Capítulo Três

NAQUELA NOITE, ÀS QUATRO DA MANHÃ, Johnny desistiu da ideia de dormir. Como pudera considerar possível encontrar paz na noite do funeral de sua esposa?

Ele tirou o cobertor de cima de si e saiu da cama. A chuva batia no telhado e ecoava por toda a casa. Na lareira do quarto, ele tocou no interruptor e, depois de um som esquisito, chamas azuis e alaranjadas ganharam vida, consumindo a madeira de mentira. O leve cheiro de gás o afogou. Ele perdeu alguns minutos de pé ali, olhando para o fogo.

Depois disso, percebeu-se à deriva. Era a única palavra que descrevia seu perambular de um quarto para o outro. Mais de uma vez, ele se percebeu de pé em algum lugar, olhando para algo sem uma memória clara de como chegara até ali ou por que dera início àquela jornada em particular.

De algum modo, terminou em seu próprio quarto. O copo de água dela estava ainda na mesinha de cabeceira. Assim como seus óculos de leitura e as luvas que ela usava na cama já no fim, quando sentia frio demais. Claramente, como o som de sua própria respiração, ele a ouvia dizer: “Você é o único homem para mim, John Ryan. Amei-o a cada segundo nas últimas duas décadas”. Fora o que ela lhe dissera na última noite. Eles estavam juntos na cama, ele envolvendo-a porque Kate estava fraca demais para abraçá-lo. Ele se lembrava de esconder o rosto no pescoço dela, dizendo: “Não me deixe, Katie. Não ainda”.

Até naquele instante, com ela morrendo, ele a decepcionara.

Johnny se vestiu e desceu as escadas.

A sala de estar estava cheia de uma luz acinzentada. A chuva caía das calhas acima e amenizava a vista. Na cozinha, ele encontrou uma bancada cheia de louças limpas e secas que foram colocadas sobre um pano de prato e uma lata de lixo cheia de pratos de papel e guardanapos coloridos. O refrigerador e o freezer estavam cheios de potes. Sua sogra fizera o que devia ter sido feito, enquanto ele se escondera no escuro, sozinho.

Ao preparar para si uma xícara de café, tentou imaginar uma nova versão da sua vida. Tudo o que Johnny via eram espaços vazios na mesa da sala de jantar, carona com o motorista errado e café da manhã feito pelas mãos erradas.

Seja um bom pai. Ajude-os a lidar com isso.

Ele se apoiou na bancada, bebendo café. Ao se servir da terceira xícara, Johnny sentiu a adrenalina da cafeína. Suas mãos começaram a tremer e ele serviu um pouco de suco de laranja para si mesmo.

Açúcar e cafeína. Que mais? Tequila? Ele não tomara a decisão de agir. Em vez disso, apenas saiu da cozinha, onde cada centímetro quadrado o fazia se lembrar da esposa — o amaciante de lavanda que ela adorava, o prato VOCÊ É ESPECIAL que ela usava às menores conquistas das crianças, o jarro de água que ela herdara da avó e usava em ocasiões especiais.

Ele sentiu alguém lhe tocar no ombro e recuou.

Margie, sua sogra, estava ao seu lado. Ela estava usando jeans de cintura alta e gola rulê preta. Seu sorriso era cansado.

Bud veio ao lado da esposa. Ele parecia dez anos mais velho do que Margie. Tornara-se mais quieto no último ano, apesar de ninguém considerá-lo um tagarela antes disso. Bud começara a se despedir de Katie muito antes de os outros aceitarem o inevitável, e agora que ela havia morrido ele parecia ter perdido a voz. Como sua esposa, ele estava com suas roupas de costume — jeans Wrangler que acentuava suas pernas finas e a barriga, camisa marrom e branca e um cinto com uma enorme fivela prateada. Seus cabelos haviam caído havia muito tempo, mas ele tinha o bastante crescendo nas sobrancelhas para compensar.

Sem dizer nada, todos voltaram para a cozinha, onde Johnny serviu a todos uma xícara de café.

— Café. Graças a Deus — finalmente disse Bud, pegando sua xícara com as mãos nodosas.

Eles ficaram olhando uns para os outros.

— Precisamos levar o Sean ao aeroporto dentro de uma hora, mas depois disso podemos voltar e ajudar — disse Margie. — Pelo tempo que você precisar.

Johnny a amou pela oferta. Ela era mais próxima dele do que sua própria mãe jamais fora, mas ele tinha de se manter por si só.

O aeroporto. Esta era a resposta.

Aquele não era apenas mais um dia, e ele certamente não conseguia fingir que era. Johnny não podia alimentar os filhos e levá-los para a escola e trabalhar na estação, produzindo algum programa brega ou de estilo de vida que não mudaria a vida de ninguém.

— Vou nos tirar daqui — disse.

— Hã? — fez Margie. — Para onde?

Ele disse a primeira coisa que lhe veio à mente:

— Kauai. — Katie adorava esse lugar. Eles sempre quiseram levar as crianças.

Margie o via por seus óculos sem armação recém-comprados.

— Fugir não muda as coisas — disse Bud, mal-humorado.

— Sei disso, Bud. Mas estou me afogando aqui. Para todos os lugares onde olho...

— É — disse seu sogro.

Margie tocou seu braço.

— O que podemos fazer para ajudar?

Agora que Johnny tinha um plano — por mais que fosse imperfeito e temporário —, ele se sentia melhor.

— Vou começar com as reservas. Não diga nada às crianças. Deixe-as dormir.

— Quando vocês vão?

— Com sorte, hoje mesmo.

— É melhor você ligar para a Tully e contar. Ela está planejando voltar aqui às onze.

Johnny fez que sim, mas Tully era a menor de suas preocupações agora.

— Certo — disse Margie, batendo as mãos. — Vou limpar a geladeira e mover todos os potes para o freezer na garagem.

— Eu vou interromper a entrega de leite e ligar para a polícia — disse Bud. — Para que eles olhem a casa.

Johnny não havia pensando em nada disso. Kate sempre fizera os preparativos para as viagens.

Margie bateu no braço dele.

— Vá fazer as reservas. Nós cuidamos do restante.

Ele agradeceu a ambos e foi para seu escritório. Sentado no computador, demorou menos de vinte minutos para fazer as reservas. Às 6h50, ele comprara as passagens, reservara um carro e alugara uma casa. Tudo o que precisava fazer agora era contar às crianças.

Ele seguiu pelo corredor. No quarto dos meninos, foi até os filhos e os encontrou aos pés da cama, enrolados como uma dupla de filhotinhos.

Ele remexeu nos cabelos castanhos de Lucas.

— Hei, Skywalker, acorde.

— Quero ser Skywalker — murmurou Wills, ainda dormindo.

Johnny sorriu.

— Você é o Conquistador, lembra?

— Ninguém sabe quem foi William, o Conquistador — disse Wills, sentando-se com seu pijama azul e vermelho do Homem Aranha. — Ele precisa de um video game.

Lucas se levantou, olhando em volta.

— Já está na hora da escola?

— Não vamos para a escola hoje — disse Johnny.

Wills franziu a testa.

— Porque a mamãe morreu?

Johnny hesitou.

— Acho que sim. Vamos para o Havaí. Vou ensinar meus filhos a surfar.

— Você não sabe surfar — disse Wills, ainda de cara feia. Ele já se tornara um cético.

— Ele sabe, sim. Não é, papai? — perguntou Lucas, olhando em meio a seus cabelos longos. Lucas, o crédulo.

— Vou saber em uma semana — disse Johnny, e eles gritaram, pulando na cama. — Escovem os dentes e se vistam. Volto para fazer suas malas em dez minutos.

Os meninos pularam da cama e correram para o banheiro, empurrando-se pelo caminho. Ele saiu lentamente do quarto e foi para o corredor.

Johnny bateu na porta do quarto da filha e ouviu um cansado:

— Que é?

Ele respirou fundo antes de entrar no quarto dela. Johnny sabia que não seria fácil levar sua popular filha de dezesseis anos para uma viagem. Nada importava mais para Marah do que suas amigas. Isso era verdadeiro sobretudo agora.

Ela estava na cama, escovando seus cabelos longos e pretos. Vestida para a escola numa calça jeans ridiculamente baixa e uma camiseta infantil, ela parecia preparada para uma turnê da Britney Spears. Johnny deixou sua irritação de lado. Não era hora de discutir sobre moda.

— Ei — disse ele, fechando as portas atrás dele.

— Ei — respondeu ela, sem olhar para ele. Sua voz tinha aquela rispidez que se tornara moda desde a puberdade. Ele suspirou; nem mesmo o luto, ao que parecia, suavizara sua filha. A dor a deixara com ainda mais raiva.

Ela deixou de lado a escova de cabelos e o encarou. Agora ele entendia por que Kate se magoava tanto com a crítica nos olhos da filha. Ela sempre tinha uma forma de feri-lo com o olhar.

— Desculpe pela noite passada — disse ele.

— Que seja. Tenho aula de futebol depois da escola hoje. Posso pegar o carro da mamãe?

Johnny percebeu sua voz hesitar ao falar mamãe. Ele se sentou na ponta da cama e esperou que Marah se juntasse a ele. O que ela não fez, e ele sentiu uma onda de cansaço. Marah estava obviamente frágil. Todos estavam — mas Marah era como Tully. Nenhum deles sabia como demonstrar fraqueza. Marah só se importava com o fato de ele interromper sua rotina, e Deus sabia que ela passava mais tempo se preparando para a escola do que um monge se dedicava às orações matinais.

— Vamos passar uma semana no Havaí. Podemos...

— O quê? Quando?

— Vamos partir em duas horas. Kauai é...

De jeito nenhum! — reclamou ela.

Seu ataque foi tão inesperado que Johnny se esqueceu do que estava falando.

— O quê?

— Não posso deixar de ir à escola. Tenho que manter as notas para a faculdade. Prometi à mamãe que me sairia bem na escola.

— Isso é admirável, Marah. Mas precisamos de algum tempo como família. Para acertar as coisas. Você pode levar seus trabalhos da escola, se quiser.

— Se eu quiser? Se eu quiser? — Ela se levantou. — Você não sabe nada sobre a escola. Sabe como é competitivo lá? Como vou entrar numa boa faculdade se falhar neste semestre?

— Uma semana não vai atrapalhar.

— Rá! Tenho Álgebra 2, papai. E Estudos norte-americanos. E estou no time de futebol este ano.

Ele sabia que havia uma maneira certa e uma errada de lidar com isso; só não sabia qual a forma certa e, honestamente, estava cansado e estressado demais para se importar.

Johnny se levantou.

— Partimos às dez. Faça sua mala.

Ela o segurou pelo braço.

— Me deixe ficar com a Tully!

Ele viu como a raiva marcava sua pele clara de vermelho.

— Tully? Como companhia? Ah, não.

— A vovó e o vovô ficariam aqui comigo.

— Marah, nós vamos. Precisamos ficar juntos, só nós quatro.

Ela bateu o pé de novo.

— Você está arruinando minha vida.

— Duvido. — Ele sabia que deveria dizer algo de valor ou importância. Mas o quê? Ele já desprezava as coisas superficiais que as pessoas lhe diziam depois da morte. Não acreditava que o tempo curava tudo ou que Kate estava num lugar melhor ou que eles aprenderiam a seguir adiante. Johnny não transmitiria qualquer sensação vazia para Marah, que estava claramente se segurando mal como ele.

Ela abriu caminho, entrou no banheiro e bateu a porta.

Johnny sabia que não deveria esperar que ela mudasse de ideia. Em seu quarto, pegou o telefone e fez uma ligação entrando no armário, procurando por uma mala.

— Alô? — atendeu Tully, parecendo tão mal quanto ele se sentia.

Johnny sabia que deveria pedir desculpas pela noite passada, mas sempre que pensava nisso sentia uma onda de raiva. Ele não conseguira deixar de mencionar o comportamento decepcionante dela na noite passada, mas, mesmo ao mencionar isso, soubera que ela se defenderia, e fora o que Tully fizera. Era o que Kate queria. Aquilo o deixara furioso. Ela ainda estava falando sobre isso quando Johnny a interrompeu:

— Vamos para Kauai hoje.

— O quê?

— Precisamos de algum tempo juntos. Você mesma disse. Nosso voo é às duas pela Hawaiian.

— Não é tempo o bastante para se preparar.

— Pois é. — Johnny já estava preocupado com aquilo. — Tenho que ir. — Ela ainda estava falando, perguntando algo sobre o clima, quando ele desligou.

O Aeroporto Internacional SeaTac estava surpreendentemente cheio naquela tarde de outubro de 2006. Eles chegaram mais cedo para deixar o irmão de Kate, Sean, que estava voltando para casa.

No quiosque de autoatendimento, Johnny pegou suas passagens e olhou para os filhos, cada qual com um aparelho eletrônico; Marah estava enviando alguma mensagem de texto em seu novo celular. Ele não tinha ideia de como isso funcionava e não dava a mínima. Fora Kate quem quisera que sua filha de dezesseis anos tivesse um celular.

— Estou preocupada com a Marah — disse Margie, aproximando-se dele.

— Aparentemente, estou arruinando a vida dela ao levá-la para Kauai.

Margie fez um som de reprovação.

— Se você não está arruinando a vida da sua filha de dezesseis anos, não está sendo pai dela. Não é com isso que me preocupo. Ela se arrepende de como tratou a mãe, acho. Normalmente é algo que se supera, mas, quando sua mãe morre...

Atrás deles, as portas automáticas do aeroporto se abriram e Tully se aproximou usando óculos de sol, sandálias de saltos altíssimos e um chapéu branco. Ela trazia uma mala Louis Vuitton consigo.

Parou quase sem fôlego diante deles.

— O quê? O que há de errado? Se for o horário, fiz meu melhor.

Johnny encarou Tully. O que ela estava fazendo ali? Margie disse algo baixinho e balançou a cabeça.

— Tully! — gritou Marah. — Graças a Deus.

Johnny pegou Tully pelo braço e a puxou de lado.

— Você não foi convidada para esta viagem, Tul. Ela é somente para nós quatro. Não acredito que você achou...

— Ah. — A expressão foi dita suavemente, quase num sussurro. Ele podia ver como Tully estava magoada. — Você disse “nós”. Achei que isso me incluísse também.

Ele sabia com que frequência Tully fora deixada para trás na vida, abandonada pela mãe, mas não tinha forças para se preocupar com Tully Hart neste momento. Johnny estava prestes a perder o controle da sua vida; ele só conseguia pensar em seus filhos e em não desistir. Resmungou alguma coisa e se afastou dela.

— Vamos, crianças — disse, rispidamente, dando-lhes apenas alguns minutos para se despedir de Tully. Ele abraçou seus sogros e sussurrou: — Adeus.

— Deixe a Tully vir — lamuriou-se Marah. — Por favor...

Johnny continuou seguindo em frente. Era só nisso que ele conseguia pensar.

Nas seis horas seguintes, tanto no ar quanto no aeroporto de Honolulu, Johnny foi completamente ignorado por sua filha. No avião, ela não comeu, não assistiu ao filme nem leu. Ela se sentou do outro lado do corredor, de olhos fechados, a cabeça balançando no ritmo da música que ele não podia ouvir.

Johnny precisava que ela soubesse que, por mais que se sentisse sozinha, não estava. Ele tinha de se certificar de que Marah sabia que ele ainda estava lá por ela, que ainda eram uma família, por mais instável que tudo parecesse.

Mas o tempo importava. Com adolescentes, era preciso escolher o momento certo para se aproximar ou você acabaria com um toco sanguinolento no lugar onde antes havia um braço.

Eles pousaram em Kauai às 16h do horário havaiano, mas parecia que tinham viajado durante dias. Ele saiu pelo corredor do avião, com os meninos à frente. Semana passada eles estariam rindo; agora, estavam em silêncio.

Johnny se aproximou de Marah.

— Ei.

— Que foi?

— Não se pode só dizer “ei” para a filha?

Ela revirou os olhos e continuou andando.

Eles passaram pela área das bagagens, onde mulheres em trajes típicos entregavam coroas de flores roxas e brancas para as pessoas que chegavam.

Lá fora, o sol brilhava. Buganvílias rosa pendiam sobre a cerca do estacionamento. Johnny cruzou a rua até a área de aluguel de carros. Em dez minutos eles estavam num Mustang prata conversível e rumavam para o norte pela única estrada da ilha. Pararam numa loja de conveniência, compraram amenidades e voltaram para o carro.

À direita, o litoral era uma interminável praia dourada marcada por ondas azuis e ladeada por rochedos negros de lava. À medida que viajavam para o norte, a paisagem se tornava mais exuberante e verde.

— Ah, é lindo aqui — disse ele para Marah, que estava ao seu lado no banco do passageiro, encolhida e olhando para o telefone. Enviando mensagens de texto.

— É — disse Marah, sem olhar.

— Marah — disse ele, num tom de aviso. Como se dissesse: Você está cutucando a onça com vara curta.

Ela olhou para o pai.

— Estou pegando a lição de casa com a Ashley. Eu disse que não podia deixar a escola.

— Marah...

Ela olhou para a direita.

— Ondas. Areia. Pessoas gordas com roupas havaianas. Homens que usam meias e sandálias. Ótimas férias, papai. Já esqueci totalmente que a mamãe morreu. Obrigada. — Depois ela voltou a trocar mensagens de texto com seu Motorola Razr.

Ele desistiu. À frente, a estrada serpenteava pelo litoral e se deixava cair pela colcha de retalhos verdejantes do Vale Hanalei.

A cidadezinha de Hanalei era um conjunto de prédios de madeira e cartazes coloridos e barraquinhas. Ele entrou na rua indicada pelo MapQuest e imediatamente teve de diminuir a velocidade para evitar ciclistas e surfistas de ambos os lados da rua.

A casa que haviam alugado era um chalé havaiano à moda antiga na Rua Weke — pronunciava-se Veke, aparentemente. Ele entrou na garagem de cascalho e estacionou.

Os meninos saíram do carro instantaneamente, empolgados demais para serem contidos. Johnny carregou as duas malas até a porta da frente e a abriu. O chalé com piso de madeira era decorado com mobília de bambu dos anos 1950 e almofadas com estampas florais. Uma cozinha de acácia havaiana e um lugar para comer à esquerda da sala principal, com uma confortável sala de estar à direita. Uma TV de bom tamanho encantou os meninos, que imediatamente correram pela casa gritando:

— Dibs!

Ele foi até a porta de correr que dava para a baía. Para além do jardim verde estava a Baía de Hanalei. Johnny se lembrava da última vez que ele e Kate estiveram aqui. Me leve para a cama, Johnny Ryan. Vou fazer valer a pena...

Wills bateu nele com força.

— Estamos com fome, papai.

Lucas estava ao seu lado.

— Morrendo de fome.

Claro. Eram quase nove da noite no horário de casa. Como ele se esquecera de que as crianças precisavam jantar?

— Certo. Vamos para o bar que sua mãe e eu amamos.

Lucas riu.

— Não podemos entrar num bar, papai.

Ele despenteou Lucas.

— Talvez não em Washington, mas aqui tudo bem.

— Isso é tão legal! — disse Wills.

Johnny ouviu Marah na cozinha atrás dele, ajeitando as compras. Parecia um bom sinal. Ele não teve de implorar ou ameaçá-la.

Demorou menos de meia hora para colocar as coisas no lugar, distribuir os quartos, vestir calções e camisetas; depois eles caminharam pela rua silenciosa até um prédio de madeira velho perto do centro da cidade. O Tahiti Nui.

Kate adorava o estilo kitsch polinésio retrô do lugar, que ali era mais do que uma simples decoração. O rumor dizia que o interior era o mesmo havia mais de quarenta anos.

Dentro do bar, cheio de turistas e pessoas do vilarejo — facilmente diferenciadas pelo estilo de vestir —, eles encontraram uma mesinha de bambu perto do “palco” — uma área de pouco mais de um metro quadrado com dois banquinhos e um par de microfones.

— Isso é ótimo! — disse Lucas, balançando tanto em seu assento que Johnny temeu que ele fosse cair no chão. Normalmente Johnny teria dito algo, tentado domar os meninos, mas o entusiasmo deles era exatamente o que eles foram buscar ali, por isso ele acariciou sua Corona e não disse nada. A garçonete cansada havia acabado de lhes entregar a pizza quando a banda — dois havaianos com violões — surgiu. A primeira canção era a clássica versão para ukulele de Israel Kamakawiwo’ole para Somewhere over the rainbow.

Johnny sentiu Kate se materializar no banco ao seu lado, cantando suavemente em sua voz desafinada, encostada nele; mas, ao se virar, tudo o que viu foi Marah franzindo a testa para ele.

— O quê? Não estava no celular.

Ele não soube o que dizer.

— Que se dane — disse Marah, mas pareceu decepcionada.

Outra música começara. Quando você vê Hanalei sob o luar...

Uma bela mulher com cabelos loiros manchados pelo sol e um sorriso brilhante subiu no minúsculo palco e dançou a hula para a música. Quando a música cessou, ela foi até a mesa deles.

— Eu me lembro de você — disse ela para Johnny. — Sua esposa queria lições de hula da última vez que esteve aqui.

Wills encarou a mulher.

— Ela morreu.

— Ah — disse a mulher. — Sinto muito.

Deus, como ele estava cansado destas palavras.

— Significaria muito para ela o fato de você ter lembrado — disse Johnny, cansado.

— Ela tinha um belo sorriso — disse a mulher.

Johnny fez que sim.

— Bom... — Ela lhe deu um tapinha no ombro como se fossem amigos. — Espero que a ilha os ajude. Ela consegue, se você deixar. Aloha.

Mais tarde, ao voltarem para a casa na luz evanescente, os meninos estavam tão cansados que começaram a brigar. Johnny estava cansado demais para se importar. Na casa, ele os ajudou a fazerem a cama e os colocou para dormir, dando um beijo de boa noite em cada um deles.

— Papai? — disse um sonolento Wills. — Podemos entrar na água amanhã?

— Claro, Conquistador. É para isso que estamos aqui.

— Vou primeiro, aposto. O Luke é um medroso.

— Não sou!

Johnny lhes deu um beijo de novo e se levantou. Passando a mão pelos cabelos e suspirando, ele andou pela casa à procura da filha. Encontrou-a na varanda, sentada numa cadeira de praia. O luar iluminava a baía. O ar cheirava a sal, mar e jasmim. Emocionante, doce, sedutor. Na praia havia fogueiras ao redor das quais pessoas dançavam. O som de risadas se elevava sobre as ondas.

— Devíamos ter vindo aqui quando ela estava viva — disse Marah. Ela parecia jovem, triste e distante.

Aquilo doeu. Era a intenção. Quantas vezes eles planejaram a viagem só para cancelá-la por um motivo qualquer? Você acha que tem todo o tempo do mundo até perceber que não o tem.

— Talvez ela esteja nos vendo.

— É. Claro.

— Muitas pessoas acreditam nisso.

— Queria ser uma delas.

Johnny suspirou.

— É. Eu também.

Marah se levantou. Ela olhou para ele e a tristeza que Johnny viu em seus olhos era devastadora.

— Você está errado.

— Sobre o quê?

— A vista não muda nada.

— Eu precisava fugir. Você entende isso?

— Pois bem. Eu precisava ficar.

Dizendo isso, ela se virou e voltou para a casa. A porta se fechou atrás dela. Johnny ficou ali, abalado por suas palavras. Ele não havia pensado no que seus filhos precisavam. Incluíra as necessidades deles nas suas próprias e dissera a si mesmo que era melhor se todos viajassem.

Kate ficaria decepcionada com ele. Já. De novo. E pior: ele sabia que sua filha tinha razão.

Não era o paraíso o que ele queria ver. Era o sorriso da sua esposa, e aquilo se fora para sempre.

A vista não mudava nada.