Capítulo Seis

— PODE, POR FAVOR, PARAR DE ZUMBIR? — digo para Kate. — Como posso pensar com esse barulho? Estas nnão são boas memórias para mim.

Não estou zumbindo.

— Certo. Pare de fazer bip. Quem é você? O Papa-Léguas? — O som é ameno no princípio, como um mosquito perto do meu ouvido, mas ele se amplifica constantemente e se torna ridiculamente alto. — Pare de fazer esse barulho. — Estou começando a ficar com dor de cabeça.

Uma dor de cabeça de verdade. A dor ganha vida em minha mente, lateja e se transforma numa enxaqueca martelante.

Estou quieta como uma lápide aqui.

— Muito engraçado. Espere. Não é você. Soa como o alarme de um carro. O quê...?

NÓSAPERDEMOS, alguém diz; na verdade, grita. Quem?

Ao meu lado, ouço o suspiro de Katie. É um barulho de certo modo triste, como o rasgar de um velho laço. Ela sussurra meu nome e diz: Tempo. Aquilo me assusta, tanto o cansaço na sua voz quanto a palavra em si. Será que usei todo o tempo de que dispunha? Por que não falo mais? Faço mais perguntas? O que me aconteceu? Sei que ela sabe.

— Kate?

Nada.

De repente, estou caindo.

Posso ouvir vozes, mas as palavras não fazem sentido e a dor é tão grande, tão brutal que preciso de tudo o que tenho para não gritar.

AFASTEM-SE.

Sinto meu espírito arruinado, tirado do meu corpo. Quero abrir os olhos — ou talvez eles estejam abertos — não sei dizer. Só sei que esta escuridão é feia, fria e espessa como carvão em pó. Grito por ajuda, mas tudo acontece na minha cabeça e eu sei disso. Não consigo abrir a boca. O som que imagino ecoa e desaparece, e eu faço o mesmo...

3 de setembro de 2010
6h27

Johnny estava de pé ao lado de fora da sala nove de traumatismo. Ele precisou de cinco segundos para decidir seguir o Dr. Bevan até esta sala e precisou de menos tempo ainda para decidir abrir a porta. Afinal, ele era um jornalista. Ganhava a vida entrando onde não era chamado.

Ao abrir a porta, ele levou um susto e foi puxado de lado por uma mulher usando trajes hospitalares.

Ele saiu do caminho e se aproximou da sala cheia. Ela estava bem iluminada e cheia de pessoas com trajes hospitalares reunidos em torno de uma maca. Elas falavam todas ao mesmo tempo, para a frente e para trás como as teclas de um piano. Por causa dos corpos, ele não conseguia ver a paciente — somente dedos do pé saindo pela extremidade de um cobertor azul.

Um alarme soou. Alguém gritou:

— Nós a perdemos. Carregar.

Um zumbido vibrou pela sala, pairando por sobre as vozes. Ele sentiu a vibração do som em seus ossos.

— Afastem-se.

Ele ouviu o vrrr alto e depois o corpo na maca se arqueou. Um braço caiu de lado, pendendo da maca.

— Ela voltou — disse alguém.

Johnny viu os batimentos cardíacos no monitor. O enxame pareceu se acalmar. Algumas das enfermeiras se afastaram da cama e pela primeira vez ele viu a paciente.

Tully.

Foi como se o ambiente se enchesse de ar. Johnny finalmente conseguiu respirar. Havia sangue por todo o chão. Uma enfermeira pisou nele e quase caiu.

Johnny se aproximou da cama. Tully estava inconsciente; seu rosto, ferido e ensanguentado; um osso saía pelo músculo rasgado de seu braço.

Ele sussurrou seu nome, ou talvez tenha só pensado que o fez. Johnny passou por entre duas enfermeiras — uma que estava aplicando uma injeção intravenosa e outra que puxava o cobertor para cobrir o peito nu de Tully.

O Dr. Bevan se materializou ao lado dele.

— Você não deveria estar aqui.

Johnny desprezou o comentário, sem responder. Ele tinha tantas perguntas a fazer a este homem. Ainda assim, de pé e surpreso com a extensão dos ferimentos, o que sentia era vergonha. De alguma forma, Johnny tinha um papel nisso tudo. Ele culpara Tully por alguma coisa que não fora sua culpa e a tirara de sua vida.

— Precisamos levá-la para a sala de cirurgia, Sr. Ryan.

— Ela vai sobreviver?

— Suas chances não são boas — disse o Dr. Bevan. — Saia do caminho.

— Salve-a — disse Johnny, recuando enquanto a maca passava por ele.

Sentindo-se paralisado, ele saiu do quarto e andou pelo corredor até a área de espera do quarto andar, onde havia uma mulher sentada num canto, agulhas de tricô na mão, chorando.

Ele foi conversar com a mulher na recepção, disse-lhe que estava esperando notícias de Tully Hart e foi se sentar ao lado de um televisor. Sentindo a dor distante de uma enxaqueca, ele se recostou.

Johnny tentou não se lembrar de tudo o que dera errado nos anos sem Kate; todos os erros que cometera — e foram dezenas. Em vez disso, ele orou para um deus no qual deixara de acreditar no dia em que sua esposa morrera e para o qual retornara depois que sua filha desaparecera.

Durante horas, ele ficou sentado na sala de espera, vendo as pessoas ir e vir. Johnny não ligara para ninguém ainda. Estava esperando notícias sobre a condição de Tully. Houvera tragédias o bastante na família. Bud e Margie viviam no Arizona agora; Johnny não queria que Margie corresse para o aeroporto a não ser que fosse absolutamente necessário. Ele teria ligado para a mãe de Tully, mesmo a esta hora da manhã, mas Johnny não fazia ideia de como encontrá-la.

E havia Marah. Ele não sabia nem mesmo se ela atenderia sua ligação.

— Sr. Ryan?

Johnny levantou os olhos rapidamente e viu o neurocirurgião se aproximando dele.

Ele quis se levantar, mas se sentiu fraco.

O cirurgião o tocou no ombro.

— Sr. Ryan?

Johnny se obrigou a se levantar.

— Como ela está, Dr. Bevan?

— Ela sobreviveu às cirurgias. Venha comigo.

Johnny se permitiu ser guiado para fora da sala de espera até uma pequena sala de reuniões ali perto. Em vez de um arranjo floral no meio da mesa, havia uma caixa de lenços de papel.

Ele se sentou.

O Dr. Bevan se sentou diante dele.

— Neste momento, a maior preocupação é o edema cerebral — o inchaço no cérebro dela. Ela teve um grande traumatismo craniano. Instalamos um dreno para ajudar com o inchaço, mas a eficácia é incerta. Diminuímos a temperatura corporal dela e a colocamos em coma induzido para ajudar a aliviar a pressão, mas o estado dela ainda é grave. Ela está respirando com a ajuda de aparelhos.

— Posso vê-la? — perguntou Johnny.

O médico fez que sim.

— Claro. Venha comigo.

Ele guiou Johnny por um corredor branco depois do outro, até um elevador e para fora dele. Por fim, chegaram à UTI. O Dr. Bevan entrou num quarto privado de paredes envidraçadas, um entre os doze dispostos em U ao redor da estação das enfermeiras.

Tully estava deitada numa cama estreita, cercada por máquinas. Seus cabelos foram raspados e um buraco fora feito em seu crânio. Um cateter e uma bomba tentavam aliviar a pressão no seu cérebro. Havia vários tubos entrando nela — um respirador, um alimentador e um tubo em sua cabeça. Uma tela preta atrás da maca mostrava a pressão intracraniana; outro monitorava seus batimentos cardíacos. Seu braço esquerdo estava imobilizado. O frio irradiava de sua pele pálida, azulada.

— É impossível dar prognósticos para traumas cerebrais — disse o Dr. Bevan. — Nós realmente ainda não sabemos qual é a extensão dos ferimentos. Esperamos saber mais dentro de 24 horas. Gostaria de lhe dar uma opinião mais assertiva, mas este é um território incerto.

Johnny sabia sobre ferimentos cerebrais. Ele sofrera um como repórter, cobrindo a primeira guerra no Iraque. Foram necessários meses de terapia para que ele voltasse a ser quem era e ainda assim não conseguia se lembrar da explosão.

— Ela vai voltar ao normal quando acordar?

— A verdadeira questão é se ela vai acordar. Seu cérebro está funcionando, mas não sabemos quão bem, por causa dos medicamentos que lhe demos. Suas pupilas estão reagindo, e isso é um bom sinal. O coma vai dar tempo ao corpo dela, esperamos. Mas se houver uma hemorragia ou se o inchaço continuar...

Ele não precisou terminar a frase. Johnny sabia.

O barulho do respirador o fazia se lembrar de que ela não estava respirando por conta própria.

Este é o som de bancar Deus e manter alguém vivo — uma cacofonia de monitores, indicadores e o zumbido do respirador.

— O que aconteceu a ela? — perguntou finalmente Johnny.

— Acidente de carro, pelo que ouvi dizer, mas não sei dos detalhes.

O Dr. Bevan se virou para ele.

— Ela é uma mulher espiritualizada?

— Não. Diria que não.

— Pena. A fé pode ser um consolo em momentos como este.

— É — disse Johnny.

— Acreditamos que ajuda conversar com pacientes em coma — disse o Dr. Bevan.

O médico bateu no ombro de Johnny novamente e depois saiu da sala.

Johnny se sentou ao lado da cama. Quanto tempo ficou ali, olhando para ela, pensando: Lute, Tully, sussurrando palavras que não podia dizer em voz alta? O bastante para a culpa e o arrependimento se tornarem um nó em sua garganta.

Por que era preciso uma tragédia para ver a vida com clareza?

Ele não sabia o que dizer para ela, não agora, depois de tudo o que fora dito — e não dito — entre eles. A única coisa que ele sabia com certeza era isto: se Kate estivesse aqui, ela teria lhe dado um chute no traseiro pela maneira como ele se comportara depois de sua morte e como ele tratara sua melhor amiga.

Ele fez a única coisa em que pensou para tocar Tully. Silenciosamente, sentindo-se estúpido por fazê-lo, começou a cantar uma música que lhe veio à mente, a música que sempre o fazia se lembrar de Tully. Só uma menina de uma cidadezinha, vivendo num mundo solitário...

Onde estou? Morta? Viva? Entre a vida e a morte?

— Kate?

Sinto um calor ao meu lado e o alívio é enorme.

— Katie — digo, virando-me. — Onde você esteve?

Morta, diz ela simplesmente. Agora estou de volta. Abra seus olhos.

Meus olhos estão fechados? Por isso tudo é tão escuro? Abro meus olhos lentamente, e é como acordar de cara para o Sol. A luz e o calor são tão intensos que perco o fôlego. Demora alguns segundos para que meus olhos se ajustem ao brilho e, quando isso acontece, vejo que estou num quarto de hospital com meu corpo. Abaixo de mim, uma operação está sendo realizada. Várias pessoas em trajes hospitalares estão ao redor de uma mesa de cirurgia. Bisturis e instrumentos brilham nas mesas instrumentadoras. Há máquinas por todos os lugares, emitindo sons, sugando, zunindo.

Olhe, Tully.

Não quero.

Olhe.

Estou me movendo, apesar da minha intenção de ficar imóvel. Um medo gélido toma conta de mim. É pior do que a dor. Sei o que verei na mesa.

Eu mesma. E, de certo modo, não eu mesma.

Meu corpo está na mesa, envolto em azul, ensanguentado. As enfermeiras e o cirurgião conversam; alguém está raspando minha cabeça.

Pareço tão pequena e pálida sem cabelos, como uma criança. Alguém passa um líquido marrom na minha cabeça raspada.

Ouço o zumbido de uma serra e aquilo me dá enjoo.

— Não gosto daqui — digo para Kate. — Me leve para outro lugar.

Sempre estaremos aqui, mas feche os olhos.

— Com prazer.

A escuridão repentina me assusta desta vez. Não sei por quê. É estranho, na verdade, porque suporto várias emoções sombrias na minha alma, mas o medo não é uma delas. Não tenho medo de nada.

Rá. Você tem mais medo do amor do que qualquer outra pessoa que conheci. Por isso é que você insiste em testar as pessoas e afastá-las. Abra os olhos.

Abro meus olhos e, por um segundo, tudo ainda está escuro; depois as cores surgem da escuridão impenetrável acima, caindo como aqueles códigos de computação em Matrix, solidificando-se. Primeiro vem o céu, de um azul perfeito e sem nuvens, depois as cerejeiras em flor — tufos de flores rosa pendendo dos ramos e flutuando no ar doce.

Os prédios se põem em seus devidos lugares, estruturas góticas rosa com alas e torres elegantes; e finalmente a grama verde, marcada por trilhas de concreto indo para lá e para cá. Estamos na Universidade de Washington. As cores são vívidas. Há jovens em todos os lugares — meninos e meninas — carregando mochilas e brincando de footbag e deitados na grama com livros abertos diante deles. Em algum lugar toca uma música alta e uma versão moderna de I’ve never been to me emana dos autofalantes. Deus, odiava essa música!

— Nada disso é real — digo. — Certo?

O real é relativo.

Não muito longe de onde estamos sentadas na grama, uma dupla de meninas está sentada uma ao lado da outra; uma delas é morena e a outra, loira. A loira está usando calça larga e uma camiseta e tem um caderno Trapper Keeper aberto diante dela. A outra — certo, sou eu, eu sei, eu me lembro de quando usava meus cabelos soltos daquele jeito e seguros por uma tiara metálica, e me lembro da blusa branca. Era minha preferida. Elas — nós — parecem tão jovens que não resisto e sorrio.

Deito-me, sentindo a grama pinicar meus braços expostos, sentindo seu perfume doce costumeiro. Kate faz o mesmo. Estamos juntas novamente, ambas olhando o céu azul. Quantas vezes, durante nossos quatro anos na Universidade de Washington, fizemos exatamente isso? A luz ao nosso redor é mágica, clara e faiscante como champanhe contra o sol. Neste brilho me sinto em paz. Minha dor é uma memória distante aqui, principalmente com Kate ao meu lado.

O que aconteceu hoje à noite?, pergunta ela, acabando com a paz.

— Não consigo me lembrar. — É estranhamente verdade. Não consigo me lembrar.

Você consegue se lembrar. Mas não quer.

— Talvez haja um bom motivo para isso.

Talvez.

— Por que você está aqui, Kate?

Você me chamou, lembra? Vim porque você precisava de mim. E também para lembrá-la.

Do quê?

As lembranças são o que somos, Tul. Por fim, esta é toda a bagagem que leva com você. O amor e as lembranças são o que dura. Por isso é que a vida passa diante de seus olhos quando você morre — você está escolhendo as memórias que quer. É como embalar as coisas.

— Amor e lembranças. Então estou duplamente ferrada. Não me lembro de nada, e amor...

Ouça.

Uma voz está falando.

— Ela vai ser ela mesma quando acordar?

— Ei — digo. — Isto é...

Johnny. A maneira como ela diz o nome do seu marido é cheia de amor e dor.

— ... se ela vai acordar... — Uma voz de homem.

Espere. Eles estão falando sobre a minha morte. E a chance de algo pior — uma vida com uma lesão cerebral. Uma imagem surge em minha mente — eu mesma, confinada a uma cama, com tubos ao meu redor, incapaz de falar ou me mover.

Concentro-me e estou no quarto do hospital novamente.

Johnny está ao meu lado, olhando para mim. Um estranho em trajes hospitalares ao seu lado.

— Ela é uma mulher espiritualizada? — Isto vem do estranho.

— Não. Diria que não — responde Johnny, cansado. Ele parece tão triste que quero pegar sua mão, mesmo depois de tudo o que aconteceu entre nós, ou talvez justamente por isso.

Ele se senta ao lado da cama onde está meu corpo.

— Desculpe — diz ele para o eu que não pode ouvir.

Esperei tanto para ouvir estas palavras dele, mas por quê? Posso ver agora que ele me ama. Posso ver em seus olhos úmidos, em suas mãos trêmulas, na maneira como ele inclina a cabeça para orar. Ele não ora — conheço bem; é derrota, a cabeça baixa.

Ele sentirá minha falta, mesmo depois de tudo.

E eu sentirei a falta dele.

— Lute, Tully.

Quero lhe responder, quero lhe dizer que ele me tocou, que estou aqui, mas nada funciona.

— Abra os olhos — digo para meu corpo. — Abra os olhos. Diga que você sente muito também.

E então ele começa a cantar numa voz hesitante.

Só uma menina de uma cidadezinha...

Deus, como eu amo este homem, diz Kate.

Ele está cantando quando alguém entra no quarto. Um homem musculoso com um casaco esportivo marrom e calça azul.

— Sou o detetive Gates — diz o homem.

Ouço as palavras acidente de carro e imagens surgem em minha mente — uma noite chuvosa, um poste de concreto, minhas mãos no volante. Quase se torna uma memória. Posso sentir as coisas se reunindo, significando algo, mas, antes que eu possa reuni-las, sou atingida com tanta força no peito que caio contra a parede. A dor é excruciante.

CÓDIGOAZULCHAMEODOUTORBEVAN.

— Kate! — grito, mas ela se foi.

Os barulhos são tormentosos agora, ecoando, batendo, zunindo. Não consigo respirar. A dor no meu peito está me matando.

AFASTEM-SE.

Sou jogada no ar como uma boneca de pano e, no alto, queimo. Quando acaba, estou flutuando novamente, caindo juntamente com a luz.

Kate segura minha mão na escuridão e, em vez de cair, estamos voando. Descemos como borboletas em poltronas de madeira com vista para a praia. O mundo é escuro, mas, de algum modo, eletricamente iluminado: branco, lua branca, infinitas estrelas, velas em jarros pendurados nos galhos de um velho bordo.

O deque dos fundos dela. De Kate.

Aqui a dor é um eco, não uma batida. Graças a Deus por isso.

Ouço Kate respirando ao meu lado. A cada exalação, sinto o cheiro de lavanda ou alguma coisa, talvez neve. Johnny se desintegrou, diz ela, lembrando-me de onde estávamos antes — falando sobre minha vida. Não achei que isto aconteceria.

— Todos nós nos desintegramos. — Esta é a verdade triste sobre isso. — Você era a cola que nos mantinha unidos. Sem você...

Houve um longo silêncio; nele, imagino se ela está se lembrando da sua vida, de seus amores. Como é sentir que as pessoas não conseguem lidar com sua ausência? Como é se sentir tão amada por tantas pessoas?

O que lhe aconteceu depois que ele se mudou para Los Angeles?

Suspiro.

— Não posso apenas caminhar para a maldita luz e acabar com tudo isso?

Você gritou por mim, lembra? Você disse que precisava de mim. Estou aqui. E eis o porquê: você precisa se lembrar. É isso. Então, fale.

Reclino-me na cadeira, olhando para uma vela que queima dentro de um pote de vidro. Treliças mantêm o jarro no lugar; uma brisa o toca de vez em quando, derramando luz sobre os galhos mais baixos da árvore.

— Depois que você morreu, o Johnny e as crianças se mudaram para Los Angeles. Foi tudo muito rápido. Seu marido simplesmente decidiu que ia para Los Angeles e, assim que percebi, ele e as crianças haviam ido. Eu me lembro de me despedir em novembro de 2006, de pé com sua mãe e seu pai na garagem, acenando. Depois disso, fui para casa e me arrastei...

... para a cama. Sei que preciso voltar a trabalhar, mas não consigo. Honestamente, a própria ideia é absurda. Não consigo reunir forças para começar o processo de recomeçar minha vida sem uma melhor amiga. Isso pesa e eu fecho os olhos. Não há nada de mau em ficar deprimida por algum tempo; quem não ficaria?

De algum modo, perco duas semanas. Quero dizer, não realmente as perco. Sei onde elas estão e onde estou. Sou como um animal ferido numa toca escura, cuidando do espinho na minha pata, sem encontrar ninguém para tirá-lo. Ligo para Marah todas as noites, às onze. Sei que ela também não consegue dormir. Deito-me na cama, ouvindo-a reclamar da decisão do pai de se mudar, e lhe digo que tudo ficará bem, mas nenhuma de nós acredita nisso. Prometo visitá-la logo.

Por fim, não suporto mais. Tiro as cobertas de cima de mim e ando por meu apartamento, acendendo as luzes e abrindo armários. A luz preenche os ambientes, e em seu brilho eu me vejo pela primeira vez: meus cabelos desgrenhados e sujos, os olhos vítreos e minhas roupas amassadas.

Pareço minha mãe. Estou com vergonha de ter caído tanto e tão rápido.

É hora de me recuperar.

Aí está. Meu objetivo. Não posso ficar deitada sentindo falta da minha melhor amiga e de luto. Tenho de pôr isso para trás e seguir adiante.

Sei como fazer isso. Fiz isso minha vida inteira. Ligo para meu agente, marco um horário para vê-lo. Ele está em Los Angeles: verei meu agente, voltarei a trabalhar e surpreenderei Johnny e as crianças com uma visita.

Sim. Perfeito. Um plano.

Com o compromisso agendado, sinto-me melhor. Tomo um banho e cuido dos meus cabelos. Noto os cabelos brancos nas raízes.

Quando isso aconteceu?

Franzindo a testa, tento esconder os cabelos brancos prendendo-os num rabo de cavalo. Faço uma maquiagem pesada. Afinal, vou sair para o mundo, e há câmeras em todos os lugares hoje em dia. Visto-me com a única coisa que parece confortável em meus quadris maiores — uma saia preta, botas de cano alto e uma blusa de seda preta de gola assimétrica.

Saio-me bem — quero dizer, ligo para meu agente de viagens e faço reservas e me visto, e o tempo todo estou sorrindo, pensando: Posso fazer isso, claro que posso — e então abro a porta do meu apartamento e sinto uma onda de pânico. Minha garganta seca, começo a suar e meu coração acelera.

Estou com medo de deixar minha casa.

Não sei o que há de errado comigo, mas não me deixarei abater. Respiro fundo e sigo adiante. Até o elevador, meu carro, o banco do motorista. Sinto meu coração pulsando dentro do meu peito.

Ligo o carro e dirijo pelas ruas movimentadas de Seattle. Chove forte, com pingos grossos sobre o para-brisa, obscurecendo minha visão. A cada segundo quero voltar, mas não volto. Obrigo-me a continuar adiante até estar no avião, sentada na primeira classe.

— Um martíni — peço para a comissária. A expressão dela faz com que eu me lembre de que ainda não é meio-dia. Mas uma bebida é tudo em que consigo pensar para fazer com que eu atravesse este vergonhoso episódio.

Amansada por dois martínis, finalmente consigo me recostar na poltrona e fechar os olhos. Estarei melhor depois que voltar a trabalhar. O trabalho sempre foi minha salvação.

Em Los Angeles, vejo um motorista vestido todo de preto e segurando um cartaz. HART. Entrego-lhe minha mala de couro e o sigo para o carro que me aguarda. No trajeto do aeroporto até Century City, o tráfego está pesado. As pessoas na estrada buzinam constantemente, como se fizesse alguma diferença, e motocicletas avançam perigosamente por entre as pistas.

Reclino-me no banco e fecho os olhos, reservando um instante para pensar e organizar minhas ideias. Agora que estou aqui, seguindo adiante, recuperando minha vida, sinto-me mais calma. Ou talvez sejam os martínis. De qualquer forma, estou pronta para meu retorno.

O carro estaciona diante do imponente prédio branco identificado apenas por uma discreta placa: AGÊNCIA CREATIVE ARTISTS.

Lá dentro, o prédio é um corredor sem fim de mármore branco e vidro, como um iglu gigantesco e igualmente frio. Todos se vestem bem, em ternos caros. Belas mulheres e homens se movem pelo que parece ser um ensaio fotográfico.

A moça da recepção não me reconhece. Nem mesmo quando digo meu nome.

— Ah — diz ela, o olhar desinteressado. — O Sr. Davison a está aguardando?

— Sim — digo, tentando manter o sorriso.

— Sente-se, por favor.

Honestamente, tenho vontade de colocar a moça em seu devido lugar, mas sei que preciso tomar cuidado nos corredores da ACA, por isso me calo e me sento na sala de espera modernamente decorada.

Onde espero.

E espero.

Vinte minutos depois do meu horário marcado, um jovem num terno italiano vem até mim. Sem dizer nada, como um robô, ele me guia até o terceiro andar e até um escritório no canto.

Meu agente, George Davison, está sentado atrás de uma enorme mesa. Ele se levanta quando entro. Nós nos abraçamos um pouco sem jeito e eu recuo.

— Bem, bem — diz ele, indicando a cadeira para mim.

Eu me sento.

— Você parece bem — digo.

Ele me olha. Percebo que ele nota que ganhei peso e meu rabo de cavalo não o engana. Ele vê meus cabelos grisalhos. Eu me ajeito na poltrona.

— Sua ligação me surpreendeu — disse ele.

— Não faz tanto tempo assim.

— Seis meses. Deixei ao menos uma dúzia de mensagens para você. Nenhuma das quais foi retornada.

— Você sabe o que aconteceu, George. Descobri que minha melhor amiga tinha câncer. Queria ficar com ela.

— E agora?

— Ela morreu. — É a primeira vez que digo isso em voz alta.

— Sinto muito.

Enxugo os olhos.

— Sei. Bem. Estou pronta para voltar ao trabalho agora. Gostaria de começar a gravar na segunda.

— Diga que você está brincando.

— Você acha que segunda é cedo demais? — Não gosto da maneira como George está me olhando.

— Que é isso, Tully? Você é mais inteligente do que isso.

— Não entendo o que você quer dizer, George.

Ele se ajeita em sua poltrona. O couro caro emite um som sussurrado.

— Seu programa, The girlfriend hour, estava em primeiro lugar no seu horário no ano passado. Os anunciantes imploravam para comprar tempo. Os fabricantes adoravam dar produtos para as pessoas da sua plateia, muitas das quais dirigiam por centenas de quilômetros e perdiam horas na fila para ver você.

— Sei de tudo isso, George. Por isso é que estou aqui.

— Você se afastou, Tully. Tirou seu microfone, disse adeus para sua plateia e foi embora.

Inclino-me para a frente.

— Minha amiga...

— Quem se importa?

Recosto-me, surpresa.

— Como você acha que a emissora se sentiu com sua saída? Ou seus funcionários, todos os quais de repente foram demitidos?

— Eu... Eu...

— Isso mesmo. Você não pensou neles, não é? A emissora queria processá-la.

— Eu não sabia...

— Telefonemas não atendidos — atacou ele. — Lutei como um tigre para proteger você. Eles decidiram não processar você, acharam que seria um pesadelo de relações públicas por causa do câncer. Mas eles tiraram o show, sem reapresentações, e substituíram você.

Como não fiquei sabendo disso?

— Eles me substituíram? Por quem?

O Rachael Ray show. Está fazendo sucesso. E crescendo rápido. E Ellen e Judge Judy também têm alta audiência. E a Oprah, claro.

— Espere. O que você está me dizendo exatamente? Eu sou dona do meu programa, George. Eu o produzo.

— Pena que não tenha sua própria emissora. Eles têm o direito exclusivo de exibir reapresentações agora. Mas não estão exibindo. De tão furiosos que estão.

Mal consigo processar a informação. Fui sempre um sucesso.

— Você está dizendo que The girlfriend hour acabou?

— Não, Tully. Estou dizendo que você acabou. Quem vai contratar alguém que vai embora sem dizer nada?

Certo, isso é ruim.

— Vou produzir um novo programa. De acordo com as regras. Nós vamos vendê-lo.

— Você tem falado com seu gerente financeiro recentemente?

— Não. Por quê?

— Você se lembra de doar uma soma substancial para o Stand Up 2 Cancer há quatro meses?

— Foi um presente para a Kate. E foi boa publicidade. Eles deram a notícia no Entertainment tonight.

— Um belo e adorável gesto, sim. Só que você não tem rendimentos, Tully. Não desde que saiu. Você teve que pagar a rescisão de vários funcionários depois que parou de gravar o espetáculo. Isso lhe custou uma pequena fortuna. E, vamos encarar os fatos, economizar nunca foi seu ponto forte.

— Você está dizendo que estou quebrada?

— Quebrada? Não. Você ainda está mais do que em uma posição confortável. Mas conversei com o Frank. Você não tem o bastante para bancar uma produção. E ninguém vai querer investir em você neste momento.

Sinto uma onda de pânico; bato com o pé no piso; meus dedos se seguram firmemente aos meus braços cruzados.

— Então preciso de um trabalho.

O olhar que George me dá é de tristeza. Em seus olhos, vejo o arco da nossa relação. Ele se tornou meu agente há quase duas décadas, quando eu era uma pequena funcionária num show matinal. Nós nos interessamos um pelo outro por causa de nossa ambição mútua. Ele cuidou de cada contrato importante da minha carreira e me ajudou a ganhar milhões, boa parte dos quais gastei com viagens e presentes extravagantes.

— Não vai ser fácil. Você é como criptonita, Tul.

— Você está dizendo que só posso trabalhar localmente?

— Estou lhe dizendo que você vai ter sorte se conseguir trabalhar localmente.

— Não entre as dez mais.

— Acho que não.

A pena e a compaixão no olhar dele são mais do que consigo suportar.

— Trabalho desde os quatorze anos, George. Trabalhei no jornal Queen Anne Bee na escola e estava no ar antes dos 22 anos. Construí esta carreira do nada. Ninguém nunca me deu nada. — Minha voz falha. — Investi tudo no trabalho. Tudo. Não tenho filhos, marido ou família. Tenho... trabalho.

— Acho que você deveria ter pensado nisso antes — diz ele, e a gentileza no seu tom de voz não ameniza a ferroada da observação.

Ele tem razão. Conheço o mundo do jornalismo e, pior, da TV. Sei que “longe dos olhos, longe do coração”. Sei que não se pode fazer o que eu fiz e voltar.

Então, por que eu não sabia disso em junho?

Eu sabia.

Devia saber. Mas optei por Kate.

— Me arranje um trabalho, George. Eu imploro. — Viro-me antes que ele veja o que isso me custou. Nunca implorei nada... exceto pelo amor da minha mãe. E foi uma perda de tempo.

Saio rapidamente pelas paredes brancas sem olhar para ninguém, meus saltos batendo no chão de mármore. Lá fora, o sol brilha tanto que fere meus olhos. O suor na minha testa pinga pelo meu crânio.

Eu vou resolver isso.

Eu vou.

É um obstáculo, claro, mas sou uma sobrevivente e sempre serei.

Chamo meu motorista e entro no interior escuro e tranquilo do carro. Estou com dor de cabeça.

— Beverly Hills, senhora?

Johnny e as crianças.

Quero vê-los agora. Quero contar esses problemas para Johnny e ouvir dele que tudo ficará bem.

Mas não posso. Minha vergonha é avassaladora e o orgulho me impede.

Coloco os óculos de sol.

— Aeroporto.

— Mas...

— Aeroporto.

— Sim, senhora.

Contenho-me um segundo de cada vez. Aperto meus olhos e digo em silêncio: Você ficará bem. Repetidamente.

Mas, pela primeira vez na minha vida, não consigo acreditar. Pânico, medo, raiva e perda tomam conta de mim, me preenchem, transbordam. No voo de volta, por duas vezes choro e tenho de levar a mão à boca para silenciar meus soluços.

Ao fim do voo, saio do avião como um zumbi, meus olhos vermelhos ocultos atrás dos óculos escuros.

Sempre me orgulhei do meu profissionalismo, e minha ética profissional é lendária. Isso é o que digo a mim mesma, fingindo que não me sinto tão frágil quanto um fio de cabelo.

No meu programa, costumava dizer a minhas espectadoras que você pode ter tudo na vida. Dizia para elas pedirem ajuda, reservarem um tempo para si mesmas, saberem o que querem. Serem egoístas. Serem altruístas.

A verdade é que não tenho ideia de como ter tudo. Nunca tive nada além da minha carreira. Com Kate e os Ryan, bastava, mas agora percebo o vácuo na minha vida.

Tremo ao estacionar diante do meu prédio. O controle parece bem distante.

Abro a porta e vou até a recepção.

Meu coração bate forte, minha respiração é fraca. As pessoas estão olhando para mim. Elas sabem o fracasso que sou.

Alguém me toca. Aquilo me surpreende tanto que quase caio.

— Srta. Hart?

É meu porteiro. Stanley.

— A senhora está bem?

Balanço ligeiramente a cabeça. Preciso que ele estacione meu carro, mas eu me sinto... tonta, eletrificada. Minha risada parece aguda demais e nervosa, até mesmo para meus ouvidos.

Stanley franze a testa.

— Srta. Hart? A senhora precisa de ajuda em casa?

Casa.

— A senhora está chorando, Srta. Hart — diz ternamente meu porteiro.

Olho para ele. Meu coração bate tão forte que me sinto enjoada e fora de controle.

O que há de errado comigo?

De repente parece que um caminhão passou por cima do meu peito. Sinto a dor disso.

Tento me apegar a Stanley e digo “socorro” antes de cair no chão de concreto.

— Srta. Hart?

Abro os olhos e descubro que estou numa maca de hospital.

Há um homem com um avental branco ao meu lado. Ele é alto e com a aparência um tanto desgrenhada, com cabelos pretos grandes demais para esta época certinha. Seu rosto é todo anguloso, o nariz um pouco aquilino demais. Sua pele tem um tom de café com creme. Ele é parte havaiano, talvez, asiático ou afro-americano. Difícil dizer. Vejo tatuagens em seus pulsos — desenhos tribais.

— Sou o Dr. Grant — diz ele. — Você está no pronto-socorro. Você se lembra do que aconteceu?

Eu me lembro de tudo; a amnésia seria uma dádiva. Mas não quero falar a respeito disso, principalmente não com este homem, que me olha como se eu fosse louca.

— Eu me lembro, sim — respondo.

— Isto é bom. — Ele olha meu prontuário. — Tallulah.

Ele não faz ideia de quem sou. Aquilo me deprime.

— Então, quando posso ir embora? Meu coração está bem agora. — Quero ir para casa e fingir que não tive um ataque cardíaco. O que me faz lembrar: tenho quarenta e seis anos. Como é possível que eu tenha tido um ataque cardíaco?

Ele põe óculos de leitura ridiculamente fora de moda.

— Bem, Tallulah...

— Tully, por favor. Só a louca da minha mãe me chama de Tallulah.

Ele olha por sobre a borda dos óculos.

— Sua mãe é louca?

— Foi uma piada.

Ele não está impressionado pelo meu humor. Provavelmente vive num mundo onde as pessoas cultivam seu próprio alimento e leem filosofia antes de dormir. Ele é tão alienígena para o meu mundo quanto sou para o dele.

— Entendo. Bem. A questão é que você não teve o que é comumente chamado de ataque cardíaco.

— Derrame?

— Um ataque de pânico às vezes tem os mesmos sintomas...

Sento-me.

— Ah, não. Não tive um ataque de pânico.

— Você tomou remédios antes do ataque de pânico?

Não tive um ataque de pânico. Claro que não usei drogas. Eu pareço uma viciada?

Ele parece não saber como lidar comigo.

— Tomei a liberdade de contatar um colega para uma consulta...

Antes que ele possa terminar, as cortinas se abrem e a Dra. Harriet Bloom caminha em direção à minha cama. Ela é alta e magra; severa é a palavra que me vem à mente — até você perceber a suavidade em seus olhos. Conheço Harriet há anos. Ela é uma famosa psiquiatra e foi convidada do meu show várias vezes. É bom ver um rosto familiar.

— Harriet. Graças a Deus.

— Oi, Tully. Fico feliz por ter sido chamada. — Harriet sorri para mim e depois olha o outro médico. — Então, Desmond, como está nossa paciente?

— Nada feliz por ter tido um ataque de pânico. Aparentemente ela prefere um ataque cardíaco.

— Me chame um táxi, Harriet — digo. — Quero ir embora daqui.

— Ela é uma psiquiatra de renome — diz Desmond para mim. — Ela não chama táxis.

Harriet me sorri como se pedisse desculpas.

— O Des não assiste à TV. Ele provavelmente também não reconheceria a Oprah.

Não me surpreende que meu médico se considere melhor do que a TV. Ele tem aquele olhar superior sobre si mesmo. Aposto que foi motoqueiro em algum momento, mas homens de meia-idade com tatuagens não são exatamente meu público-alvo. Imagino que ele tenha uma Harley-Davidson na sua garagem, juntamente com uma guitarra. Mas você tem de viver nas cavernas para não conhecer Oprah.

Harriet pega meu prontuário de Desmond.

— Pedi uma ressonância magnética. Os paramédicos disseram que você bateu no chão com força. — Ele me olha e novamente percebo que está me julgando, me achando louca, talvez. Uma mulher branca de meia-idade em roupas caras que dá de cara com as plantas sem um bom motivo para isso. — Fique bem, Srta. Hart. — O sorriso que ele me dá é irritantemente gentil, e depois ele sai.

— Graças a Deus — digo, com um suspiro.

— Você teve um ataque de pânico — diz Harriet quando estamos sozinhas.

— É o que diz o Dr. Granola.

— Você teve um ataque de pânico — diz Harriet, agora com mais cuidado. Ela deixa meu prontuário de lado e se aproxima da cama. Seu rosto angular, com arestas demais para ser belo, tem uma frieza real e despojada, mas seus olhos revelam uma mulher que, apesar do rosto austero e do comportamento conservador, se importa com as pessoas.

— Você está deprimida, suponho? — pergunta Harriet.

Quero mentir, sorrir, rir. Em vez disso, faço que sim, humilhada por essa fraqueza. De certo modo, eu preferia ter tido um ataque cardíaco.

— Estou cansada — digo. — Nunca durmo.

— Vou prescrever Xanax para sua ansiedade — diz Harriet. — Vamos começar com 0,5 mg três vezes ao dia. E acho que algumas sessões de terapia podem ajudar. Se estiver preparada para trabalhar nisso, talvez possa ajudar você a se sentir mais no controle da sua vida.

— A vida de Tully Hart? Obrigada, mas não. Por que pensar nisso dói tanto? Este sempre foi meu lema.

— Conheço depressão — diz ela, e em sua voz percebo uma emotiva tristeza. De repente penso que Harriet Bloom sabe um pouco sobre dor, desespero e solidão. — A depressão não é vergonha nenhuma, Tully, e não pode ser ignorada. Ela pode piorar.

— Pior do que hoje? Como é possível?

— Ah, é possível, acredite.

Estou cansada demais para questioná-la e, honestamente, não quero saber o que ela tem a dizer. A dor em minha nuca aumenta.

Harriet escreve duas receitas e arranca as páginas, entregando-as a mim. Olho para elas. Xanax para ataques de pânico e Ambien para dormir.

A minha vida toda evitei drogas. Não é preciso ser um gênio para saber por quê. Quando você cresce vendo sua mãe ficar chapada, tropeçar e vomitar, você vê o lado nada glamouroso das drogas.

Olho para Harriet.

— Minha mãe...

— Eu sei — diz Harriet. É uma das verdades que vêm à tona com a fama. Todos conhecem minha história triste. Pobre Tully, abandonada e não amada pela mãe hippie viciada. — Sua mãe tem um problema com o vício. Você tem o direito de ter cuidados. Apenas siga as prescrições.

— Seria bom dormir.

— Posso perguntar uma coisa?

— Claro.

— Há quanto tempo você finge não estar sofrendo?

A pergunta machuca.

— Por que você me pergunta isso?

— Porque, Tully, às vezes o poço se enche de lágrimas. E a água começa a transbordar.

— Minha melhor amiga morreu no mês passado.

— Ah — diz Harriet. Só isso. Depois meneia a cabeça e diz: — Venha me ver, Tully. Marque uma consulta. Posso ajudar você.

Depois que ela sai, deito-me no travesseiro e suspiro. A verdade da minha situação sobe na cama comigo e ocupa boa parte do espaço.

Uma senhora boazinha me leva para o exame de ressonância magnética e um lindo médico me chama de senhora e diz que, na minha idade, quedas como a minha geralmente causam trauma no pescoço e que a dor diminuirá. Ele me prescreve analgésicos e me diz que fisioterapia ajudará.

Quando volto ao meu corpo, estou mais do que cansada. Deixo a enfermeira me contar sobre como meu programa sobre crianças autistas salvou a vida da melhor amiga da prima dela e até consigo sorrir e agradecer-lhe quando a história finalmente termina. A enfermeira me dá Ambien. Depois eu me deito e fecho os olhos.

Pela primeira vez em meses, durmo a noite toda.