Capítulo Dezoito

EM JUNHO DE 2010, sei que estou com problemas, mas não sei como tratá-los. A depressão me assolou. Sinto-me afastada de tudo e de todos. Nem mesmo minhas ligações semanais para Margie conseguem me animar.

Saio da cama e me sinto letárgica ao ir ao banheiro. Quantos comprimidos para dormir tomei na noite passada? Assusta-me o fato de não me lembrar.

Tomo um Xanax para me acalmar e entro no chuveiro. Honestamente, o Xanax não está funcionando tão bem ultimamente; preciso de cada vez mais para conseguir o mesmo efeito calmante. Sei que isso deveria me incomodar, e me incomoda, de uma forma distante e racional.

Depois, prendo os cabelos molhados num rabo de cavalo e visto uma calça de moletom. Minha cabeça está latejando.

Tento comer alguma coisa — me fará bem —, mas meu estômago está com um nó tão grande que tenho medo de vomitar.

A manhã avança lentamente. Tento ler um livro e assistir à TV e até mesmo passar o aspirador de pó. Nada me faz esquecer como me sinto mal.

Talvez uma taça de vinho ajude. Só uma. E já passa do meio-dia.

Ajuda um pouco. Assim como a segunda taça.

Estou decidindo — de novo — parar de beber quando meu celular toca. Vejo o número e pego o telefone como se fosse uma ligação de Jesus Cristo.

— Margie!

— Oi, Tully.

Sento-me no sofá, percebendo o quanto precisava ouvir uma amiga.

— É tão bom falar com você!

— Estou na cidade. Pensei em fazer uma visita. Estarei aí em dez minutos. Me deixe entrar.

Ergo-me, quase chorando por conta de como isso é importante para mim. Estou mesmo confusa. Conversarei com Margie — minha quase mãe. Talvez ela possa me ajudar.

— Adoraria.

Desligo e corro para o banheiro, onde seco meus cabelos rapidamente e coloco produtos suficientes para dobrar o aço. Depois, me maquio e visto uma calça jeans e uma camiseta de mangas curtas. Estou pateticamente ansiosa para ver alguém que me ama, para me sentir aceita e querida. Calço sandálias (não devia ter tomado aquelas duas taças de vinho; meu equilíbrio não é bom o suficiente para saltos altos).

A campainha toca e eu corro, abrindo a porta.

Lá está minha mãe, parecendo magra e áspera como um pedaço de corda. Ela está vestida como uma refugiada de uma comuna dos anos 1970: calça larga, sandálias Birkenstock e uma daquelas camisas mexicanas que não vejo há anos. Seus cabelos grisalhos lutam contra a faixa de couro que ela usa; mechas caem sobre o rosto estreito e enrugado. Estou tão impressionada pela visão dela que não sei o que dizer.

— A Margie me enviou — diz ela. — Mas foi minha ideia. Queria ver você.

— Onde está ela?

— Ela não vem. Eu é que queria ver você. Sei que não abriria a porta para mim.

— Por que você está aqui?

Ela passa por mim e entra na minha casa como se tivesse o direito de estar aqui.

Na sala de estar, ela se vira para mim. Com uma voz hesitante, diz:

— Você tem problemas com drogas ou álcool.

Por um segundo, minha mente fica vazia. Penso: fui pega. É horrível e humilhante e eu me sinto nua e vulnerável e arruinada. Recuo, balançando a cabeça.

— Não — digo. — Não. Meus remédios são prescritos para mim. Você faz parecer que sou uma viciada. — Rio diante desta ideia. Será que ela pensa que percorro as esquinas e compro drogas e as injeto na veia e caio na rua? Vou a um médico. Compro meus remédios no Walmart, meu Deus do Céu! E depois penso na fonte da acusação.

Minha mãe se aproxima. Ela parece deslocada no meu ambiente projetado. Posso ver toda a decepção da minha vida em suas rugas, nas marcas de sol em seu rosto. Não me lembro de uma única vez em que ela tenha me abraçado ou me beijado ou disse que me amava. Mas agora ela vai me chamar de viciada e me ajudar.

— Passei por uma reabilitação — diz ela, com uma voz tímida e incerta. — Acho...

— Você não tem direito de dizer nada para mim! — grito para ela. — Nada, entendeu? Como ousa vir aqui e me julgar?

— Tully — diz minha mãe. — A Margie diz que sua voz pareceu incompreensível das últimas vezes que ela conversou com você. Vi sua fotografia na TV. Sei pelo que você está passando.

— Vá embora — digo, minha voz hesitando.

— Por que você não vem me visitar em Snohomish?

— Estou escrevendo um livro sobre a minha vida. Não que você saiba qualquer coisa a respeito.

— Você tinha perguntas.

Rio e sinto as lágrimas vindo, o que me deixa com raiva.

— É. Que bem que isso me fez!

— Tully, talvez...

— Sem talvez. Não de você. Não de novo. Não suporto. — Eu a seguro pelo braço e a levo para fora do apartamento — ela não pesa nada. Antes que possa dizer alguma coisa, empurro-a para o corredor e bato a porta. Depois, vou para meu quarto e me deito na cama, cobrindo a cabeça com as cobertas. Ouço minha própria respiração no escuro.

Ela está enganada. Não tenho um problema. E daí que preciso de Xanax para controlar os ataques de pânico e Ambien para dormir? E daí se gosto de tomar algumas taças de vinho à noite? Posso controlar isso, parar sempre que quiser.

Mas, droga, tenho uma dor de cabeça agora. É culpa dela. Minha mãe. Ela e Margie me traíram. Esta é a parte mais cruel de tudo. Não espero nada da minha mãe, menos do que nada, mas Margie foi um dos portos seguros da minha vida. A traição dela é um golpe que não suporto. Ao pensar nisso, minha raiva se dissolve num desespero.

Viro-me para o lado e abro a gaveta da mesa de cabeceira e pego o Xanax.

Você acha que foi uma traição?, Kate pergunta ao meu lado, e sua voz me traz lembranças, levantando-me de repente.

Eu me lembro de onde estou. Numa cama de hospital, ligada a um respirador, um buraco na minha cabeça, observando minha vida diante de meus olhos.

— Eu estava com problemas — digo. E elas tentaram me ajudar.

Como não vi isso? Como ignorei o óbvio?

Você vê agora, não vê?

— Pare, pare, pare. Não quero mais isso. — Viro-me para o lado e fecho meus olhos.

Você precisa se lembrar.

Não. Preciso esquecer.

3 de setembro de 2010
14h10

Na sala de reuniões do hospital, o detetive da polícia estava com as pernas tão abertas que poderiam mantê-lo de pé num terremoto. Ele tinha um bloquinho aberto e estava reavaliando suas anotações.

Johnny olhou para o ambiente silencioso. A maioria das cadeiras estava vazia, encostadas na mesa. Duas caixas de Kleenex estavam no meio da mesa. Ao lado dele, Margie tentava se sentar direito, mas fora uma vigília cansativa; ela continuava se curvando, derrotada. Ele tinha ligado para ela no começo da manhã; ela e Bud pegaram um avião no Arizona às 9h15. Agora Bud estava na casa de Johnny, esperando os meninos voltarem da escola. Marah estava com Tully.

Ele e Margie estiveram nesta sala antes. Aqui, ouviram os cirurgiões falarem que não conseguiram limpar as margens do câncer de Kate e que ele se espalhara pelos nódulos linfáticos e que havia decisões sobre a qualidade de vida a serem tomadas. Ele pegou na mãos frias e grandes de Margie.

O detetive pigarreou.

Johnny levantou os olhos.

— O relatório toxicológico não vai ficar pronto rapidamente, mas a busca na casa da Srta. Hart revelou vários remédios prescritos — Vicodin, Xanax e Ambien, principalmente. Não encontramos testemunhas do acidente ainda, mas nossa estimativa, com base na análise da cena, é que ela estava dirigindo a noventa quilômetros por hora na Columbia Street, indo para a orla, na chuva. Ela bateu na mureta de concreto a toda velocidade.

— Havia marcas de frenagem? — perguntou Johnny. Ele ouviu Margie respirar fundo e sabia que esta era uma pergunta que não lhe ocorrera. Marcas de freio antes de uma colisão significam que o motorista tentara parar. A ausência dessas marcas significava outra coisa.

O detetive olhou para Johnny.

— Não sei.

Johnny meneou a cabeça.

— Obrigado, detetive.

Depois que o detetive saiu, Margie se virou para Johnny. Ele viu lágrimas nos olhos dela e se arrependeu da pergunta. Sua sogra já havia sofrido demais.

— Desculpe, Margie.

— Você está dizendo... Você acha que ela bateu de propósito?

A pergunta tirou as forças de Johnny e o deixou exposto.

— Johnny?

— Você a viu mais recentemente do que eu. O que acha?

Margie suspirou.

— Acho que ela se sentiu muito sozinha no último ano.

Johnny se levantou e resmungou uma desculpa sobre precisar ir ao banheiro e deixou a sala.

No corredor, ele se inclinou contra a parede e abaixou a cabeça. Quando finalmente a ergueu, viu uma porta diante dele, com um cartaz: CAPELA.

Quando fora a última vez que estivera numa igreja?

No funeral de Kate.

Ele cruzou o corredor e abriu a porta. Era uma salinha estreita, utilitária, na melhor das hipóteses, com alguns bancos e um altar improvisado. A primeira coisa que ele notou foi o silêncio. A segunda foi uma menina sentada à direita, no banco da frente. Ela estava tão curvada que tudo o que ele conseguia ver era um tufo de cabelos rosa.

Ele avançou lentamente, seus passos perdidos no piso acarpetado.

— Posso me juntar a você?

Marah levantou os olhos. Ele pôde ver que ela estivera chorando.

— Como se eu pudesse impedir.

— Quer me impedir? — perguntou ele. Johnny cometera tantos erros com ela que não queria adicionar mais um à pilha pressionando-a quando ela viera aqui para ficar sozinha.

Marah o encarou por um longo tempo e lentamente balançou a cabeça. Ela parecia tão jovem agora, como uma criança no Dia das Bruxas, vestida para chamar a atenção.

Ele se sentou com cuidado e esperou um pouco antes de perguntar:

— Rezar ajuda?

— Não muito. — As lágrimas se acumulavam em seus olhos. — Sabe o que fiz à Tully na semana passada?

— Não.

— É minha culpa o fato de ela estar aqui.

— Não é sua culpa, querida. Foi um acidente de carro. Não há nada que você possa ter feito...

— É sua culpa também — disse Marah, parecendo arrasada.

Quanto a isso, Johnny não sabia o que dizer. Ele sabia o que sua filha queria dizer; ele sentia a mesma coisa. Eles decepcionaram Tully, a excluíram de suas vidas, fizeram com que ela se sentisse só, e aqui estava ela.

— Não suporto isso — gritou Marah. Ela se levantou e foi para a porta.

— Marah! — gritou ele.

Na porta, ela parou e olhou para trás.

— Não se machuque — disse ele.

— Tarde demais — respondeu ela, e saiu da sala. A porta foi batida atrás dela.

Johnny se levantou lentamente. Sentindo cada um de seus cinquenta e cinco anos, ele voltou para a sala de espera, onde encontrou Margie sentada num canto, fazendo tricô.

Ele se sentou ao lado dela.

— Tentei ligar para a Dorothy de novo — disse ela depois de um tempo. — Nenhuma resposta.

— Ela vai ver o bilhete que o Bud colocou na porta?

Margie pareceu aceitar isso.

— Cedo ou tarde — disse ela. E depois: — Espero que cedo.

3 de setembro de 2010
14h59

Nesta tarde fria de setembro, as folhas estavam caindo por toda Snohomish, na beirada das ruas, nos estacionamentos e nas margens dos rios. Enquanto Dorothy Hart estava na sua banquinha de feira, encarando a vista que se tornou a sua vida, ela viu pedacinhos de beleza. As últimas rosas silvestres à venda na floricultura de Erika do outro lado da rua, uma jovem com um bebê de cabelos encaracolados saboreando um pouco do salmão defumado de Kent, um menino bebendo cidra feita em casa de um copo Dixie. A feira era uma confusão de cores e atividades e visões e sons. A apenas alguns quarteirões do centro histórico da cidade, esta feira animada se espalha por uma rua todas as sextas-feiras, do meio-dia às cinco: telhados brancos das barracas se elevam sobre tudo como pontas de sorvete; sob eles, várias frutas e nozes, amoras, ervas, legumes, produtos artesanais e mel. As cores eram belíssimas na luz amena de outono.

Na barraquinha, Dorothy estava chegando ao limite do seu suprimento de produtos. Ela tinha uma longa mesa envolta em jornal — a página de quadrinhos dominical — e com caixas que continham a colheita da semana: maçãs bem vermelhas, framboesas, cestas de ervas e legumes: ervilhas, tomates, brócolis e abobrinha. Destas, poucas restavam; maçãs solitárias no fundo de uma caixa vazia e um punhado de ervilhas.

Ela estava quase sem nada. O céu — sem nuvens e azul — era o pano de fundo para a confusão enquanto ela embalava caixas e as levava pela rua até a barraquinha de Cascade Farms.

O proprietário, um homem de cabelos amarfanhados com uma barriga imensa e um nariz pontudo, lhe deu um sorriso.

— Parece um bom dia para você, Dorothy.

— Bom mesmo, Owen. Obrigada novamente por me deixar usar parte da sua barraca. As framboesas se foram rapidamente.

Ela lhe entregou uma pilha de caixas de madeira. Ele as pegou e as colocou na parte de trás de uma caminhonete enferrujada. Ele as deixaria na casa dela mais tarde.

— Tem certeza de que não posso lhe dar carona para casa?

— Não. Estou bem, mas obrigada. Diga oi pra Erika. Vejo vocês mais tarde.

Ela voltou para sua parte da barraquinha, sentindo uma gota de suor na nuca. A gota escorreu pelas suas costas, umedecendo a cintura de sua calça. Ela desabotoou a camisa simples que era basicamente seu uniforme — ela tinha ao menos seis delas — e a tirou, amarrando-a na cintura pelas mangas. A camiseta vermelha que ela tinha sob a camisa estava manchada de suor sob os braços, mas não havia nada que ela pudesse fazer a respeito disso.

Ela tinha sessenta e nove anos, cabelos compridos grisalhos, uma pele que parecia um rio seco e olhos que expressavam a dor que ela vivenciara. A última coisa que a preocupava era como cheirava. Dorothy recolocou a bandana na testa e subiu em sua velha bicicleta, que era seu único meio de transporte.

Um dia de cada vez.

O mote da sua nova vida. Nos últimos cinco anos, ela mudara completamente, aparara as arestas e se descascara até que apenas o que importava permanecesse. Ela não deixava quase nenhuma pegada de carbono no planeta. Fazia compostagem com tudo. Cultivava e vendia seus produtos orgânicos e só comia comida orgânica. Frutas, nozes, legumes e grãos. Ela não era mais bonita e estava magra e marcada como suas ervilhas, mas nada disso a incomodava. Na verdade, a agradava. A vida que ela levara transparecia em seu rosto.

Dorothy estava sozinha agora. Era como ela sempre deveria estar. Quantas vezes seu pai lhe dissera isso? Você é fria como gelo, Dotty. Vai terminar sozinha se não derreter. Era um crime que a voz de seu pai ainda estivesse na mente dela depois de tantos anos.

Ela pôs uma faixa de borracha em torno da perna da calça e subiu na bicicleta. Com um floreio, ela se pôs em movimento, pedalando com sua caixa de dinheiro batendo na cestinha presa entre os guidões. Carros buzinavam e se aproximavam demais, mas ela mal os notava. Aprendera que as pessoas se sentiam pouco à vontade com velhos hippies em geral, especialmente os que usavam bicicletas.

Na esquina, ela estendeu o braço para indicar sua intenção e entrou na Main Street. Isso de seguir as regras, indicar que viraria, lhe dava prazer. Ela sabia que soava estranho e que a maioria das pessoas não entenderia, mas toda a sua vida fora gasta em anarquia, e a paz que vinha com regras e cercas e sociedade provou ser incrivelmente consoladora. Dorothy estacionou sua bicicleta nas barracas do lado de fora da farmácia. Os novos residentes da cidade, suburbanos ricos que escolheram esta que fora uma cidade-dormitório como seu lar, porque ela ficava a não mais do que quarenta quilômetros de Seattle, prenderiam suas bicicletas com uma corrente vermelha e protegeriam seu investimento.

Dorothy sempre sorria ao ver o cuidado que as pessoas tinham com as coisas. Algum dia, se tivessem sorte, aprenderiam o que precisava ser mantido próximo na vida e com o que não valia a pena se preocupar. Recolocando a bandana e caminhando pela calçada irregular, ela ficou surpresa com a quantidade de pessoas na cidade hoje. Turistas entravam e saíam das lojas de antiguidade que fizeram a fama de Snohomish. Nesta rua, antes a única da cidade, margeada num dos lados pelo rio Snohomish e no outro pela parte nova da cidade, as vitrines mantinham a aparência de antigamente.

Ela entrou numa farmácia bem iluminada e foi diretamente para o balcão dos remédios controlados. Pelo caminho havia várias coisas que chamavam sua atenção — grampos coloridos, xícaras de café com frases inspiradoras, cartões —, mas ela sabia que menos era mais. Além do mais, Dorothy não tinha dinheiro, e o cheque de Tully ainda não viera este mês.

— Ei, Dorothy — disse o farmacêutico.

— Oi, Scott.

— Como estava a feira hoje?

— Ótima. Tenho um pouco de mel pra você e pra Lori. Vou trazer.

Ele lhe entregou o remédio que fez tanta diferença em sua vida.

— Obrigada.

Ela pagou pelos comprimidos embalados num pequeno frasco alaranjado e saiu. Dorothy voltou para a rua movimentada, subiu na sua bicicleta e pedalou cinco quilômetros até sua casa.

Como sempre, subir a Summer Hill a deixava morta, e, assim que ela chegava ao alto e virava na Firefly Lane, suava muito e respirava pesadamente. Na sua garagem, virou à esquerda e insistiu enquanto avançava com a velha bicicleta para a casa.

Havia um bilhete na porta da frente. Franzindo a testa, ela desceu da bicicleta e a deixou cair no chão. Quando fora a última vez que alguém lhe deixara um bilhete?

D—

Tully está no Sacred Heart Hospital. Johnny diz para se apressar. O dinheiro para o táxi está sob o capacho. 426 E.

M

Dorothy se abaixou e levantou o capacho preto de borracha. Um envelope branco estava sobre o cimento manchado. Dentro do envelope havia uma nota de cem dólares.

Dorothy correu pela calçada que uma vez pertencera a seus pais e agora pertencia a sua filha — a mesma casa onde uma Dorothy muito mais jovem vivera com a Tully de quatorze anos. O único lugar onde elas moraram juntas.

Nos últimos anos, Dorothy fizera algumas melhorias nesse lugar, mas não muitas. O exterior ainda era bege e precisava de uma pintura; o telhado ainda tinha musgo em alguns lugares. Dentro, ela tirara o carpete cor de abacate e encontrara um piso de madeira embaixo, piso que um dia ela pretendia reformar. A cozinha ainda tinha a cor apocalíptica que algum locatário escolhera nos anos 1970, mas as horríveis cortinas de algodão se foram. O único ambiente de que Dorothy realmente cuidara fora a suíte máster. Ela tirara as cortinas baratas e o carpete dourado e pintara as paredes com uma bela cor de creme.

Dorothy abriu seu frasco e tomou o comprimido, juntamente com um pouco de água da torneira. Pegando um velho telefone com fio na cozinha — uma antiguidade nesta era de celulares —, ela abriu a lista telefônica, procurou o número e pediu um táxi. Não havia tempo para tomar banho, por isso ela simplesmente penteou os cabelos e escovou os dentes. Fazendo uma trança ao entrar no quarto, ela se viu no espelho oval sobre a penteadeira.

Ela parecia Gandalf depois de um porre.

O táxi buzinou diante da casa. Ela pegou sua bolsa e saiu. Só quando já estava no banco de veludo marrom, olhando pela janela suja, é que percebeu que uma das pernas da calça ainda estava presa com uma tira de borracha no tornozelo.

Ela encarou a fazenda enquanto o táxi partia. Havia mais de quatro anos — quando Dorothy finalmente aceitara a ideia da verdadeira mudança —, este lugar a salvara. Ela geralmente pensava que suas lágrimas eram a umidade que fazia os legumes crescerem.

Ela se sentia grata pelos remédios em seu corpo. O véu que eles criavam era fino e amenizava o mundo ao seu redor. O bastante para que suas emoções — seus humores perigosos e pouco confiáveis — se acalmassem. Sem os remédios, ela sabia que poderia cair numa espiral para a escuridão em que vivera a maior parte de sua vida.

Lembranças a chamavam, a empurravam, exigiam tanto dela até que não pudesse mais ouvir o taxista respirando, o motor roncando ou o tráfego em volta deles.

O tempo a envolvia e ela não queria resistir. Dorothy desistiu, entregou-se e, por um segundo, o mundo ficou completamente imóvel.

Ela ouviu um cachorro latindo, a correia chicoteando e soube onde estava, quando estava: 2005. Novembro. Ela tinha sessenta e quatro anos, era uma mulher que se fazia chamar de Cloud e sua filha era uma das pessoas mais famosas da TV. Cloud vivia num trailer quebrado num terreno lamacento numa estrada vicinal perto de Eatonville. O cheiro doce de...

... maconha a envolvia. Ela estava chapada, mas não chapada o bastante. Ultimamente, não havia erva o suficiente no mundo para protegê-la.

Talvez uma bebida ajudasse. Ela saiu da cama Barcalounger e se arrastou até a mesa de fórmica do café. Sua perna doeu e latas de cerveja caíram no chão.

Ela se moveu com cuidado pela casa móvel, perguntando-se se o piso se inclinara de repente ou se estava mais chapada do que imaginava. Na cozinha, parou. Para que viera ali mesmo?

Cloud olhou em volta, notando a pilha de louça suja no fogão. Ela deveria lavá-las antes que Truc voltasse para casa. Ele odiava quando ela não limpava... Aquelas moscas estavam voando ao redor das caixas de pizza?

Ela foi até a geladeira e abriu a porta. A luz se acendeu, iluminando restos de sanduíches, latas de cerveja e um leite que parecia vagamente verde. Cloud fechou a porta e abriu a do freezer. Havia um quinto de vodca na porta. Ela estava pegando a bebida com a mão trêmula quando seu coração ouviu um motor a diesel.

Droga.

Ela devia começar a limpar, mas estava tremendo tanto que se sentia enjoada.

Lá fora, os cães estavam latindo, rosnando. Ela podia ouvi-los correndo para ele, esticando as coleiras, pulando sobre as correntes.

Cloud tinha de recebê-lo. Ela passou as mãos trêmulas pelos cabelos longos e despenteados. Quando fora a última vez que tomara banho? Ela cheirava mal? Ele odiava aquilo.

Ela foi até a porta e a abriu. A princípio, tudo o que viu foi uma tarde cinza que cheirava a diesel, cocô de cachorro e terra molhada.

Ela piscou, focando o olhar.

Havia um enorme caminhão vermelho estacionado perto da pilha de lenha.

Truc desceu da cabine, sua bota com salto de aço batendo na lama. Ele era um homem grande, com uma barriga que entrava no ambiente primeiro e cabelos castanhos que emolduravam um rosto quadrado e desgastado.

A verdade estava em seus olhos. Eram pequenos e pretos e a luz neles podia escurecer num instante.

— O-oi, Truc — disse ela, abrindo uma cerveja para ele. — Achei que você só voltaria para casa na terça-feira.

Ele se aproximou e Cloud percebeu que estivera bebendo. Seus olhos pareciam de vidro, sua boca estava mole. Ele parou para acariciar seus amados dobermanns, pegando biscoitos caninos dos bolsos. O barulho das mandíbulas parecia terrivelmente alto na noite silenciosa. Ela recuou, tentando continuar sorrindo.

Truc pegou a cerveja dela e ficou lá naquele retângulo de luz. Os cães estavam quietos ao lado dele agora, servis, babando de afeição. Do jeito que ele gostava. Atrás deles, os campos desapareciam numa cerração que limpava o jardim dos carros enferrujados, geladeiras quebradas e móveis descartados.

— É terça-feira — resmungou Truc. Ele terminou de beber sua cerveja e jogou a lata para os cachorros, que imediatamente começaram a brigar por ela. Ele estendeu seus grandes braços e lhe deu um abraço. — Senti sua falta — sussurrou ele com sua voz grave, e ela se perguntou onde ele estivera desde que seu turno terminara. No Lucky Spot, provavelmente, bebendo e reclamando dos cortes na fábrica. Truc cheirava a serragem, fumaça e uísque.

Cloud tentou ficar imóvel, mal ousando respirar. Ele estava sensível ultimamente, e ficando mais sensível o tempo todo. Ela nunca sabia o que o irritaria.

— Senti a sua falta também — disse ela, percebendo a mentira em sua voz. Sua mente estava vagarosa, os pensamentos avançando pelo lodo.

— Você não está usando a blusa que lhe comprei.

Ela recuou lentamente. Que blusa? Honestamente, ela não se lembrava.

— Eu... Eu sinto muito. Estou economizando para uma oportunidade. É tão linda.

Ele fez um som, talvez de nojo, talvez de resignação, talvez de apatia. Ela não sabia dizer. Seus pensamentos estavam confusos demais e isso era ruim, ruim, ruim. Cloud o pegou pela mão, apertando-a enquanto o levava para dentro do trailer.

Um lugar fedendo a maconha, percebeu ela de repente. E algo mais; lixo, talvez.

— Cloud — disse ele, tão baixinho que os pelos na nuca dela se eriçaram. O que ele vira? O que ela fizera ou não fizera?

Faxina. Ela se esquecera de limpar. Ele odiava louça suja na pia.

Cloud virou-se lentamente, incapaz de pensar numa desculpa.

Ele a beijou nos lábios, com tanto amor que ela soltou um suspiro de alívio.

— Você sabe que odeio bagunça. Com tudo o que lhe dou...

Ela recuou.

— Por favor...

Antes mesmo que pudesse erguer as mãos para se defender, ele lhe dera um soco no rosto. Cloud sentiu seu nariz quebrando; o sangue se espalhou por todo o lugar e ela ficou lá, sangrando. Chorar só pioraria as coisas.

Ela acordou ao som de uma respiração pesada. Por um segundo, não se lembrou de nada, mas a dor a lembrou. Cloud abriu um dos olhos e imediatamente fez uma cara feia. A luz da TV a atingia, fazia-a piscar. Sua boca estava seca; ela estava tremendo incontrolavelmente e tudo doía.

Reflita.

Ela acordara nesta situação vezes demais. Sabia o que fazer.

Cloud estava na cama, com Truc espalhado ao lado dela, sua barriga para cima, os braços peludos abertos. Já estava escuro agora. A noite caíra.

Ela saiu da cama e fez uma careta ao apoiar o peso no tornozelo esquerdo. Torcido numa de suas quedas, obviamente.

Ela mancou até o banheiro e se viu no espelho atrás da porta. Seus cabelos estavam despenteados e grudados com sangue. Seu olho estava roxo e o ferimento ao redor dele era uma mistura de roxo, marrom e amarelo. Seu nariz estava quebrado e sangue seco recobria seu queixo e rosto.

Machucada demais para se limpar, ela vestiu o que pôde encontrar, as roupas de ontem ou da noite passada, não se lembrava; doía demais ver se havia sangue no tecido.

Ela tinha de sair dali, se afastar de Truc antes que ele a matasse. Cloud pensara nisso antes, dezenas de vezes, todas as vezes que ele a espancara, e uma vez, havia cerca de um ano, ela até mesmo fora embora por um tempo, chegara até Tacoma, mas por fim ele a encontrara e a trouxera de volta porque Cloud não tinha para onde ir e, na verdade, era isso o que ela esperava de sua vida. O que sempre esperara.

Mas ela não era mais jovem; era uma velha, na verdade. Seus ossos se quebravam com facilidade ultimamente, e se numa destas vezes ela atingisse a parede e sua espinha se quebrasse?

Faça.

Passando por ele até a mesinha de cabeceira e remexendo tremulamente na carteira dele, encontrou três notas de vinte. Segurando o dinheiro, Cloud sabia que as coisas só piorariam se ela não fugisse, mas ela fugiria desta vez. Tinha de fugir.

No maior silêncio possível, ela deu um passo.

O piso rangeu e Truc fez um som no seu sono e se virou para ela.

Cloud ficou paralisada, o coração batendo forte, mas ele não acordou. Aliviada, ela pegou seus dois pertences mais importantes — um cordão de macarrão e contas e uma velha fotografia em preto e branco. Ela vestiu o cordão e colocou a fotografia no bolso da camisa de flanela, abotoando o bolso para protegê-la.

Ela se virou rapidamente, apoiada no pé bom, e saiu mancando do ambiente.

Lá fora, os cães imediatamente se sentaram, observando-a intensamente. O Monte Rainer se elevava não muito ao longe, seu pico nevado iluminado pela lua.

— Shhh, meninos — disse ela, passando pelos cachorros.

Estava passando pela velha poltrona Barcalounger quando o primeiro cão latiu. Ela continuou em frente, sem olhar para trás.

Estava escuro na floresta, tão escuro que apenas com paciência ela podia encontrar seu caminho, e a dor a cada passo reverberava por seu corpo. Seu pescoço doía e seu rosto latejava, mas ela não parou nem diminuiu o passo até chegar à estação de ônibus em Eatonville. Lá, escondida pelo vidro sujo, Cloud se sentou num banco e finalmente respirou.

Ela pegou um cigarro de maconha — o último — e o fumou sentada no escuro, e ajudou, mas não o bastante. Sua dor ainda era insuportável, assim como seu arrependimento. Ela já temia ter que voltar.

Cloud entrou no ônibus, ignorando o olhar preconceituoso do motorista.

Duas horas e meia mais tarde, pouco depois das dez da noite, ela desceu do ônibus no centro de Seattle. Na Pioneer Square, para ser mais exata. Era onde se podia desaparecer em Seattle. Ela sabia tudo sobre ser invisível. E era disto que precisava agora: tornar-se uma sombra num mundo borrado.

Mas, ao se mover naquele lugar que deveria recebê-la com esquinas escuras e ruelas, sua dor de cabeça se intensificou. Parecia que martelavam em seu crânio. Ela ouviu o murmúrio baixinho que soltou, e foi como se aquele som não tivesse saído dela. Cloud aprendera a sofrer com a dor em silêncio, não é? Ela aprendera havia muito tempo.

Doía tanto que ela não conseguia pensar direito.

Quando deu por si, estava caindo.