Capítulo Quinze

— VOCÊ NÃO PRECISA ME ACOMPANHAR em todas as minhas consultas, sabia? — disse Marah para mim numa iluminada e ensolarada segunda-feira de fim de junho, ao caminharmos pela First Street rumo ao mercado municipal.

— Eu sei. Eu quero fazer isso — digo, dando o braço para ela.

Eis o que aprendi nas duas semanas em que ela mora comigo: ser responsável por uma adolescente é cansativo e aterrorizador. Sempre que ela vai ao banheiro, temo que esteja se cortando. Olho no lixo e conto os band-aids em cada caixa. Temo deixá-la fora do meu alcance. Estou constantemente tentando fazer a coisa certa, mas, vamos encarar as coisas, o que sei sobre maternidade é nada.

Na sala de espera da Dra. Bloom, abro meu laptop e encaro a tela em branco. Tenho de começar esta coisa, fazer progresso. Tenho.

Sei como estas coisas funcionam. Li centenas de memórias na minha vida. Elas sempre começam do mesmo jeito, com as origens. Preciso preparar o cenário, por assim dizer, a fim de pintar uma imagem da minha vida antes de entrar em cena. Apresentar os participantes e o lugar.

E aí está. A coisa que me impede agora, como me impediu antes: não posso escrever minha história sem conhecer minha própria história. E a da minha mãe.

Não sei quase nada dela e sei menos ainda sobre meu pai. Minha história é uma tela em branco, um grande vazio. Não é de surpreender que não consiga escrever nada.

Tenho de falar com minha mãe.

Ao pensar nisso, abro a bolsa e encontro uma caixinha alaranjada. É meu último Xanax. Engulo-o sem água e depois, lentamente, pego meu celular e ligo para meu administrador.

— Frank — digo quando ele atende. — Aqui é a Tully. Minha mãe ainda está recebendo meus cheques mensais?

— Que bom que você ligou. Deixei algumas mensagens. Precisamos conversar sobre suas finanças...

— Sim, claro. Mas agora preciso saber sobre minha mãe. Ela ainda está recebendo o dinheiro?

Ele me pede para esperar e logo volta à linha.

— Sim. Todos os meses.

— E onde ela está vivendo atualmente?

Há outra pausa.

— Está vivendo na sua casa em Snohomish. Está lá há anos. Enviamos um aviso para você. Acho que ela se mudou quando sua amiga estava doente.

— Minha mãe está morando na casa da Firefly Lane? — Eu sabia disso?

— Sim. E agora, podemos falar sobre....

Desligo. Antes de poder processar a informação, refletir sobre ela, Marah está saindo do consultório da Dra. Bloom.

É quando noto o menino gótico ao meu lado novamente. Seus cabelos pretos têm mechas vermelhas e verdes e brincos pendem de suas orelhas. Vejo uma tatuagem em seu pescoço. Acho que diz loucura, mas há mais, que não consigo ver.

À entrada de Marah, ele se levanta. Sorri. Não gosto da maneira como ele olha para minha afilhada.

Levanto e dou a volta na mesinha de centro, colocando-me protetivamente ao lado de Marah. Pego seu braço e a levo para fora do consultório. Quando olho para a porta, o gótico está nos olhando.

— A Dra. Bloom acha que eu deveria arranjar um emprego — diz Marah enquanto a porta se fecha atrás de nós.

— Sim, claro — digo, franzindo a testa. Só consigo pensar na minha mãe. — É uma ótima ideia.

Durante a tarde toda, ando de um lado para o outro no meu apartamento, tentando pensar claramente.

Minha mãe está vivendo numa das duas casas que herdei da minha avó; a casa que nunca fui capaz de vender porque ficava do outro lado da rua dos Mularkey. Isso significa que, se vou falar com ela, tenho de voltar ao lugar onde Kate e eu nos conhecemos, onde toda a minha vida mudou numa noite estrelada, quando eu tinha quatorze anos.

E tenho de levar Marah comigo ou deixá-la sozinha. Nenhuma das opções parece interessante. Estou observando-a como uma águia, mas não quero que ela testemunhe esse encontro com minha mãe. Reuniões desse tipo são humilhantes ou sofridas.

— Tully?

Ouço meu nome e me viro. Penso, vagamente, que Marah me chamou antes, mas não tenho certeza.

— Sim, querida? — Pareço tão distraída quanto me sinto?

— Acabei de falar com a Ashley. Algumas das minhas amigas da escola vão ao parque Luther Burbank hoje fazer piquenique, fazer esqui aquático e coisas assim. Posso ir?

O alívio vem numa onda. É a primeira vez que ela pede para passar algum tempo com as velhas amigas. É o sinal pelo qual estava esperando. Ela está voltando a ser quem era; suavizando-se. Aproximo-me dela, sorrindo. Talvez possa parar de me preocupar tão obsessivamente com Marah.

— Acho que é uma ótima ideia. Quando você volta?

Ela para.

— Tem um filme depois. Às nove. Wall-E.

— Então você vai voltar às...

— Onze?

Parece mais do que razoável. E isso me dá tempo o suficiente. Então, por que tenho a impressão de que há algo de errado?

— E alguém vai trazer você para casa?

Marah ri.

— Claro!

Estou exagerando. Não há nada com que me preocupar.

— Certo. Tenho uma coisa para fazer hoje mesmo, por isso vou ficar fora a maior parte do dia. Tome cuidado.

Marah me surpreende abraçando-me forte. É o melhor agradecimento que recebo em anos, e me dá a força de que preciso para fazer o que precisa ser feito.

Vou ver minha mãe. Pela primeira vez em anos — décadas —, farei perguntas reais e não vou sair até ter algumas respostas.

Snohomish é uma dessas pequenas comunidades de Washington que mudaram com o tempo. Antes era uma comunidade de laticínios num vale verdejante localizado entre os picos dos Montes Cascade e as águas agitadas dos rios Snohomish e Pilchuck, e havia se tornado uma cidade-dormitório de Seattle. Velhas e confortáveis fazendas foram demolidas e transformadas em casas grandes de pedra e madeira com magnífica vista para as montanhas. Fazendas foram divididas e transformadas em terrenos que rodeiam novas ruas que levam à escola. Imagino que seja raro ver meninas a cavalo no verão, pegando atalhos para as escolas, seus pés descalços e os cabelos ao sol. Hoje há novos carros, casas e árvores, plantadas às vezes no mesmo lugar onde as velhas cresciam. Jardins se estendem até as varandas e cercas-vivas bem cuidadas dividem os bons vizinhos.

Mesmo com a nova vista, a velha cidade ainda brilha em alguns lugares. Aqui e ali uma velha sede de fazenda se eleva desafiadoramente entre divisas, seus acres cercados com capim alto e gado.

E há a Firefly Lane. Num pedaço de asfalto, do lado de fora da cidade, não muito longe das margens do rio Pilchuck, tudo mudou pouco.

Agora, voltando ao lugar que sempre foi minha casa, tiro o pé do acelerador. Meu carro reage imediatamente e desacelera.

É um belo dia de verão; o sol brinca de esconde-esconde com as nuvens. Ao lado da estrada, pastos verdes se estendem rumo ao rio. Árvores gigantes montam guarda, seus braços provendo sombra para o gado que se reúne sob os galhos.

Quanto tempo faz que estive aqui? Quatro anos? Cinco? É uma triste lembrança de que o tempo às vezes pode correr rápido demais, reunindo arrependimentos pelo caminho.

Sem pensar, entro na garagem dos Mularkey, vendo o cartaz de À VENDA ao lado de caixa do correio. Nesta economia, não é de surpreender que eles não tenham conseguido vender o lugar. Eles estão morando no Arizona agora; quando a casa for vendida, comprarão alguma outra coisa.

A aparência do lugar é a mesma de sempre — uma bela casa de fazenda com uma varanda dando para dois acres verdes, demarcados por cercas de cedro recobertas por musgos.

Meus pneus freiam na entradinha enquanto eu avanço pelo jardim e estaciono.

Vejo a janela de Kate e num piscar de olhos tenho quatorze anos novamente, de pé ali com minha bicicleta, jogando pedras na janela dela.

Sorrio para a lembrança. A rebelde e a certinha. É como parecíamos ser no começo. Kate me seguia por todos os lugares — ou pelo menos era o que me parecia, através de meus olhos de menina.

Naquela noite, pedalamos pela Summer Hill no escuro. Navegando. Voando. Os braços para o alto.

O que eu não sabia é que eu é que a estava seguindo, naqueles remotos anos. Eu é que estava apegada a ela.

A distância da casa dela à minha é de menos de um minuto, mas parece que vou de um mundo a outro.

A casa dos meus avós parece diferente do que me lembro. O jardim lateral está malcuidado, há entulho no meio dos campos. Antes, enormes juníperos escondiam a vista. Agora alguém eliminara os arbustos sem substituí-los por nada novo, deixando pilhas de sujeira e raízes acumuladas diante da casa.

Só posso imaginar o que encontrarei lá dentro. Nos trinta e poucos anos de vida adulta, vi minha mãe um punhado de vezes, sempre — apenas — quando a procurei. No fim dos anos 1980, quando Johnny, Katie e eu éramos os três mosqueteiros da KCPO, deparei-me com minha mãe vivendo num acampamento em Yelm, seguidora de J. Z. Knight, a dona de casa que afirmava receber um espírito milenar chamado Ramtha. Em 2003, peguei uma equipe de filmagem e a procurei novamente, pensando — ingenuamente — que o tempo havia passado e que talvez pudéssemos recomeçar. Encontrei-a vivendo num trailer velho, mal como nunca a tinha visto. Com esperança, levei-a para casa comigo.

Ela roubou minhas joias e fugiu à noite.

Da última vez que a vi, há alguns anos, ela estava no hospital. Havia sido espancada. Naquela vez, ela fugiu enquanto eu dormia numa cadeira ao lado de sua maca.

E aqui estou eu.

Estaciono meu carro e saio. Segurando o laptop como um escudo, ando pela paisagem malcuidada pisando em colheres de pedreiro, pás e sacos de sementes. A porta da frente é de madeira e tem uma cobertura de musgos. Respirando fundo, eu bato.

Não há resposta.

Ela está provavelmente desmaiada em algum lugar, bêbada. Quantas vezes voltei da escola para descobri-la deitada no sofá, semiconsciente, com um cachimbo não muito distante da mão, roncando alto o bastante para acordar os mortos?

Testo a maçaneta e descubro que a casa está aberta.

Claro.

Abro a porta com cuidado e entro, gritando “olá” ao avançar.

O interior é sombrio e escuro. A maioria dos interruptores que encontro não funciona. Entro na sala de estar e encontro um abajur e o ligo.

Alguém rasgou o carpete e expôs o piso de madeira negra embaixo. Não há mais a mobília dos anos 1970. Em vez dela, há uma única poltrona perto de uma mesa de segunda mão. No canto, uma mesa de jogo abriga duas cadeiras dobráveis.

Quase vou embora. No fundo, sei que nada sairá desta reunião e que mais uma vez conseguirei apenas uma dor de cabeça e uma negação da minha mãe, mas a verdade é que nunca fui capaz de me afastar dela. Nem em todos os nossos anos juntas, nem com todas as vezes em que ela me abandonou ou me decepcionou. Passei boa parte dos meus quarenta e oito anos buscando um amor que nunca foi meu. Ao menos sei que devo esperar algo diferente. Isso é um tipo de ajuda.

Sento-me na cadeira dobrável para esperar. Não é confortável como a outra cadeira, mas não estou segura da limpeza do tecido, por isso escolho a cadeira de metal.

Espero por horas.

Finalmente, depois das oito da noite, escuto pneus na calçada.

Ajeito-me.

A porta se abre e vejo minha mãe pela primeira vez em três anos. Sua pele tem o tom acinzentado e enrugado que vem com anos de uma vida miserável e bêbada. Suas unhas estão sujas. Rastejar pela vida faz isso.

— Tully — diz ela. Surpreende-me o tom firme da sua voz e o uso do meu apelido. Durante toda a minha vida ela me chamou de Tallulah, o que odeio.

— Oi, Cloud — digo, levantando-me.

— Sou Dorothy agora.

Outra mudança de nome. Antes que eu possa dizer alguma coisa, um homem entra na casa e se põe ao lado dela. Ele é alto e magro, com rugas em sua pele bronzeada que parecem sulcos. Posso ler sua história em seus olhos — e não é uma bela história.

Minha mãe está chapada, tenho certeza. Mas, como acho que nunca a vi sóbria, como saberei?

— Estou feliz por ver você — diz ela, sorrindo para mim de maneira hesitante.

Acredito nela, mas sempre acredito nela. Acreditar nela é meu calcanhar de aquiles. Minha fé é tão constante quanto sua rejeição. Por mais sucesso que eu tenha, dez segundos na presença dela sempre me transformarão na pobrezinha da Tully novamente. Sempre esperançosa.

Não hoje. Não tenho tempo — nem energia — para entrar neste rotor novamente.

— Este é o Edgar — diz minha mãe.

— Oi — diz ele, franzindo a testa para minha mãe. O traficante, provavelmente.

— Você tem fotografias de família? — pergunto, um pouco sem paciência. Estou começando a me sentir claustrofóbica.

— O quê?

— Fotos de família. Imagens de mim quando menina, esse tipo de coisa.

— Não.

Queria que isso não me magoasse, mas magoa, e a mágoa me irrita.

— Você não tirou fotos de mim quando bebê?

Ela faz que não, sem dizer nada. Não há desculpa e ela sabe disso.

— Você pode me dizer qualquer coisa sobre minha infância, sobre quem era meu pai ou onde eu nasci?

Ela se encolhe a cada palavra, pálida.

— Olhe, senhorita... — diz o traficante, aproximando-se de mim.

— Fique fora disso — ataco. Para minha mãe, digo: — Quem é você?

— Você não quer saber — disse ela, parecendo assustada. — Confie em mim.

Estou perdendo tempo. O que quer que eu precise para meu livro, não encontrarei aqui. Esta mulher não é minha mãe. Ela pode ter me dado à luz, mas foi aí que seu comprometimento terminou.

— É — digo, suspirando. — Por que iria querer saber quem você é? Quem sou eu? — Pego minha bolsa, passo por ela e deixo a casa.

Passo pelos sulcos na estrada, entro no meu carro e dirijo para casa. No caminho de volta para Seattle, reproduzo a cena com minha mãe repetidas vezes, tentando tirar um significado da nuance, mas não há nada lá.

Estaciono no meu prédio.

Sei que devo subir e trabalhar no meu livro — talvez o passeio de hoje seja uma cena. Pelo menos é alguma coisa.

Mas não consigo, não posso entrar no meu apartamento vazio. Preciso de uma bebida.

Ligo para Marah — ela parece sonolenta ao atender — e lhe digo que vou voltar para casa mais tarde. Ela me diz que já está na cama e que não devo acordá-la quando voltar.

Saio do elevador e vou direto para o bar, onde me permito dois martínis secos, que acalmam meus nervos e me deixam bem. É quase uma da manhã quando finalmente subo e destranco a porta do meu apartamento.

Todas as luzes estão ligadas e ouço a TV.

Franzindo a testa, fecho a porta atrás de mim. Ela se tranca.

Caminho pelo corredor, desligando as luzes pelo caminho. Amanhã terei uma conversa com Marah. Ela precisa entender que os interruptores servem para ligar e desligar.

Ao passar pelo quarto dela, paro.

As luzes estão acesas. Posso ver a luz por sob a porta fechada.

Bato, certa de que ela dormiu assistindo à TV.

Não há resposta, por isso aperto a porta silenciosamente.

Não estou preparada para o que vejo.

O ambiente está vazio. Há latas de Coca-Cola nas mesinhas de cabeceira, a TV está ligada e a cama está desarrumada. Os lençóis estão amontoados no meio da cama.

— Espere um segundo.

Marah não está. É uma hora da manhã. Ela mentiu para mim sobre ficar em casa na cama.

— O que faço? — Estou falando comigo mesma agora, ou talvez com Kate, ao correr de um quarto para o outro, abrindo as portas.

Ligo para o telefone dela. Não há resposta. Mando uma mensagem de texto: Onde está você??? e aperto o botão de enviar.

Devo ligar para Johnny? Ou para a polícia?

É uma e dez agora. Estou tremendo ao pegar o telefone. Digitei 91 quando ouço chaves na fechadura da minha porta da frente.

Marah entra como se fosse uma ladra, tentando andar na ponta dos pés, mas vejo que ela está desequilibrada, rindo e calando-se.

— Marah. — Minha voz é tão ríspida que soa como uma mãe pela primeira vez na minha vida.

Ela se vira, tropeça, cai no chão e começa a rir. Depois leva a mão à boca e murmura:

— Dechculpe. Icho não foi engrachado.

Pego-a pelo braço e a levo para o quarto. Ela tropeça ao meu lado, tentando não rir.

— Então — digo quando ela cai na cama. — Você está bêbada.

— Tomei xó duas chervejax — diz ela.

— Sei. — Eu a ajudo a se despir e depois a levo até o banheiro. Quando ela vê a privada, resmunga:

— Vou vomitar... — E eu mal tenho tempo para segurar seus cabelos antes que ela vomite.

Depois, coloco pasta de dente numa escova e lhe entrego. Ela está pálida e fraca como uma boneca de pano. Sinto-a tremer ao levá-la para a cama.

Entro no cama ao lado dela e a abraço. Ela se encosta em mim e suspira.

— Eu me sinto terrível.

— Pense nisso como uma lição de vida. Não foram só duas cervejas, por sinal. O que você estava bebendo?

— Absinto.

— Absinto. — Não é o que eu esperava. — Isso é legal?

Ela ri.

— Na minha época, meninas como a Ashley, a Lindsey e a Coral bebiam rum com Coca-Cola — digo, franzindo a testa. Sou mesmo tão velha que não sei o que os jovens estão bebendo hoje em dia? — Vou ligar pra Ashley e...

— Não! — grita ela.

— Não o quê?

— Eu, hã... não estava com elas — diz Marah.

Outra mentira.

— Com quem você estava?

Ela me olha.

— Um grupo de adolescentes da minha terapia de grupo.

Arqueio as sobrancelhas.

— Ah.

— Eles são mais legais do que eu pensava — diz ela rapidamente. — E é só bebedeira, Tully. Todo mundo faz isso.

É verdade. E ela está definitivamente bêbada; posso sentir o cheiro no seu hálito. Drogas seriam diferentes. Que menina de dezoito anos não voltou para casa bêbada ao menos uma vez?

— Eu me lembro da primeira vez que fiquei bêbada. Estava com a sua mãe, claro. Fui pega também. Não foi legal. — Sorrio diante da lembrança. Foi em 1977, no dia em que eu deveria ir para o abrigo. Mas fugi — diretamente para a casa de Kate — e a convenci a ir a uma festa comigo. Fomos pegas por policiais e colocadas em salas de interrogatório separadas.

Margie veio me socorrer no meio da noite.

Uma menina que mora conosco deve seguir as regras. Foi o que ela me disse. Depois disso, vi o que era uma família, mesmo estando do lado de fora, espiando.

— O Paxton é muito legal — diz Marah, encostando-se em mim.

Isso me preocupa.

— O gótico?

— Isso é duro. Achava que você não julgava as pessoas — Marah suspira. — Às vezes, quando ele fala sobre a irmã dele e do quanto sente falta dela, começo a chorar. E ele entende completamente como sinto falta da minha mãe. Ele não me faz fingir. Quando estou triste, ele me lê poesia e me abraça até que eu me sinta melhor.

Poesia. Dor. Escuridão. Claro que Marah se sente atraída. Entendo. Li Entrevista com o Vampiro. Lembro-me de achar que Tim Curry era totalmente gostoso em Rocky Horror, com saltos altos e espartilhos e tudo.

Mas Marah é jovem e a Dra. Bloom disse que ela estava frágil.

— Desde que você estivesse com um grupo de adolescentes...

— Totalmente — diz Marah. — E somos apenas amigos, Tully. Eu e o Pax, quero dizer.

Sinto-me aliviada por isso.

— Você não vai contar para o meu pai, né? Quero dizer, ele não é tão legal quanto você e ele não entenderia minha amizade com alguém como o Pax.

— Fico feliz que vocês sejam apenas amigos. Mantenha desse jeito, certo? Você não está preparada para mais. Quantos anos ele tem, por sinal?

— Minha idade.

— Ah. Que bom. Acho que toda menina se atrai por um poeta uma vez na vida. Eu me lembro de um fim de semana em Dublin, em... Ah, espere, não posso lhe contar esta história.

— Você pode me contar qualquer coisa, Tully. Você é minha melhor amiga.

Ela me conquista dizendo isso; amo-a tanto naquele momento que dói de verdade. Mas não posso deixá-la me enganar. Preciso tomar conta dela.

— Não vou contar a seu pai sobre o Pax, porque você tem razão, ele ficaria louco. Mas não vou mentir para ele, então não me obrigue a isso. Certo?

— Certo.

— E, Marah, se eu chegar e a casa estiver vazia de novo, vou ligar para seu pai e os policiais imediatamente.

Seu sorriso desaparece.

— Certo.

Aquela conversa noturna com Marah muda algo em mim.

Você é minha melhor amiga.

Sei que não é verdade, que somos substitutas uma para a outra, ambas substituindo Kate. Mas a verdade perde força no sol de um belo verão de Seattle. O amor de Marah por mim — e meu amor por ela — é o salva-vidas de que preciso. Pela primeira vez na minha vida, sou necessária de verdade, e minha reação a isso me surpreende. Quero estar presente para Marah de uma maneira que nunca estive presente para ninguém. Nem mesmo para Kate. A verdade é que Kate não precisava de mim. Ela tinha uma família que a amava, um marido atento e pais adoráveis. Ela me incluiu na sua família e me amava, mas era eu quem precisava dela.

Agora, pela primeira vez, sou a forte e a estável, ou finjo ser. Por Marah, encontro força para ser uma versão melhor de mim mesma. Deixo meu Xanax e meus comprimidos para dormir de lado e paro de beber vinho. A cada manhã acordo mais cedo para preparar café da manhã e faço ligações para que o jantar seja entregue.

Então trabalho nas minhas memórias. Depois da reunião com minha mãe, decido ignorar a parte da minha história que não conheço. Não que eu não me preocupe — ainda me preocupo profundamente. Estou desesperada por saber minha própria história e a da minha mãe, mas aceito a realidade. Terei de escrever um livro de memórias com base no que sei. Assim, num belo dia de julho, sento-me e simplesmente começo.

A questão é esta: quando você cresce como eu cresci, uma garota perdida sem um passado real, você confia em pessoas que parecem amá-la. Pelo menos foi o que eu fiz. Comecei cedo, agarrando-me firme demais e precisando de muita coisa. Sempre ansiei por amor. Do tipo incondicional e até mesmo imerecido. Precisava que alguém dissesse para mim. Não é para parecer coitadinha, mas minha mãe nunca me disse. Nem minha avó. Não havia mais ninguém.

Até 1974, quando me mudei para a casa que meus avós compraram como investimento. Ficava numa ruazinha no meio do nada. Se eu sabia que, quando mudei para uma casa velha com minha mãe maconheira, minha vida mudaria? Não. Mas, assim que conheci Kathleen Scarlett Mularkey, acreditei em mim mesma porque ela acreditou em mim.

Talvez você esteja se perguntando por que meu livro de memórias começa com minha melhor amiga. Talvez você esteja especulando que eu seja uma lésbica ou simplesmente alguém arruinado ou que não entende o que é um livro de memórias.

Estou começando aqui, no que parece ser o fim, porque minha história é na verdade a história da nossa amizade. Certa vez — há não muito tempo — eu tive um programa. The Girlfriend Hour. Afastei-me dele quando Katie estava perdendo sua batalha contra o câncer.

Aparentemente, afastar-se de um programa de TV sem avisar é ruim. Agora não tenho um emprego.

Mas como eu poderia ter agido de outra maneira?

Tirei tanto de Kate e lhe dei tão pouco. Aquela era a hora de estar ao lado dela.

A princípio, quando a perdemos, achei que não poderia seguir em frente. Estava certa de que meu coração simplesmente pararia de bater ou que meus pulmões deixariam de se encher de ar.

As pessoas não são tão úteis quanto você pensa. Ah, elas o consolarão quando você perde uma esposa ou marido ou filho ou um pai, mas com sua melhor amiga é diferente. Você deve superar isso.

— Tully?

Tirei os olhos do laptop. Havia quanto tempo estava trabalhando?

— Sim? — digo distraidamente, relendo o que escrevi.

— Estou saindo para o trabalho — diz Marah. Ela está vestida de preto e a maquiagem é um pouco pesada. Ela chama isso de uniforme para seu trabalho como barista na Pioneer Square.

Olho para meu relógio.

— São sete e meia.

— Estou com o turno da noite. Você sabe disso.

Sei? Ela me disse isso antes? Marah conseguiu este trabalho há apenas uma semana. Eu deveria ter um mapeamento em algum lugar? Isso parece algo que uma mãe faria. Ela tem estado muito tempo fora de casa ultimamente, saindo com suas amigas do Ensino Médio.

— Pegue um táxi para casa. Você precisa de dinheiro?

Ela sorri.

— Estou bem, obrigada. Como está indo o livro?

— Ótimo. Obrigada.

Ela se aproxima e me dá um beijo. Assim que sai, volto ao trabalho.