xiii. Os filhos do dragão
— Com as mulheres, nunca se sabe — solta o motorista, que não leu Chase, mas tem visto de tudo nesta bendita terra. É galego de Orense e há trinta e quatro anos trabalha em Vigo. Imagina que sou vítima de uma mulher infiel e que procuro provas para o divórcio. Encontrei sua agência nas páginas amarelas da cidade (carro de aluguel com motorista) e pedi que estacionasse a Mercedes Benz preta a duzentos metros daquele restaurante de polvo bom que fica nos arredores do Ayuntamiento. Olho o relógio e dou uma última espiada no telefone da Olhos Verdes para ver se chegou uma nova mensagem pelo Whatsapp: nada desde que eu mesmo disse, fazendo-me passar por ela, que estava na área. Os amigos de García Roldán não demoraram a chegar. O advogado é incapaz de deixar sua amada plantada ali.
Por acaso era uma mulher superior. Uma alemã de olhos verdes e corpo espetacular vagamente parecida com Wila, embora seja uma versão cem por cento melhorada. Foi muito fácil entrar em seu apartamento de Chamberí. Os europeus são pessoas confiantes e irresponsáveis: vão para a rua e batem a porta sem verificar se foi fechada. Basta estar atento e ser rápido nesses segundos retardados para deter a porta no último instante e entrar no vestíbulo. O apartamento que Roldán deu de presente à amante fica no último andar de um prédio limpo e nobre. Ela mesma me atende ao primeiro toque da campainha e logo percebo que é meio ingênua, que engoliu a história de que sou policial e que está sozinha em casa. Veste uma blusa larga e jeans apertados, e prende o cabelo num coque baixo. Anda descalça e livre pelo carpete.
Nós nos sentamos na sala de estar e explico que nos seria de vital importância localizar urgentemente o dr. García Roldán. É uma conversa cômica: primeiro não sabe quem é, depois não o vê há um ano, por fim não tem ideia de onde ele está. O tom do diálogo vai subindo, e então ela por fim se irrita e quer me expulsar. Dou-lhe um tapa e a derrubo. Agarro-a pelo cabelo e a arrasto até o quarto, e arranco sua roupa aos puxões. Como quer gritar, meto sua própria calcinha na boca e lhe amarro o sutiã na cara como uma mordaça. As lágrimas do rímel mancham suas bochechas: ela tem certeza de que vou estuprá-la. Não é para tanto, madame. Pego a Glock e meto entre suas pernas. Agora a Olhos Verdes tem certeza de que vou violar sua vagina. Isso também não é verdade. Cerco o pescoço de cisne com a mão e a levanto até que ficamos três centímetros um do outro. Quase posso sentir o cheiro da adrenalina do terror que lhe sai pelas narinas. Todas são valentes até a barata voar.
Muito vermelha e trêmula, ela pede para falar. Tiro a mordaça por um momento e apoio o cano da pistola em seu olho esquerdo: solto a trava para que ela ouça este som inconfundível. Se fizer besteira, eu te mato, neném. Fala. A alemã canta em voz alta. E canta que o advogado lhe deu de presente um celular novo e que eles se comunicam através de um chat. Ele pede máximo sigilo, mas isso não é necessário: ela sempre foi muito discreta. Desde que deixou aquela secretaria executiva (agora é tradutora) no escritório García Roldán y Asociados, jamais apareceram juntos. As geminianas podem ser muito introspectivas. Roldán está apaixonado por ela, garante a Olhos Verdes com uma candura comovente, mas por enquanto ele não pode se dar ao luxo de entrar em conflito com sua mulher, nem com sua mãe. E agora tem uma confusão grossa com um sócio pesado; por isso eles mal conseguem se ver. Mal? Viram-se duas vezes. Combinam por Whatsapp e ela vai de trem a Vigo, espera que a peguem e levem a um restaurante próximo do Ayuntamiento. Uma taberna com reservados?, pergunto. Ela concorda com a cabeça. Nunca é García Roldán que vai buscá-la, mas um de seus secretários. Dois barbudos sérvios de jaqueta?, pergunto. Ela mexe a cabeça como se ainda estivesse com a mordaça. E aonde levam você? A um povoado perto de Pontevedra, uma área rural junto de um rio, não tem muita certeza. Roldán mora sozinho em uma casa antiga, bem afastada de tudo. Puentecaldelas?, pergunto: lembro que mencionou esse ponto geográfico e uma fábrica secreta perto de um parque industrial chamado O Campiño, onde faziam o aquecimento e a filtragem do vinho e da cocaína. Ela volta a me dizer que não tem certeza: eles passam o fim de semana sozinhos e trancados, e na segunda-feira os sérvios a levam de novo a Vigo no carro do sócio. Uma bmw Essential Edition Serie 1.
Abro a mão que a segura pelo cangote e deixo que se jogue no travesseiro e no edredom. Reflito um pouco enquanto procuro cordas para amarrá-la na cama. A alemã me pede em voz muito baixa que poupe sua vida. Trago da sala de jantar o celular e vejo as mensagens. Ficaram todas registradas: são diálogos picantes e quentes; o desejo dos amantes que se procuram e se encontram depois de tantos dias de solidão e abstinência. Pergunto se ela conhece Nuria. Por acaso até trabalhou algumas vezes com ela. Sabe alguma coisa de seu paradeiro? Mora na Argentina. Tem empregada ou faxineira? A moça vem ao meio-dia e entra com a própria chave. Esperamos alguma visita, você é esperada em algum lugar? Ela jura que não.
Suspiro longamente e deixo sua mão direita livre. Quero que ela entre em contato com Roldán. Que faça todos esses joguinhos de desespero erótico e imponha uma visita higiênica. Está tão morta de medo que nem preciso voltar a mostrar a Glock: manda duas mensagens e fica esperando. É a hora da sesta, o advogado demora muito a responder. Isso me dá tempo de ir à cozinha e cortar umas fatias de presunto. Como na frente de um programa de televisão vagabundo, sentado na cama, enquanto a Olhos Verdes fita o vazio. Às cinco, me espreguiço e preparo um café forte. Às cinco e meia, Roldán responde com uma frase curta. Vamos, incito sua amante. Eles se escrevem com frenesi; a alemã sabe como me agradar: não aceitará um não como resposta. Jura que fez a mala e já comprou a passagem de trem. Roldán tenta contê-la, mas não consegue. Mais ou menos na hora do jantar, acaba aceitando a pressão. No lugar de sempre, ao meio-dia. Te amo, te quero, estou louca para trepar com você, meu amor, até amanhã. Guardo o celular, amarro a mão livre e recoloco a mordaça. Apago todas as luzes do apartamento e, antes de sair, informo em seu ouvido que se tentar escapar, avisar Roldán de algum modo ou chamar a polícia, vou voltar e lhe meter um tiro na xota. Dou o alerta enquanto circulo seu mamilo com a ponta da pistola. Ela estremece como uma criatura, com soluços entrecortados de choro.
Tranco a porta girando a chave duas vezes e consigo um táxi que me leve ao albergue do bairro de Pilar. Enfio na bolsa africana mais duas camisas e deixo o quarto pago na recepção por uma semana. Ficarei ausente por alguns dias e não posso levar a Samsonite, nem abandoná-la. Além disso, agrada-me a ideia de deixar montada uma base mínima de operações em Madri. Compro uma passagem noturna em Chamartín e viajo umas dez horas: tomo um comprimido e durmo profundamente. Encontro Vigo nublada e chuvosa. Compro um gorro na estação e provo o café com churros no bar do porto. O garçom me empresta a lista telefônica e o telefone. Contrato a Mercedes Benz do motorista de Orense, que vem me buscar. Sutilmente, dou a entender minhas suspeitas conjugais. Mas é um grande tagarela e tem muitas histórias de casais desfeitos e desenganados.
Aqui estou com o sujeito, na frente do restaurante, aguardando que os sérvios passem para pegar a encomenda. Para reforçar o local, acabo de mandar a Roldán uma nova mensagem pelo Whatsapp. Não posso fazer nada além de ter paciência.
Os minutos passam lentamente e começa a chover. Primeiro chegam umas gotas, depois cai um temporal. O motorista liga o limpador de para-brisa e baixa um pouco mais o rádio, que transmite sucessos musicais de dignidade duvidosa. Me inquieta um pouco que a água reduza a visão de campo. De repente chega uma mensagem no celular da Olhos Verdes: “Chegaremos em um minuto”. Não quero abusar dessa conversa, posso me enganar e deixá-lo de sobreaviso. Guardo o celular e continuo atento ao ambiente. Gente correndo, vendedores de guarda-chuvas chineses, trânsito congestionado. Passo a mão pela perna machucada: parece que a umidade vai me fazer piorar. Um carro para na frente do restaurante. Mas é alarme falso: uma mulher com um poodle nos braços, que corre para entrar e não se molhar, e o marido, que deseja deixá-la plantada e ir embora. Acho até que ouço um trovão. E o guia me diz:
— Há muito tempo não chovia tanto, amigo. O senhor trouxe a tempestade.
Quando a bmw Essential Edition Serie 1 preta finalmente chega a seu destino, parece uma ilusão de óptica. Mas não é. Ali estão os sérvios: um, que sai do carro com guarda-chuva e gestos rápidos, outro que fica ao volante.
Concentro-me no relógio, vendo como o ponteiro dos minutos avança lentamente. O porco passa meia hora ali dentro: imagino que esteja sentado em um reservado, com os cotovelos na mesa, diante de uma bebida, olhando também o relógio, enviando uma mensagem a seu irmão e, depois de um tempo prudente, outra a Roldán. De repente, ouço o celular da Olhos Verdes soltar um peido musical e leio as mensagens: “Onde você está?”, quer saber o advogado. Não respondo e logo vem outro peido com zumbido. Por fim, Roldán perde a paciência e telefona, mas também não atendo. O motorista me olha por cima do ombro. A chuva não dá uma trégua. Agora o rádio está desligado e só ouço a batida intrépida dos limpadores de para-brisa. O que estarão pensando? O óbvio: terá havido um acidente? Por que ela não atende e não vai foder? García Roldán não quer ligar para ela no telefone fixo, não pode deixar rastro. Mas talvez corra o risco de mandar que seu capanga lhe faça esse favor. Bom, suponhamos que ele telefone ao apartamento de Chamberí. Em teoria, falta uma hora para que a faxineira meta a chave na fechadura e encontre a novidade. Portanto, o telefone toca longamente, até cair na secretária eletrônica, mas a alemã não se levanta. Ouve tudo isso com resignação, amarrada e amordaçada; ou talvez até tenha dormido de tanto fazer força e se agastar. Seja como for, todo esse silêncio deixa Roldán agitado. Ele ordena aos gêmeos de barba cerrada que abortem a missão. Há algo errado, rapazes, levantar acampamento. E então o sérvio paga a conta e sai, passa os olhos experientes pela paisagem, depois entra na bmw. Saem às pressas e viram a esquina.
— Lá vamos nós — anuncia o motorista e liga o motor. — Esses dois são aves de rapina, senhor. É melhor seguir de longe.
Dou a ele minha hipótese: estão indo a Puentecaldelas. O veterano se alegra com a informação, conhece perfeitamente o terreno e como segui-los sem se entregar. Essa segurança dele age como um milagre quando os perdemos. Não sei se realmente vão para Puentecaldelas, é só uma dedução. Pode ser que a fábrica fechada fique nesse povoado e pode ser também que a toca de Roldán esteja localizada em outro. O certo é que os sérvios são espertos, na verdade acabam de escapar de nós e ainda assim ficamos empacados em pensamentos positivos e ingênuos. Atravessamos municípios, comarcas verdes e igrejas rurais, e seguimos por estradas com pedágios, bifurcações e trevos. De Pontevedra a Puentecaldelas pela po-532, com uma chuva forte e o horizonte enevoado.
Entramos na cidadezinha com a ideia de dar voltas sem descer do carro, em busca da bmw preta. É uma comunidade tranquila, varrida pelo aguaceiro, de casas e construções com ruas arborizadas, pontes e praças imponentes. Percorremos a cidade de uma ponta a outra e voltamos pelos limites, recomeçando. Mas não temos sorte. Os sérvios podem estar em qualquer canto, talvez nem mesmo tenham entrado nos limites dessa cidade.
O motorista quer colocar gasolina em um posto e eu quero dar uma boa mijada. Aproveitamos para comprar um lanche e comemos olhando o trânsito lento e raro, como vaqueiros que procuram um cavalo especial em um rebanho esquálido. Parou de chover, mas o céu ainda está nublado. Olho o celular da Olhos Verdes para saber se tem alguma atividade, mas vejo que o Whatsapp e as mensagens morreram e que a bateria está arriando. O motorista cobra por hora e isso, em plena crise econômica, é uma bênção, mas faz algum tempo que está em silêncio: não gosta nem um pouco de se ver metido com esses dois valentões e já desconfia de que minha aflição com a infidelidade feminina é inventada. Procuro fazer com que ele não me deixe na mão justo nessa hora em que o barco aderna, e começo uma longa frase amistosa quando noto que ele ergue a vista. Viro-me com meio sanduíche na mão e consigo ver um Peugeot 2008 passando lentamente a cem metros, da esquerda para a direita, como quem sai de uma rua que vem do morro. O Peugeot é branco e radiante e não tem vidros polarizados. Os gêmeos vão distraídos e meditativos. Jogo o lanche fora e me ergo: quando estamos de novo no interior de nosso carro, o motorista me avisa que não quer seguir esses dois gorilas.
— Já vivi o bastante para saber aonde essas coisas vão dar — anuncia ele, olhando-me nos olhos pelo espelho. — Mas farei por você algo razoável, amigo.
Arranca com o carro, manobra e nos coloca na mesma rua de onde surgiu de surpresa o Peugeot branco. A rua se transforma em uma estrada menor. E vemos então passar várias propriedades e casas de pedra dos dois lados do caminho. De repente, o motorista para e dá a ré: acho que vê algo de relance. Os guias têm um sexto sentido. Ele para no acostamento e sinaliza para mim, de longe, o vulto preto que se destaca no verde.
— Quer dar uma olhada? — pergunta. — Se quiser, antes precisa me pagar, porque vou embora. Estou com frio e com pressa para chegar em casa, amigo. Não se ofenda.
Aceito o trato: pago em dinheiro e agradeço. Ainda caem alguns pingos esporádicos e o céu está escuro. Estamos no meio do campo galego e não se vê um cristo em nenhum dos quatro pontos cardeais. O motorista parte sem tumulto e eu me enfio na folhagem molhada e escorregadia. Saco a Glock e corro. Estou percorrendo na transversal um terreno cheio de lama e arbustos. É custoso avançar porque se trata de um mato fechado e selvagem, mas por fim aparece um muro baixo, e ao me aproximar vejo a bmw. A seu lado, há uma pegada recente. Eu me agacho e desço. Os sérvios chegam à casa de seu senhor e este os envia a Vigo no carro que a amante conhece bem: ela pode reconhecê-lo até em uma fábrica de carros idênticos porque parte do romance secreto transcorreu nesses bancos reclináveis e por trás dos vidros polarizados. Patrão, o que pode ter acontecido, perguntam eles ao voltar de mãos abanando. Refletem juntos, traçam algum plano. Agora sabem que cometeram um erro: não convém telefonar ao apartamento da Olhos Verdes de nenhum dos celulares, porque podem ser rastreados por equipes de tecnologia. Teria de ser feito no máximo de um telefone público de outra província e insistir até que alguém levante o fone. É só isso que pode explicar a imprudência de o dr. García Roldán ainda não ter saído de seu covil: se a Olhos Verdes tivesse contado de minha visita, já estaria viajando para o ostracismo. O advogado ainda não sabe com exatidão que merda aconteceu com a alemã que chupa seu pau. Rói as unhas e manda os mastins verificarem, mas decide ficar quieto e esperar notícias. Está aí dentro, provavelmente esquentando a cueca com o aquecedor a lenha e bebendo um conhaque; talvez vendo as armas com que pode contar, se tiver de resistir aos tiros. Eu me pergunto, aliás, por que a amante não o avisa: o relógio indica que ela já está acordada e livre. Ainda não se atreve, está morta de medo. Teme reencontrar a voz do monstro que prometeu voltar para arrebentar sua xota com uma bala.
Não consigo mais avançar de cócoras pela parede baixa, porque sinto dor na perna e o ferimento no quadril acaba comigo, e assim recuo mais uma vez até aquela selva de arbustos emaranhados e procuro o jeito mais longo de contornar o terreno e alcançar os fundos da casa. Ao chegar ao objetivo, surpreendo-me com um pátio detrás que tem uma porta de correr: as cortinas me impedem de espiar o interior. Mas tem uma escada de granito que dá acesso a uma porta protegida por um telhadinho. Subo os degraus como se não quisesse deixar pegadas na maisena e experimento a maçaneta: estou em uma cozinha estreita e comprida que cheira a café. Passo por ela com movimentos felinos, desemboco em um corredor e chego a uma grade. É um salão amplo com lareira e poltronas de leitura, tem várias luzes acesas, apesar de ainda nem ter chegado a hora de dormir, e um aparelho digital toca uma bachata[5]: Dile a la mañana que se acerca mi sueño. Que lo que se espera con paciencia se logra. Nueve horas a París viajé sin saberlo y crucé por Rusia con escala en tu boca[6]. Onde estará Roldán? Hesito entre descer ou ficar nessa atalaia. Mas enfim desço, porque a impaciência me ataca. Um, dois, três, quatro, cinco degraus, e quando paro obtenho um novo ângulo e uma nova perspectiva: a sombra do advogado vai e vem por um cômodo adjacente. Não consigo compreender o que está fazendo. Continuo descendo até o tapete e atravesso o salão. Sueños de arena en las olas. Besos me dava tu boca. Tengo estrellas y rosas, niña, cantando en Fukuoka[7]. Grudo um ombro na parede e tento decifrar as sombras e os barulhos metálicos. Só quando estou convencido do que se trata verdadeiramente aquela brincadeira, viro no vão e me permito ver. O advogado tem uma sala de aparelhos e está suando com os pesos. Salta com um grito de medo, solta os pesos e tropeça: atrás, tem um rifle de caça. Por um segundo, olhamo-nos nos olhos. Nessa posição desvantajosa e suada, García Roldán não parece o criminalista infalível, mas um pobre infeliz. Perdeu o encanto e a sofisticação; restam-lhe os braços e os dedos compridos, a cara de cavalo jovem, o nariz longo e o queixo proeminente.
Nem mesmo aponto, só mostro a ele a Glock. Não faça nenhuma asneira, doutor, aconselho sem abrir a boca. E ele olha o rifle, que dorme a um quilômetro e meio, e pestaneja sua hesitação. Aguenta tudo aquilo imerso em pensamentos, depois solta um suspiro longo e ruidoso, como se retomasse seu papel de homem racional e mundano.
— O famoso Remil — diz por fim, embora com a voz trêmula. — Nossa, você era o último que eu esperava, filho da puta. Me deu um baita susto.
Ele pega uma toalha de rosto e passa pela cara e pela nuca. Fico na soleira e ele avalia minha intenção. Experimenta:
— Até onde sei, estamos do mesmo lado, não é?
Coço uma costeleta com o cano da pistola. Explico:
— Às vezes, no front, reina a confusão e os soldados mudam de lado.
Ele me observa como se calculasse minha altura e meu peso; embola a toalha e a deixa cair. Pergunta se pode fumar. Aponta uma estante onde há três celulares, uma lata de cigarrilhas e um isqueiro de ouro. Jogo para ele a lata e o Dupont, e vigio seus movimentos como se ele tramasse alguma coisa. Mas só o que faz é acender o cigarro e soltar uma baforada fedorenta.
— Achei que você estava desativado e escondido. — Ele se defende, num tom mais firme. — Nunca imaginei que voltaria a vê-lo, muito menos aqui.
— Onde está Nuria?
Ele ri, mas sem convicção. Continua me olhando como se precisasse elucidar um enigma: o que quer esse pé-rapado insignificante, para quem ele trabalha, o que está fazendo em Puentecaldelas.
— Se eu pudesse responder a essa pergunta, seria imensamente rico — diz. Mesmo assustado, tem colhões, não será nada simples arrancar a verdade dele.
— Os colombianos. — Sorrio, piscando com a fadiga.
Agora ele franze um pouco a testa e acusa um tique rápido, como se tivesse levado um projétil de isopor na cara.
— Ah, mas então você não acredita em uma palavra de Cálgaris, não é verdade? — fala como se fosse toda uma descoberta. Minha desconfiança o anima um pouco, talvez acredite ter detectado um erro, e isso o incha. — Pois eu tenho uma má notícia para você, Remil. Nuria está sendo guardada pelos antigos sócios de meu chefe. Ele negociou dia e noite com eles, e são um osso muito duro de roer. No fim, me pediram que saísse da reta.
— É sempre melhor tratar diretamente com o patrão.
— Exceto quando o patrão não abre a carteira. — Ele me surpreende. — É que eles não querem uma coisa só, querem tudo, Remil. Na Europa e na América. Quem força demais a linha corre o risco de parti-la. Gosta da pesca em alto-mar?
— Achei que ela era mulher do seu chefe — sondo, sem ironia. — E que era um homem apaixonado.
Ele dá uma gargalhada e aponta o cigarro para mim. Depois assente como se tivesse ouvido uma boa piada. Uma brincadeira refinada.
— Então tanta insistência com os vínculos e lealdades para além dos negócios, toda essa filosofia do xogum era puro papo furado — digo a ele.
Agora Roldán brinca com a lata e o isqueiro, sem desviar os olhos.
— Nossa — repete ele e arrasta as sílabas —, então você está sozinho nisso.
Fico calado. Tento dissimular a comoção íntima. Não é possível que Nuria permaneça sequestrada. É inconcebível. Ao mesmo tempo, se for assim, onde eu fico em toda essa confusão? García Roldán fuma e pensa: seduzido e abandonado. Como devo lhe parecer idiota e primário. Acreditou de verdade, mesmo que por um momento, que Nuria se entregou por outro motivo além de torná-lo incondicional, soldadinho? Vê se te enxerga; como você ficou ridículo. Não se atreve a pronunciar essas reflexões ofensivas, mas posso ler sua mente.
Eu me aproximo e de repente meto a pistola em sua têmpora. Pego o homem tão desprevenido que ele tem uma convulsão e cai de lado como uma bolsa. Amarro-o a um aparelho de musculação com as cordas da academia e o deixo tonto. Levo o rifle ao salão e subo a escada até a cozinha. Visto as luvas de borracha como se fosse lavar a louça e em um armário metido ao lado da geladeira encontro um ferro de passar a vapor. Ligo e preparo uma vodca com gelo para mim. Nuria. Puta merda. Bebo um copo e preparo outro. Depois volto à academia e meto um tabefe nele.
— Está me ouvindo? — chamo. Ele assente, ainda em choque. — Leu Sêneca na universidade, doutor? — pergunto. — Li um romance barato em que Sêneca dizia uma frase inesquecível, talvez seja falsa. — O rio de sangue desce pelas sobrancelhas e pelo nariz de Roldán. — Que a dor não nos espante: ou terá fim, ou acabará com você.
Em seguida, tiro sua camiseta. Seu tronco muito magro e trabalhado fica exposto ao ar. Aplico o ferro na carne peluda e sinto seu corpo se retesar em um grito. Não restam mais bachatas que afoguem tanto sofrimento. Ele jura, chorando, que está disposto a me dar tudo que preciso, mas não quero que me entenda mal. Sua situação não é negociável. Interrogo-o a fundo enquanto vou queimando seu peito, a barriga, os braços e, depois de arrancar sua calça de moletom, também os ovos. Nuria foi raptada e Belisario cortou toda a comunicação. O advogado recebeu a ordem de não escrever nem telefonar, de se isolar e esperar instruções: Belisario fez com Roldán o que o coronel fez comigo. Agora o advogado não sabe onde está seu chefe, sempre foi esquivo e paranoico. Teria de fazer sinais de fumaça pela internet para conseguir um telefonema ou um local inevitável em algum povoado pequeno da Espanha, França ou Portugal. Vive desconfiado e perseguido, e nem os mais íntimos sabem como localizá-lo. Sempre que Roldán e Nuria viram o velho, tiveram de combinar as coordenadas de antemão e se encontrar antes com Manolo, o centro-americano do furgão e da Uzi. Balduin é outra coisa. O corretor tem acesso direto.
O ferro vai perdendo a eficácia. Deixo que ele descanse um pouco e procuro um alicate. Encontro, em vez disso, uma tesoura de poda. Roldán está branco feito mármore de Carrara e tiritando como se estivesse pelado numa pista de esqui.
— Onde está Balduin? — pergunto. Demora a responder, como se a língua estivesse queimada. Balduin seguiu o protocolo; ao tomar conhecimento da Operação Dama Branca, saiu de Nova York e se refugiou na mãe pátria. O manual de emergência os obriga a não tocar em telefones nem e-mails. Em tempos de paz, o advogado teria como localizar rapidamente o corretor fora da Espanha, e de fato tinham um diálogo permanente. Viram-se em uma infinidade de ocasiões: sempre em países latino-americanos ou em Manhattan. Nas vezes em que estiveram cara a cara em Madri, Balduin se hospedou no Ritz da Plaza de la Lealtad. Mas o advogado nunca soube onde ele dormia fora da capital, embora intua que o corretor tenha um apartamento em Barcelona. Por duas vezes, encontrou-se com Balduin nesta cidade e nas duas vezes foi para comer na Casa Calvet.
— A família dele era de Valencia — recordo.
— Sim, mas ali não ficou nada nem ninguém — apressa-se a responder, com a voz nasalada. — Nuria interferiu há quatro anos, pouco depois de se associar a nós, e contratou detetives de divórcio para que localizassem os familiares da mãe. Alguns morreram de velhice, outros emigraram. Não ficou nada de pé, só algumas tumbas. Balduin soube da pesquisa e por muito pouco não a matou.
Vejo que nessa empresa ninguém confia nos sócios e que a chave é manter um esconderijo às escuras na retaguarda e, à primeira alteração na maré, cortar os elos da corrente.
Medito sobre as respostas. Têm sentido, embora sejam superficiais. Nota-se que ele nunca foi torturado e que está morto de medo, mas sinto que da mesma forma tenta ganhar tempo, me enrolando. Os sérvios podem voltar de uma hora para a outra. É nisso que aposta García Roldán, que seja salvo pelo gongo. Se eu contasse com dois dias inteiros de ferro de passar e agulhada, poderia ter completa certeza de que ele não está mentido. Mas isso é impossível. Tenho muita pressa. Agarro o homem pela vara e fecho nela o gume duplo da tesoura de poda. Mas não corto, apenas a deixo em suspenso: um apertão e adeus masculinidade, doutor. Bye, bye à alemã e à boa vida. Roldán grita um “não” a plenos pulmões, mas já está rouco de dor e agonia.
— Desembucha, doutor, ou juro que te corto o pau — eu o atropelo com um grito.
Ele tem espasmos, os olhos inchados e as veias a ponto de estourar. Faz que não com a cabeça, para que eu tire a tesoura da vara, mas não lhe dou esse prazer. Toma ar como um peixe fora d’água. Pela segunda vez, a língua não reage. Ele a umedece e diz algo em um murmúrio. Como não entendo bem, ordeno que não seja um babaca e que fale como um homem.
— Balduin é filho dele — diz o castrato, assumindo seu futuro, e joga a cabeça para trás como se estivesse tudo acabado. Essa confissão ao acaso me deixa desconcertado. Osvaldo Balduin é filho de Belisario Ruiz Moreno? Talvez um bastardo com o sobrenome da mãe, ou com nome falso. Em todo caso, que importância tem essa informação? Retiro a tesoura da pica ilesa e examino os celulares na estante. Um dos três acusa várias ligações. Os sérvios telefonaram para a Olhos Verdes de outra província e agora voltam a toda, temendo o pior. Largo a tesoura de poda, vou para o salão e abro a porta da frente. A bmw tem a chave na ignição. Volto para dentro da casa, pego minha bolsa e subo à cozinha para limpar as digitais na maçaneta, na geladeira, na garrafa e no copo. Desço limpando o corrimão com uma flanela e continuo fazendo o mesmo com o rifle, o ferro, o isqueiro, a lata de cigarrilha, as cordas e o aparelho de musculação. É uma tarefa exagerada, levando-se em consideração que nem García Roldán nem seus sócios podem me denunciar à polícia. Mas cumpro metodicamente, como me ensinaram, é melhor caprichar naquilo que me cabe. Estou nesse ofício inútil quando sinto um raio nas vísceras. O advogado parece adormecido, mas, por intuição, sei que de repente está morto. É apenas um pressentimento, o reflexo brusco da experiência. Tiro uma das luvas e tomo a pulsação na carótida. Mas que pena, doutor, o bobão morreu na praia e isso depois de ter se cuidado tanto com as saladas e a malhação. Que pena.
Limpo essas últimas digitais da pele do pescoço e volto a vestir a luva amarela. Olho pela última vez o corpo derrotado, as marcas do ferro, o escroto murcho, e volto a sentir o zumbido do celular na estante. Não há tempo para uma resposta, doutor, vou te deixar com seus amigos. Entro na bmw preta e rodo até a estrada. É uma nave elegante e majestosa. Decido pela direção segura, que consiste em cruzar a cidade e obedecer à sinalização. Avanço devagar porque o asfalto ainda está úmido e porque de uma hora para a outra receio topar com o Peugeot branco. Atravesso em sentido contrário os mesmos municípios e comarcas e, pela po-532, chego a Pontevedra sem ser interceptado. Abandono o carro em uma rua distante, livro-me das luvas e do celular da Olhos Verdes, pergunto pela rodoviária e vou a pé até a avenida Calvo Sotelo. Sei que existem meios terrestres e aéreos mais diretos para chegar a Barcelona, mas prefiro dar uma longa volta para apagar os rastros. Cem minutos depois, estou comprando uma passagem de trinta e nove euros em Vigo. Tenho a Glock no coldre da cintura, e assim os arcos de metal não a detectam. O trem da Renfe é moderno e confortável e relaxo quando parte e atinge duzentos quilômetros por hora. Só então volto a pensar em García Roldán e nas implicações de sua confissão. Se Nuria foi de fato sequestrada, a questão toma um curso novo e delirante. Seria verossímil em Caracas ou em Buenos Aires, mas pode estar acontecendo bem na Europa? Tento imaginá-la em cativeiro e simplesmente não consigo uma fotografia convincente. Se me dessem a realização de um único desejo na vida, pediria para vê-la e arrancar dela a verdade. A dela e a nossa. Depois penso no corretor. Gay, elegante, careca e reluzente, óculos redondos, anéis de metal nos dedos, visual informal. Boca muito vermelha, barba rala, andar felino, problemas de timidez e de expressão, um sujeito evasivo e perigoso. “Minha mãe morreu no parto.” Aquela cavalgada na Siete Alazanes. “Um grande ausente, embora sempre estivesse presente como uma sombra. Severo. Muito severo. Exigindo tudo de mim. Veja bem, ainda me esforço para que ele goste de mim.” Sobreponho suas feições com as de Ruiz Moreno. Tudo pode ser verdade e tudo pode ser mentira.
Cochilo por algumas horas e tomo o café da manhã olhando o amanhecer e revirando o dilema dos sérvios: o que fazer com o cadáver. Podem telefonar para a polícia anonimamente e lavar as mãos. Mas não parece uma boa opção: haverá uma investigação e eles ficarão no raio de tiro. Talvez tenham de guardá-lo até segunda ordem, enquanto me procuram por céus e terra. Mas talvez também tentem me esquecer, uma alternativa que acabará sendo mais saudável e econômica para eles a longo prazo. Quando a manhã se consolida, traço uma espécie de plano para Barcelona. A única pista que tenho é a Casa Calvet: se Balduin mora na cidade e ainda é um habitué, talvez eu possa armar uma cilada para ele. Mas o que vai acontecer se o corretor continuar escondido e não aparecer nem para tomar um sorvete? Calculo que seu nome não aparecerá na lista telefônica, nem mesmo tenho uma foto para mostrar nos hotéis e nos bares. Como encontrar um homem invisível em uma cidade de mais de um milhão e meio de habitantes?
Na estação, encontro um taxista disponível e peço que me recomende onde alugar um quarto no bairro gótico. Ele me leva às imediações da Plaza Real, a poucos metros de Las Ramblas. É um edifício de pé-direito alto e sacadas francesas; os quartos são individuais, mas têm banheiro compartilhado. Jogo-me na cama e sinto que os músculos relaxam pela primeira vez em muitos dias. Sem que fosse essa minha intenção, tiro uma longa sesta. Depois olho o ferimento, que de vez em quando dói. Troco de camisa e sopeso os maços de dólares que ainda levo na bolsa africana. Preciso de duas coisas: trocá-los definitivamente por euros e comprar uma maleta para melhorar um pouco a fachada. Saio na tarde lotada de catalães e turistas orientais e procuro um banco aberto. Folheiam o passaporte do professor Conde e colocam duas páginas sob scanners e lupas, mas no fim de todas essas manobras burocráticas, não aparece nenhum inconveniente. “Seus euros, senhor, e tenha um bom dia.” Tomo uma bebida na beira da Plaza Cataluña e entro em uma loja de bolsas. A maleta preta faz conjunto com o casaco de Holguín. Solicito no escritório de turismo um mapa e pergunto pelo Casa Calvet. Dizem que não estou longe. Manco até Carrer de Casp: mais que um restaurante, é um museu. Entro em um cibercafé da área e tomo conhecimento de que se trata de uma obra de Gaudí. Não sei muito de sua arte, mas lembro vagamente de um romance policial que fazia conjecturas a respeito de sua vida. O livro não valia grande coisa, mas ficou gravado em minha mente o fato de que o arquiteto havia construído para uns ricaços apartamentos inspirados no Nautilus. Não cometo a insensatez de digitar o nome de Osvaldo Balduin no Google porque uma vez fiz isso em Buenos Aires e foi tudo em vão: não aparece em site nenhum. Além disso, qualquer informação delicada poderia ser rastreada por Palma ou seus rivais. Mas peço à garçonete uma lista telefônica e verifico, contrariando toda lógica. Nada.
Mato o tempo passeando pelo centro histórico, mas não consigo me concentrar nos detalhes arquitetônicos, nem na paisagem. Olho estupidamente a multidão na esperança irracional de localizar meu garoto. Ninguém nem mesmo é parecido com ele. Então vago um pouco mais pelo bairro gótico e depois subo para meu quarto, tomo um banho no banheiro comunitário, enfio os maços de euro na maleta e deixo a bolsa africana em uma cadeira. Enfrento o espelho: pareço um civil, um cavalheiro respeitável e mais ou menos inofensivo. Permito-me o luxo de um primeiro jantar de exploração, mas já vi os preços e sei que a partir de amanhã terei de me contentar em montar guarda na calçada.
A noite é fresca e barulhenta. A essa hora, o labirinto gótico já está aceso e me atrasa com suas vielas intermináveis. Não consigo resistir à súbita tentação de entrar em uma livraria antiga, nem de folhear um livro ilustrado que fala do esoterismo de Gaudí e do culto do dragão. Pago com prazer para colocá-lo na maleta e apresso o passo. Chego às nove da noite ao Casa Calvet e no incrível vestíbulo pergunto se tem mesa. Levam-me a uma mesa para dois que fica perto da entrada. É um ambiente sensual e intimista, a meia-luz, tomado de detalhes e relevos. Deixo a maleta na cadeira de estofado vermelho e vou ao toalete só para dar uma olhada geral e ver se o filho da puta do patrão janta hoje no templo. Mijo em um mictório que fica embutido em uma parede decorada com maiólicas de figuras coloridas e estranhas, e ao voltar acabo constatando que o corretor brilha por sua ausência. Uma mulher que parece uma mistura de maître e sommelier me oferece uma carta de vinhos e sugere um em especial. Aceito para lhe dar esse prazer e ganhar sua confiança, depois decido começar por uma salada morna de camarão, alface, aspargos, fundo de tomate e vinagrete de ervas finas. Como prato principal, sou aconselhado a um leitão ao forno, cristalizado e crocante. Mas declino com simpatia e fico com o carré de cordeiro com panqueca de espinafre e alho macio, aioli de beterraba e um molho de xerez e alecrim. Deixo claro que sou argentino e que um velho e querido amigo me recomendou o lugar: Osvaldo Balduin. O nome não lhe diz nada, assim, não insisto. Pego o livro sobre Gaudí e me concentro nas imagens. Procuro especificamente um monstro apocalíptico que seja mais parecido com a tatuagem do corretor e o selo tosco dos tijolos de cocaína. É o mesmo dragão, e por acaso estamos na cidade dos dragões. Existem centenas deles, construídos em toda sorte de materiais: pedra, cerâmica, mosaicos trencadís, ferro forjado. Ferozes e amistosos, os dois mais famosos ficam no Parc Güel. Olho detidamente Ladão, um guardião insubornável dos jardins das Hespérides, que foi assassinado por Hércules: goela e dentes recortados, asas de morcego e rabo em espiral. Tem certa semelhança com aquela tatuagem, mas não é idêntico. E se me pressionassem, eu não poderia assinar embaixo, nem garantir sob juramento.
No fim das contas, é claro que o carré e o vinho são deliciosos. Fazem-me lembrar dos tempos de prosperidade e do sorriso de Nuria. Entraram e saíram muitos casais durante o jantar, mas nada de Balduin. Não virá esta noite. A mulher tenta me convencer a experimentar uma sobremesa catalã, mas resisto e aproveito para puxar assunto. Falamos do tango e do malbec, e de alguns clientes famosos que ela atende. Aproveito para insistir com meu irmão de espírito:
— Éramos muito unidos, mas perdi o contato com ele desde que voltou de Nova York — explico num tom de confidência. — Até fechou sua conta no Facebook. Só o que sei é que está em Barcelona e costumava frequentar o Casa Calvet.
A mulher me serve a última taça e responde:
— Deixe-me ver, como é mesmo o nome dele? — Procura sem parar em um livro da entrada, e depois em outro que ficou na gerência, para ver se o nome aparece na lista de reservas. Lamentavelmente, não. Faço uma última tentativa: descrevo sua aparência. Faz cara de impotência, lamenta sinceramente.
A noite não se apagou quando volto a ela. Ainda tenho tempo de procurar um tatuador profissional e lhe fazer algumas perguntas. Encontro um perto do Palau de la Música. Tem um antro pequeno e aberto ao público, cabelo comprido e branco em um pequeno rabo de cavalo e a figura de Bob Marley no braço direito. Está desenhando uma caveira dentro de um coração em chamas em uma menina de piercings e palidez cadavérica. Conta que o trabalho foi massificado, que existem colegas e cursos por todo lado e galerias que parecem clínicas particulares. E que os dragões são um lugar-comum. Mostro Ladão e tento descrever os traços de que me recordo. Tira os óculos para me ver melhor e explica que qualquer bom artesão pode ter traduzido essa imagem clássica na pele.
— Já vi em milhões de ocasiões, amigo, e a cada vez é diferente — esclarece. — Depende da mão e do conceito. Os gringos pedem muito. Eu mesmo o tatuei e sempre faço com desenhos simplificados e pessoais. Mesmo que você tivesse a foto da tatuagem, seria difícil localizar o autor da obra.
Tento voltar às flexões em meu quarto, mas ainda sinto dor nos quadris e na perna, e assim fico pensando durante a insônia, de barriga para cima. As probabilidades de encontrar o corretor são baixas. Já me vejo parado na calçada em frente ao Casa Calvet todo meio-dia e toda noite, com um gorro metido até as sobrancelhas, fumando cigarrilhas pretas e perdendo tempo. De fato é exatamente o que faço por dois dias seguidos, com o resultado esperado, embora durante o resto das horas eu fique andando por bairros exclusivos e solitários, ou sentado em bares com uma vista ampla, observando pateticamente a multidão.
Ao passar por Las Ramblas, na altura do teatro principal, vejo as obras de um retratista sem clientela que come um churro ao lado de uma estátua viva. Sobre um painel, exibe versões aceitáveis de Michael Douglas e Paul McCartney. Eu me aproximo e pergunto se ele poderia fazer o retrato de meu irmão, que morreu na guerra das Malvinas. Não tenho fotos, mas posso orientar como se fosse um retrato falado. Ele dá de ombros. Não perde nada por tentar e me cobrará cinquenta euros, independentemente do resultado. Tem um cavalete, uma caixa com lápis, carvão, tinta a óleo e vinil. É um pau para toda obra, para o que mandarem fazer. Sento-me a seu lado e começo a ditar as características do careca reluzente com lábios muito vermelhos e óculos redondos. Custamos muito a chegar a um nariz adequado e preciso parar três vezes para ver o desenho em perspectiva e descobrir que o formato do crânio não é o mesmo, ou que o queixo está saliente demais. Uma ou outra vez, experimentamos com as maçãs do rosto e ele leva um bom tempo para conseguir aquele olhar felino. Quando termina e eu pago, um pouco cansado das instruções, avalio o trabalho inclinando a cabeça para o lado e chego à conclusão de que alcançamos uns sessenta por cento da aparência original. Uma infinidade de homens parecidos poderia se sentir representada por esse desenho rudimentar feito à mão. De qualquer modo, servirá para o objetivo modesto.
Entro em um lugar que tem fotocópias a laser e peço seis reproduções em papel ofício. Depois roubo um guia comercial de um bar e me sento em uma praça, marcando os endereços de todos os hotéis de Barcelona. É uma tarefa hercúlea e ridícula, mas não me ocorre nada melhor. Também circulo com uma esferográfica os anúncios de tatuagens. Não abandono a vigilância do Casa Calvet, mas passo quinze horas andando pela rua, perguntando por Osvaldo Balduin a porteiros e mostrando o retrato, e falando com tatuadores de toda sorte, que respondem ignorando a figura e na maioria dos casos com prevenção ou indiferença. Invento várias histórias de irmãos separados pela vida toda, mas ninguém parece se comover com isso. Faço o mesmo em restaurantes de luxo e em bares. À medida que os dias avançam iguais, vou perdendo o ânimo para o combate. Numa tarde, entro no Aquarium e fico longos minutos no túnel subaquático, vendo os tubarões e raias-manta passando a centímetros do vidro, sobrevoando. Jamais vou encontrar Balduin. Posso ficar até que acabe o último euro e ainda assim fracassar na busca. Não há como saber se ainda está em Barcelona, nem se está jantando agora mesmo a cem metros daqui, protegido por milhões de turistas chineses, em um quiosque barato. É mais fácil procurar uma só presa em mar aberto.
Sinto-me entristecido, inapetente e sem vigor como me senti no cafofo de Villa Costal. Vago sem rumo pelas avenidas e pelos cantos do bairro gótico e às vezes me perco em lojas, antiquários e comércio de artesanato. Toda manhã, compro os jornais procurando alguma informação útil, sobretudo a respeito de um advogado assassinado na Galícia, e vejo pela internet os jornais argentinos para saber como vai a Operação Dama Branca, mas não encontro nem uma coisa, nem outra. Obrigo-me a comer e entro em La Boquería, tentado pelo atum vermelho. Saboreio lentamente em uma mesa alta e me entretenho com um exemplar de La Vanguardia que alguém abandonou na cadeira. Tem uma página inteira dedicada à história cultural do tamanco. Não é o texto que me chama a atenção, são as fotografias. A cena fica gravada em minha mente: um chaveiro vazio pendurado em um prego, duas figuras que parecem tamancos pequenos de prata, com um A microscópico entalhado no interior. O único objeto estranho em uma casa deliberadamente impessoal, aquele chalé localizado a cem metros do mar, para onde nos transferiram às cegas, dentro da Kombi, a fim de nos encontrar cara a cara com o senhor mistério.
Agora leio com avidez a aula de história. Um calçado para trabalhar no barro, usado nas áreas rurais, e fabricado com madeira verde de carvalho, faia, nogueira, castanheira, álamo ou salgueiro. Um artesão explica que na sua terra se chamam madreñas, e que são feitas de uma só peça e levam um salto bem marcado, e dois tacos dianteiros na sola. Admite que andar com as madreñas é uma arte: se não forem bem manejadas, há o risco de torcer o tornozelo. Em outras localidades, tem outros nomes: albarca, abarca, galocha ou zoca. A do chaveiro pertence a Astúrias ou Aragão? Esses tamancos são usados indistintamente nas duas regiões e também na Galícia, Cantábria e no País Basco, e nas áreas montanhosa de León, Castela e na Catalunha. Preciso consultar o Google Maps, assim termino a cerveja e espero minha vez para ocupar um computador em um cibercafé escuro onde berra uma música do Iron Maiden. O problema não pode ser mais simples: Aragão fica no vale do Ebro, entre os Pirineus centrais e as Montanhas Ibéricas. Não tem uma praia sequer. Em contrapartida, os asturianos desfrutam de um longo litoral cantábrico, da província de fronteira de Lugo ao conselho de Llanes. Lembro-me de Manolo e de seu sotaque da América Central, as joias de ouro nos pulsos e no pescoço de touro, e como nos levou naquele furgão, dando voltas para nos despistar. Quanto tempo se passou? Cinco, seis horas? Suponhamos que tenha acrescentado mais duas ou três além do necessário, para nos confundir. Exatamente o que eu teria feito: um longo passeio terra adentro, em zigue-zague, para que perdêssemos o senso de orientação e nos entediássemos. De Vigo a Oviedo são somente duzentos e sessenta e cinco quilômetros em linha reta, mas pela estrada são mais de quatrocentos. Estudo a linha do Cantábrico: é lógico pensar que a casa ficaria em algum ponto entre Navia e Gijón. Mais de cem quilômetros de litoral irregular. Eu teria de alugar um carro e avaliar a questão com muita calma. Mas isso equivaleria a me dar por vencido com Balduin. Procuro um bar perto do Museo de Cera e bebo uma vodca para pensar melhor nesse pepino. Barcelona foi um erro, outro beco sem saída. Talvez seja melhor seguir as digitais do patrão e deixar seu amado filho neste emaranhado de ruas e gente. Mas o que vai acontecer se eu não encontrar a casa de praia, ou se for simplesmente um chalé abandonado? Afasto essas dúvidas porque só levam ao desânimo, e porque não tenho saída senão ir até o fim. Só há uma pessoa que pode me levar a Nuria: aquele animal bochechudo com implantes de apresentador de tv que a comeu no andar de cima e depois me disse: “Você sabe que nesse negócio é preciso ter colhões, mas não um pau”.
Está tomada a decisão, mas faço uma última sondagem às oito da noite, antes de o Casa Cavet abrir as portas. Levo à sommelier o retrato de Balduin na esperança de que o corretor tivesse reservado alguma mesa com nome falso e mostro o desenho para ver como a moça reage. Não reconhece o sujeito em questão. Nem os garçons, que a ajudam com uma cordialidade moderada: passam clientes demais por ali para que eles retenham as feições de alguém em particular. Processo esse último fora como um gesto definitivo: preciso abandonar a roleta. Já me livrei da maleta e do quarto e tenho uma passagem noturna para Gijón. Um táxi me leva à estação e passo a noite em claro atravessando de novo o norte da Espanha, sacudindo pelas ferrovias, de um lado a outro da península. Sinto-me um imbecil.
É uma viagem muito longa e ao chegar não tenho outra preocupação senão alugar um carro. Juro aos atendentes das locadoras que perdi a carteira de habilitação, mas ofereço a eles um sinal gordo e o passaporte do professor Conde. Ninguém quer infringir as regras. Um motorista me sugere confidencialmente que telefone a seu cunhado, que está desempregado e tem um Seat. Me custa quinhentos euros adiantado e uma saraivada de advertências. Enfim, fica com o passaporte, entrega-me as chaves e me dá alguns conselhos. Saio o mais cedo possível de Gijón e faço o percurso pelos povoados litorâneos do Cantábrico. Paro em Avilés, uma cidade industrial, e pergunto em uma imobiliária por uma casa de dois andares localizada a uns cem metros de uma praia solitária: pedra, cimento e madeira. Eles têm um álbum digital com fotos. Existem várias nos arredores que atendem aos requisitos; algumas já foram vendidas. Visito essas casas, contorno-as, fico um tempo falando com os vizinhos, pergunto por um gordo com uma Kombi. Sigo meu caminho sem ter certeza de nada.
Castrillón é um município de três rios, sete praias e dezoito quilômetros de mar. Também vou às imobiliárias e a casas isoladas e pergunto por Manolo e seu furgão. Almoço uma fabada e arroz com canela, e refaço o trajeto até Cudillero, que fica em um pequeno vilarejo litorâneo, descendo diretamente a ladeira da montanha às escarpas e à areia. Dois ou três chalés próximos encaixam-se na descrição, mas são habitados e os asturianos conhecem uns cinquenta Manolos, mas nenhum com sotaque do Caribe.
Vou e volto pelos trechos intermediários, procurando casas remotas, pontos geográficos que não aparecem no mapa e locais abandonados à natureza e ao isolamento. Uma velha de vestido preto, lenço na cabeça e tamancos nos pés me recomenda não me prender à estrada, porque a velocidade e a altura me impedem de desfrutar a paisagem. Pego o trecho tortuoso da estrada nacional 632, que segue um antigo traçado e passa por vinte localidades. Paro em algumas para cumprir a rotina; passo ao largo de outras. Há pequenas casas na beira da estrada e o gado nos pastos é pouco. Fico obcecado pelas casas fechadas, mas vou descartando uma por uma, por pura intuição.
Às vezes a estrada corre em paralelo à rodovia, serpenteia, entra em planícies e desce, seguindo o limite do Cantábrico. Está anoitecendo, mas de qualquer forma há uma estranha luminosidade. Vejo plantações de milho à beira de precipícios, bandos de gaivotas e grupos de ciclistas. Não faz mais sentido continuar. Passo a noite em um povoado de pescadores, que tem um hotelzinho onde servem corvina. Sinto o peso de não ter dormido durante a viagem de trem, e essa lenta jornada de marchas, contramarchas e observações me deixa de cama. Para ser sincero, devo confessar que posso ter passado na frente do chalé de Belisario Ruiz Moreno sem ter percebido. Talvez de fato eu o tenha deixado para trás. Preciso me convencer da ideia dolorosa de que chegarei a Navia e voltarei lentamente uma ou três vezes, se for necessário. Estou na área, mas é um itinerário tão complexo e detalhado que será como remar em doce de leite. Apago por nove horas e ainda preciso tomar três xícaras de café puro para recuperar a consciência.
Levo cem minutos de perguntas e entradas inúteis em aldeias vizinhas para chegar a Luarca e a seu anfiteatro de antigo porto baleeiro, com as embarcações e as flores. Estaciono o Seat em uma rua estreita e ando um pouco, procurando as imobiliárias. Distraio-me em uma vitrine e, ao erguer os olhos, vejo a Kombi pelo vidro. Ou uma muito parecida. Está estacionada na frente de um supermercado, em uma calçada de movimento intenso. Meu coração bate na garganta e automaticamente recuo para me proteger atrás de um caminhão de obra que deixaram perto de uma esquina. Será mesmo o furgão? Puta que pariu, todas as Kombis brancas parecem iguais. Por reflexo, levo a mão à Glock, mas vejo alarmado que não está em seu lugar: ao sair, guardei-a no porta-luvas e não posso andar trezentos metros para pegá-la. Manolo não é uma carmelita descalça. Se houver ação, vou precisar da pistola.
Ainda assim, por suposição, alimento a possibilidade de que o dono da Kombi acabe sendo um camponês asturiano ou um distribuidor de presunto. Preparo-me psicologicamente para outra decepção e me mantenho protegido, fingindo que sou um turista à espera de uma mulher ou de um amigo.
O suspense dura cerca de meia hora. Ao final dessa eternidade, não é Manolo quem sai do supermercado carregando sacolas. Também não é Manolo o homem que abre a porta traseira da Kombi e guarda a carga. É Osvaldo Balduin.
Pergunto-me se não será uma miragem no meio do deserto de frustrações e da sede de novidades, uma vez que o careca está de chapéu de aba larga e uma jaqueta de couro marrom, jeans azul e botas de camurça, e esconde parte do rosto com óculos de sol. Mas mesmo que estivesse de elmo ou escafandro, eu não teria me confundido: anda e se move com a elegância graciosa e predadora dos gatos. É ele.
Hesito entre ficar para ver como ele sai e avança pela ruazinha perpendicular, ou desatar agora mesmo a correr. Suponho que devo continuar em meu esconderijo até saber se vai virar à esquerda ou à direita, uma informação importante. Mas enquanto ele liga a seta, parto numa correria. Passei várias semanas sem treinar e me sinto fora de forma, mas mesmo assim faço três quarteirões em noventa segundos com a adrenalina ao máximo. Por sorte, o Seat não me deixa na mão. Manobro em alta velocidade, para surpresa de pedestres, motoristas e comerciantes, e pego a rua até o fim, depois viro à esquerda e subo, procurando dos dois lados. Diviso o furgão subindo uma ladeira com calçamento de pedra e tiro o pé do acelerador: vamos devagar, Osvaldo. Muito devagar. Sou um morador a caminho do trabalho.
A satisfação proporcionada pela conquista é inusitada. Parece que me deram uma injeção de heroína pura. Se você não tem pressa, eu também não tenho, careca; o dia está do caralho para dar um passeio. A Kombi vai para a estrada e chega a no máximo sessenta por hora. Agrada-me que o corretor seja um motorista com tanta consciência. Eu o sigo atrás de um ônibus da alsa e adivinho que logo vai virar para o mar. Vamos em direção a Navia e Balduin se desvia para chegar a sua casa. Paro a uma distância prudente para não incomodá-lo: está estacionando o furgão na garagem de um chalé de pedra com telhado de duas águas, parecido com outras centenas, que ignorei olimpicamente em minha batida paranoica. Desligo o motor do Seat e tiro a Glock de dentro do coldre e do porta-luvas. Manolo é o guarda-costas pessoal de Belisario, mas também é viável pensar que Balduin está sozinho. Porque se o gordo passou a noite ali junto com o filho do dragão, teria feito as compras ou pelo menos o acompanharia a Luarca. De todo modo, não dá para confiar. Deixo o Seat embaixo de uma árvore e me aproximo a passos largos. Corto caminho pela grama de um terreno afastado e me dirijo à parte dos fundos, prendendo a respiração. Com alegria, noto que Balduin não trancou a porta automática e continua no andar de cima. E também que na pressa para chegar à geladeira com as sacolas do supermercado, deixou aberta a porta da Kombi e subiu a escada interna até a cozinha. Entro lentamente com a Glock na mão naquela oficina cheia de ferramentas e subo a escada de lado. Aquele salão com móveis de castanheira e carvalho, que parecia tão sem charme, foi convertido em um escritório cheio de planilhas, revistas jogadas pelo chão e desordem geral. Apuro o ouvido para saber se Balduin tem companhia: não há outros ruídos além do trabalho silencioso do corretor na despensa e o rumor distante da praia. Ainda espero dois ou três minutos inteiros para que Balduin termine sua tarefa e saia da cozinha, desça os degraus, feche a porta do bendito furgão e baixe a porta automática da garagem. Estou escondido em um pequeno banheiro de serviço que fica entre a cozinha e o salão. Ouço Balduin cantarolar uma música e vejo por uma fresta que agora pendura o chapéu e a jaqueta em um cabideiro abarrotado de roupa antes de descer para terminar seu serviço. Enquanto isso, passo do banheiro para a cozinha, que parece o quarto de um adolescente, e o espero encostado na bancada. Ainda está pendurado naquele prego o chaveiro vazio com os tamancos de prata; guardo no bolso como se fosse um troféu.
Balduin volta pela escada a passos pesados e com um assovio despreocupado. Traz também uma caixa com vidros de molhos e geleias, que cai de suas mãos quando ele me encontra. Não, não, não, não, grita e agarra a cabeça. Tem a pele tão branca que a boca parece pintada. Não, repete e fecha os olhos, e desanda a dar pontapés e socos nos objetos, nos eletrodomésticos e nas paredes. Por um instante, parece um menino dando um ataque de birra, ou um doente num surto psicótico. Deixo que ele desabafe porque é arriscado contê-lo, mas, na dúvida, mantenho o indicador no gatilho. Logo depois começa a se lamentar muito e apoia as costas na parede, segurando a mão ferida. Está aos prantos, escorrendo muco, escorrega até o rodapé e fica sentado no ladrilho xadrez como um boneco sem pilha.
Pego um vidro de mel que ficou intacto e coloco contra a luz. Intimamente, tento compreender se esse ataque de choro é sincero. Imagino que alguém capaz de confessar que não resiste à dor a um estranho em uma cavalgada deve necessariamente se dar por perdido ao primeiro contratempo. Não suportará o tormento, confessará até a morte de Sinatra, depois será duplamente culpado: por se deixar apanhar e por vender o pai sem impor resistência. Por isso Osvaldo Balduin chora, porque é o início do fim.
Esforço-me de todo jeito para que a euforia não turve meu raciocínio. Coloco o mel na bancada e lhe dou um chute nas costelas. Nada do outro mundo. Só para que ele se mexa. Ele grita como quem é eletrocutado. Agarro-o pelo cangote, levanto-o como se fosse de papelão e o arrasto para o banheiro de serviço.
— Senta aí — ordeno.
Ele se senta chorando no trono e eu o tranco com a única chave. A porta abre para dentro: nem em um milhão de anos ele poderia derrubá-la. E me parece bem improvável que esse inseto chorão se atreva a tentar em um arrebatamento de valentia.
Vou ao segundo andar para revistar os quartos, que estão vazios mas caóticos, e abro as gavetas da cômoda do quarto principal: ansiolíticos, um gel íntimo, vibradores e algemas. Separo as algemas e passo à mesa de cabeceira: um telefone por satélite com antena dobrável. É um IsatPhone Pro da Inmarsat. Não tem armas. Só um passaporte com sua foto, mas em outro nome, e a bagunça típica de um solteiro.
Só então devolvo a Glock ao coldre. Enquanto Manolo não visitar a casa de Luarca, não há perigo nenhum; posso cuidar de Balduin com a mão esquerda amarrada nas costas. Levo um tempo considerável para encontrar um ferro de passar, descer e ligá-lo. Tiro uma cerveja da geladeira e me premio com ela: está semicongelada e tem gosto de glória.
Muito mais tarde, abro a porta do banheirinho e mando Balduin sair. Continua sentado e chorando, a cara está toda molhada e ele se mexe de trás para a frente como se fosse um catatônico ou estivesse ninando a mão machucada. Preciso elevar a voz para que ele me atenda. A um sinal meu, sai como um cordeirinho e se senta em uma das poltronas.
— Há quanto tempo não metem um ferro no teu pau, imbecil? — pergunto e sei que ele me entende.
Vira a cabeça para a cozinha; desse ângulo, vê o ferro esquentando. Olha para mim apavorado. Receio que esse cagão também não dê em nada. É evidente que não precisarei do ferro, mas gosto de tê-lo sempre presente. Acendo um cigarro e me sento num braço do sofá. Balduin enxuga as lágrimas, mas elas voltam a brotar, tenta compor um pensamento e quando consegue pronunciar meia frase, sai ofegante, babando e com um tom de súplica:
— Se eu soubesse exatamente o que você precisa.
— Preciso que telefone para seu papai. — Eu o interrompo.
Ele pestaneja de surpresa e consternação, mas não se atreve a me negar o óbvio. Está inteiramente destruído, acredita que vou torturá-lo todo santo dia e que depois vou lhe meter uma bala no crânio. E então, com toda sua velocidade mental de corretor, tenta se salvar da tortura, seja como for.
— Não posso me comunicar com Belisario — gagueja ele, de forma atropelada —, mas posso ligar para o guarda-costas dele. Tenho um telefone especial em meu quarto.
— Manolo. — Concordo com a cabeça.
— Claro, Manolo, é claro que você já conhecia — responde rapidamente, tentando sorrir, em vão. A careta é tão tétrica e fugaz que não pode ser chamada de sorriso. Pergunto-me se os sérvios passaram a notícia adiante. Acho que não tem como. Decido enterrar o bisturi:
— Posso acreditar que o advogado do diabo não saiba onde o patrão está escondido, mas não entra na minha cabeça que seu filho também esteja por fora.
— Você não conhece Belisario. — Ele fica empertigado, como se fosse um goleiro defendendo um pênalti. — Quando ele some, só existe uma pessoa que consegue localizá-lo. E eu sou o único que pode ligar para essa pessoa, entendeu?
— Que pai desnaturado.
Há uma pausa, estamos nos medindo. Balduin volta a enxugar as lágrimas com a manga úmida da camisa.
— Onde está Nuria? — pergunto.
— E como vamos saber? Todas as negociações foram interrompidas.
Suspiro, porque essa tapeação me enche. Talvez, afinal, eu tenha de usar o ferro.
— Não acredita em mim? — Ele fala de forma atabalhoada, alarmado. — Acha que tudo isso é um embuste? Para quem você trabalha?
Balduin reproduz o raciocínio angustiado de García Roldán. Está percebendo que não trabalho mais para ninguém.
— É a mulher de Belisario, mas ele não está disposto a perder tudo por ela — ele solta e parece sincero. — Juro pelo que você quiser que estou dizendo a verdade.
A trilha se abre para dois lados: posso passar um pouco sua roupa, ou posso optar pelo saudável. Apago a guimba do cigarro em um cinzeiro, examino de qualquer jeito a mão inchada e coloco as algemas nele. Agora ele fecha os olhos, como se adivinhasse minha decisão, e vejo que seus ombros se mexem no ritmo do choro. Tranco-o de novo no banheiro de serviço, desligo o ferro eu vou buscar o IsatPhone, que está com a bateria completa. Da janela do segundo andar, examino a área dos fundos, é ampla e se mistura com a natureza. É um lugar inóspito, protegido da curiosidade dos motoristas, e também por uma formação de pinheiros, que isola a casa de possíveis pedestres. Esse tipo de telefone precisa ser operado a céu aberto ou em uma área com sinal. Calculo que Balduin vai a esse quintal para falar com o gordo. Abro o banheiro e o obrigo a descer até a garagem e a levantar a porta. Durante todo o trajeto, Balduin se comporta como se eu fosse fuzilá-lo. Fala, geme, chora e argumenta enquanto vou empurrando-o para o sol pleno e a planície. Entrego-lhe o celular quando acredito que estamos bem situados. Eu poderia soltar as algemas de Balduin, mas ele tem as mãos na frente do corpo e pode muito bem ativar o IsatPhone, se quiser. E não há dúvida a esse respeito: sua vida está em jogo.
O corretor ajeita as mãos para segurar o telefone na vertical e levantar a antena. O aparelho procura o satélite e se conecta com a rede. Em segundos, ouvimos um ruído ritmado e breve, e na tela aparece a legenda Ready for service. E então Balduin digita zero duas vezes, os códigos de país e de área, e o resto do número. Pressiona o botão verde e leva o aparelho à orelha. Saco a Glock e abro todos os botões de minha camisa para que ele veja cada tatuagem e costura em meu tronco. Balduin assente enquanto o celular chama: estou dando provas de que não tenho nenhum microfone oculto. Quando Manolo atende, coloco o cano da pistola entre suas sobrancelhas. As pernas de Balduin tremem, assim como as mãos e os lábios muito vermelhos. É uma conversa telegráfica. O corretor informa sua situação de refém, fala com convicção de que estou sozinho e por minha conta, e transmite a condição fundamental para ser devolvido são e salvo: um encontro cara a cara com Ruiz Moreno. Tiro o telefone por satélite de sua mão e cumprimento Manolo:
— Presta atenção, gordo babaca, fala pro teu macho que não dou a mínima pra esse escrotinho, mas que, antes de acabar com ele, vou lhe queimar o pau e o cu, e ele vai ficar uivando três dias seguidos.
O silêncio se dilata tanto que há uma fração de segundo em que realmente penso que ele desligou na minha cara. Mas sua voz caribenha e cavernosa volta de repente:
— O que você quer? — Bom, não é tão imbecil como acreditei.
— Nem dinheiro, nem trabalho, nada disso — revelo com precisão. — Quero Nuria.
Cada palavra encerra um significado oculto e sei que o recado será transmitido com fidelidade ao patrão. Desligo o celular, abaixo a antena e guardo o aparelho no bolso interno de meu casaco.
— Vamos dar um passeio — anuncio a Balduin, e volto a empurrá-lo. — Seu amiguinho pode querer bancar o herói e tentar te salvar. Essa casa não é mais segura.
Eu o obrigo a entrar na Kombi e fecho a algema no banco. Por experiência própria, sei que esse caixão branco fecha-se hermeticamente por fora e se converte em um calabouço. Abotoo a camisa e tiro o furgão de ré. Depois, entro com o Seat na garagem e pego minha bolsa africana. Dou uma última olhada por todo o chalé antes de fechá-lo e sair, e no fim dirijo a Kombi em silêncio e volto a pegar a estrada, mas em sentido contrário. Quilômetros e mais quilômetros de alerta e reflexo. O código de país digitado pelo corretor é da Espanha e o código de área, das Astúrias. Manolo está perto e Belisario também. Se eles não ligarem logo, terei de decepar uma orelha dele e colocá-los ao telefone para que aprendam. Passo por muitos caminhões e finalmente entro em Castrillón e escolho uma sombra tranquila. Já sei usar o IsatPhone, ando procurando sinal e aperto o botão de rediscagem para cumprimentar meu amigo. De repente, encontro a voz de Belisario Ruiz Moreno:
— Essa ruivinha virou tua cabeça, soldado. — Suas críticas sexuais não me interessam.
— Será uma troca de prisioneiros — respondo com ironia. — Uma mulher por um filho. Parece um trato justo.
Ouço a risada dele; não a interrompo.
— Manolo telefonará para você daqui a algumas horas, mas deixa eu esclarecer uma coisa — ele diz. — Se você machucá-lo, não haverá buraco onde se esconder, seu monte de merda.
Interrompo a ligação. Tento imaginar o que ele pensa: se tudo isso é uma farsa e Nuria está ao lado dele, como se a galega fosse efetivamente sequestrada, eu devo parecer um agente dos colombianos ou um et. Estou inclinado a esta última possibilidade. A xota da galega virou minha cabeça. Por outro lado, o chefão é imune a essas paixões e sentimentalismos. Só parece vulnerável à possibilidade de cair em uma tragédia grega: sacrificar o filho no altar da fortuna.
Compro frios, pão e cerveja, e lancho com Balduin no calabouço. O corretor parou de chorar, mas não tem fome, apenas bebe da garrafa em pequenos goles. Lembro que é vegetariano.
— Como fez para me encontrar? — Ele quer saber. — No que eu errei?
Mostro a ele o chaveiro com os tamancos de prata. Ele observa, sem entender; faz para mim um gesto de incompreensão sinuoso.
— Seu velho vai te censurar sempre por isso — digo. — Mas me parece que desta vez a culpa foi de Manolo. Limpou qualquer vestígio pessoal da casa e se esqueceu deste suvenir. Dá para perdoar essas coisas em um filho, mas em um profissional, nunca, jamais.
Balduin não consegue desviar os olhos dos tamancos, passa a unha naquela letra maiúscula. De repente começa a mexer a cabeça, como se agora entendesse. No fim, bebe outro gole e fala.
— Belisario é implacável com os erros. E com os filhos.
— Ele tem muitos?
— Vários — responde de forma enigmática e desta vez o sorriso vence o pânico. — Mas todos são legítimos e respeitáveis. Neste negócio, só os bastardos prosperam, como eu. E de todos eles, só eu estou vivo e bem. É um negócio muito desgastante.
— E acha que ele vai deixar você morrer? — pergunto, e ele volta a ficar tenso. — Vai permitir que eu te mutile com uma gilete?
— Só o que sei — começa ele, vacilando — é que ele não pode te entregar Nuria.
— Mas?
— Mas talvez exista outro jeito de fazer a troca.
— Não há nenhum outro jeito.
— Você não entende nada — diz ele e volta a cair aos prantos. — Nunca entende nada, Remil.
A noite cai sobre Castrillón e eu me acomodo ao volante para dormir e vigiar. Às onze, penso em dar o último telefonema. Avanço pelo descampado e levanto a antena. Desta vez quem atende é Manolo; fala rapidamente e não espera respostas nem questionamentos: somos esperados amanhã às dez em La Pizarra, um café que fica junto da catedral de Oviedo. É um lugar central e movimentado; não poderíamos trocar tiros, mesmo que quiséssemos. Olho o céu estrelado. Gostaria de entender de astros e constelações, mas nunca passei de alguns documentários tediosos do Discovery Channel. Volto à cabine e tento conciliar o sono. Não chego a sonhar com Nuria, porque nunca consigo alcançar a fase profunda, mas vêm a meu cérebro imagens dos meses que passamos juntos, palavras que eu não me lembrava de ter ouvido, aromas da intimidade.
Às oito, verifico se o refém ainda respira e arranjo para ele um café de máquina. Seus olhos estão vermelhos e inchados, a mão intumescida. Conto sobre o local ao qual iremos em pouco tempo. Não me parece muito alegre, nem iludido. Oviedo é uma cidade movimentada, limpa e elegante. Pergunto ao guarda de trânsito por La Pizarra, ele me dá inclusive sugestões de onde estacionar a Kombi. Fica no epicentro do centro histórico e devemos ir a pé. Solto as algemas de Balduin e aviso que andaremos uns tantos metros como dois amigos, segurando-o pelo braço. Se ele tentar fugir ou soltar um grito de socorro, quebro sua clavícula com os dedos.
— Garanto que dói muito, e que antes de você desatar a correr por essas ruas, eu meto um tiro na sua cara — aviso. — Pode ser que você sobreviva, mas será o homem elefante.
Desnecessariamente, o corretor confessa que não fará idiotice nenhuma e que a coragem não é o seu forte. Fala com frieza, é quase matemático. É uma questão de somas e subtrações. Não é conveniente arriscar o pescoço na reta final.
Cumprimos o acordo. Os sinos da catedral saúdam os fiéis na praça pavimentada de pedra. A cafeteria é um lugar comprido e deliberadamente escuro, cheio de fotografias de escritores. Um bar acolhedor e discreto, que a essa hora está quase vazio. Ficamos em um canto afastado do balcão, bem no fundo. Sentamos do mesmo lado, como se fôssemos namorados e quiséssemos nos tocar por baixo da mesa. Pedimos cappuccinos e roscas e aguardamos sem fazer comentários. Tenho Balduin contra a parede e a Glock na mão, se a coisa se complicar.
A família do corretor se atrasa quarenta minutos. Quem entra pela porta não é Belisario, mas seu centurião. O gordo mal-humorado avança por entre as mesas e se senta de frente para nós. A borda da mesa se enterra na cintura cósmica do sul. Ainda é uma imprudência ambulante, com sua postura de matador centro-americano, mas pelo menos não vemos a Uzi, que ele esconde em um casaco para obesos.
— Está sozinho e limpo — Balduin avisa a ele. — Não vale a pena irmos os três juntos ao banheiro: não tem fio nem aparelho nenhum nele. E nem os cães nos seguiram.
Acho bom que o filho do dragão prepare o caminho. Manolo não está muito convencido; tem ordem de eliminar todas as suspeitas.
— Desta vez, não vou deixar a Glock com você, seu gordo escroto — digo com muita suavidade. — Mas não é problema para mim que pegue de volta seu furgão.
Entrego as chaves. Balduin acrescenta o chaveiro de prata com os tamancos.
— É esperto demais para você, Manolo — diz ele com amabilidade. — Encontrou a casa de Luarca com sua inestimável ajuda.
Manolo olha o suvenir das madreñas com certo estupor. Tenho a sensação repentina de que se Balduin recuperasse a autoestima e a liberdade, mandaria matar a tiros imediatamente o matador de seu pai. Sua fraqueza é relativa e tem relação exclusiva com a desvantagem circunstancial. O choro não torna ninguém menos perigoso.
Manolo titubeia por uns instantes, mas no fim pega os dois chaveiros. Não pergunta onde abandonei a Kombi branca. Isso quer dizer que estava nos espionando e que antes examinou os arredores para saber se eu estava sozinho: sabe exatamente onde o furgão está estacionado. Leva outra meia hora para regressar. Tenho certeza de que deu uma busca por ele, procurando grampos, e que telefonou a Belisario para informar que fez contato e a situação não parecia uma tocaia.
— Vou te falar como faremos — informa ele, sentado de novo à mesa. — Sairemos todos juntos e esqueceremos o furgão. Tenho um carro a trezentos metros. E ordens de levá-los a Gijón. Eu dirijo e Osvaldo vai no banco do carona. Você ficará atrás com sua pistolinha e sem ficar nervoso. E no porto subimos a bordo de um veleiro e vamos para o mar aberto. O chefe não quer testemunhas, nem intromissões.
Parece-me um plano razoável, porque o porto é movimentado e posso andar, como apaixonado ou bêbado, agarrado a meu escudo humano. Será que Belisario contratou um franco-atirador? Pode ser. E de fato a ideia me corrói brevemente o córtex cerebral. Mas parece algo sofisticado e despropositado: não pode arriscar o próprio filho e ainda por cima gerar escândalo em um ponto nevrálgico. Dou de ombros, seja o que Deus quiser. Já é tarde demais para recuar.
O dia está ensolarado e ventoso, de céu azul. E o carro do matador é um Volkswagen Polo vermelho vivo com placas novas. Demoramos vinte e cinco minutos de silêncio na clausura até chegar a Gijón. A última parada é o porto desportivo. Diques, docas, passeios, cais marítimos e turistas. Dezenas de embarcações atracadas e em trânsito. E um veleiro branco e verde de fibra de vidro que balança, orgulhoso: Ladón. Ladão. Gostaria de sorrir, mas estou ocupado demais cuidando para não ser surpreendido por uma mira telescópica. Subo a bordo abraçado a meu amante carinhoso e ardente, e o gordo pede que a gente desça ao interior. É um veleiro Sun Odyssey menor e mais estreito do que o Aubrey do coronel. Parece-me uma ironia que a história de Nuria tenha começado em um veleiro e termine em outro, e que em uma ponta do novelo esteja Cálgaris e na outra Belisario Ruiz Moreno. O destino gosta das simetrias. Da mesma forma, percebo que este veleiro não serve para nada além de viagens rápidas: as cabines são muito estreitas; ficar vários dias nesta lata de sardinhas não parece confortável, nem viável. As dimensões parcas sugerem que a cova do dragão deve ficar em outro ponto deste litoral, e que deve ser isolado e paradisíaco.
Sentamo-nos de novo juntos à única mesa oval, em um divã circular e leve instalado de frente para uma mobília completa com bancada, cozinha, pia e armários. Pego a Glock, puxo a trava e deixo à mostra e ao alcance. Quando abrir a porta do único camarote, Belisario não poderá deixar de vê-la. Em nossas circunstâncias, espremidos nessa casinha de anão, a espera dessa aparição fabulosa me parece totalmente forçada e teatral. Ouço barulho e percebo movimentos acima de nós: o timoneiro da Uzi ajeita tudo para zarpar. Quando liga o motor, a porta se abre. O velho fazendeiro do norte do Valle del Cauca aparece de camiseta preta e bermuda. Tem seu anel de ouro e titânio e seu Girard Perregaux Opera Three de quinhentos mil dólares, mas abandonou os sapatos italianos: agora exibe alpargatas gastas e inapropriadas. Os olhos pretos não cabem em seu rosto. E só tem olhos para mim: nem mesmo dedica uma rápida olhada ao filho. Talvez não possa fazê-lo sem lhe dar um esporro. Balduin está cabisbaixo, definitivamente alheio à química do encontro.
Quando sorri, Belisario fica meio parecido com um Armando Manzanero com caxumba. Mas não fala versos de bolero:
— Filho da puta — ele me diz e assente, apreciando. Encosta o ombro na soleira e cruza os braços. Inclina a cabeça de leve para a esquerda. Mexe o queixo: — Pode guardar essa arma, ainda sou seu patrão.
— Não tenho mais patrão, nem chefe, nem pai, nem pátria — exagero.
— Tem toda razão. — Ele fica satisfeito. — Nunca pensei que o coronel ia te abandonar malparado.
— Não vamos falar do coronel — respondo. — Mas de Nuria.
— Não seguiu o meu conselho, soldado.
— Papo furado. O senhor contava que a mulher ia se agarrar a meu pau. Era uma questão funcional para os negócios.
— É verdade, para que negar agora? — Ele dá de ombros. — Mas não acredite que fiquei indiferente a isso. Não sou feito de madeira. Naquela tarde, tomei óleo de rícino.
— Nuria está viva?
— Por que você não pergunta a meus antigos sócios? — Sério; contém a fúria. — Há três semanas que não há diálogo. Tentam me desgastar com truques de negociação.
Nego para obrigá-lo a mover suas peças.
— É triste e engraçado que não acredite em mim. — Ele sorri. — Posso lhe oferecer um suco de laranja? Se incomoda se eu me servir de um?
O veleiro se desloca lentamente, manobrando entre lanchas e barcos menores. Balduin rói as cutículas e não levanta a cabeça. Belisario tira uma garrafa do frigobar e serve um só copo. Nem mesmo oferece ao corretor. Se eu fosse ao convés e deixasse os dois a sós, aposto que o velho se dedicaria a lhe quebrar as costelas aos chutes em trinta segundos de loucura.
— Quando Manolo me falou que você queria uma troca, fiquei comovido — diz ele depois de beber todo o copo de um gole só. — Percebi que você era de fato inofensivo. Não teria ido tão longe se não fosse por isso, Remil. Poderia ter matado este completo inútil e ainda assim não conseguiria falar comigo. Também não é verdade que não me importo com nada. Já te falei que não sou de madeira. Mas teria podido viver inclusive com esse remorso. Tenho uma consciência, como direi, hospitaleira.
Agora dá para perceber que a lata de sardinhas tenta alcançar uma velocidade de cruzeiro.
— O que está tentando me explicar?
— Sou capaz de sacrificar um filho, soldado. Consegue entender, você que entende tanto da guerra? Pode imaginar que não vou entregar tudo por uma mulher. Por melhor e mais eficiente que seja.
— Quantas Nurias existem pelo mundo?
— Algumas e todas são igualmente perigosas. Sabem demais, valem muito.
— Mas não valem tanto.
— Não, ninguém vale tanto, soldado.
O Ladón segue sua marcha, veloz e discreto. Abaixo, há movimentos cautelosos e um torneio de olhares perdidos. O abutre do Cauca me encara.
— O que os colombianos vão fazer quando descobrirem que o senhor não está pensando em arriar as bandeiras? — pergunto.
— Algo mais destrutivo do que matá-la.
— Entregá-la à dea.
— Nuria só dirigia uma de minhas trinta empresas. E é uma empresa que já está em crise judicial. Posso cortar essa mão e seguir em frente.
— Quem são eles?
— Velhos conhecidos dos cavalheiros de Cali.
— Não o deixarão em paz.
— Pode ser — concorda, e se ergue como um galo de briga. — Sabe o que mais esses frouxos invejam em mim? Eu aprendi a ser invisível. Todos são fichados, sempre com a corda da extradição no pescoço. E seus herdeiros são grossos e negligentes, valentões de segunda, sem senso de administração.
Olha pela vigia e me explica que em mais alguns minutos poderemos subir para tomar ar fresco. Apoia meia nádega na bancada minúscula e balança a perna. Forma-se nele uma barriga de sete meses de gravidez. A digestão mental de toda essa informação me deixa mudo. Por que, apesar de tantas provas, continuo sem acreditar nesse sequestro de cinema? Por que ao mesmo tempo sinto que Ruiz Moreno está sendo mais ou menos franco e sincero?
— Estou curioso para saber como conseguiu furar nosso cerco — confessa ele. — Que facilidades meu reverendíssimo filho deu a você?
— Não há nenhuma outra forma de resgatá-la? — respondo com uma pergunta.
Agora ele dá uma gargalhada que o faz tossir; as bochechas ficam vermelhas.
— Essa é boa — balbucia, ficando por algum tempo sem voz e sem fôlego.
Balduin ergue pela primeira vez os olhos baços: tem um toque de atenção e de espanto. Adivinho o que ele pensa. Estamos nas mãos de um psicopata; é capaz de tentar nos trocar pela mulher. Eu não tinha pensado nisso.
Nesse instante, ouvimos o toque do interfone. Belisario levanta o indicador, como quem pede permissão. Depois atende. Estamos tão próximos e o retorno é tão alto que o corretor e eu ouvimos o gordo dizer:
— Suba, por favor, temos um problema.
A testa de Belisario se franze. Dez ou quinze segundos se passam sem que ninguém pense em se mexer. Ele está esperando que minha Glock o autorize. Eu a pego e me levanto. O veleiro balança pelas ondas. O pai sobe primeiro pela escada, eu o acompanho, mas tomando algumas precauções. Passo o braço pela goela de seu filho e levo a pistola apontada.
Não é sacanagem comigo: Belisario e seu piloto estão perto da proa, usam binóculos e têm uma preocupação maior do que me varrer do mapa. O cheiro puro do mar e suas cores me açoitam. Sigo a linha dos binóculos. No horizonte, há um buque ou uma lancha de patrulha, que vem levantando espuma. Sua direção é transversal e não desperta dúvidas, mas certezas. Ouço vozes que surgem de um aparelho vhf instalado junto ao leme. Nem Belisario nem Manolo respondem às ordens metálicas. Percebo, em meio ao distúrbio e à emoção, que o corretor vira a cabeça para a esquerda, abalado pela intuição do olho, e que agora está boquiaberto. Agora acompanho essa outra linha: a estibordo, uma lancha rápida também se aproxima. A diferença é que, para esse lado, o sol não nos confunde e a visibilidade é completa. É a guarda costeira com lanchas de interdição e abordagem. Operações Especiais, penso por instinto. Minha boca fica seca.
Manolo pega o comunicador e retribui as saudações. Aqui fala Ladón, aqui fala Ladón. Câmbio. À medida que a segunda lancha de patrulha se aproxima, é possível ler com mais precisão os dizeres alfândega e o logotipo da aeat e da vigilância aduaneira. Belisario pode ler melhor do que nós, uma vez que repassa esses dizeres detalhadamente com o binóculo de apostador de cavalos. De repente o deixa de lado e dá um soco no ar. Está vermelho, espumando. Está se borrando de medo.
— A toda força! — ordena ele em um grito desesperado a seu gorila, que arranca o comunicador com um puxão e se firma no leme. As velas ainda não estão abertas e não há tempo para nada além de inclinar-se a bombordo e baixar fundo a alavanca. Não conheço muito de navegação, mas me parece que é uma regata impossível. E que precisamos nos proteger, porque nossos perseguidores abrirão fogo de alerta se desobedecermos à ordem.
O vento e a velocidade nos pegam de lado. Empurro Balduin contra a amurada e ordeno que ele se enrosque. Ouvimos, ainda amortecido pela imensidão, um megafone ao longe. Belisario se vira para mim com as veias do pescoço quase arrebentando e me aponta o dedo indicador.
— Judas filho de uma puta, você me entregou!
Como ele não conta nem mesmo com um revólver, concentro-me no gordo, que pode se virar e tentar fazer peneira de mim com uma rajada. Mas o piloto está tão dedicado à fuga que não pode ter nem mesmo essa distração mínima. Descubro então que o rubor violento de Ruiz Moreno dá lugar à palidez e que os músculos afrouxam. Está mudo, contemplando algo localizado pouco atrás de minhas costas, por cima de meus ombros. Não resisto ao impulso de girar meio corpo e ver do que se trata. É um Eurocopter Dauphin, que veio rente ao mar e ganha altitude.