EM NOVEMBRO DE 2006, menos de um mês depois do funeral da mamãe, eles se mudaram para a Califórnia. As duas semanas antes da partida foram horríveis. Marah passou o tempo todo irritada com seu pai ou inconsolável. Ela parou de comer e de dormir. Tudo o que lhe importava era conversar com as amigas, e quando as quatro melhores amigas se reuniram foi um adeus interminável, dividido em partes. Toda frase começava com lembra quando.
A raiva de Marah mal podia ser contida. Era uma coisa dentro dela que pressionava suas costelas e fazia seu sangue ferver. Até mesmo seu luto fora consumido por ela. Marah dava pisadas fortes pela casa e chorava a cada lembrança que tinha de que devia embalar suas coisas. Ela não suportava a ideia de trancar a casa — a casa deles — e ir embora. A única notícia ligeiramente boa era de que eles não a venderiam. Algum dia, prometera o papai, eles voltariam. As coisas grandes — móveis, obras de arte, tapetes — seriam deixadas para trás. Eles alugariam uma casa mobiliada. Como se a mobília diferente os ajudasse a se esquecer de que haviam perdido a mamãe.
Quando finalmente chegou o dia da mudança, ela se agarrou a suas amigas e chorou em seus braços e disse a seu pai que o odiava.
Nada importava. Ela não importava. Esta era a dura verdade. A mamãe era um junco; ela se inclinava de acordo com a vontade de Marah. O papai era uma muralha de aço, frio e implacável. Ela sabia porque havia se arremessado contra ele e caído a seus pés.
Nos dois dias de viagem de carro até Los Angeles, Marah não disse nada. Nem uma palavra. Ela colocou seus fones de ouvido e escutou música, trocando mensagens de texto com as amigas.
Eles deixaram o verdejante e azul estado de Washington e rumaram para o sul. Na região central da Califórnia, tudo era castanho. Colinas marrons aconchegadas sob o sol de outono. Não havia uma única árvore decente em quilômetros. E Los Angeles era ainda pior: plana e interminável. Uma estrada depois da outra, todas as pistas cheias de veículos. Quando estacionaram na casa que o papai alugara em Beverly Hills, Marah estava com dor de cabeça.
— Uau — disse Lucas.
— O que você acha, Marah? — perguntou o papai, virando-se no banco para vê-la.
— É — disse. — Como se você se importasse com o que acho. — Ela abriu a porta do carro e saiu. Ignorando tudo, ela enviou uma mensagem de texto para Ashley, Lar, doce lar, enquanto ia para a porta da frente da casa.
Era uma casa que obviamente fora remodelada recentemente — um trambolho dos anos 1970 que fora reformado para parecer moderno e funcional. O jardim da frente estava bem aparado. As flores cresciam onde tinham de crescer, flores gigantescas por causa do sol e dos irrigadores.
Não era um lar. Não para os Ryan. Dentro, tudo era liso e frio, com janelas do piso ao teto e uma cozinha de aço inoxidável e pisos de cerâmica. A mobília era desafiadoramente moderna, com arestas e detalhes em cromo.
Ela olhou para seu pai.
— A mamãe teria odiado isso. — Ela percebeu como suas palavras o machucaram, pensou “bom” e subiu as escadas para escolher seu quarto.
Em seu primeiro dia na Beverly Hills High School, Marah soube que jamais se adequaria ali. As pessoas eram como seres de outro planeta. O estacionamento dos alunos estava cheios de Mercedes-Benz, Porsches e BMWs. A pista da carona tinha até mesmo algumas limusines entre os carros de luxo e os Range Rovers. Nem todos tinham motorista, claro, mas a questão é que alguns tinham. Marah não podia acreditar. As meninas eram lindas, com cabelos bem pintados e bolsas que custavam mais do que alguns carros. Elas se reuniam em panelinhas de bem-vestidas. Ninguém disse ao menos “oi” para Marah.
No seu primeiro dia, ela passou pelas aulas no piloto automático. Nenhum dos professores a chamou ou lhe fez perguntas. Ela se sentou sozinha no almoço, mal ouvindo a baderna ao seu redor, sem se importar com nada.
No quinto período, ela se sentou nos fundos e abaixou a cabeça enquanto os demais alunos faziam uma prova. A solidão que sentiu foi épica, avassaladora. Ela continuava pensando no quanto precisava de suas amigas — e de sua mãe — para conversar. Doía tanto que ela sentiu que estava começando a tremer.
— Marah?
Ela olhou em meio aos cabelos que lhe caíam sobre o rosto.
A professora — Srta. Appleby — parara em sua mesa.
— Me procure se você precisar de ajuda para pegar o ritmo. Estou sempre disponível. — Ela pôs um plano de estudos sobre sua carteira. — Todos sabemos que é difícil, com sua mãe...
— Morta — disse Marah diretamente. Se os adultos iam conversar com ela, também teriam de dizer a palavra. Ela odiava todas aquelas pausas e suspiros.
A Srta. Appleby não conseguiu se afastar com bastante rapidez.
Marah sorriu melancolicamente. Não era uma boa defesa dizer a palavra, mas era eficiente.
O sinal soou.
Os demais alunos se levantaram e começaram a conversar. Marah não fez contato visual com nenhum deles e ninguém fez contato visual com ela. As roupas de Marah estavam todas erradas; ela percebera assim que descera do ônibus. Naquela escola uma calça jeans da Macy´s e uma blusinha não bastariam.
Marah guardou as coisas em sua mochila, certificando-se de que seus livros estivessem em ordem. Era uma nova obsessão, algo que ela não conseguia superar. Precisava que suas coisas estivessem em ordem.
Sozinha, ela caminhou pelo corredor. Alguns alunos ainda estavam ali, fazendo algazarra e rindo. Sobre a cabeça deles, havia uma grande faixa amarela que pendia precariamente. Lia-se: VAMOS LÁ, NORMANS. Alguém rabiscara NORMANS, escrevera TROJANS e desenhara um pênis sob as palavras.
Era o tipo de coisa que Marah teria contado à sua mãe. Elas ririam juntas e, depois, a mamãe daria início a uma de suas conversas sérias sobre sexo, adolescentes e o que era ou não apropriado.
— Você percebe que está no meio do corredor, olhando para um pênis e chorando, certo?
Marah se virou e viu uma menina ao seu lado. Ela usava maquiagem o bastante para um ensaio fotográfico e tinha seios que pareciam bolas de futebol americano.
— Suma daqui — disse Marah, afastando-se da menina. Ela sabia que deveria ter feito um comentário sabidinho em voz alta o suficiente para que todos ouvissem. Era assim que teria alguma credibilidade, mas não se importava. Marah não queria novas amigas.
Ela ignorou o último período e saiu da escola mais cedo. Talvez isso chamasse a atenção do seu pai. Marah caminhou até sua casa, mas não ajudou em nada estar naquela casa fria que fazia eco quando ela caminhava. Os meninos estavam com Irena — a senhora que seu pai contratara para ser babá em meio expediente — e o papai ainda estava no trabalho. Ela caminhou por aquela casa grande e impessoal, mas só quando já estava no seu quarto é que sua resolução começou a ruir.
Aquele não era seu quarto.
Seu quarto tinha um papel de parede listrado claro, piso de madeira e abajures em vez daquela luminária em forma de ponto de interrogação. Ela foi até a penteadeira imaginando o móvel que deveria estar ali — sua penteadeira, aquela que a mamãe e o papai pintaram a mão anos atrás. (Mais cores, mamãe; mais estrelas). Ela destoaria deste quarto austero, tão estranho quanto Marah na Beverly Hills High.
Ela pegou o pequeno porta-joias do Shrek que embalara com cuidado e trouxera para cá. Ela o ganhara de Tully no seu 12º aniversário.
Parecia menor do que ela se lembrava, e mais verde. Ela virou a chave para abri-lo e ergueu a tampa. Uma Fiona de plástico surgiu, girando no ritmo de música: Hey, now, you’re an all-star.
Dentro estavam várias de suas coisas preferidas: uma ágata da praia de Kalaloch, um grampo de cabelo que ela achara em seu próprio quintal, um velho dinossauro de plástico, um bonequinho do Frodo, brincos de granada que Tully lhe comprara no seu 13º aniversário, e, no fundo, o canivete Space Needle rosa que ela comprara no Seattle Center.
Ela abriu o canivete e ficou olhando para a lâmina.
Johnny, não acho que ela tenha idade o bastante.
Ela tem idade, Kate. Minha menina é inteligente o bastante para não se cortar. Certo, Marah?
Tome cuidado, bebê, não se machuque.
Ela apertou a lâmina prateada contra a palma de sua mão esquerda.
Seu corpo se arrepiou. Uma sensação. Ela moveu a lâmina um pouquinho e acidentalmente cortou a mão.
O sangue jorrou. A cor dele a deixou perplexa. Era inesperadamente brilhante e bela. Ela não se lembrava de ver uma cor tão perfeita, como os lábios da Branca de Neve.
Marah não conseguia desviar o olhar. Havia dor, claro; era ríspida, doce e amarga ao mesmo tempo. Melhor do que a sensação vaga de perder o que importava, de ser deixada para trás.
Isso machucava, e ela aceitou a honestidade daquilo, a clareza. Marah ficou olhando o sangue escorrer pela lateral da mão e pingar em seus sapatos pretos, que quase desapareceram.
Pela primeira vez em meses, ela se sentiu melhor.
Nas semanas que seguiram, Marah perdeu peso e marcou sua dor com pequenos cortes na parte interna do seu braço e nas coxas. Sempre que se sentia emocionada ou perdida ou com raiva de Deus, ela se cortava. Sabia que estava fazendo algo ruim e doentio, mas não conseguia parar. Quando pegava seu canivete rosa com a lâmina agora avermelhada, sentia a emoção do poder.
Por mais impossível que soe, quando estava mais deprimida, a única coisa que a ajudava era se cortar. Ela não sabia por quê; não se importava. Sangrar era melhor do que chorar ou gritar. Cortar-se permitia que ela seguisse em frente.
Na manhã de Natal, Marah acordou mais cedo. Seu primeiro pensamento foi: É Natal, mamãe, mas depois ela se lembrou. A mamãe havia ido embora. Ela fechou os olhos novamente, querendo dormir, querendo um monte de coisas.
Lá embaixo, ela ouvia os sons de sua família se reunindo. Passos na escada; portas batendo. Seus irmãos gritavam por ela. Eles provavelmente já estavam correndo feito loucos, segurando a mão da vovó, tirando presentes debaixo da árvore, chacoalhando-os. E a mamãe não estava ali para acalmá-los. Como eles passariam o dia?
Ajuda. Você sabe que ajuda e só dói por um segundo. Ninguém vai ficar sabendo.
Ela saiu da cama e foi até a penteadeira, para a caixinha do Shrek. Suas mãos tremiam quando ela a abriu.
Lá estava, seu canivete. Ela o abriu.
A ponta era tão afiada, tão linda.
Marah enfiou a ponta da lâmina no seu dedo e sentiu a carne se abrindo. O sangue surgiu, uma perfeita gota vermelha, e a visão dele a emocionou novamente. A pressão que aumentava em seu peito desaparecera, como vapor liberado ao abrir de uma válvula. Algumas gotas escorreram pelas costas da mão e caíram no piso de madeira.
Ela ficou olhando o fluxo vermelho maravilhada.
Seu celular tocou. Ela se afastou, olhou em volta, encontrou o telefone na cama. Pegando-o, atendeu:
— Alô?
— Ei, Marah. Sou eu, a Tully. Quis ligar antes que seu dia de abrir os presentes começasse. Sei como demora, com todos aqueles presentes abertos um de cada vez.
Marah pegou uma meia de sua gaveta e a enrolou no dedo.
— O que houve? — perguntou Tully.
Marah apertou seu dedo cortado. O corte latejou. Aquilo deveria consolá-la, aquela dor, mas, com Tully ouvindo, tudo o que ela sentia era vergonha.
— Nada. Você sabe... Natal sem ela.
— É.
Marah se sentou na beirada da cama. Ela se perguntava o que aconteceria se contasse a alguém sobre seus cortes. Ela queria parar com aquilo; queria mesmo.
— Você já fez amigos? — perguntou Tully.
Marah odiava a pergunta.
— Vários.
— São meninas más, não são? — disse Tully. — O povinho de Beverly Hills.
Marah não sabia como responder. Ela não fizera nenhuma amiga na escola, mas tampouco tentara.
— Você não precisa de muitas amigas, Marah. Precisa só de uma.
— TullyeKate — disse ela. A mítica história de amizade.
— Estou aqui para você. Você sabe disso, né?
— Então me ajude. Me diga como ser feliz.
Tully suspirou.
— Sua mãe se sairia melhor em momentos como este. Ela acreditava em finais felizes e na vida melhorando. Eu? Eu praticamente acredito que a vida é uma droga e você morre.
— Acredite, a vida é mesmo uma droga. E depois você morre.
— Fale comigo, Marah.
— Não gosto daqui — disse ela. — Sinto a falta dela todos os dias.
— Eu também.
Depois disso, não havia mais o que dizer. A morte é a morte. Ambas aprenderam esta lição.
— Eu amo você, Marah.
— O que você está fazendo no Natal?
Houve uma pausa. Nela, Marah pensou ter ouvido sua madrinha suspirar.
— Ah, você sabe.
— Tudo mudou — disse Marah.
— É — disse Tully. — Tudo mudou e eu odeio isso. Especialmente em dias como hoje.
Era o que Marah mais gostava em sua madrinha. Tully era a única que não mentia para ela dizendo que as coisas iam melhorar.
Os primeiros meses na Beverly Hills High foram um pesadelo. Marah teve dificuldades em todas as matérias; suas notas caíram. O currículo era difícil e competitivo, mas este não era o problema. Ela não conseguia se concentrar na aula e não se importava. No começo de 2007, ela e seu pai tiveram uma reunião com o diretor e um orientador. Houve olhares tristes, vários barulhos e as palavras luto e terapia citadas frequentemente. No fim da reunião, Marah entendeu o que se esperava dela neste novo mundo sem mãe onde ela vivia. Ela quase disse que não se importava.
Até que olhou nos olhos de seu pai e viu quão profundamente o havia decepcionado. Como posso ajudar você?, perguntou-lhe ele. Antes Marah achava que era isso o que queria dele — a oferta —, mas, quando seu pai a fez, ela se sentiu ainda pior. Marah percebeu então algo que não sabia: ela não queria ajuda. Ela queria desaparecer. E sabia como fazer isso.
Sem agitação.
Depois disso, Marah fingiu estar bem. Ao menos bem o suficiente para passar despercebida por seu pai, o que era depressivamente fácil. Desde que suas notas aumentassem e ela sorrisse no jantar, ele a ignorava. Estava ocupado demais trabalhando. Marah aprendera sua lição: precisava agir normalmente. A babá dos meninos, Irena (uma mulher de olhar triste que nunca perdia a oportunidade de mencionar que seus filhos cresceram e se afastaram, deixando-a com tempo de sobra), tampouco passava algum tempo com Marah. Ela só precisava fingir que estava numa equipe de esporte e podia fazer o que queria, sem ninguém perguntar sobre seus jogos ou se ela estava bem.
No último ano, tudo se resumia a uma ciência: ela acordava no horário todas as manhãs, os olhos marcados por pesadelos, e se arrastava até o banheiro. Ela mal se importava em tomar banho ou lavar os cabelos, nem mesmo durante os dias de aula. Era exaustivo demais. E não importava se ela estava limpa ou suja.
Ela desistira de qualquer esperança de fazer amigos na BHHS — libertando-se do grupo superficial que achava que o carro certo provava seu valor.
Por fim, foi em junho de 2008. Sua formatura na Beverly Hills High. Todos estavam lá embaixo, esperando por Marah. A vovó, o vovô e Tully vieram para o grande evento. Eles estavam entusiasmados, jogando pingue--pongue com palavras como empolgação e realização e orgulho.
Marah não sentia nada disso. Ao pegar sua beca de formatura, ela sentiu um medo frio. O tecido barato de poliéster farfalhava em suas mãos. Ela vestiu a beca e a fechou e depois foi ao espelho.
Estava pálida e magra e tinha sombras cor de lavanda sob os olhos. Como é que nenhuma dessas pessoas que supostamente a amavam notou como Marah estava mal?
Desde que fizesse o que era esperado dela — sua lição de casa, se inscrevesse nas universidades, fingisse ter amigos —, ninguém nem mesmo a olhava. Era isso o que Marah queria e escolhera, mas isso a magoava. A mamãe teria visto como ela estava infeliz. Era uma daquelas verdades que Marah havia aprendido: ninguém conhece você tão bem quanto sua mãe. Ela daria tudo por um daqueles olhares ah-não-você-não-vai-mocinha que costumava odiar.
Seu pai gritou lá de baixo:
— Hora de ir, Marah.
Ela foi até a penteadeira e olhou demoradamente para a caixinha de música do Shrek. A ansiedade fez seu coração bater mais rápido.
Ela abriu a tampa. Dentro, encontrou o canivete e vários pedacinhos de gaze, manchados de marrom com sangue velho; lembranças que ela não conseguia jogar fora. Lentamente, abriu o canivete, puxou a manga e fez um corte rápido e belo na parte de dentro do seu braço, onde ele não seria visto.
Ela cortou fundo demais. Marah percebeu imediatamente.
O sangue jorrou por seu braço e escorreu até o chão. Ela precisava de ajuda. E não apenas para parar de sangrar. De alguma forma, Marah estava descontrolada.
Ela desceu. Na sala de estar, o sangue manchou o piso de pedra a seus pés.
— Preciso de ajuda — disse Marah, baixinho.
Tully foi a primeira a reagir.
— Jesus, Marah — disse sua madrinha, jogando a câmera no sofá. Ela deu um passo à frente e segurou Marah pelo outro pulso e a arrastou para o banheiro mais próximo, obrigando-a a se sentar sobre o vaso.
O papai entrou correndo no banheiro atrás delas e Tully remexia nas gavetas, tirando barras de sabonetes e escovas e tubos de creme para as mãos.
— O que aconteceu? — gritou seu pai.
— Curativos — disse Tully, ajoelhando-se ao lado de Marah. — Agora!
O pai saiu. Ele voltou rapidamente com gaze e esparadrapo. Recuou, parecendo confuso e com raiva, enquanto Tully aplicava pressão para parar com o sangramento e depois fazia o curativo.
— Pronto — disse Tully. — Mas acho que ela precisará de pontos. — Ela recuou, permitindo que o pai se aproximasse.
— Jesus... — disse ele, balançando a cabeça.
Ele se ajoelhou para olhar Marah nos olhos.
Ele tentou sorrir e ela pensou: Este não é meu pai, não este homem que não consegue erguer os ombros e que raramente ri. Ele não era o mesmo, assim como Marah não era a filha de que ele costumava se lembrar. Ele estava até mesmo ficando grisalho — quando isso começara?
— Marah? — disse ele. — O que aconteceu?
Ela estava envergonhada demais para responder. Ela já o havia decepcionado tanto.
— Não tenha medo — disse Tully. — Você pediu ajuda. Você quer dizer “terapia”, não é?
Marah levantou a cabeça e encarou o olhar ameno da madrinha.
— Sim — disse ela, baixinho.
— Não entendo — disse o papai, olhando de Tully para Marah.
— Ela fez isso de propósito — disse Tully.
Marah podia ver como seu pai estava confuso. Não fazia sentido nenhum para ele o fato de que se cortar ajudava.
— Como não vi que você estava se ferindo?
— Conheço alguém que pode ajudar — disse Tully.
— Aqui em LA? — perguntou Johnny, virando-se para olhar Tully.
— Em Seattle. Lembra-se da Dra. Harriet Bloom? Do meu programa? Aposto que consigo que ela veja a Marah na segunda-feira.
— Seattle — disse Marah. Era uma boia salva-vidas que lhe jogavam. Como ela havia sonhado em voltar e ver suas amigas. Mas, agora que a oportunidade estava ali, ela descobriu que não se importava. Era mais uma prova do quanto Marah estava doente. Atormentada. Deprimida.
O papai balançou a cabeça.
— Não sei...
— Ela fez isso aqui, Johnny, em Los Angeles — disse Tully. — Hoje e todos os outros dias. Posso não ser Freud, mas sei que isso é um pedido de ajuda. Me deixe ajudá-la.
— Você? — perguntou ele, ríspido.
— Você ainda está com raiva de mim? Por quê? Não, não responda. Não me importo. Não vou recuar desta vez, Johnny Ryan. Não vou lhe dar espaço. Se eu não brigasse com você agora mesmo, a Katie me daria um chute no traseiro. Prometi a ela que cuidaria da Marah. Você obviamente não fez um belo trabalho.
— Tully. — A advertência em sua voz era inequívoca.
— Me deixe levá-la para casa e fazê-la se consultar com a Harriet na segunda-feira ou no mais tardar na terça-feira. Depois decidimos o que fazer.
Papai olhou para Marah.
— Você quer se consultar com a Dra. Bloom em Seattle?
A verdade era que Marah não dava a mínima para a Dra. Bloom. Ela só queria ficar sozinha. E sair de Los Angeles.
— Sim — respondeu, cansada.
Papai se virou para Tully.
— Vou assim que puder.
Tully fez que sim.
Papai não parecia convencido. Ele se levantou e encarou Tully.
— Posso confiar que você vai cuidar dela por alguns dias?
— Vou ser como uma galinha chocando seus preciosos ovos.
— Vou querer um relatório completo.
Tully fez que sim.
— Vai recebê-lo.