí no fundo do poço.

O Fiat Uno está muito amassado. Dirijo como se fosse um aluno da academia Oscar, totalmente inseguro de meus reflexos, pela noite iluminada. A clandestinidade, insisto, sempre é monocórdia; a rua então está infestada de cores furiosas. Mas o passeio não me restitui a confiança. O apartamento de Alcides fica num prédio velho e úmido com rachaduras à mostra. Toco o porteiro eletrônico e pronuncio a senha. Quem será dona Tula? Abrem de imediato para mim. Fica no segundo andar, pela escada, e bem no fundo. A luz do corredor não funciona e espero sinceramente que minha figura não o espante. Pela janelinha, uma garota me olha e abre a porta sem tomar precauções. É uma secretária de sexo ambíguo. E este lugar parece um pequeno consultório: uma mesa com fichas e computador, oito cadeiras vazias. Preciso preencher um formulário elementar com duas perguntas enigmáticas: crença religiosa e signo do zodíaco. Preencho os espaços em branco com bobagens e disparates, usando um nome falso e uma letra de forma capaz de desorientar qualquer perito. Depois me deixo cair em uma cadeira com um cansaço insólito, como se tivesse vindo a pé de Luján. Olho as paredes e descubro que tem vários quadros com desenhos do tarô e que a mesa de centro está cheia de revistas sobre ocultismo e fenômenos paranormais. Olho o teto. Arrá. Um vidente. O xamã dos traficantes de drogas. Alguns colombianos e paraguaios trazem de suas terras para “se proteger” e para saber quais são os dias adequados: quando os astros estarão de melhor humor para transportar a droga e para resgatá-los dos inimigos, do azar e do desastre. Cobram caro e sabem muito, mas às vezes o truque falha, ou os chefões descobrem que o “mestre” virou a casaca e passa informações à polícia ou diretamente a um concorrente. Então, não tem bruxaria que os salve da degola. Alcides traiu ou meteu a mão, e o Guitarrista de Villa Costal quer fazer umas perguntinhas a ele.

A dedução devolve-me um pouco do vigor perdido, mas é só uma ilusão passageira. Continuo esperando e afundando no esgotamento. Meus olhos ardem e as pernas não respondem; sinto palpitações. Não estou certo de que possa fazer hoje o que sempre faço sem tirar um fio de cabelo do lugar. Sou um velhinho de oitenta e cinco anos fingindo ser um jovem assassino sem sentimentos.

A secretária me olha com curiosidade por cima dos óculos. Penso no que fazer com ela; talvez trancá-la no banheiro. De repente ouço um barulho atrás da porta e enfim ela se abre: primeiro vejo uma mulher apergaminhada que sai fazendo o sinal da cruz, e atrás dela um careca de camiseta preta esportiva, com joias douradas no pescoço e anéis nos dez dedos: Alcides em pessoa. Como a mulher caminha com lentidão, o xamã pede a sua assistente que a acompanhe até lá embaixo. Depois, olha para mim em cheio, uma encarada penetrante e incisiva. Tem muita intuição, quem sabe o que está detectando nesse cliente barbudo e maltrapilho na sala de espera. Alcides é atarracado, mas tem bíceps e uma boa caixa torácica, e além disso reconheço nos braços várias tatuagens místicas e de prisão. Pega minha ficha na mesa, enquanto a senhora e a assistente atravessam a soleira, e dá uma lida rápida. Tento me apresentar, mas ele não aceita minha mão.

— Como está dona Tula? — pergunta, levantando o queixo. É um tom supostamente cordial, mas transpira receio. Respondo com uma evasiva: enrolo, porque posso me meter em encrenca. De chofre, ele estende a palma da mão esquerda na minha frente e pisca:

— Um homem abatido.

Tento sacar o revólver, mas ele me impede. Em um segundo, Alcides percebe a fraude: empurra-me aos gritos e volta para sua cova. Eu perco o equilíbrio, caio nas cadeiras e rodo pelo chão, fazendo um barulho espantoso. É como se o xamã tivesse a força de dez homens. Tento me levantar o mais rápido possível, mas sinto que estou tremendamente lento. Quando consigo, vejo que perdi o revólver. Procuro como um velho gagá que perdeu a dentadura em uma orgia, e estou nessa tarefa quando o bruxo vem com tudo para cima de mim. Tem um cassetete ou um bastão, me achata um minuto na parede e bate com fúria em meu corpo. Por sorte, não fica ali para terminar a luta, abre a porta e desata a correr. Os golpes doem em minhas costelas e no quadril. Recupero o 357 e tento segui-lo pelo corredor escuro e descer a escada. Sinto-me entorpecido e fora de forma, e ouço gritos do térreo. A assistente e a senhora seguram a porta de vidro e estão pálidas. Eu as empurro e saio na Garay, corro pela avenida. O careca corre com vontade e calculo que não será fácil alcançá-lo. Corro atrás dele por sessenta metros e viramos uma esquina a toda. Alcides agora corre entre os carros e eu aponto a Magnum para ele. Um idiota que vem numa moto se assusta e dá uma guinada, o xamã é arrastado de lado e patina. Cai e se levanta como uma mola e tenta retomar a correria, mas eu já estou mais próximo.

— Sou da polícia! — grito para que ele seja interceptado, mas não existe uma merda de herói solidário em todo o bairro de Monserrat.

Chegamos quase juntos na outra esquina e então acontecem duas coisas ao mesmo tempo. A primeira é que tomo consciência de que nesse estado jamais vou alcançá-lo. A segunda é que um aprendiz da Metropolitana o para de repente. O xamã vacila um instante e tenta se desvencilhar. Dá inclusive uma cacetada no imberbe, que fica confuso e aturdido. Ainda assim, continuam absurdamente agarrados quando meto um chute no bruxo do Guitarrista. Mas preciso dar mais dois ou três murros para que ele afrouxe. Quinze dias atrás, eu o teria deixado fora de combate com um tabefe, mas agora tenho punhos de algodão e chumbo nas pernas. Não me resta alternativa senão derrubar também o garoto da Metropolitana, porque não posso dar explicações oficiais. Pego o garoto no fígado com a arma e o deixo sem ar, enroscado no meio-fio. Causamos tumulto na calçada ímpar, à vista dos pedestres noturnos. Chuto o bastão como se fosse uma bola e levando Alcides pela camiseta: está mais grogue do que eu; pego o homem pelo braço e ponho o 357 em suas costas. Andamos juntos como dois bêbados por cem metros, e outros cem até o Fiat Uno. Sem energia nem paciência, jogo-o no banco traseiro e lhe dou um pouco mais de tranquilizante: ele tem a camiseta manchada e do ouvido brota um rio vermelho. Quando arranco, vejo pelo retrovisor que o imberbe vem correndo sem o gorro e agitando a arma regulamentar. Torço para que não tenha colhão para disparar e saio chispando. Dez quarteirões adiante, diminuo a velocidade e dirijo como se fosse uma velha: até buzinam para mim, para que eu me apresse nos sinais. Entro com o Fiat na rua da morte e dou mil voltas até encontrar o centro comunitário. Nem o pessoal da murga está mais lá. Mas um “soldado” entende o que está acontecendo e vai correndo dar a notícia. Examino o xamã, que está de barriga para baixo. Apoio-me no capô e procuro um Parisienne: encontro todos amassados e rasgados. Localizo o mais inteiro e tento acender com o único fósforo que me resta. Não preciso dizer que não acende e acaba quebrando na tentativa. Estou rendido, curvado pelo cansaço e pela sonolência. Estou fedendo a sujeira e suor; sou o homem mais pessimista do continente americano.

O Guitarrista e três irmãos chegam a passo lento. Há mosquitos e traças na noite, mas parecem fugir deles. O moleque avantajado se aproxima e dá uma olhada dentro do carro. Depois me fita com objetividade e me dá fogo com um isqueiro de prata. Nós dois entendemos tudo. Eu paguei o salvo-conduto e para mim, acabou. Volto a pé pelas vielas e mijo em um descampado entre duas casas de cortiço. Depois me tranco em meu calabouço e tomo meio litro de gim. Passo outros três dias na cama, sem querer comer, nem tomar banho. O Serralheiro me convence a jantar macarrão na manteiga. Nessa madrugada, sou atacado por um bando de baratas, luto com elas e me sinto picado e alérgico: estou apodrecendo neste retângulo esquecido. Ando com a mente confusa. Misturam-se em mim os desejos por Nuria, o que vivi e cada uma das vantagens de ter sido alguém. Agora voltei a ser ninguém. Nas ilhas, era dono de uma identidade e de uma ilusão reluzente, e nos pavilhões cumpri uma missão secreta, mas nesses dias de sombra rodo por esse barranco completamente sozinho e às cegas, sem futuro nem orgulho. Sem tranquilidade de espírito.

Dois ou três dias se passam em que me encho de machucados e picadas, e durante os quais fico tomado de autopiedade. Até que uma noite, sentado no 4×4 e ouvindo baixinho Pugliese, encontro a ponta de um novo sentimento. Não tem nada de altruísta nem de profissional. Preciso me desvencilhar dessa corrente eterna. Saber o que aconteceu na realidade e quem são os responsáveis. Fazer com que paguem, custe o que custar, e que eu seja indenizado. É um momento interessante porque logo me restitui o apetite e, por acaso, como consequência, a vontade de fazer flexões e de esmurrar o saco de pancada. Soco dia e noite, como se não houvesse outra coisa neste planeta.

Todo tipo de pensamentos infantis me assalta durante esse despertar e levo uma semana inteira para recuperar certo nível de energia. É uma nova temporada de clausura da qual não poderei lembrar quase nenhum detalhe, porque será muito parecida com nadar como um louco por cinquenta horas no rio, sem outra intenção senão continuar e não perder o impulso. Com a mesma convicção com que dou braçadas para a praia, sabendo que se afrouxar, as ondas vão me sepultar.

Em um anoitecer impreciso, os cachorros latem e alguém bate na porta. Eu me aproximo e vejo por uma fresta que é a Velha. Afasto a mesa, meto a chave no cadeado, retiro a corrente e abro. Nós nos olhamos por alguns segundos de frente: ela está vestida de catadora de papelão e eu ainda estou ofegante. Há algo de estranho em seu olhar, completamente desconhecido para mim, como se ela quisesse entrar. Imagino, grosseiramente, que traz um recado ou pretende renegociar o aluguel. Mas de repente descubro algo mais grave: ela traz um bolo nas mãos. Um bolo com cobertura de chocolate, um presente de boa vizinhança. Pisco três vezes antes de entender, e então meto o pé em seu peito e grito:

— Filha da puta! — E tento fechar a porta.

Já estão metralhando a casa.