xiv. Nada mais que a verdade

Não existe treinamento civil nem militar que prepare alguém para perder a guerra. Durante os cursos militares intensivos, ensinam você a lidar com sua cabeça caso caia prisioneiro e também a resistir razoavelmente à tortura física e psicológica. Mas não existe um método humano para o completo desastre. Por isso caíam lágrimas de sangue dos soldados profissionais mais experientes das Malvinas depois da rendição. Eles também voltaram cabisbaixos e deprimidos, escondendo dos outros seu mal-estar íntimo e interminável. Lembro-me daqueles camaradas rudes e sujos tentando esconder esse sentimento e ao mesmo tempo experimentando certa vergonha por sua fraqueza. Nós, os recrutas, por nossa vez, não tínhamos tanta reputação a defender e chorávamos sem muito recato.

Não tenho testemunhas de quem me esconder. Há muito tempo não falo com ninguém, então sei que posso chorar tranquilo. Fui confinado a uma cela individual: tanto as quatro paredes como o chão são revestidos de concreto reforçado com liga de aço, como em Guantánamo, e além de um catre tem um vaso sanitário e uma pia. E uma pesada porta de ferro com uma portinhola para as refeições e uma vigia. Não recebo luz natural, nem ouço ruídos, exceto quando me dão comida ou me observam de fora depois de cada troca da guarda. Ninguém me visitou nem me dirigiu a palavra desde que me encarceraram, e eu teria perdido a noção dos dias e das noites se não fosse pelas bandejas.

Imagino que estou preso há três dias e também que me encontro no subsolo de um prédio oficial de Madri, porque quando abriram as portas do furgão em que me trouxeram algemado, captei de banda o relógio de um milico: cinco horas haviam se passado desde que começamos a viagem e estávamos no interior de uma espécie de garagem circular; obrigaram-me a ficar de cabeça baixa e me fizeram descer pelo menos dois andares em um elevador para transporte de carga. Já haviam me despojado de todos os pertences em Gijón, durante a prisão: só o que fizeram antes de me meter na cela foi retirar o cinto e os cadarços dos sapatos. Durante todo esse trajeto, meus guardiões mantiveram-se em completo silêncio.

É meio estranho que não tenham dado início aos interrogatórios e que até agora não tenham me obrigado a assinar algum tipo de declaração. Mas talvez estejam interrogando primeiro os peixes grandes e tenham me deixado para o final, eu que não valho grande coisa. Belisario e Balduin, onde quer que estejam, viajaram em um veículo separado, protegidos por um exército formado de diferentes forças, e Manolo ficou internado em um hospital de Astúrias, sob vigilância severa, porque na última hora quis se fazer de macho com a Uzi e recebeu dois tiros: um na cara e outro no rim.

No mar, não foi apenas a vigilância aduaneira que atuou. Havia gente da dea e policiais de outras forças. Um pequeno festival. Nem mesmo havíamos deixado muito para trás o porto desportivo quando nos cercaram e vieram para cima de nós. Belisario ficou a ponto de se armar para resistir, ou me dar um tiro, obcecado como estava por minha culpa. E o piloto quis ser mais papista que o papa. Nós todos nos agachamos porque o tiroteio foi breve, mas barulhento. E os caras das Operações Especiais, que vinham na lancha de estibordo, continuaram disparando para o ar, fazendo soar as sirenes e dando um ultimato pelo megafone, enquanto o helicóptero nos imprensava. Agachado sobre o corretor, percebi que Ruiz Moreno avaliava, histérico e fora de órbita, a ideia de se atirar ao mar. Mas foi apenas um momento de dúvida e desespero. Depois puxou a alavanca, desligou o motor e levantou as mãos. Joguei a Glock pela borda e fiz o mesmo. Balduin e Manolo estavam enroscados, um sangrando feito um porco e o outro, abatido e convulso. Pensei em cem coisas diferentes enquanto subiam a bordo e nos rendiam. Quando nos algemaram de barriga para baixo, vi a cara bochechuda do dragão: seus olhos haviam perdido toda a vida.

Em terra firme, cada um teve seu algoz. A mim, couberam três mastodontes com uniforme da swat que só grunhiam. Pelo caminho, na escuridão, tentei entender como conseguiram nos pescar. Ainda rodo a charada em minha cabeça. É evidente que houve um X9 e também que nos deixaram sair em mar aberto para não precipitar um tiroteio naquela área de lazer marítima cheia de civis e turistas orientais. Eu ainda ruminava quando me trouxeram por aquele monte de portas e estalos até este quadrado onde não tenho forças nem para fazer flexões. Foragido da Justiça argentina, com captura internacional recomendada, suspeito de formação de quadrilha, homicídio e contrabando de entorpecentes. Cai o pano. Algo que começou em Monte Longdon termina aqui, nos subterrâneos de Madri. É o fim da peça, amigos. Cai o pano e as luzes podem ser acesas.

Penso mais uma vez em Nuria Menéndez Lugo. Como saber se o sequestro é real? Por mais que se acumulem testemunhas, algo no fundo me diz que não aconteceu nada como foi contado. Mas onde ela está? O que estará fazendo? Por uma estranha associação de ideias, penso também em Lali, que está morta, em Wila, que está presa, e em Rosita, que talvez tenha sobrevivido à busca de Bragoni. Todas as mulheres parecem uma só nessa vertigem sem dimensão que confunde o prisioneiro.

Chega a primeira bandeja do dia: um desjejum sóbrio com um café fraco e abominável que me parece igualmente uma bênção. Ouço estalos e golpes de metal e então acredito que virão retirar o refrigério antes do tempo, mas tenho a surpresa de abrirem a vigia e um vozeirão me ordena ficar de pé, em posição de sentido, junto do catre. Obedeço como se fosse a ordem de meu sargento. A porta de metal gira nas dobradiças e aparecem dois carcereiros vestidos de azul-marinho. Trazem unicamente garrotes antimotim, e um deles brande o seu para o caso de eu querer me rebelar.

Não me rebelo e eles me dão a ordem de ir para o corredor. Um deles segura meu braço e o outro vai um passo atrás, disposto a me bater, mas ainda assim é curioso que não coloquem algemas em meus pulsos, nem correntes nos pés. Avançamos por um corredor de celas até um canto, e ao virar à esquerda damos com uma porta de vidro blindado. Do outro lado, monta guarda um agente que porta uma arma de eletrochoque e gás pimenta, e que digita a senha a um sinal do cara do garrote. Ouço um zumbido e a porta de vidro corrediço se abre para nós. É preciso digitar outra senha no elevador para que nos leve à superfície, subindo. Descubro no espelho que estou pálido e enrugado, e que a barba bem cuidada do professor Conde agora é um matagal selvagem e grisalho. Não me deram um macacão laranja, nem nenhuma outra vestimenta de prisão; ainda estou com a roupa de Holguín, embora tenham me tirado o casaco de couro enquanto me retiravam do furgão. Agora o encontro no gancho de um escritório vazio, em algum lugar do andar térreo. Saímos do elevador, à esquerda, em um salão enorme com divisórias, computadores e funcionários de camisa e gravata que falam ao celular, discutem, escrevem e têm reuniões. Alguns têm na cintura um coldre com uma pistola ou revólver de cano curto. Em frente fica esse escritório, que é uma sala limpa e sem espelhos, com uma mesa, duas cadeiras e uma fila de arquivos trancados a chave. Mandam que eu me sente e espere, e me deixam a sós com minha ansiedade. Vão me interrogar? Tenho algo para negociar?

Então entra um veterano com sotaque andaluz e estende para mim o que traz em uma caixa quadrada de plástico. Minha pulsação volta a se acelerar. São meus pertences pessoais: a carteira, o mapa, os cigarros, o isqueiro, o cinto e os cadarços.

— Falta seu equipamento — anuncia, e aproxima de mim uma planilha para que eu ponha minha assinatura. — Não se preocupe, já vão trazer.

Demoro vários segundos para assinar, porque estou assombrado. Depois engulo em seco e assino. Aponto o cinto e pergunto inocentemente se posso colocar.

— É claro — responde ele e fecha a porta ao sair. Abro os braços e dou de ombros, permanecendo nesta insólita posição por mais alguns segundos, como um pássaro recurvado de asas abertas e com uma cara de idiota incrível. Depois coloco o cinto e amarro os cadarços. Tento deduzir que tipo de trapaça está acontecendo, mas a injeção de otimismo é tão grande que não me permite recuperar a lucidez.

Por fim, tudo se esclarece. Entra Leandro Cálgaris e põe na mesa a bolsa africana. Chega enfeitado com um blazer e uma gravata no mesmo tom, as abotoaduras verdes, o chapéu de aba curta e um exemplar do El Mundo debaixo do braço.

— A boceta da senhora sua mãe! — exclamo, erguendo os olhos para o teto baixo. Passo as mãos pela nuca e bufo como uma égua agitada. Puta que pariu. O coronel sorri, mas só com os olhos aquosos.

— Vamos — diz de maneira cortante e gesticula com a cabeça para a saída. Não consigo nem me mexer. Estou dormente. — Anda, imbecil, antes que se arrependam — insiste ele e toca o bigode grisalho.

Visto o casaco e penduro a bolsa. Sigo de maneira atordoada por outro corredor. Agora é Cálgaris que precisa assinar os documentos. Cumprimenta afetuosamente em inglês um gringo e atravessamos várias soleiras até dar numa rua residencial. O ar da manhã é magnífico, mas me agarro a uma árvore e fico ofegante como se sentisse náuseas. Nada que costumava ser duro e impermeável ainda é assim. Tenho vontade de rir e de chorar, de abraçar o coronel e de enforcá-lo com um arame farpado. Cálgaris me empurra para seu carro, que estacionou em diagonal: é um Nissan de alta classe. Quando estamos ali dentro e surge a música, quero fazer a primeira pergunta, mas ele me impede, levantando a mão.

— É Ben Webster — avisa. Para ele, parece um pecado capital trocar frases por cima desse sax tenor.

Cruzo os braços e olho com arroubo as avenidas e as cenas cotidianas de Madri. O local para onde nos dirigimos não fica muito longe. Rua General Martínez Campos. Uma residência amarela e antiga, com jardim e um guichê para pagar a entrada. Uma casa museu que a essa hora só é visitada por um grupo de crianças com suas duas professoras.

— Sorolla — ele me diz, como se me desse a senha que desperta os mortos. Acompanho a brincadeira porque estou feliz e desnorteado demais para replicar. Ele põe os óculos bifocais e me mostra uma gravura que reproduz uma morena nua e apoiada de costas em lençóis cor-de-rosa.

— Clotilde, a melhor bunda da história da pintura clássica — anuncia ele em voz baixa. Depois passa os dedos pelas curvas ondulantes e conta que se trata da mesma esposa do pintor, e que a tela a óleo é uma homenagem à Vênus no espelho de Velázquez. — Mas Clotilde é muito melhor — acrescenta. — Clotilde acabou de trepar e está abandonada àquela plenitude do repouso. Não tem rosto, mas tem essa carne lustrosa e esse traseiro redondo tão sublime.

Olho sem ver a gravura mais uma vez e Cálgaris me segura pelo cotovelo e me leva pelo pátio de vasos e flores onde soa a água das fontes e os passarinhos.

— Sempre que passo pelo Prado, fico muito tempo parado nela, depois mais cedo ou mais tarde tenho de vir buscá-la nesta casa, onde morou com Joaquín e seus três filhos — diz ele, procurando minha cumplicidade. — Preciso ver as diferentes caras de Clotilde. É um caso antigo.

Ele ri, inclusive com os olhos. Subimos uma escada e entramos em uma sala de paredes vermelhas. Há um enorme quadro a óleo de um garotinho nu tirando do mar um cavalo branco que acaba de banhar. Mas o coronel vai diretamente a um retrato de Clotilde García del Castillo, desta vez vestida de preto. Nem mesmo me parece bonita, mas o velho a olha detidamente. Pergunto-me se o assunto traz algum ardil ou metáfora, se ele está querendo me dizer alguma coisa de forma indireta. Vamos de uma sala a outra e tenho de me armar de tolerância e interesse. Ele fala didaticamente do branco refulgente, dos meios-tons e dos contrastes da luz, da água de um azul tão fino e da vibração luminosa. A volta da pescaria, os pescadores, as velas, os barcos, os meninos e essa mulher retratada do cavalete cavado na areia ou do interior desses mesmos cômodos.

— Ele não dava a mínima para a vanguarda — observa Cálgaris, como quem fala sozinho. E eu não dou a mínima para Sorolla, mas não contesto. Os olhos de Clotilde se multiplicam e nos veem passar e parar ao longo de todo o percurso.

O passeio é curto, mas nos toma mais de uma hora. Ao sair, sentamos em um banco debaixo de uma árvore e perto de outra fonte barulhenta e cristalina. Cálgaris pega o cachimbo, enche-o e o acende com uma paciência refinada.

— Que mulher singular — resmunga.

Curvo-me para a frente, com os cotovelos apoiados nas pernas, e espero que comece de uma vez.

— Minha relação com os gringos já tem trinta anos — começa. — Cursos, viagens, provisões, doações. São bons pagadores.

Ele solta uma baforada e sinto o cheiro familiar de cereja. Essa combinação de Virginia suave com um toque de Burley.

— Enfim, uma coisa sempre leva a outra — continua ele. — A colaboração é intensa e recíproca. Mas eu diria que nesse toma lá dá cá com eles, não conheço ninguém que receba mais do que dê. Sabe quando essa operação realmente começou? Há doze anos. Em Miami, me contaram que Parisi fazia suas lavagens com os corretores de Ruiz Moreno. Ainda não havia colocado Balduin na roda. Aliás, não entendo como você conseguiu que Belisario afrouxasse a mão em troca da devolução do garoto.

Revelo simplesmente que Balduin é filho bastardo do dragão. Ele joga o chapéu para trás e balança a cabeça.

— Incrível, um dado fundamental — reconhece. — Quando ele apareceu em cena, investigaram sua família, mas a mãe tinha morrido fazia tempo e nada indicava relação nenhuma. Deve ter sido uma relação clandestina que começou e terminou quando Ruiz Moreno ainda não aparecia no mapa.

Ele fica com a vista toldada por um momento, depois acende novamente o cachimbo, que tinha se apagado no transcurso dessa surpresa fenomenal.

— O filho do patrão, puta merda — retoma ele e lança a fumaça pelo nariz. — Eu nunca teria imaginado. Belisario fugia de muitos moldes. Aprendeu em Cali que os padrinhos subiam e caíam, alcançavam o topo, depois despencavam aos pedaços: ou os matavam, ou eram presos. Quis lidar com as coisas de outra maneira. À distância e de fora. Um cartel de produção e transporte com células fechadas, a cargo de um padrinho invisível. Os ianques demoraram um pouco para perceber e vinham seguindo o homem desde então.

— Pediram ao senhor que se aproximasse de Parisi.

— Para protegê-la e ganhar sua confiança — ele confirma. — Na hora da verdade, foi ela quem assinou as garantias a Belisario. Ela e uns amigos que o dragão tinha nos Estados Unidos.

— Mais amigos dos ianques do que do colombiano.

— Não existem amigos nesse negócio, Remil.

— Quem no governo sabia que íamos armar uma rede e que o objetivo final era chegar à cabeça?

— Só um contato de nível máximo na Casa, mais tarde um funcionário da Presidência que se senta à mesa da mulher. Os gringos se comunicavam pessoalmente com os dois. Porque não era possível confiar nos outros. Alguns protegem e lucram com o tráfico de drogas paraguaio. Você sabe bem disso. Durante todo esse tempo, estiveram nos espionando, doidos para que fizéssemos uma cagada e para cobrar de nós. Tivemos de pagar alguma coisa. Mas se ampliássemos o círculo de informações, o segredo correria perigo.

— Não é divertido ser um infiltrado sem saber — declaro e pego um cigarro. — Pelo menos na prisão eu tinha alguma consciência de minha situação.

— Não vou discutir isso com você, Remil. — Ele tosse e parece que vai cuspir um pulmão inteiro. — Não se discute tática com os soldados.

Acendo o cigarro e me pergunto se esse jardim lendário não será uma zona livre de fumaça. Agora os olhos aquosos de Cálgaris estão fixos em mim:

— Depois os rivais de Belisario em Medellín rompem a trégua e tentam matar a mulher dele. Não tivemos nada a ver com isso. Mas aproveitamos a oportunidade. Belisario decide tirar a sócia da frente e escondê-la em Madri por algum tempo. Mas os ianques não perdem a chance e a capturam.

Todos os pelos de meu corpo ficam eriçados. Olho minha silhueta ampliada no piso de Sorolla. É a sombra de uma sombra.

— A dea — sussurro. — Meu Deus.

— De um chalé civil nos subúrbios e com a ajuda de um chefão que descende do Valle del Cauca.

— E isso?

— Às vezes é preciso usar uma fera para caçar outra — diz ele. — Você será recompensado. Além disso, é irresistível que você seja convocado para destruir seu principal concorrente.

— Quem avisou a Federal em Buenos Aires?

— Quem você acha que foi?

— Fomos todos presos.

— Todos que pudemos prender. Sempre com alcaguetes e por intermediários.

— Mas Belisario não abria o bico.

— Sim, uma coisa relativamente inesperada. — Ele dá um muxoxo. — E a pressão não surtia efeito. Roldán desaparece, não sabemos onde Balduin está, os telefones são cortados. Enfim, tudo parece empacado. O desânimo se espalha.

— Até que aparece um idiota.

— O espião que veio do frio. — Ele ri. — King Kong subindo no Empire State para resgatar Jessica Lange em pleno tiroteio.

Acho que ele até pode soletrar meus pensamentos. Postar-me atrás dele, cercar seu pescoço e quebrá-lo com um movimento seco e preciso. Depois deixar Cálgaris sentado ali, como um aposentado numa praça, de chapéu baixo e jeito de quem está dormindo.

— Eu te falei para se afastar — diz ele em sua defesa. — Mas você não deu atenção.

Quinze ou vinte garotos com uniforme de colégio particular descem a escada e correm para a saída. As professoras vão atrás sorrindo e conversando sobre questões muito distantes da pintura.

— Não sabia que dinâmica a causa tomaria — confessa ele. — Sabemos como essas coisas começam, mas nunca como terminam. Eu não podia prever, por exemplo, que a senadora colocaria você entre a cruz e a caldeira. Não sou Moriarty. Alguns temas são planejados, outros improvisados no processo. A Casa se assustou. Não queria ser envolvida, e nosso contato não podia mudar o rumo dos acontecimentos sem revelar tudo. Por isso permitiu que fechassem a Casinha. Pediram-me que desse no pé e isso combinava com a mensagem que Ruiz Moreno receberia e com a comédia geral. Calculei que você ia se virar bem, eu poderia voltar para te resgatar quando resolvêssemos a confusão e limpássemos o escritório.

— Calculou mal — digo. — Mas desde o início eu entrei na previsão dos danos colaterais, não é?

— Seria assim, com ou sem Nuria — protesta ele. — É assim desde que tirei você do Campo de Mayo. Lembra? Qualquer soldado entende que pode ser sacrificado em uma missão. Qualquer um é uma baixa inevitável no campo de batalha. Você também.

Sorrio com certa tristeza. Sei que o coronel tem razão, e ainda assim lanço a ele censuras de filho. Ele percebe, dá um tapinha na minha perna e limpa o fornilho com a vareta.

— Roldán negocia e depois some — retomo a conversa.

— Tínhamos a pista da amante, mas não queríamos usá-la, para não correr o risco de que estourasse tudo, e além disso estávamos convencidos de que Roldán negociava, mas em um compartimento estanque: não ia nos levar a Belisario, nem a lugar nenhum. Nisso entra você, telefonando para Flores. E ela liga para mim. Vivo perto das Cibeles.

— Arrá, Flores.

— Convenço os ianques de que não perdemos nada te dando passe livre. — Ele desconsidera minha observação. — O que não podíamos fazer, você poderia, porque conhecia muito bem os personagens. Eles me pedem garantias. Penso na Glock. Sei que vai pedi-la. Implantam um chip de localização. Uma tecnologia muito superior à nossa.

— Flores parecia estar em conflito — lembro.

— Isso foi ideia de Maca. — Ele ri. — Sabe exatamente que botões internos tem que apertar para ter você na mão.

Gorda vagabunda.

— Pedi que entregassem a você também os dados iniciais, só o que tínhamos — insiste ele, e acompanha com os olhos o voo rasante de um pássaro branco. — Foi um plano audacioso, mas o que tínhamos a perder? Estávamos fodidos.

— Podiam ter me seguido.

— Você teria notado.

— Fui monitorado dia e noite com um rastreador. — Era uma ideia forte, chocante e muito difícil de assimilar.

— Víamos por onde você andava e depois o pessoal da rua seguia suas pegadas. Foi assim em Puentecaldelas e em Barcelona.

— Encontraram o cadáver de Roldán?

— Não havia cadáver, só tudo revirado. Mas tínhamos uma ideia aproximada do que você havia feito.

— E os sérvios?

— Imagino que na República da Sérvia. Não se preocupe. Não vamos cavar em nenhum jardim para procurar o corpo do advogado. Oficialmente, ele se exilou.

— Barcelona sempre esteve no gps.

— É verdade, os ianques tinham fracassado antes de você. Deixamos que você desse voltas e mais voltas. Houve um momento em que pensei: “Não vai dar em nada, esse idiota se meteu numa enrascada”. A verdade é que não sei por que diabos você mudou de rumo.

— Me lembrei de uma bobagem.

— O quê?

— Não tem importância — resisto.

— Ora essa, achei que estávamos mostrando as cartas.

— Eu não tenho nenhuma, coronel, o senhor ficou com o baralho todo.

O pássaro pode ser uma narceja. Pousa em um corrimão e fica nos observando com curiosidade.

— Astúrias, pátria querida, Astúrias de meus amores — ele canta baixo e volta a seu catarro e a seu lenço. — Lembrei daquela vez que te deixaram confinado. Tinha de ser isso.

— Era.

— Os ianques montaram uma base em Gijón e mandaram uma equipe pela estrada. — Ele guarda o cachimbo e o isqueiro no bolso, e enrola o jornal como se fosse me dar um golpe carinhoso. — Enquanto uns entravam na casa de Luarca, os outros avistavam o veleiro Ladón.

— Manolo é muito exibido.

— E era fichado. Manolo Herrera Sanchís, principal assassino e pau para toda obra. Ativaram as Operações Especiais e ficaram na expectativa, em silêncio de rádio e alerta máximo. Quando tiveram certeza, pediram apoio das forças policiais. O resto você já sabe.

Uma atmosfera de silêncio e abstração nos envolve. As palavras se acabaram e sou atravessado por sentimentos conflituosos: alívio, surpresa, constrangimento, assombro, raiva, pena, gratidão. Um pouquinho mais e tudo teria ido para o inferno, nosso exército teria capitulado e não haveria futuro, e agora estou são e salvo de novo em terra firme, e então me debato na vertigem de não saber como me acomodar a tantas voltas. Preciso de tempo a sós para assimilar as informações, para colocar cada peça em seu lugar, para examinar minha própria viagem com essa nova perspectiva. Fui enganado, e isso sempre é um golpe na autoestima e na onipotência. Além disso, a Mona Lisa é uma luz que se apaga no oceano escuro. Penso em todos esses matizes dramáticos enquanto ficamos sozinhos no jardim de Sorolla.

Deduzo que Cálgaris escolheu este lugar público e ao mesmo tempo sossegado para amortecer as notícias e evitar o perigo de uma reação violenta. Acredita que neste ambiente alheio e idílico não me ocorrerá ter uma crise pós-traumática.

— Leia isto — ele me sugere, batendo o jornal em mim. Desenrolo como um papiro e volto a enrolar: a operação conjunta de Gijón está na primeira página. Minhas mãos ficam sujas de tinta. — Vamos? — escuto ele perguntar. O chapéu voltou a cobrir por completo a testa vermelha e seu pássaro branco alçou voo.

Ele me leva no Nissan até o albergue do bairro do Pilar. Ben Webster com Billie Holiday e não sei que filarmônica preenchem a ausência de conversa. O coronel estaciona na porta do albergue e avisa que terei de dar vários depoimentos e também assinar alguns documentos delicados.

— Você será orientado por um assessor jurídico para não trocar os pés pelas mãos — diz ele. — Vai levar pelo menos duas semanas para colocar tudo em ordem e arrematar o bordado em Buenos Aires. Precisam suspender sua interdição, porque não podemos chegar no Ezeiza sem nada de concreto. Quero que você descanse e desfrute da cidade, e sobretudo que passe despercebido e não se meta em nenhuma confusão. Sei onde localizá-lo, se precisar.

— Como está Nuria? — pergunto, olhando a calçada. Passam distraídos um homem com um pão embaixo do braço e um cachorro salsicha.

— Bem — responde ele num tom estranho. — Instalada em um chalé muito confortável, em La Navata. Um batalhão a vigia por fora e três agentes mulheres moram com ela no interior e se revezam para lhe fazer companhia.

— Mas como está ela? — Eu teimo.

Ele suspira e segura o volante.

— Medicada; dão a ela doses altas de clonazepam. Não é fácil. Sabe o que espera por ela.

— O tédio.

Ele me lança um olhar extremamente agudo.

— A extradição e provavelmente a prisão perpétua.

— Mesmo que colabore?

— Não vai se safar, Remil. Não tem como se safar.

— Mesmo que tenha dado um testemunho secundário?

— Está perguntando se com Belisario preso poderiam prescindir do testemunho dela? Poderiam. Mas não vão fazê-lo.

— Ela está a par de tudo?

— Hmm, em parte, mas tem muita imaginação.

— O que ela faz o dia todo?

— Propuseram que praticasse esportes e fizesse ginástica, mas não quis. Distrai-se cozinhando. Picando cebola e alho e preparando pratos ibéricos. Não ficam ruins. As agentes estão encantadas e ela está um pouco mais cheinha.

— Não vou embora sem vê-la, coronel — aviso. — Pode considerar uma indenização.

Ele reflete sobre essa questão por um bom tempo. Os prós e os contras. O custo que essa visita representaria para ele.

— Vamos ver — diz no ar e sustento seu olhar.

Mas como continua impassível, como não há nada além de uma promessa distante de pensar nisso, saio do carro e entro no albergue. O quarto está exatamente como o deixei, apesar de alguns detalhes microscópicos confirmarem que foi revistado. Tiro a roupa e abro o chuveiro. Não sei quanto tempo fico embaixo da água. Aproveito o barulho, o vapor e a intimidade para chorar, e depois me dedico a meditar longamente na cama. Os perfumes, o colar de pérolas, a primeira vez que ouvi sua voz gravada. “Não deixe que eu morra sozinha.” Adormeço. Durmo quinze horas seguidas e quando acordo não consigo descer ao tapete. Pareço alguém que ressuscitou depois de uma longa catalepsia.

Nos dias que se seguem, volto a sentir aquela fraqueza sonífera tão parecida com a depressão. Uma baixa no ânimo e na energia, como se ainda estivesse escondido em Villa Costal ou como se a radioatividade de Chernobyl tivesse me alcançado. Não consigo correr, nem levantar peso; qualquer treinamento físico é insuportável para mim. Ando pelas calçadas de Madri com a cabeça no ar e entro em sebos procurando um romance sobre Messalina que li uma vez e perdi há anos. Acabo comprando outros que deixo pela metade ou simplesmente não consigo abrir. Termino na internet: há um exemplar meio amarelado, mas cuidadosamente restaurado pela própria dona, uma ex-professora de história a quem visito em seu apartamento de Moratalaz. Folheio com avidez os epílogos trágicos da esposa de Cláudio para saber se a memória combina com as recordações. “Messalina, filha minha, precisarás deste punhal que te trazem.” Um melodrama sem exatidão histórica, mas com um caráter romano muito teatral. Uma mistura de Robert Graves com Corín Tellado.

Meu único trabalho, durante quinze dias abúlicos, consiste em deixar que o coronel me empurre a dependências e tribunais e em narrar acontecimentos com habilidade e com numerosos truques de evasiva penal. Sou filmado e gravado, e me dedico a colocar minha assinatura nos documentos do escritório e em formulários confidenciais.

Uma tarde, no centro do bairro Serrano, às costas da porta de Alcalá, tenho a impressão repentina de ver Nuria. Está parada numa esquina, prestes a atravessar na faixa de pedestres. Nós nos olhamos de frente, como se nos conhecêssemos, e avançamos um para o outro amparados pelo sinal vermelho e pelo trânsito provisoriamente parado. É muito parecida com ela. Pelo menos com a Nuria que conheci em Colonia, naquela noite em que ela entrou pela porta do restaurante do Yatch Club de Pescadores com uma saia de antílope que chegava ao peito do pé e suas botas de couro e casaco elegante. À medida que avançamos, porém, os traços se distanciam e percebo que no máximo é a Nuria que poderia ter sido, e não a que realmente é. Seguimos de longe, cada um para sua calçada, e nos perdemos no tumulto madrilenho. Sinto a necessidade de parar em um café e pedir no balcão duas vodcas para acalmar o coração.

Numa terça-feira de chuva fina, Cálgaris encontra-se comigo na Casa Lucio. É um bar de Cava Baja onde o coronel pede ovos fritos e eu despacho sem apetite um saboroso robalo ao forno. No meio de sua dissertação sobre Sorolla, o coronel me entrega o passaporte do professor Conde, resgatado de uma delegacia de Gijón onde foi denunciado pelo dono do Seat.

— Pelo menos devolveram o carro ao bom homem? — Me interessa saber.

— Sem um aranhão nem uma mancha — responde ele em triunfo e aponta seu garfo para mim. — Vamos embora amanhã mesmo. Saímos de Barajas à tardinha. Deram sinal verde.

Em outra mesa, há dois deputados do pp de quem comensais de terno de vez em quando se aproximam para cumprimentar ou para fazer algum comentário sarcástico. Ambos comem coração de alcachofra com azeite e presunto e conversam sobre os ventos furiosos da União Europeia.

— Desconfio que me deixará sem indenização — digo sem desviar os olhos deles.

— Eu poderia lhe dizer que é impossível, que me negaram — responde Cálgaris, limpando o canto dos lábios com o guardanapo. — Mas não seria certo. Nem justo.

O senso de justiça nunca foi o forte de Leandro Cálgaris. Não acredito nada nele, até que depois de um passeio tedioso e inútil por Madri e suas cercanias, enquanto nos calamos com nossos próprios pensamentos e também com o piano de Oscar Peterson, chegamos às proximidades do rio Guadarrama. Ainda roda um bom trecho até encontrar um chalé afastado de ladrilho na fachada e colunas de granito, protegido por vários carros de vidros polarizados, um caminhão para tropas de assalto e uma pequena Kangoo com placa de ambulância. Não há movimentos à vista, mas imagino que os novos guardiões da Gioconda devem estar divididos pela frente, pelas laterais e pela parte traseira da casa, que dá em um uma área de lazer e uma piscina. E também imagino que ela não deve ter permissão de atravessar mais de dois ou três cômodos do meio desse chalé: digamos o quarto com banheiro, uma sala de estar para ver televisão e a cozinha para se divertir. Uma jaula de ouro dentro de um zoológico protegido. Meu ritmo cardíaco se acelera ao atravessar a primeira soleira, que efetivamente dá em uma sala de jantar tomada de armas, rádios, mochilas e meia dezena de camaradas entediados: alguns jogam cartas e se divertem com um Playstation, outros tiram sestas dissimuladas, jogados nas poltronas e nos sofás. Só fica alerta um técnico que nos obriga a passar por um detector de metais. E o oficial encarregado, que nos recebe com impecáveis terno e gravata e com um castelhano duvidoso. Conversa alguns minutos com Cálgaris em voz baixa e em seguida avisa pelo rádio. Uma policial ou algo parecido, com uma grotesca gravata-borboleta e coque redondo, abre uma porta e nos deixa entrar. O coronel fica para trás na última fração de segundo. A mulher me leva por um corredor e me apresenta a uma colega: uma senhora menos marcial e mais magra, porém igualmente rigorosa. Porta uma Jericho prateada. Propõe que eu entre em um banheiro e tire toda a roupa. Até a cueca. Não resisto. Ela passa a ponta dos dedos pelo cabelo e especialmente pela nuca; obriga-me a levantar o saco e, é claro, revista meu reto para ver se não levo uma arma branca ou uma cápsula de cianureto. Depois, enquanto me visto, não perde tempo contemplando minhas tatuagens e cicatrizes. Examina página por página o livro sobre Messalina, procurando um sublinhado, uma mensagem, uma anotação; vira o volume para saber se cai algo além do pólen literário e da poeira da biblioteca. Abre-o repetidas vezes como se fosse destruí-lo, e até solta um pouco a lombada para examinar a cola e seus cantos sob a luz da claraboia.

— É um presente — informo, e ela me olha com frieza. Não dá a mínima. Eu a entendo profundamente; o amor não é imprescindível.

— Tem uma hora — ela avisa numa espécie de espanhol de Bogotá. — Lá dentro está minha companheira, que ouvirá tudo o tempo todo. A sra. Menéndez sabe da visita e está cozinhando. Aviso que à menor anomalia tenho ordem de entrar e lhe dar um tiro na cabeça. — É sempre bom ser bem-vindo.

Vamos a uma porta branca e, ao ser transposta, a primeira coisa que me chama a atenção é a luz fluorescente e as persianas arriadas nas janelas. Depois a aparência da terceira guardiã, uma gigante desmazelada de quase dois metros, que está sentada em uma banqueta e apoia o cotovelo na bancada de aço inox. Tem na cintura uma espécie de cassetete e o cabelo curto e masculino. No meio há uma ilha para cozinhar e vejo que Nuria está de costas, vestida com uma blusa, calça de brim e um avental branco, e que tem o cabelo preto e arruivado preso num rabo de cavalo. Vira-se ao perceber a maçaneta e os passos, e eu, ao vê-la, controlo a expressão e prendo a respiração. Não parece a mesma pessoa. Parece uma irmã gêmea que levou uma vida campestre e ecológica, ou algo pior: uma paciente que sofreu eletrochoque de psiquiatras.

É claro que ela sorri, mas sem muito entusiasmo, de um jeito lento. Em minha comoção cardíaca, tento entender por que ela perdeu tanta beleza em tão pouco tempo, e depois descubro que quase todo seu encanto tinha refúgio no olhar pervertido. Sem essa malícia, a cara de Nuria é menos sugestiva e sensual. Ela toma minhas mãos e me dá dois beijos no rosto. As mãos estão frias e os lábios não são úmidos. O romance que levo embaixo do braço cai, e quando me abaixo para pegá-lo, penso na vez em que ela cozinhou com sua camiseta comprida, ouvindo Diana Krall. O sabor de curry e noz-moscada que tinha sua boca e o modo como se agarrou à beira da bancada para ser penetrada.

— É para fugir do tédio — digo e entrego a Messalina.

Ela pega o livro com certa surpresa, como se eu a estivesse presenteando com um castor embalsamado. Contorno a ilha sem desviar os olhos dela: parece mentira que esta mulher domesticada ainda seja a grande dama branca. Começa uma dor de cabeça, bem entre os olhos, como se a magra já tivesse entrado e disparado em mim um tiro de sua Jericho 941. Nuria murmura um “obrigada” de praxe, com um novo sorriso pueril, e deixa o romance de lado.

— Estou cozinhando bacon com chucrute, vai querer? — ela me informa e o tom parece grave.

— Vou.

Nas tábuas, há um toucinho defumado com o couro e um repolho roxo. Tem em volta dela temperos e frascos, e as três lâminas afiadas que lhe ensinaram a usar em seu curso de Palermo Hollywood.

— Progredi muito — comenta, animada.

Não precisa da serra nem da faquinha para descascar; só a faca de legumes. Corta em cubos o toucinho e o põe no forno para que perca lentamente a gordura e fique crocante. Em seguida pega o repolho, parte ao meio e fatia em tiras finas. Tac, tac, tac. Coloca em uma panela com manteiga e acrescenta vinho tinto, sal e açúcar. E enquanto o faz, não pronuncia nem mesmo meu nome. Eu também não sou capaz de interromper com uma frase. Dizer o quê, Nuria? Por acaso já não está tudo dito? Saí do poço, atravessei o mar e te procurei por metade do país para este único momento, e agora de repente não há nada? Absolutamente nada? Procurava uma verdade, Nuria, mas já me foi revelada no jardim de Sorolla. Existe outra verdade por trás dessa verdade? Uma verdade última? Sim, seus olhos novos, que não precisam mais de especulações, nem de malícia. Pela primeira vez, posso vê-la como é na realidade, e não como precisava ser vista. É claro que entendo você, as coisas nunca são tão lineares. Às vezes nos confundimos com o papel que representamos. Acontece com todo mundo. Até o mais insignificante tem seu pequeno papel nesta obra.

Olho de banda a guardiã gigantesca que está bocejando e percebo que falar íntima e sinceramente nesta cozinha seria fácil como ter um orgasmo em uma sala de cirurgia. Mas entendo que, mesmo que recuperássemos aquela liberdade, não conseguiríamos tirar a roupa. É um erro contar com a felicidade. É algo inadmissível para gente como nós, Nuria. Um grande erro.

— Podia ter apressado em uma frigideira, mas teria sido uma pena — reclama ela, enquanto continua excessivamente atenta ao forno e ao cozimento. — E também teria precisado de um bom malbec.

— Tem mais quinze minutos — berra a gigante desmazelada com voz de menina.

Incrível como o tempo passa rápido dentro desta cozinha. Ao mesmo tempo, me espanta ter de ficar aqui mais um quarto de hora passando a mão na barba do professor Conde, olhando meus pés e sentindo um furacão de emoções confusas. Suponho que a impotência seja isto: desejar alguém desesperadamente, tê-lo tão perto e sentir tão longe, tão vazio, tão derrotado. Por exemplo, eu poderia dar-lhe de presente aquele malbec que trouxemos a Vigo, mas imagino que ela não queira nem mesmo ser tocada por esses fantasmas. Se tocada, poderia se desequilibrar, revirar-se num chilique, desatar a gritar, tentar me matar com sua faca de picar. Nuria não é mais Nuria, e eu me pergunto se alguma vez foi assim. Em poucos dias, retiraram todos esses privilégios e a levaram a uma prisão de segurança máxima, depois haverá uma lenta peregrinação por presídios infectos, onde vão querer estuprá-la e matá-la nos pavilhões. Na pior das hipóteses, ela se transformará numa velha encanecida e desdentada, uma rata desnutrida no fundo de um corredor tétrico.

— Está na hora de você sair — anuncia a desmazelada.

— Mais dez minutos, por favor! — Nuria dá um salto, de repente alterada. — Mais dez minutinhos e sirvo o prato!

Ela pede juntando a palma das mãos, como quem reza. Depende dessa decisão como se fosse de vida ou morte, como se disso dependesse seu destino na Justiça.

— Sinto muito, Nuria — nega a mulherona, inflexível. — São as ordens.

Então Nuria abre as mãos e põe a cara nelas. Está chorando. É terrível que não possa servir seu bacon. Terrível. Contorno lentamente a ilha em sentido contrário e tento abraçá-la, e por um momento consigo. Mas ela rapidamente me empurra, pega um pano de prato e enxuga as lágrimas.

— Tudo bem, tudo bem, Remil. Nem esse bacon você pode comer. Precisa ir embora e me deixar em paz. — Tento consolá-la novamente, mas ela grita: — Me deixa em paz, filho da puta! — E me dá as costas de novo.

A magra da Jericho prateada e a gorda da gravata-borboleta sufocante me acompanham ao salão principal. Tenho os maxilares tão apertados que sinto dor, e as pontadas no crânio passaram da testa para a nuca. Cálgaris me acompanha ao Nissan e fica em silêncio durante toda a volta ao albergue. Só saio deste quarto quando ele vem me buscar com um táxi no dia seguinte, e ainda estou de ressaca. Viajamos na primeira classe. Quando decolamos e nos trazem um uísque, formulo ao coronel a única pergunta que me resta:

— Agora vamos nos dedicar a quê?

— Agora? — É como se ele precisasse de alguns segundos. Dá de ombros. — Não sei, aprendemos muito. Seria um desperdício não usar todo esse know-how.

Olho pela janela sem conseguir ver nosso futuro.

— Messalina. — Ouço-o dizer. — Uma grande pecadora. É decapitada pela guarda pretoriana por ordem do César.

— Mas antes tem a oportunidade de morrer com honra.

— Sim, oferecem a ela um punhal. — Ele admite com um relincho. — Mas não consegue, não tem coragem para isso.

Por cima das nuvens, só vemos algumas estrelas; a lua esta noite terá de ser dada por perdida.

— Quem sabe, coronel — resmungo apenas. — Quem sabe.