Capítulo Vinte e Dois

AS PESSOAS ACHAM QUE MENINAS NÃO ficavam grávidas na minha época, mas ficávamos. Algumas coisas no mundo são certas, e uma delas é que adolescentes farão sexo. A diferença é que desaparecíamos. Havia sempre rumores e insinuações. As meninas simplesmente desapareciam um dia — foram visitar uma tia idosa ou um primo doente — e voltavam mais tarde, geralmente mais magras e quietas. Para onde elas realmente iam, nunca soube nem me importei.

Eu amava Rafe; não do jeito ingênuo e escolar do nosso primeiro encontro, mas por completo e profundamente. Ainda não sabia que o amor era frágil e que o futuro podia mudar num instante. Certa noite, no final de maio, meu pai chegou em casa, estranhamente sorrindo, e disse para minha mãe que fora promovido e que estávamos nos mudando para Seattle. Ele nos mostrou uma foto da casa que comprara e deu um beijinho no rosto da minha mãe. Ele parecia tão impressionado quanto eu me sentia.

Num instante.

Primeiro de julho, disse o papai. Eis o dia em que iremos.

Tinha de contar tudo a Rafe. Não havia mais tempo para me preocupar ou planejar. Meu futuro — a não ser que Rafe o alterasse — seria num lugar chamado Queen Anne Hill, em Seattle.

Por mais assustada que eu estivesse, estava empolgada também. Talvez até mesmo um pouco orgulhosa. Nós fizemos isso, geramos uma criança do nosso amor, e não era para isso que eu fui criada?

Ele não se afastou de mim na noite em que finalmente lhe contei. Tínhamos dezessete e dezoito anos, respectivamente; crianças. A ele faltava menos de um mês de Ensino Médio. Eu tinha mais de um ano. Deitamos no “nosso” lugar, um recanto que criáramos no pomar Old Man Kreske. Lá, deixávamos um velho saco de dormir e um travesseiro. Guardávamos nossa cama num saco de lixo e a enfiávamos num lugar coberto quando não estávamos lá. Depois da escola, estendíamos nosso saco de dormir e nos deitávamos nele. De costas, sempre nos tocando, olhávamos o céu. O ar cheirava a laranjas maduras e solo fértil e terra assada pelo sol.

Um bebê, disse ele, e de repente eu estava imaginando você: dez dedos da mão, dez do pé, cabelos pretos. Num instante, imaginei uma vida de sonhos para nós três, mas ele ficou quieto e a dúvida se assentou. Como ele ia me querer daquele jeito, eu, que era tão errada?

Podemos fugir, eu disse, quebrando o silêncio. Para... onde quer que as meninas vão. Quando eu voltar...

Não. Este é o nosso bebê, disse ele, com ênfase. Vamos ser uma família.

Nunca amei ninguém como o amei naquela ocasião.

Naquela tarde cheirando a laranja, começamos a planejar. Sabia que não podia contar a meus pais. Se eles pudessem me trancar e doar meu filho, sei que o fariam. Não pensei duas vezes em desistir da escola. Eu não era estudiosa e não havia começado a perceber como o mundo era grande ou o quanto durava uma vida. Eu era uma menina da minha época. Queria ser uma esposa e uma mãe.

Partiríamos logo depois da formatura dele. Ele estava essencialmente sozinho também. Sua mãe morrera no parto; ele viera do sul da Califórnia com um tio, depois que seu pai desertara da família. Eles eram imigrantes. Rafe queria mais para si mesmo e éramos ingênuos o bastante para pensar que poderíamos encontrar isso juntos.

No dia que escolhemos para nossa escapada, eu estava nervosa. No jantar, não consegui dizer nada. A última coisa que queria era sobremesa; não podia nem mesmo comer a torta de maçã que minha mãe havia preparado.

O que há de errado com ela?, perguntou meu pai, franzindo a testa para mim em meio à fumaça azul de seu cigarro.

Lição de casa, murmurei, e me ergui. Lavei e sequei a louça enquanto meu pai fumava entre garfadas de torta e minha mãe fazia um bordado com algum dito sentimental. Não os ouvi conversarem entre si, o que era incomum. E meu coração estava batendo com tanta força que não sei se ouviria as vozes deles mesmo.

Certifiquei-me de que tudo fora feito perfeitamente, de acordo com os padrões do meu pai, antes de pendurar o pano de prato na alça de metal do forno. Meus pais haviam passado para a sala de estar. Eles se sentaram em seus respectivos lugares — o papai numa poltrona verde-oliva com franjas e a mamãe na extremidade de um sofá cor de creme. Atrás de ambos, cortinas escuras numa estampa abstrata verde-oliva, branca e vermelha emolduravam a vista da casa do vizinho.

Tenho muita lição de casa hoje à noite, disse, de pé num canto do ambiente como uma penitente, de mãos dadas, os ombros curvados. Estava me esforçando para ser boazinha. Não queria irritar meu pai.

É melhor você ir, então, disse ele, acendendo um cigarro no outro.

Saí da sala. Atrás da minha porta fechada, esperei que eles desligassem a luz, andando de um lado para o outro, minha mala já feita sob a cama.

Cada segundo parecia uma hora. Através das paredes finas, ouvi Danny Thomas cantando algo na televisão e, sob a porta, o cheiro do cigarro do meu pai.

Às nove e quinze, ouvi-os desligando a TV e trancando a casa. Esperei mais vinte minutos, o bastante para minha mãe passar Noxzema no seu rosto, prender os cabelos e cobri-los com uma redinha.

Estava assustada quando posicionei travesseiros e bichinhos de pelúcia na minha cama e os cobri. Vesti-me com cuidado no escuro. Era junho, mas mesmo no sul da Califórnia fica fresquinho à noite. Coloquei uma saia colorida e um suéter preto com mangas três quartos. Penteei o cabelo num rabo de cavalo e abri minha porta.

O corredor estava silencioso e escuro. Nenhuma luz brilhava por debaixo da porta do quarto dos meus pais.

Caminhei pelo corredor, com medo do som dos meus passos no carpete. Esperava ser detida, agarrada, espancada a cada passo, mas ninguém me seguiu e as luzes não foram acesas. Na porta dos fundos, com seu exterior falso de celeiro, parei e olhei para a casa.

Jurei silenciosamente que nunca mais voltaria. Depois me virei, vi os faróis aguardando no fim do beco e corri para o meu futuro.

Só depois que consumimos o primeiro tanque de gasolina é que o medo se apresentou. O que faríamos? Como viveríamos? Eu tinha dezessete anos e estava grávida, sem diploma do Ensino Médio nem conhecimento técnico. Rafe tinha dezoito anos, sem família ou dinheiro com que contar. Por fim, o dinheiro que tínhamos nos levou apenas ao norte da Califórnia. Rafe fez a única coisa que sabia. Trabalhou nas fazendas, colhendo o que quer que estivesse na época de colher. Vivíamos em barracas, celeiros, cabanas. O que quer que encontrássemos.

Lembro-me de estar sempre cansada e sem dinheiro, suja e solitária. Ele não me deixaria trabalhar na minha condição, e eu não me importava. Em vez disso, ficava em qualquer buraco que encontrávamos e tentava fazer dele um lar. Queríamos nos casar. A princípio, eu não tinha idade, e, depois que completei dezoito anos, o mundo começou a mudar ao nosso redor e nos incluiu no caos. Dizíamos a nós mesmos que um pedaço de papel não importava a pessoas apaixonadas.

Éramos felizes. Lembro-me disso. Eu amava seu pai. Mesmo quando nós dois começamos a mudar, eu me mantive próxima.

No dia em que você nasceu — numa tenda num campo em Salinas, por sinal —, senti-me cheia de poder e assolada pelo amor. Demos a você o nome de Tallulah porque sabíamos que você seria extraordinária, e Rose porque sua pele rosa era a coisa mais doce e macia que jamais havíamos tocado.

Eu amava você. Amo.

Mas alguma coisa me aconteceu quando você nasceu. Comecei a ter pesadelos com meu pai. Hoje em dia, alguém falaria a uma jovem mãe sobre depressão pós-parto, mas não naquela época, muito menos num campo de imigrantes em Salinas. Na nossa tenda, eu acordava no meio da noite, gritando. As cicatrizes da pele queimada pelo cigarro pareciam latejar. Às vezes eu achava que o via por entre as roupas. Rafe não entendia.

Comecei a lembrar como era ser louca e sentir aquilo de novo. Aquilo me assustou tanto que me calei e simplesmente tentei ser boazinha. Mas Rafe não me queria boazinha, silenciosa; ele continuava me agarrando, me balançando, implorando que eu lhe dissesse o que havia de errado. Certa noite, quando ele estava morrendo de preocupação comigo, começamos a brigar. Nossa primeira briga de verdade. Ele queria algo de mim que eu não podia dar. Ele tirou de mim ou eu puxei. Não lembro. De qualquer modo, ele saiu, e, na ausência dele, eu me desestabilizei. Sabia que tinha sido má, que o perdera, que ele nunca me amara — como poderia me amar? Quando ele finalmente voltou para casa você estava nua e gritando e fizera cocô no chão todo e eu apenas ficara lá, sentada, em estupor, olhando para você. Ele me chamou de louca e eu... bati. Bati no rosto dele com toda a força que eu tinha.

Foi horrível. A polícia foi chamada. Eles colocaram algemas em Rafe e o levaram e me obrigaram a dar minha carteira de motorista. Era 1962, lembre-se. Eu era adulta, mãe, mas eles ligaram para o meu pai. Naqueles dias, minha mãe nem mesmo tinha seu próprio cartão de crédito. Meu pai mandou que me prendessem e eles o fizeram.

Fiquei sentada na cela suja da cadeia por horas. O bastante para tirarem as impressões digitais de Rafe e o acusarem de violência doméstica (eu era uma menina branca, lembre-se). Uma assistente social tirou você de mim, dizendo que você estava suja. Eu deveria estar gritando por você, estendendo os braços, exigindo minha filha. Mas fiquei lá, sentada, assolada por um desespero tão grande que não conseguia respirar, por uma dor que parecia impossível dissipar. Eu era louca. Agora sabia disso.

Por quanto tempo fiquei lá? Ainda não sei. Pela manhã, tentei dizer à polícia que eu mentira sobre Rafe me bater, mas eles não se importaram. Eles me mantinham presa “para minha própria segurança”, até que meu pai viesse me buscar.

O hospital para onde me levaram da segunda vez era muito pior do que o primeiro. Eu deveria ter gritado e lutado para me desvencilhar. Não sei por que não o fiz. Simplesmente fiquei ao lado da minha mãe enquanto ela me guiava pelos degraus de pedra e para dentro de um prédio que cheirava a morte, álcool e urina.

Dorothy fugiu e teve um bebê e bateu no namorado. Agora ela não quer falar.

Foi quando comecei a ignorar grandes porções de tempo, em algum lugar daquele prédio branco e fedido, com janelas protegidas por telas.

Tenho lembranças daquele lugar, mas não posso falar sobre elas. Ainda. Depois de todo esse tempo. A essência de tudo: medicamentos. Elavil para depressão, hidrato clorídrico para dormir e algo de que não me lembro para ansiedade. E eletrochoques e banhos de gelo... e... de qualquer modo, eles disseram que era para o meu bem. Sabia que não, mas o Thorazine me transformou num zumbi; a luz começou a ferir meus olhos, minha pele ficou ressecada e eu comecei a me enrugar, meu rosto inchou. Quando encontrei energia para me levantar e olhar no espelho, sabia que eles tinham razão. Eu estava doente e precisava de ajuda. Eles só queriam que eu melhorasse. Para melhorar, eu tinha de ser boazinha de novo. Parar com os gritos e as lutas e de mentir sobre o meu pai e exigir minha filha.

Fiquei lá por dois anos.

Saí do hospital uma pessoa diferente. Esgotada. Este é o melhor jeito de descrever. Achava que conhecia o medo antes que aquelas portas se fechassem atrás de mim, antes de aprender a ver o sol em meio a barras e telas, mas estava enganada. Quando saí, minha memória estava confusa — o tempo corria em sobressaltos e havia porções da minha vida das quais não conseguia me lembrar.

Mas me lembrava do amor. Era fraca a minha lembrança disso, mas me mantivera viva no hospital. Agarrava-me à minha memória no escuro, dedilhando-a como um rosário. Ele me ama. Repetia isso vezes sem fim. Não estou sozinha.

E havia você.

Guardei uma imagem sua em minha mente ao longo de tudo isso — suas bochechas rosadas e olhos cor de chocolate (os olhos de Rafe), e a maneira como você se lançava para a frente quando estava tentando engatinhar.

Quando eles finalmente me liberaram, saí do hospital em roupas que não reconhecia como minhas.

Minha mãe estava lá esperando por mim, suas mãos enluvadas segurando a bolsa. Ela usava um vestido marrom de mangas curtas com um cinto branco. Seus cabelos pareciam uma touca de natação. Ela se calou e me olhou através dos óculos de gato.

Está melhor agora?

A pergunta me cansou, mas escondi o cansaço. Estou. Como está a Tallulah?

Minha mãe deixou escapar um suspiro de desprazer e eu sabia que não deveria perguntar. Contamos a todos que ela é nossa sobrinha. Eles sabem que entramos na justiça para pedir a custódia, por isso não diga nada.

Você a tirou de mim?

Olhe para você. Seu pai tem razão. Você não sabe criar uma filha.

Meu pai, foi tudo o que disse, mas bastava. As penas da minha mãe se eriçaram.

Não comece com isso de novo. Ela me pegou pelo braço e me levou para fora do hospital até um Chevrolet Impala azul novo. Só conseguia pensar em salvar você da terrível casa onde ele morava, mas eu sabia que teria de ser inteligente. Se estragasse tudo de novo, eles podiam encontrar uma maneira de garantir que eu nunca lhes causasse problemas de novo. Eu vira como eles faziam isso naqueles lugares. As cabeças raspadas e as cicatrizes das cirurgias; os olhos vazios e os pés pesados dos pacientes que babavam e mijavam de pé mesmo.

A viagem para casa demorou mais de duas horas. Eu me lembro de observar a autoestrada passar por mim e perceber que não conhecia aquela cidade. Meus pais viviam à sombra desta coisa nova chamada Space Needle, que parecia uma nave espacial no alto de uma torre. Não me lembro de trocarmos uma só palavra até estacionarmos.

Ajudou, não foi?, perguntou minha mãe, um brilho de preocupação em seus olhos. Eles nos disseram que você precisava de ajuda.

Sabia que não podia dizer a verdade — se a conseguisse encontrar. Estou melhor, disse.

Mas, quando entrei na nova casa, cheia de mobília da minha juventude e cheirando a loção pós-barba Old Spice e cigarros Camel do meu pai, fiquei tão enjoada que corri para a pia da cozinha e vomitei.

Quando vi você, comecei a chorar.

Dorothy, não a irrite, disse minha mãe, ríspida. Ela não conhece você.

Ela não me deixava tocar você. Minha mãe tinha certeza de que meu veneno infectaria você de alguma forma, e como eu poderia discordar?

Você parecia feliz com ela, e ela sorria e até ria. Não me lembro de fazê-la feliz como você a fazia. Você tinha seu próprio quarto e um monte de brinquedos, e ela embalava você para dormir. Na primeira noite em casa, fiquei na porta do seu quarto e a observei cantar Hush, Little Baby para você.

Senti meu pai vindo por trás de mim; o ar gelou. Ele chegou perto demais, pôs a mão na minha cintura e sussurrou no meu ouvido: Ela vai ser linda. Sua pequena imigrante ilegal.

Virei-me. Não ouse olhar para minha filha.

Ele sorriu. Vou fazer o que eu quiser. Você ainda não sabe?

Gritei de raiva e o afastei de mim. Seus olhos se arregalaram e ele perdeu o equilíbrio. Ele tentou me alcançar, mas eu me afastei, observando-o cair pela escada — rolando, batendo, quebrando o corrimão. Quando ele estava imóvel, fui vê-lo. Sangue corria da sua nuca.

Senti uma frieza se apoderar de mim; ela me separava do rosto. Ajoelhei-me no sangue ao lado dele. Odeio você, eu disse, esperando que estas fossem as últimas palavras que ele ouvisse. Quando ouvi a voz da minha mãe, olhei para cima.

O que você fez?, gritou minha mãe. Você estava nos braços dela, dormindo. Nem mesmo os gritos dela acordaram você.

Ele está morto, eu disse.

Ah, meu Deus. Winston! Minha mãe correu para a sala e eu a ouvi ligar para a política.

Corri atrás dela, surpreendendo-a enquanto ela desligava.

Ela se virou. Vou ajudar você, disse ela.

Ajuda.

Sabia o que aquilo queria dizer. Eletrochoques e banhos gelados e barras e medicamentos que me fariam esquecer tudo e todos.

Quero ela, implorei.

Ela não está segura com você. Minha mãe segurou você com mais força. Vi como ela estava lutando por você e aquilo me magoou tanto que não conseguia respirar.

Por que você não lutou por mim?

Como?

Você sabe como. Você sabe o que ele fazia comigo.

Ela fez que não, dizendo algo que eu não pude ouvir. Então, bem baixinho: Vou protegê-la.

Você não me protegeu.

Não, disse ela.

Ouvi as sirenes se aproximando. Quero ela, implorei novamente, mas sabia que era tarde demais.

Por favor.

Minha mãe fez que não.

Se eles me encontrassem ali, me prenderiam. Eu era uma assassina agora. Minha própria mãe chamara a polícia, e Deus sabia que ela não me protegeria.

Vou voltar por ela, prometi, chorando. Vou encontrar o Rafe e vamos voltar.

Fugi da casa dos meus pais e me escondi atrás de um grande arbusto no jardim. Ainda estava lá quando a polícia e a ambulância apareceram, e os vizinhos.

Queria odiar quem eu me tornara — uma assassina —, mas não podia sentir outra coisa que não felicidade pela morte dele. Eu salvei você dele, pelo menos. Queria salvar você da minha mãe também, mas como podia cuidar de você sozinha? Eu era nada. Não tinha trabalho, dinheiro ou diploma do Ensino Médio.

Precisávamos de Rafe para formar uma família.

Rafe. O nome dele transformou-se em tudo — minha religião, meu mantra, meu destino.

Andei pela First Avenue e pedi carona. Quando uma Kombi parou, o motorista me perguntou para onde eu estava indo.

Salinas, eu disse. Foi tudo em que consegui pensar. O último lugar onde o vi.

Entre.

Entrei. Entrei e olhei pelas janelas e ouvi a música que soava do rádio: Blowin’ in The Wind.

Você curte ficar chapada?, ele me perguntou. E eu pensei: Por que não?

Dizem que maconha não vicia. A mim, sim. Uma vez que fumei meu primeiro cigarro, não pude parar. Precisava da calma que ela me dava. Foi quando comecei a viver como uma vampira, acordada a noite toda, sempre chapada. Dormia com homens dos quais não me lembrava em colchões sujos. Mas, aonde quer que fosse, perguntava por Rafe. Em todas as cidades da Califórnia, pedi carona para as fazendas locais e perguntei por ele com meu espanhol ruim, mostrando a única fotografia dele que eu tinha para trabalhadores que me olhavam com desconfiança.

Vaguei por meses, até que cheguei a Los Angeles. Sozinha, pedi carona até Rancho Flamingo e vi a casa onde cresci. Depois fui até a velha casa de Rafe. Nunca tinha estado lá antes e levei algum tempo para encontrá-la. Não esperava achá-lo ali, e não estava enganada. Mesmo assim, alguém abriu a porta.

Seu tio: soube assim que o vi. Ele tinha os olhos escuros de Rafe — seus olhos, Tully — e os mesmos cabelos ondulados. Ele parecia incrivelmente velho para mim, enrugado e desbotado por uma vida de trabalho duro sob o sol forte.

Sou Dorothy Hart, disse, limpando o suor.

Ele levantou a aba de seu velho chapéu de palha. Sei quem você é. Você o pôs na cadeia. Ele disse assim: Usted o pôs.

O que eu podia dizer? O senhor me diria onde ele está?

Ele me olhou durante tanto tempo que comecei a ficar enjoada. Depois, fez um sinal de siga-me com a mão.

Permiti-me ter um pouco de esperança e segui em frente nos degraus irregulares da varanda. Segui-o para dentro de uma casa limpa e cheia de sombras que cheirava a limão e algo mais, charuto, talvez, e carne assada.

Diante de uma lareira pequena, o velho parou. Seus ombros caíram e ele se virou para mim. Ele te amava.

Via Rafe nos olhos tristes do homem e o amor apertou meu coração. Como podia expressar para esse homem minha vergonha — a de que fora trancada como um animal por anos? Que eu teria cortado meu braço para me libertar? Eu te amo também. Sei que ele acha que fugi, mas...

Então entendi.

Amava. Amava.

Balancei a cabeça. Não queria ouvir o que ele diria em seguida.

Ele procurou por você. Muito.

Contive as lágrimas.

Vietnã, disse ele finalmente.

Foi quando notei a bandeira dobrada num pequeno triângulo e emoldurada sobre a lareira.

Não pudemos nem mesmo enterrá-lo na terra que ele amava. Não sobrou muito dele.

Vietnã. Não conseguia imaginá-lo lá, meu Rafe, com seus cabelos longos, sorriso exuberante e mãos ternas.

Ele sabia que você procuraria por ele. Ele me disse para lhe dar isso.

O velho pegou um pedaço de papel de trás da bandeira — o tipo de papel que você usa na escola. Estava dobrado num quadradinho. O tempo e o pó o transformaram em cor de tabaco.

Minhas mãos tremiam ao abri-lo.

Querida, escrevera ele, e meu coração parou. Juro que ouvi a voz dele e senti cheiro de laranja. Eu a amo e sempre vou amá-la. Quando eu voltar, vou encontrar você e Tallulah e vamos recomeçar.

Espere por mim, querida, como espero por você.

Olhei para o velho e vi minha dor refletida em seus olhos. Dobrei a cartinha — ela pareceu cinzas em minhas mãos, impossivelmente frágil. Saí com dificuldade da casa e andei até escurecer, e mesmo depois disso continuei andando.

No dia seguinte, quando fui à manifestação que me trouxera a Los Angeles, ainda estava chorando. Minhas lágrimas se misturavam à sujeira e se transformavam numa pintura de guerra da perda. Fiquei no meio da multidão — na maioria jovens como eu, tinha uns mil de nós — e ouvi as palavras de ordem contra a guerra, e aquilo me atingiu. As pessoas estavam morrendo. E a raiva que sempre estivera dentro de mim encontrou uma válvula de escape.

Naquele dia, fui presa pela primeira vez.

Comecei a perder a noção do tempo novamente. Dias, semanas e até mesmo um mês. Agora sei que era porque estava usando muitas drogas. Maconha, soníferos e LSD. Tudo parecia seguro naquela época, e eu estava desesperada para ligar e desligar.

Você me assombrava, Tully; você e seu papai. Comecei a ver vocês no ar quente que se elevava do deserto na comuna no Mojave onde morei. Eu a ouvia chorando quando lavava a louça ou pegava água da cisterna. Às vezes sentia sua mãozinha tocar a minha e gritava de susto e dava um salto. Meus amigos simplesmente riam e me alertavam sobre viagens ruins e diziam que o LSD ajudaria.

Quando analiso o passado — finalmente, quando fiquei sóbria —, penso: Claro. Eram os anos 1960, eu mal era adulta; fora molestada e maltratada e achava que a culpa era minha. Não é de admirar que tenha me perdido tão completamente nas drogas. Tornei-me um fio num rio, boiando. Chapada o tempo todo.

Certa noite, quando estava tão quente que não conseguia ficar à vontade no meu saco de dormir, sonhei com meu pai. Em meu pesadelo ele estava vivo e indo pegar você. Depois que o pesadelo se apegou à minha vida, não consegui me desapegar dele. Não havia drogas, sexo ou medicamento para isso. Por fim, não aguentava mais. Disse a esse cara — Ursinho Pooh, como o chamávamos — que o chuparia até Seattle se ele me levasse para casa. Dei-lhe o endereço. Quando dei por mim, éramos cinco na Kombi, indo para o norte, cantando The Doors numa nuvem de fumaça. Acampávamos, fazíamos brownies de maconha e tomávamos ácido.

Meus pesadelos estavam piores e mais intensos. Comecei a ver Rafe durante o dia também, e comecei a pensar que seu espírito estava me perseguindo. Ouvia sua voz me chamando de vadia e de péssima mãe. Chorava no sono o tempo todo.

E um dia acordei, ainda chapada, e descobri que estávamos diante da casa da minha mãe. A Kombi estava metade na rua e metade na calçada. Acho que nenhum de nós se lembrava de ter estacionado. Saí da Kombi e ganhei a rua. Sabia que parecia e cheirava mal, mas o que eu podia fazer?

Atravessei a rua e fui para a casa.

Você estava à mesa da cozinha, brincando com uma colher, quando abri a tela e entrei. Em algum lugar no andar de cima, tocou um sino.

É o vovô, você disse, e eu senti raiva dentro de mim. Como ele podia estar vivo? E o que ele fizera a você?

Subi as escadas, batendo nas paredes e gritando pela minha mãe. Ela estava no quarto com meu pai, que parecia um cadáver sobre a cama. Seu rosto estava flácido, acinzentado; baba escorria de seu queixo.

Ele está vivo?, gritei.

Paralisado, disse ela, levantando-se.

Queria dizer à minha mãe que estava levando você; queria ver a dor nos olhos dela. Mas estava tão louca que não conseguia pensar direito. Corri para baixo e peguei você no colo.

Minha mãe correu atrás de mim. Ele está paralisado, Dorothy Jean. Disse à polícia que ele teve um ataque. Juro! Você está segura. Ninguém sabe que você o empurrou. Você pode ficar.

Seu vovô pode se mover?, perguntei para você.

Você fez que não e colocou o dedo na boca.

Ainda assim. Eu tinha você no colo e não a deixaria ali. Imaginei a redenção para mim mesma, um novo começo para nós. Imaginei uma vida com cerquinhas brancas e bicicletas com rodinhas e reuniões de escoteiras.

Por isso peguei você.

E quase matei você deixando que comesse um brownie de maconha.

Não foi nem mesmo minha ideia levar você para o hospital quando começou a chapar. Foi do Ursinho Pooh.

Não sei, Dot. É, acho, maconha demais para uma criança. Ela parece... verde.

Levei você para a emergência e disse que tinha comido a maconha do meu vizinho. Ninguém acreditou em mim.

Mais tarde, quando você estava dormindo, entrei e pus seu nome na camiseta com o telefone da minha mãe. Era tudo o que eu podia fazer. Entendi, finalmente. Não merecia você.

Beijei-a antes de sair.

Aposto como você não se lembra de nada disso. Espero.

Depois disso, caí. O tempo se tornou elástico para mim. Maconha e outras drogas entorpeciam minha mente e não me deixavam me importar com nada. Passei os seis anos seguintes em comunas e em ônibus escolares e pedindo carona ao lado de estradas. Em geral eu estava chapada demais para saber onde estava. Fui para São Francisco. O epicentro. Sexo. Drogas. Rock ’n’ roll. Jimi no Fillmore. Joan e Bob no Avalon. Não me lembro de quase nada. Até um dia em 1970, quando olhei pela janela suja da Kombi a caminho de uma manifestação pela paz e vi a Space Needle.

Nem sabia que havíamos saído da Califórnia. Gritei: Espere! Minha filha mora perto daqui.

Quando estacionamos diante da casa da minha mãe, sabia que não deveria sair do carro. Você ficava melhor sem mim, mas eu estava chapada demais para me importar.

Saí da Kombi e a fumaça da maconha me acompanhou, me protegendo. Fui até a porta da frente e bati. Depois tentei ficar imóvel. O esforço foi um fracasso tamanho que não conseguia deixar de rir. Estava tão chapada, eu...

3 de setembro de 2010
18h15

Beeeeep...

O barulho interrompeu as recordações de Dorothy e a trouxe de volta ao presente. Ela estava tão concentrada na história que precisou de um instante para voltar. Um alarme estava soando.

Ela se levantou rapidamente.

— Socorro — gritou. — Alguém aqui! Por favor. Acho que o coração dela está parando. Por favor! Agora! Alguém salve a minha filha!

O brilho ao meu redor é maravilhoso, como estar deitada dentro de uma estrela. Ao meu lado, escuto Katie respirando. O cheiro de lavanda perfuma o ar da noite.

— Ela está lá... aqui — digo, maravilhada, diante da ideia de a minha mãe vir me visitar.

Estou ouvindo a voz dela, tentando compreender as palavras. Há algo sobre uma fotografia e uma palavra — querida — que não faz sentido. Nada faz sentido, na verdade. Sons e pausas se misturam. A voz é ao mesmo tempo esquecida e gravada na minha alma.

Depois escuto algo mais. Um barulho que não pertence a este belo lugar. Um bipe.

Não, um zangão. Um avião no alto do céu... Ou um mosquito zunindo no meu ouvido.

Ouço um barulho abafado. Pessoas andando em sapatos de sola grossa. Uma porta fechando-se.

Mas não há porta. Há?

Talvez.

O alarme dispara.

— Katie?

Olho de lado e vejo que estou sozinha. Tremo com um frio inesperado. O que há de errado? Algo está mudando...

Concentro-me para ver onde estou — sei que estou num quarto de hospital, presa a máquinas. Uma tela se prolonga acima de mim. Azulejos acústicos. Um teto alto, com marcas cinza. Áspero. Como pedra-pomes ou concreto velho.

E, de repente, estou de volta ao meu corpo. Estou numa cama estreita com corrimãos de metal que ondulam como enguias, brilhando ao se moverem. Vejo minha mãe ao meu lado. Ela está gritando algo sobre sua filha — eu — e depois se afasta. Enfermeiras e médicos correm e a tiram do caminho.

As máquinas ficam em silêncio e olham com expectativa para mim, com ênfase no seu antropomorfismo. Elas sussurram entre elas, mas não consigo entender suas palavras. Uma linha verde se move por um quadrado preto, sorrindo e fazendo careta, bipando. Ao meu lado, algo zune.

A dor explode em meu peito, vindo tão rápida que não tenho nem tempo de gritar por Katie.

E então a linha verde fica reta.