Capítulo Quatorze

NESTE FIM DE SEMANA SEREI A VELHA TULLY. Fingirei que minha vida é comum e que nada mudou. Rirei com Johnny e me apegarei à minha afilhada e jogarei Xbox com os meninos.

Ao entrar na nova casa deles, não verei apenas as cadeiras vazias e as pessoas que faltam. Focarei nas que restaram. Como no poema de Wordsworth, encontrarei força no que resta.

Mas, quando o táxi estaciona diante da casa contemporânea no grande terreno em Beverly Hills, sinto um quê de pânico em minha resolução.

Kate odiaria esta casa.

Um Xanax acalma meus nervos, que estão em frangalhos.

Saio do carro e empurro minha mala pelo caminho de pedras. Vou até a porta da frente e toco a campainha. Como ninguém responde, abro a porta e entro, gritando.

Os gêmeos descem a escadaria como um par de filhotinhos de cães dinamarqueses, batendo um no outro, rindo alto. Com nove anos e meio, ambos têm cabelos castanhos compridos e risinhos cheios de dentes. Eles gritam ao me ver. Mal tenho um instante para me preparar antes de ser assolada pela exuberância do abraço deles.

Sabia que ela viria — diz Lucas.

— Mentiroso — diz Wills com uma risada. — Eu é que disse. — E, virando-se para mim, ele diz: — O que você trouxe para a Marah?

— Provavelmente uma Ferrari — diz Johnny, entrando no ambiente.

Com um olhar, nossa história passa como um rio, umas imagens sobre as outras. Sei que estamos pensando na mulher que não está aqui e na distância que aumentou entre nós. Ele se aproxima de mim.

Dou-lhe um tapinha porque não sei o que dizer. Antes que ele seja capaz de responder, ouço Margie chamando meu nome. Em poucos minutos sou cercada por eles — os meninos, Johnny, Bud e Margie. Todos falam ao mesmo tempo, sorrindo e gargalhando. Quando os gêmeos levam os avós para cima para jogar algum “jogo louco de Xbox”, Johnny e eu ficamos sozinhos de novo.

— Como está a Marah? — pergunto.

— Bem. Indo bem, acho — é o que ele diz, mas ouço mais verdade em seu suspiro. — Como está você? Continuo esperando que The Girlfriend Hour recomece.

Este é meu momento. Podia lhe dizer a verdade e até mesmo pedir ajuda. Podia lhe contar sobre minha carreira em colapso e pedir conselho.

Não consigo. Talvez seja sua dor, ou meu orgulho, ou uma mistura dos dois. Só sei que não posso dizer a Johnny como minha vida está arruinada, não depois do que ele tem passado. Não quero sua pena.

— Estou bem — digo. — Estou escrevendo um livro de memórias. O George me diz que com certeza vai ser um sucesso.

— Então você está bem — diz ele.

— Totalmente bem.

Ele meneia a cabeça e desvia o olhar. Mais tarde, mesmo quando sou varrida pela alegria pura de estar com aquelas pessoas novamente, não consigo deixar de pensar na minha mentira para Johnny. Eu me pergunto se estou tão bem quanto Marah.

Marah não está bem. Descobrimos isso do pior modo. No sábado, dia de sua formatura, quando estamos reunidos na sala de estar, Marah desce as escadas. Ela parece — horrível é tudo o que consigo pensar, ou fantasmagórica — pálida e magra, com ombros saltados e cabelos que caem como uma cortina por sobre seu rosto.

— Preciso de ajuda — diz ela no fim da escada, e ergue o braço. Ela está sangrando. Corro para ajudá-la, e Johnny também. Mais uma vez nos atropelamos, dizendo coisas que não deveríamos; o que sei é que Marah precisa de ajuda e eu prometi estar presente para ela. Juro a Johnny que cuidarei dela em Seattle e que farei com que ela se consulte com a Dra. Bloom.

Johnny não gosta de deixá-la ir comigo, mas que escolha ele tem? Digo que sei como ajudá-la e que ele não tem ideia do que fazer. Por fim, ele decide deixá-la viver comigo durante o verão. Mas ele não gosta disso. Nem um pouco. E se certifica de que eu saiba disso.

Em junho de 2008, Marah se muda para meu apartamento num daquele belos dias de verão que fazem com que os habitantes de Seattle saiam de suas casas escuras usando as bermudas do ano passado, piscando como toupeiras para a luz do sol, procurando óculos escuros que se perderam ou ficaram sem uso durante meses.

Sinto orgulho; nunca cumpri tão bem minha promessa para Katie. É verdade que não estou na minha melhor fase ultimamente, que o pânico às vezes se insinua na minha visão periférica, aparecendo quando menos espero. E, sim, estou bebendo mais do que deveria e tomando Xanax demais. Já não consigo dormir sem comprimidos.

Mas tudo isso desaparecerá agora que tenho esta obrigação. Ajudo-a a tirar as roupas de sua mala e, na nossa primeira noite juntas, nos sentamos na sala de estar, falando sobre sua mãe como se Kate estivesse numa loja e fosse voltar a qualquer instante. Sei que é errado esse fingimento, mas precisamos dele, nós duas.

— Está pronta para segunda-feira? — pergunto.

— Para minha consulta com a Dra. Bloom? — pergunta ela. — Na verdade, não.

— Vou estar com você a cada etapa do caminho — prometo. Não sei mais o que dizer.

No dia seguinte, enquanto Marah está na sessão com a Dra. Bloom, me movo impacientemente, andando de um lado para o outro na sala de espera.

— Você está gastando o tapete. Tome um Xanax.

Paro e me viro.

Um garoto está na porta. Ele está vestido de preto, com unhas pintadas e acessórios suficientes para encher uma loja na Bourbon Street. Mas ele é estranhamente belo sob essa aparência gótica. Ele se aproxima com um jeito de Richard Gere em Gigolô Americano e se senta no sofá. Está segurando um livro de poesia.

Posso usar alguma coisa para ocupar minha mente, por isso me aproximo dele e me sento ao seu lado. Perto, sinto o cheiro de maconha e incenso nele.

— Há quanto tempo você se consulta com a Dra. Bloom?

Ele dá de ombros.

— Um tempo.

— Ela está ajudando?

Ele me sorri maliciosamente.

— Quem disse que preciso de ajuda? “Tudo o que vemos ou o que parece ser é na verdade um sonho dentro de um sonho”.

— Poe — digo. — Um pouco clichê. Ficaria surpresa mesmo se você citasse Rod McKuen.

— Quem?

Não consigo deixar de rir. É um nome no qual não penso há anos. Quando meninas, Kate e eu líamos muitas poesias doces de gente como Rod McKuen e Kahlil Gibran. Decoramos Desiderata.

— Rod McKuen. Procure por ele.

Antes que ele possa responder, a porta se abre e eu me levanto. Marah sai do consultório parecendo pálida e abalada. Como Johnny pôde não ter notado o quanto ela está magra? Corro para ela.

— Como foi?

Antes que ela responda, a Dra. Bloom aparece ao seu lado e me pede para acompanhá-la.

— Já volto — digo para Marah, e acompanho a terapeuta.

— Quero vê-la duas vezes por semana — diz a Dra. Bloom. — Ao menos até que ela comece a faculdade, no outono. E tenho um grupo de apoio para adolescentes de luto que pode ajudá-la. Eles se reúnem às quartas-feiras, às sete.

— Ela vai fazer o que quer que você sugira — prometo.

— Vai?

— Claro. Então, como foi? — pergunto. — Ela...?

— A Marah é adulta, Tully. Nossas sessões são privadas.

— Eu sei. Só queria saber se ela disse...

— Privada.

— Ah, tudo bem. O que devo dizer ao pai dela? Ele está esperando um relatório.

A Dra. Bloom pensa cuidadosamente e diz:

— A Marah está frágil, Tully. Meu conselho para você e para o pai dela é que ela seja tratada como tal.

— O que isso significa?

— O dicionário Webster diria ferida, delicada, sensível. Facilmente partida. Vulnerável. Eu ficaria de olho nela com cuidado, muito cuidado. Esteja presente para ela. Ela pode muito bem tomar uma decisão errada em seu estado atual.

— Pior do que se cortar?

— Como você pode imaginar, meninas que se cortam às vezes cortam fundo demais. Como digo. Observe-a com cuidado. Esteja presente para ela. Ela está frágil.

No caminho para casa, pergunto a Marah como foi a consulta com a Dra. Bloom. O que ela responde é:

— Tudo bem.

Naquela noite, ligo para Johnny e lhe conto tudo. Ele está preocupado — posso perceber na sua voz —, mas prometo tomar conta dela. Estou observando-a atentamente.

Quando Marah vai para sua primeira reunião da terapia de grupo, decido trabalhar no meu livro. Pelo menos tento. A tela em branco me incomoda, eu me afasto por um instante. Sirvo-me de uma taça de vinho e fico perto da janela, olhando para a paisagem urbana noturna.

O telefone toca e eu o atendo rapidamente. George, meu agente, está ligando para me dizer que houve algum interesse na minha ideia do livro — nenhuma oferta ainda, mas ele acha que há esperança. Além disso, Celebrity Apprentice me quer no programa.

Até parece.

Estou dizendo a George que me sinto ofendida com aquela oferta quando Marah volta de sua reunião. Preparo duas xícaras de chocolate quente e nos sentamos juntas na cama, como fazíamos quando ela era pequena. Demora um pouco para a verdade vir à tona, mas finalmente Marah diz:

— Não consigo falar sobre a mamãe a ela.

Não tenho resposta para isso e não posso insultá-la com uma mentira. Fui estimulada a fazer terapia várias vezes na minha vida e sou inteligente o bastante para saber que meus ataques de pânico recentes são resultantes de algo mais do que um desequilíbrio hormonal. Há um rio de tristeza em mim; sempre esteve lá, mas agora está transbordando. Sei que, se eu não tomar cuidado, há a possibilidade de que esse rio se torne uma parte maior de mim e eu me afogue. Mas não acredito que palavras o farão recuar; não acredito que nadar em minhas lembranças me salvará. Acredito em suportar e seguir em frente.

E olhe onde estou.

Abraço Marah e a puxo para perto. Conversamos sobre o que a assusta; digo-lhe que sua mãe iria querer que ela continuasse na terapia. Por fim, torço para ter feito algo de bom, mas o que sei sobre o que uma adolescente precisa ouvir?

Nós nos sentamos por muito tempo, ambas pensando no fantasma no ambiente, a mulher que nos uniu e nos deixou sozinhas.

No dia seguinte, Johnny chega e tenta fazer com que Marah mude de ideia sobre Seattle, que volte para Los Angeles, mas ela está firme em sua resolução de ficar comigo.

— Você está empolgada com a universidade? — pergunto na tarde de sexta-feira, depois da segunda consulta de Marah com a Dra. Bloom. Estou encostada nela. Estamos no meu sofá, juntas sob uma manta de cashmere. Johnny voltou para Los Angeles e estamos sozinhas novamente.

— Assustada, eu diria.

— É, sua mãe estava também. Mas adoramos, e você também vai adorar.

— Anseio pela minha aula de escrita criativa.

— Tal mãe, tal filha.

— O que você quer dizer com isso?

— Sua mãe era uma escritora de talento. Se você lesse o diário dela...

— Não — diz Marah rispidamente. É o que ela me diz sempre que abordo um tema carinhoso. Ela não está pronta para ler as palavras que sua mãe morta escreveu. Não posso culpá-la. É como esfaquear seu próprio coração. Mas há consolo nisso também. Algum dia ela estará preparada.

Ao meu lado, o telefone toca. Inclino-me, vejo quem é.

— Oi, George — digo. — Espero que não seja sobre alguma porcaria de reality show.

— Oi para você também. Estou ligando para falar sobre o acordo literário. Temos uma oferta.

Meu alívio é monumental. Mal sabia eu como estava contando com isso. Afasto-me de Marah e me ajeito.

— Graças a Deus.

— É a única oferta que temos. E é boa.

Levanto-me e começo a andar de um lado para o outro. Quando seu agente começa a bajulá-la, é problema.

— Quanto, George?

— Lembre-se, Tully...

— Quanto?

— Cinquenta mil dólares.

Paro.

— Você disse cinquenta mil?

— Disse. Em adiantamento. Como royalties.

Sento-me tão rápido que é quase como desabar. Felizmente, há uma poltrona sob mim.

— Ah.

Sei que é muito dinheiro no mundo comum. Eu não nasci em berço de ouro. Mas passei tantos anos no mundo extraordinário que aquilo me atinge com força, esta prova de que perdi boa parte da minha fama. Você trabalha como um cão por trinta anos e acha que o que construiu durará.

— É o que é, Tully. Mas pode ser seu retorno. Sua história é a história da Cinderela. Vai conquistar o mundo novamente.

Sinto-me insegura. Minha respiração falha. Quero gritar, retrucar ou reagir à injustiça de tudo. Mas tenho apenas uma escolha e sei disso.

— Aceito — digo.

À noite, estou agitada demais para dormir. Às onze da noite, desisto. Por pelo menos dez minutos, passeio pela escuridão do meu apartamento. Uma vez, quase vou até o quarto de Marah e a acordo, mas sei que seria egoísmo de minha parte, por isso resisto à vontade de abrir a porta dela. Por fim, por volta das 23h20, decido trabalhar. Talvez escrever ajude.

Deito-me na cama e levo meu computador ao colo, abrindo o documento mais recente. Lá está ele: Segundo Ato. E a tela em branco. Eu a vejo, me concentro com tanta intensidade que começo a imaginar as coisas. Acho que escuto passos no corredor, uma porta se abrindo e fechando, mas depois faz-se silêncio novamente.

Pesquisa. É disso que preciso. Preciso vasculhar as caixas no meu armário.

Não posso mais ignorar. Depois de me servir de mais uma taça de vinho, desço. Ajoelhando-me diante da caixa, digo a mim mesma para ter força. Lembro-me de que a Random House comprou este livro de memórias e pagou por ele. Tudo o que preciso fazer é escrever a história da minha vida. Com certeza consigo encontrar as palavras.

Vou até a caixa Queen Anne e a abro, tiro o livro de recortes e o coloco no chão ao meu lado. Não estou preparada ainda. Vou remoer meus sonhos e dores de cabeça.

Inclino-me e vislumbro o interior escuro. A primeira coisa que vejo é um coelho de pelúcia.

Mathilda.

Falta-lhe um olho e seus bigodes parecem cortados. Este presente da minha avó foi minha melhor amiga quando cresci.

Deixo Mathilda de lado e busco algo na caixa novamente. Desta vez, sinto algo macio e pego uma camiseta cinza de Maguila, o Gorila.

Minhas mãos tremem um pouco.

Por que mantive isso?

Ao fazer a pergunta, sei a resposta. Minha mãe comprou para mim. É a única coisa que me lembro de ela ter me dado.

Uma memória cauteriza tudo o mais.

Sou nova — talvez quatro ou cinco anos. Estou na minha cadeira à mesa da cozinha, brincando com a colher em vez de tomar meu café da manhã, quando ela entra. Uma estranha.

Minha Tallulah, diz ela, aproximando-se de mim. Seu cheiro é engraçado. Como fumaça doce. Você sentiu falta da mamãe?

No andar superior, um sino toca. É o vovô, digo.

Assim que percebo, estou nos braços de uma estranha, e ela está fugindo da casa.

O vovô está atrás de nós, gritando:

— Pare! Dorothy...

A mulher diz alguma coisa sobre ele e acrescenta um monte de palavras que não reconheço. Depois ela tropeça. Caio de seus braços e bato com a cabeça no chão. Minha avó grita; eu choro; a mulher me pega de volta nos braços. Depois disso, a lembrança desaparece.

Eu me lembro dela me pedindo para chamá-la de mamãe. E me lembro de como era duro o banco do carro e como eu tinha de fazer xixi no acostamento da estrada. Eu me lembro do cheiro de fumaça no carro e de seus amigos. Eles me assustam.

Lembro-me dos brownies. Ela me dá e eu os como e ela acha engraçado quando perco o equilíbrio e começo a vomitar.

Lembro-me de acordar numa cama de hospital, com meu nome, TALLULAH ROSE, preso ao meu peito.

Quem era a moça?, pergunto mais tarde ao meu avô quando ele vem me pegar.

Sua mamãe, diz o vovô. Lembro-me dessas duas palavras como se as tivesse escutado ontem.

— Não gosto de morar num carro, vovô.

— Claro que não.

Suspiro e devolvo a camiseta à caixa. Talvez este livro de memórias seja má ideia. Afasto-me da caixa e saio do armário, desta vez lembrando-me de trancá-lo.