NO FINAL DAS CONTAS, Marah não foi à sua festa de formatura, o que era um alívio. Em vez disso, ela entrou num avião com Tully e voltou para Seattle. Cumprindo a palavra, Tully marcou uma consulta para Marah às 14h com a Dra. Harriet Bloom na segunda-feira seguinte.
Hoje.
Marah não queria sair da cama. Ela não dormira bem na noite passada e estava exausta. Mesmo assim, fez o que se esperava dela. Tomou um banho e lavou o cabelo e até se deu ao trabalho de secá-lo. Apesar do esforço necessário, escolheu as roupas da mala em vez das que estavam numa pilha que ela deixara no chão na noite passada.
Ao vestir sua calça jeans 7 for All Mankind — que já fora uma de suas posses favoritas, na outra vida —, ficou horrorizada ao perceber quanto peso perdera. A calça pendia, expondo seus ossos do quadril. Ela escolheu um casaco Abercrombie que dava a seu corpo um pouco de volume — e para esconder as cicatrizes nos seus braços.
Fechando o casaco até em cima, ela começou a deixar o quarto. Queria apenas sair, fechar a porta atrás de si e recomeçar.
Mas, ao passar pela mala aberta, seu olhar se voltou para o bolso interno, onde o canivete estava escondido. Por um segundo, o mundo pareceu se ofuscar e desacelerar. Ela ouviu seu coração batendo forte e sentiu o sangue correndo em suas veias. Marah o imaginou vermelho e lindo. A ideia de se cortar por um segundo, só uma vez, para que esta terrível pressão em seu peito se amainasse, era tão tentadora que ela deu um passo à frente.
— Marah!
Ela retirou a mão rapidamente e olhou em volta.
Estava sozinha.
— Marah!
Era Tully. Ela gritou duas vezes. Isso significava que estava no corredor.
Marah fechou as mãos e sentiu o espetar das unhas na palma das mãos.
— Estou indo — disse ela, embora sua voz estivesse seca e baixinha, pouco audível até mesmo para ela.
Marah saiu do quarto e fechou a porta com um clique.
Logo Tully estava a seu lado, segurando-a pelo braço, guiando Marah para fora do apartamento como se ela fosse cega.
Enquanto caminhavam, Tully falava.
Marah tentou ouvir, mas seu coração estava batendo tão rápido que a deixava surda para o restante. Suas mãos suavam. Ela não queria se sentar com uma estranha e falar sobre se cortar.
— Aqui estamos nós — disse, finalmente, Tully, e Marah saiu da neblina e se percebeu diante de um prédio alto de vidro. Quando passaram pelo parque onde os sem-teto se reuniam sob o totem? Ela não se lembrava. Isso a assustou.
Ela seguiu Tully no elevador e até o consultório, onde uma jovem séria cheia de sardas mostrou a elas os lugares na sala de espera.
Marah se sentou desconfortável na poltrona azul e fofa demais perto do aquário.
— Acho que os peixes devem acalmar — disse Tully. Ela se sentou ao lado de Marah e a segurou pela mão. — Marah?
— O quê?
— Olhe para mim.
Ela não queria, mas de uma coisa sabia: era uma perda de tempo ignorar Tully. Aos poucos ela se virou.
— Sim?
— Não há nada de errado com o que você está sentindo — disse ela calmamente. — Às vezes a falta dela me dói mais do que suporto também.
Ninguém mais dizia esse tipo de coisa. Ah, eles falaram sobre a mamãe o tempo todo nos últimos oito meses, mas aparentemente havia um prazo de validade para o luto. Era como se uma porta se fechasse; depois que ela estivesse fechada e você se visse no escuro, deveria se esquecer da falta que sentia da luz.
— O que você faz quando, sabe, dói lembrar?
— Se eu lhe dissesse, sua mãe desceria do céu e me chutaria no traseiro. Devo ser a adulta responsável aqui.
— Certo — disse Marah. — Não me diga como você lida com isso. Ninguém diz. — Ela desviou o olhar para ver se a recepcionista estava ouvindo a conversa, mas a moça não estava prestando atenção a elas.
Tully não respondeu nada por um minuto, que pareceu tempo demais. Por fim, ela meneou a cabeça e disse:
— Comecei a ter ataques de pânico depois da morte dela, por isso tomo Xanax. E não consigo mais dormir. E bebo demais. O que você faz?
— Eu me corto — disse Marah, baixinho. Foi surpreendentemente bom admitir.
— Somos uma dupla e tanto — disse Tully com um sorriso.
Atrás dela, a porta se abriu e uma mulher magra emergiu do consultório. Ela era bela, daquele tipo raivoso e ríspido que Marah reconhecia como dor. A mulher usava um cachecol em volta do pescoço e o segurava firmemente com uma das mãos usando luva, como se estivesse saindo para uma tempestade de neve, e não para um dia de verão em Seattle.
— Vejo você na semana que vem, Jude — disse a recepcionista.
A mulher fez que sim e botou os óculos escuros. Ela não olhou para Marah nem para Tully ao sair do consultório.
— Você deve ser Marah Ryan.
Marah não tinha percebido a outra mulher que havia saído do consultório para a sala de espera.
— Sou a Dra. Harriet Bloom — disse a mulher, oferecendo a mão.
Marah levantou-se relutantemente. Agora ela queria mesmo abandonar tudo.
— Oi.
Tully se levantou.
— Oi, Harriet. Obrigada por concordar em nos ajudar tão rapidamente. Sei que você teve que mudar sua agenda. Você vai precisar de algumas informações anteriores, claro. Vou entrar para...
— Não — disse a terapeuta.
Tully pareceu confusa.
— Mas...
— Vou cuidar bem dela, Tully, mas isto é entre mim e a Marah. Ela está em boas mãos. Prometo.
Marah achava que não. Na verdade, ela achava que estava em mãos estranhas, mãos ossudas com manchas de idade. O contrário de boas mãos. Mesmo assim, fez o papel de menina boazinha e seguiu a médica em seu consultório lustroso, de gente grande.
Uma parede de vidro dava para o Pike Place Market e o estreito azul. Uma mesa de madeira dividia o ambiente ao meio; atrás dela havia uma enorme cadeira de couro preta. Duas cadeiras aparentemente confortáveis davam para a mesa e havia um sofá preto contra a parede. Sobre o sofá havia um quadro ameno de uma praia no verão. Havaí, talvez. Ou Flórida. De qualquer forma, havia palmeiras.
— Suponho que a senhora queira que eu me deite — disse Marah, toda encolhida. Estava frio ali também. Talvez por isso é que a outra moça estivesse toda agasalhada. O estranho é que havia uma lareira a gás na parede, e chamas vivas alaranjadas e azuis a aqueciam. Ela podia e ao mesmo tempo não podia sentir o calor.
A Dra. Bloom sentou-se atrás da sua mesa com uma caneta sem tampa.
— Pode se sentar onde quiser.
Marah se sentou numa poltrona e ficou olhando para uma planta no canto. Um... dois... três... Ela realmente não queria estar aqui. Quatro... cinco...
Ouviu o relógio batendo e até mesmo a respiração da terapeuta, e o barulho de sua meia-calça quando ela cruzava ou descruzava as pernas.
— Você acha que há algo sobre o que gostaria de conversar? — perguntou ela depois de dez minutos.
Marah deu de ombros.
— Não. — Cinquenta e dois.... cinquenta e três... cinquenta e quatro. O consultório estava ficando quente agora. Aquela lareira era para valer. Marah sentiu o suor se acumulando em sua testa. Uma gota escorreu pelo seu rosto. Ela batia nervosamente com o pé no chão.
Sessenta e seis... Sessenta e sete.
— Como você conhece a Tully?
— Ela é uma amiga da...
— Sua mãe?
Ela disse aquilo de uma forma errada, clínica, do jeito que se pergunta sobre um carro ou aspirador de pó, mas mesmo assim Marah sentiu seu estômago se contrair. Ela não queria falar de sua mãe com uma estranha. Deu de ombros e continuou contando.
— Ela se foi, não é?
Marah parou.
— Na verdade ela está no armário do meu pai.
— Como?
Marah, um. Ponto para o time da casa.
— Alugamos um caixão para o funeral, o que foi estranho, se você quer saber minha opinião. De qualquer modo, nós a cremamos e a colocamos nessa caixa de jacarandá. Quando a Tully quis espalhar as cinzas, o papai não estava preparado, e quando o papai estava preparado, a Tully é que não estava. Assim, a mamãe está no armário, atrás das blusas do papai.
— E você, quando é que você estava preparada?
Marah fechou os olhos por um instante.
— Como assim?
— Quando você queria espalhar as cinzas da sua mãe?
— Ninguém me perguntou.
— Por quê, na sua opinião?
Marah deu de ombros e desviou o olhar novamente. Ela não gostava do rumo da conversa.
— Por que você acha que está aqui, Marah? — perguntou a terapeuta.
— Você sabe por quê.
— Sei o que você fez consigo mesma. Os cortes.
Marah olhou para a planta de novo. As folhas pareciam mesmo de cera. Setenta e cinco... setenta e seis... setenta e sete.
— Sei que isso a faz se sentir melhor. — Marah olhou para a Dra. Bloom, que se sentava imóvel, seu nariz reto pendendo sobre lábios finos. — Mas, depois, quando sua lâmina ou faca está cheia de sangue seco, aposto como você se sente pior. Envergonhada, talvez, ou com medo.
Setenta e oito... setenta e nove.
— Posso ajudar você com esses sentimentos, se você conversar comigo sobre como se sente. Não é incomum o modo como você está se sentindo.
Marah revirou os olhos. Era uma daquelas mentiras que os adultos contavam às crianças para tornar o mundo mais bonito.
— Bem — disse a Dra. Bloom, fechando seu caderno. Marah se perguntava o que ela escrevera. Provavelmente Louca, adora plantas. — Acabou nosso tempo por hoje.
Marah se levantou e se virou para a porta. Ao segurar a maçaneta, a Dra. Bloom falou:
— Tenho um grupo de adolescentes que pode ajudar você, Marah. Gostaria de se juntar a nós? A reunião é na quarta-feira à noite.
— Pode ser. — Marah abriu a porta do consultório.
Tully se levantou.
— Como foi?
Marah não sabia o que dizer. Ela desviou o olhar de Tully e viu que havia mais alguém na sala de espera: um jovem usando calça jeans justa que desaparecia dentro de botas pretas com os cadarços pendentes. Ele era magro, de uma maneira quase feminina, e usava uma camiseta preta com os dizeres ME MORDA sob uma jaqueta cinza. No seu pescoço, caveiras pendiam como chaves num chaveiro, e seus cabelos na altura dos ombros eram artificialmente pretos, tingidos aqui e ali com mechas magenta e verde. Quando levantou os olhos, Marah viu que os olhos dele eram estranhos, quase dourados, e um delineador masculino pesado acentuava sua cor. Sua pele era clara. Talvez ele estivesse doente.
A Dra. Bloom surgiu ao lado de Marah.
— Paxton, talvez você possa dizer a Marah que nosso grupo não é uma reunião tão ruim.
O jovem — Paxton — levantou-se e se aproximou de Marah com uma graça que parecia ensaiada.
— Tully? — disse a Dra. Bloom. — Posso falar com você por um instante?
Marah tinha consciência das duas mulheres afastando-se dela, sussurrando uma para a outra.
Ela sabia que deveria se importar com o que estavam dizendo, mas não conseguia pensar em nada além do menino aproximando-se dela.
— Você tem medo de mim — disse ele ao se aproximar. Marah podia sentir o cheiro de chiclete de menta no hálito dele. — A maioria das pessoas tem.
— Você acha que tenho medo de roupinhas pretas?
Ele ergueu uma mão pálida e ajeitou seus cabelos atrás de uma orelha.
— Menininhas boazinhas como você deveriam ficar nos subúrbios, onde estão seguras. O grupo não é para você.
— Você não sabe nada a meu respeito. Mas talvez devesse parar de brincar com a maquiagem da sua mãe.
A risada dele a surpreendeu.
— Fogo. Gosto disso.
— Ei, Marah — disse Tully. — Hora de ir. — Ela atravessou a sala de espera e segurou Marah pelo braço e a levou para fora do consultório.
No caminho de casa, Tully continuava conversando. Ela continuava perguntando a Marah se ela queria ir a Bainbridge Island para ver suas amigas e Marah queria dizer sim, mas ela não pertencia mais àquele lugar. No ano e meio que estivera fora, as velhas amizades se degradaram como as asas de uma mariposa; agora eram pedacinhos brancos que não podiam mais voar. Ela não tinha nada em comum com aquelas meninas.
Tully levou Marah para o elegante apartamento e acendeu a lareira na sala de estar. As chamas subiram juntamente com o barulho falso de madeira.
— Então. Como foi?
Marah deu de ombros.
Tully se sentou no sofá.
— Não me despreze, Marah. Quero ajudar.
Deus, ela estava cansada de decepcionar as pessoas. Ela desejava que houvesse um manual para filhos de pais mortos, como em Os Fantasmas se Divertem, para que ela soubesse o que fazer e dizer para que as pessoas a deixassem em paz.
— Eu sei.
Ela se sentou perto da lareira de pedra, olhando para Tully. O fogo aquecia suas costas, fazia-a tremer. Ela nem mesmo percebera que estava com frio.
— Eu deveria ter obrigado seu pai a colocá-la na terapia quando a Kate morreu. Mas nos separamos, seu pai e eu. Mas eu perguntava sobre você e conversava com você todas as semanas. Você nunca disse nada. Nunca ouvi você chorar. Sua avó dizia que você estava indo bem.
— Por que você deveria saber?
— Sei um pouco sobre abandono e luto. Sei sobre se fechar. Quando meu avô morreu, mal me permiti sofrer. Quando minha mãe me deixava — todas as vezes —, dizia a mim mesma que não ligava e seguia em frente.
— E com a morte de mamãe?
— Tem sido pior. Não me recuperei bem.
— É, nem eu.
— A Dra. Bloom acha que você deveria participar de um grupo de ajuda para adolescentes na quarta-feira à noite.
— É. Como se isso fosse ajudar.
Ela percebeu como sua resposta magoara Tully. Marah suspirou. Sua dor era tanta. Ela não podia suportar a dor de Tully também.
— Certo — disse Marah. — Eu vou.
Tully se levantou e abraçou Marah.
Ela se soltou o mais rápido que pôde, sorrindo tremulamente. Se sua madrinha soubesse como ela se sentia só e desesperada, aquilo partiria seu coração e só Deus sabia como nenhuma das duas conseguia suportar mais corações partidos. Ela só precisava fazer o que fizera durante meses — passar por isso. Podia suportar algumas sessões de terapia se isso tirasse as pessoas do seu caminho. Em setembro, ela seria caloura na UW e poderia morar onde quisesse e não estaria constantemente magoando ou decepcionando as pessoas.
— Obrigada — disse ela. — Agora vou me deitar. Estou cansada.
— Vou ligar para o seu pai e contar como foi. Ele vai estar aqui na quinta-feira para conhecer a Dra. Bloom depois da sua próxima consulta.
Maravilha.
Marah fez que sim e rumou para o quarto de hóspedes, que parecia a suíte de um elegante hotel.
Ela não podia acreditar que concordara com a terapia de grupo. O que diria a estranhos? Será que eles a fariam falar sobre sua mãe?
A ansiedade se transformou numa presença física, como insetos rastejando sobre sua pele.
Pele.
Ela não pretendia ir para o armário, não queria, mas o barulho em seu sangue a estava deixando louca. Era como ouvir uma ligação estrangeira com dezenas de conversas sobrepostas; por mais que escutasse, você não podia ouvir nada que fizesse sentido.
Suas mãos tremiam quando ela abriu a mala e buscou algo no bolso interno.
Ao abri-lo, ela encontrou o canivete Space Needle e várias gaze manchadas de sangue.
Ela levantou a manga até que seu bíceps estivesse exposto, tão magro, pálido na escuridão, macio e branco como o interior de uma pera. Dezenas de cicatrizes se cruzavam em sua pele, como uma teia de aranha.
Levou a ponta da lâmina à pele e pressionou, depois cortou. O sangue verteu. Era belo, exuberante, vermelho. Ela observou seu sangue fluir e cair, como lágrimas, na palma da mão. Todo o sentimento ruim preenchia aquelas gotas de sangue e deixava seu corpo.
— Estou bem — sussurrou ela.
Sou a única que pode me magoar. Só eu.
Incapaz de dormir à noite, enquanto Marah se deitava numa cama que não era a dela, numa cidade que antes fora seu lar, ouvindo o nada que acompanhava o fato de ter sido colocada numa caixinha de música sobre a cidade, ela se lembrou da conversa que tivera com seu pai.
Tudo bem, disse ela, quando ele perguntou como fora a conversa com a Dra. Bloom. Mas, ao fazer isso, pensava: Como é que ninguém me pergunta como posso estar tão bem o tempo todo?
Você pode conversar comigo, dissera ele.
Mesmo?, retrucara ela. Agora você quer conversar. Mas ao ouvi-lo suspirar ela desejara não ter dito aquilo.
Marah, como chegamos a este ponto?
Ela odiara a decepção em sua voz; aquilo a fazia se sentir ao mesmo tempo culpada e envergonhada.
Vou a uma sessão de terapia de grupo para adolescentes na quarta-feira à noite. Não parece divertido?
Vou estar aí na quinta-feira. Prometo.
Claro.
Tenho orgulho de você, Marah. É difícil encarar a dor.
Ela se segurou, sentindo as lágrimas. Memórias tomaram conta dela — momentos em que caíra ou se machucara e correra para buscar um abraço de seu pai. Seus braços eram tão fortes e a protegiam tanto.
Quando fora a última vez que ele a abraçara? Ela não se lembrava. No último ano, Marah se afastara das pessoas que a amavam e se tornara frágil na falta delas, mas não sabia o que fazer para mudar. Estava sempre com medo de chorar e mostrar sua dor.
Na manhã seguinte, ela acordou sentindo preguiça e dor de cabeça. Precisando de café, vestiu um roupão que pertencia a Tully e saiu do quarto.
Ela encontrou Tully dormindo no sofá, um braço apoiado na mesinha de centro. Uma taça de vinho vazia estava ao lado da mesa, juntamente com uma pilha de papéis. Havia um frasco de remédio perto disso.
— Tully?
Tully se sentou lentamente, parecendo um pouco pálida.
— Ah, Marah. — Ela esfregou os olhos e balançou a cabeça como que para clarear as ideias. — Que horas são? — Ela falava lentamente.
— Quase dez.
— Dez?! Merda. Vista-se!
Marah franziu a testa.
— Vamos a algum lugar?
— Tenho uma surpresa para você.
— Não quero surpresas.
— Claro que quer. Vá. Tome um banho. — Tully a espantou pelo corredor. — Eu encontro você em vinte minutos.
Marah tomou o banho e vestiu uma calça larga e uma camiseta grande demais para ela. Sem se dar ao trabalho de secar o cabelo, ela o prendeu num rabo de cavalo e saiu para a cozinha.
Tully já estava lá, usando um terninho azul que era pelo menos um número menor do que deveria ser. Ela estava tomando um comprimido com café quando Marah surgiu ao lado dela.
Tully gritou quando Marah a tocou, como se surpresa. Depois riu.
— Desculpe. Não ouvi você chegando.
— Você está estranha — disse Marah.
— Estou empolgada. Com minha surpresa.
— Eu lhe disse: não gosto de surpresas. — Marah encarou a madrinha. — O que você está tomando?
— O comprimido? É uma vitamina. Na minha idade, não se pode se esquecer das vitaminas. — Ela estudou Marah e franziu a testa. — É isso o que você vai vestir?
— É. Por quê?
— Nenhuma maquiagem?
Marah revirou os olhos.
— O que vou fazer? Entrar para o America’s Next Top Model? — A campainha tocou. Marah ficou imediatamente desconfiada. — Quem é?
— Venha — disse Tully, sorrindo e acompanhando-a até a porta. — Abra — disse.
Marah abriu a porta com cuidado.
Ashley, Lindsey e Coral estavam lá reunidas. Quando elas viram Marah, gritaram — foi mesmo um grito de furar os tímpanos — e correram para ela, dando um abraço coletivo.
Marah sentiu que estava vivenciando aquilo a distância. Ela ouvia as vozes, mas não conseguia entender o que estavam dizendo. Antes que percebesse, estava sendo arrastada para fora do apartamento numa maré de entusiasmo das três melhores amigas. Todas falavam ao mesmo tempo enquanto entraram no Honda de Coral e dirigiram até a balsa, onde um barco esperava. Elas viraram à direita e estacionaram.
— É tão legal que você voltou — disse Lindsey, balançando no banco traseiro, inclinando-se para a frente.
— É. Nós, tipo, não acreditamos quando a Tully ligou. Você ia nos fazer uma surpresa? — perguntou Ashley.
— Claro que ia — disse Coral, dirigindo. — Agora temos que lhe contar tudo.
— A começar pelo Tyler Britt — disse Lindsey.
— Certo. Claro. — Coral se virou para Marah e se pôs a contar uma longa e engraçada história sobre Tyler Britt namorando uma menina de North Kitsap e sendo preso pelos policiais só de cuecas e sendo multado por posse de drogas e banido do time de futebol.
Marah mantinha um sorriso no rosto o tempo todo, mas o que estava pensando era: Mal consigo me lembrar da minha paixão por Tyler Britt. Parecia algo que tinha acontecido em outra vida. Ela se obrigou a menear a cabeça e sorrir; às vezes ela se lembrava de rir quando as meninas lhe contavam histórias divertidas da festa de formatura.
Mais tarde, quando estavam em Lytle Beach, deitadas sobre toalhas coloridas, bebendo Coca-Cola e comendo Doritos, Marah não sabia o que dizer.
Ela se sentia estranhamente separada, apesar de elas estarem quase tão juntas que seus ombros se tocavam. Coral estava falando sobre a faculdade e como estava feliz pelo fato de ela e Ashley serem colegas de quarto na Western Washington University, e Lindsey estava choramingando que não queria ir para Santa Clara sozinha.
— Para onde você vai? — Coral perguntou a Marah.
Honestamente, ela estava tão distante, mal ouvindo, que nem sequer escutou quando a pergunta foi feita pela primeira vez.
— Mar?
— Para que faculdade você vai?
— UW — respondeu Marah, tentando se concentrar. Parecia que um nevoeiro cinza se abatera sobre ela — só ela.
Ela não pertencia a este grupo de meninas que riam o tempo todo e sonhavam em se apaixonar e começar a faculdade e que achavam que suas mães eram rígidas demais.
Ela não era mais como elas, e, quando o dia terminou e elas voltaram para Seattle, o silêncio estranho no carro atestava a compreensão dessa verdade. Elas a levaram até o condomínio e se reuniram em torno de Marah na porta, mas agora todas sabiam que não havia mais o que dizer. Marah não sabia disso antes, mas amizades podiam morrer também. Ela não tinha forças para fingir ser a menina que elas conheciam.
— Sentimos sua falta — disse Coral, baixinho, e desta vez soava como um adeus.
— Também senti — disse Marah, e era verdade. Ela teria dado tudo para que aquilo ainda fosse verdade.
Quando elas foram embora, Marah caminhou de volta para o apartamento de Tully. Ela encontrou a madrinha na cozinha, guardando a louça.
— Como foi?
Marah percebeu algo na voz de Tully, palavras que faziam muito sentido. Se não a conhecesse, pensaria que Tully tomara alguns drinques, mas era cedo demais para isso.
E, na verdade, Marah não se importava. Ela só queria deitar na cama, se cobrir e dormir.
— Foi ótimo — disse ela. — Melhor do que ótimo. Mas estou cansada, então vou tirar uma soneca.
— Não muito longa — disse Tully. — Aluguei O Jovem Frankenstein.
Um dos filmes preferidos da mamãe. Quantas vezes ela dissera “andar deste jeito” e fingira andar como Marty Feldman? E quantas vezes Marah revirara os olhos, impaciente com aquela velha piada?
— Ótimo. Ok — disse ela, indo para o quarto.