Capítulo Vinte e Nove

O DIA SEGUINTE FOI UMA SÉRIE interminável de exames: Tully foi apalpada, espetada e fez raio-X. Ela — e todos os outros — estavam surpresos com sua rápida melhora.

— Está pronta? — perguntou Johnny quando ela finalmente recebeu alta.

— Onde estão todos?

— Preparando sua volta para casa. Será grandiosa. Está preparada?

Ela estava sentada numa cadeira de rodas perto da única janela do quarto, usando uma proteção na cabeça para o caso de uma queda. Seus reflexos estavam um pouco lentos, e ninguém queria que ela batesse a cabeça.

— Sim. — Ela tinha dificuldade para encontrar as palavras às vezes, por isso respondia com palavras curtas.

— Quantos estão lá?

Ela franziu a testa.

— Quantos o quê?

— Seus fãs.

Ela suspirou.

— Não tenho fãs.

Ele atravessou o quarto e ficou ao lado dela, virando a cadeira de rodas para a janela.

— Olhe com mais atenção.

Ela seguiu a direção do seu olhar. Uma multidão estava no estacionamento do hospital, segurando guarda-chuvas coloridos. Havia ao menos trinta pessoas.

— Não vejo... — disse ela, mas depois viu os cartazes.

NÓS VOCÊ, TULLY !

FIQUE BEM, TULLY

NOSSAS AMIGAS NUNCA DESISTEM!

— Eles estão lá por mim?

— Sua recuperação é notícia. Fãs e repórteres começaram a chegar assim que a notícia se espalhou.

A multidão desapareceu diante dos olhos de Tully. A princípio ela pensou que a chuva havia apertado. Depois, percebeu que estava se lembrando de tudo por que passara nos últimos anos e estava chorando diante dessa prova de que não fora esquecida no final das contas.

— Eles amam você, Tul. Ouvi dizer que a Barbara Walters quer uma entrevista.

Ela não sabia o que dizer. Não importava; Johnny estava se movimentando. Ele pegou sua cadeira de rodas e a levou para fora do hospital. Tully deu uma última olhada ao sair.

Na recepção, ele parou e travou o freio.

— Não demoro. Vou só chamar seus fãs e os repórteres.

Ele a posicionou contra a parede, com a recepção atrás dela, e saiu pela porta automática.

Naquela tarde de agosto, uma chuva fina caía mesmo com o sol. Era o que os nativos chamavam de sol intermitente.

À medida que Johnny avançou, câmeras apontaram para ele e flashes espocaram. Os cartazes — NÓS VOCÊ, TULLY ; MELHORE; ESTAMOS REZANDO POR VOCÊ — se abaixaram lentamente.

— Sei que vocês estão felizes com a recuperação milagrosa da Tully Hart. E é milagrosa mesmo. Os médicos aqui no Sacred Heart, especialmente o Dr. Reginald Bevan, trataram a Tully bem e eu sei que ela gostaria que eu lhes agradecesse por ela. Sei que ela quer que eu agradeça aos fãs também, muitos dos quais rezaram por essa recuperação.

— Onde está ela? — alguém gritou.

— Queremos vê-la!

Johnny pediu silêncio com a mão.

— Tenho certeza de que vocês todos entendem que a Tully está focada em sua recuperação agora. Ela...

Um suspiro tomou conta da multidão. As pessoas diante de Johnny se viraram para as portas do hospital. Os fotógrafos tropeçaram uns nos outros, os flashes espocando.

Tully estava sentada do lado de fora do hospital, com as portas se abrindo e se fechando atrás dela. Ela estava sem fôlego e a cadeira estava torta, sem dúvida porque ela estava fraca demais para empurrá-la. Uma chuva fina caía em seu capacete e molhava sua blusa. Johnny se aproximou dela.

— Tem certeza? — perguntou ele.

— Abso... lutamente não. Vamos lá.

Ele a empurrou para a frente; a multidão silenciou.

Ela sorriu para eles e disse:

— Já estive melhor.

O estrondo de aprovação quase derrubou Johnny. Cartazes voltaram a ser erguidos.

— Obrigada — disse ela quando a multidão finalmente se aquietou.

— Você vai voltar ao ar? — perguntou um dos repórteres.

Ela olhou para a multidão e depois para Johnny, que a conhecia tão bem, que estivera com ela desde o início da sua carreira. Ela viu como ele a olhava: estaria se lembrando dela com vinte e um anos, toda empolgada ao lhe enviar um currículo por dia durante meses e trabalhando de graça? Johnny sabia que ela desesperadamente precisava ser alguém. Droga, ela abdicaria de tudo para ser amada por estranhos.

Ela respirou fundo e disse.

— Não. — Tully queria se explicar, dizer que se enchera da fama, que não precisava mais disso, mas era difícil demais reunir as palavras e colocá-las em ordem. Ela sabia o que importava agora.

A multidão fazia barulho; perguntas eram feitas para Tully.

Ela se virou para Johnny.

— Nunca tive tanto orgulho de você — disse ele, baixinho.

— Por desistir?

Ele tocou seu rosto com uma gentileza que a fez perder o fôlego.

— Por nunca desistir.

Com a multidão ainda fazendo perguntas, Johnny assumiu o controle da cadeira de rodas e voltou para a recepção do hospital.

Em pouco tempo eles estavam no carro e indo para o norte pela I-5.

Para onde estavam indo? Ela deveria ir para casa.

— Caminho errado.

— Você está dirigindo? — perguntou Johnny. Ele não olhou para Tully, mas podia ver que ela estava sorrindo. — Não. Não está. Está no banco do passageiro. Sei que você recentemente sofreu uma lesão cerebral, mas tenho certeza de que se lembra que o motorista dirige e o passageiro aproveita a paisagem.

— Para onde... estamos indo?

— Snohomish.

Pela primeira vez, Tully pensou em seu coma. Como ninguém lhe dissera onde ela estivera o tempo todo? E por que a pergunta não lhe ocorrera antes?

— O Bud e a Margie cuidaram de mim?

— Não.

— Você?

— Não.

Ela fez uma careta.

— Uma casa de repouso?

Ele indicou uma entrada e saiu da autoestrada rumo a Snohomish.

— Você ficou na sua casa em Snohomish. Com sua mãe.

— Minha mãe?

O olhar dele se abrandou.

— Houve mais do que alguns milagres em tudo isso.

Tully não sabia o que dizer. Seria menos surpreendente ouvir que Johnny Depp cuidara dela nos meses de escuridão.

Ainda assim, uma lembrança a provocava, se aproximava e depois se afastava. Uma combinação de palavras e luz. O cheiro de lavanda e Love’s Baby Soft... Billy, don’t be a hero...

Katie dizendo: Ouça. É sua mãe.

Johnny estacionou diante da casa na Firefly Lane e se virou para Tully. Depois de um tempo, ele disse:

— Não sei como lhe dizer o quanto eu lamento.

A ternura que ela sentiu por aquele homem era tão grande que era quase uma dor. Como fazê-lo entender o que ela aprendera na escuridão — e na luz?

— Eu a vi — disse ela, baixinho.

Ele franziu a testa.

— Ela?

Tully percebeu que ele entendia.

— Katie.

— Ah.

— Pode me chamar de louca, ferida ou drogada. Que seja. Eu a vi e ela segurou minha mão e me disse para lhe dizer que “você se saiu bem e não há por que as crianças o perdoarem”.

Ele fez uma careta.

— Ela achava que você estaria furioso consigo mesmo por não ter sido forte o suficiente. Você queria ter deixado que ela lhe dissesse que tinha medo. Ela disse: “Diga-lhe que ele foi tudo de que sempre precisei e que ele disse tudo o que eu precisava ouvir”.

Tully tocou-lhe a mão e lá estavam novamente, entre eles, todos os anos que passaram juntos, todas as vezes que riram, choraram, esperaram e sonharam.

— Eu perdoo você por partir meu coração se você me perdoar também. Por tudo.

Ele fez que sim, os olhos marejados de lágrimas.

— Senti sua falta, Tul.

— É, Johnny. Senti sua falta também.

Marah mergulhou nos preparativos para a volta de Tully, mas, ao conversar com seus avós e brincar com seus irmãos, ela sentia que estava pisando em ovos. Seu estômago estava apertado com a ansiedade. Ela queria desesperadamente o perdão de Tully, mas não o merecia. A única outra pessoa que parecia incomodada com a celebração era Dorothy. A mãe de Tully parecia diminuta nos últimos dias, e ficando ainda menor. Marah sabia que a idosa começara a guardar seus poucos pertences numa sacola. Enquanto todos se ocupavam da decoração, Dorothy dissera alguma coisa sobre precisar comprar remédios. Ela saíra havia horas e ainda não havia voltado.

Com a volta de Tully, todos gritaram e bateram palmas e a receberam de volta em casa. A vovó e o vovô a abraçaram e os gêmeos gritaram à chegada dela.

Sabia que você ficaria bem — disse Lucas para Tully. — Rezei todas as noites.

Eu rezei todas as noites também — disse Wills, para não ser vencido.

Tully parecia exausta, sentada lá, a cabeça pendendo estranhamente, o capacete prateado fazendo-a parecer quase uma criança.

— Eu conheço... dois meninos... cujo aniversário está chegando. Perdi um ano. Vou comprar dois presentes agora. — Tully teve de se esforçar para dizer tudo aquilo e, quando terminou, seu rosto estava vermelho e ela estava sem fôlego.

— Provavelmente Porsches combinando — disse o papai.

A vovó riu e levou os meninos para a cozinha para pegarem o bolo.

Marah passou a festa toda sorrindo e murmurando comentários. Para a sorte dela, Tully se cansou facilmente e disse boa-noite por volta das oito horas.

— Me leva para a cama? — pediu Tully, segurando a mão de Marah, apertando.

— Claro. — Marah pegou a cadeira de rodas e empurrou a madrinha pelo corredor até o quarto. Lá, ela manobrou Tully pela porta e para dentro do quarto, onde estavam a cama hospitalar e flores e imagens espalhadas pelas mesas. Um apoio para medicamento intravenoso estava ao lado da cama.

— Foi aqui que estive — disse Tully. — Por um ano...

— Sim.

— Gardênias — disse ela. — Eu me lembro...

Marah a ajudou a entrar no banheiro, onde Tully escovou os dentes e vestiu uma camisola branca que estava pendurada num gancho atrás da porta. Depois ela voltou para sua cadeira de rodas e Marah a levou para a cama. Lá, ajudou Tully a se levantar.

Tully a encarou. Num olhar, Marah viu tudo: Meu trabalho é amar você... a briga... Você é minha melhor amiga... e as mentiras.

— Senti sua falta — disse Tully.

Marah começou a chorar. De repente, ela estava chorando por tudo — pela perda de sua mãe, por encontrá-la no diário, pela forma como traíra Tully e pelas mágoas que infligira às pessoas que a amavam.

— Desculpe, Tully.

Tully levantou as mãos lentamente, envolvendo o rosto de Marah em suas mãos secas.

— Sua voz me trouxe de volta.

— O artigo da Star...

— Águas passadas. Aqui, me ajude a me deitar. Estou exausta.

Marah enxugou os olhos e abriu as cobertas e ajudou Tully a se deitar. Depois, subiu na cama ao lado da madrinha, como antigamente.

Tully ficou em silêncio por um instante, antes de dizer:

— É verdadeira aquela coisa de ir para a luz e a vida toda passar diante de seus olhos. Quando estava em coma, eu... deixei meu corpo. Pude ver seu pai no hospital comigo. Era como se eu estivesse flutuando num canto, olhando o que acontecia a esta mulher que se parecia comigo, mas não era eu. E eu não suportava, por isso me virei e lá estava... aquela luz, e eu a segui e, quando percebi, estava na minha bicicleta, na Summer Hill, pedalando no escuro. Com sua mãe ao meu lado.

Marah respirou fundo, levando a mão à boca.

— Ela está com a gente, Marah. Ela vai estar sempre observando e amando você.

— Quero acreditar nisso.

— É uma escolha. — Tully sorriu. — Ela está feliz por você ter se livrado dos cabelos cor-de-rosa, por sinal. Eu deveria lhe falar isso. Ah, e há mais uma coisa... — Ela fez uma careta, tentando se lembrar. — Ah, sim. Ela disse: “Todas as coisas terminam, até mesmo esta história”. Faz sentido?

— É do Hobbit — disse Marah. Talvez algum dia você se sinta sozinha com a tristeza, incapaz de compartilhá-la comigo ou com seu pai, e você vai se lembrar deste livro na sua mesa de cabeceira.

— O livro? Que estranho.

Marah sorriu. Ela não achava nada estranho.

— Sou Dorothy, e sou uma viciada.

— Oi, Dorothy!

Ela estava no meio do círculo de pessoas que vieram à reunião dos Narcóticos Anônimos. Como sempre, a reunião acontecia numa velha igreja na Front Street, em Snohomish.

Na sala fria e mal iluminada que cheirava a café e rosquinhas, ela falou da sua recuperação, de quanto tempo levara para ela se curar e de como era difícil às vezes. Ela precisava disso esta noite mais do que todas a noites.

Ao final da reunião, ela deixou a igrejinha de madeira e subiu na sua bicicleta. Pela primeira vez em anos, não parou para conversar com ninguém depois da reunião. Dorothy estava nervosa demais.

Era uma noite escura, cheia de árvores ao vento e estrelinhas. Ela andou pela rua principal, indicou que viraria e rumou para o centro da cidade.

Na sua casa, entrou na garagem e parou. Equilibrando a bicicleta com cuidado contra a lateral da casa, foi até a porta da frente e girou a maçaneta. Dentro, tudo estava quieto. Havia um aroma de sobras no ar — espaguete, talvez — e um pouco de manjericão fresco. Algumas luzes estavam acesas, mas a casa estava em silêncio.

Ela pendurou a bolsa no ombro e fechou a porta. O cheiro pungente de lavanda preenchia suas narinas. Dorothy se movia silenciosamente pela casa. Tudo o que ela via era prova da festa que perdera — uma faixa de BEM-VINDA AO LAR, uma pilha de guardanapos coloridos na bancada, as taças de vinho na pia.

Que covarde ela era.

Na cozinha, Dorothy se serviu de um copo de água da pia e se recostou na bancada, bebendo o líquido como se estivesse morrendo de sede. Diante dela, o corredor escuro se estendia. Num dos lados estava a porta do seu quarto; no outro, a porta do quarto de Tully.

Covarde, pensou novamente. Em vez de andar pelo corredor, fazendo o que precisava ser feito, ela se percebeu andando pela casa, rumo à porta dos fundos, saindo para a varanda.

Ela sentiu cheiro de cigarro.

— Você estava esperando por mim? — perguntou.

Margie se levantou.

— Claro. Sabia que seria difícil para você. Mas você esteve escondida por muito tempo.

Dorothy quase sentiu as pernas falharem. Ela nunca tivera uma boa amiga na vida, nenhuma dessas mulheres que estariam lá por você se você precisasse delas. Até agora. Ela pegou a cadeira de madeira ao lado dela e se apoiou.

Havia três cadeiras ali. Dorothy passara meses restaurando as cadeiras que encontrara num bazar de caridade. Quando terminara de lixá-las e pintá-las — uma vasta palheta de cores —, ela pintara nomes nas costas. Dorothy. Tully. Kate.

Na época, parecera algo romântico e otimista. Ao segurar o pincel e espalhar as cores pela madeira, ela imaginara o que Tully diria quando acordasse. Agora, porém, tudo o que ela via era a presunção de suas ações. O que a fazia pensar que Tully gostaria de se sentar com sua mãe pela manhã e tomar uma xícara de chá... ou que não se magoaria por se sentar ao lado de uma cadeira sempre vazia, seu lugar sempre à espera de uma mulher que nunca voltaria?

— Você se lembra do que lhe falei sobre a maternidade? — perguntou Margie na escuridão, soltando fumaça.

Dorothy passou por uma cesta vazia e se sentou na cadeira com seu nome. Margie, ela notou, estava sentada na cadeira de Tully.

— Você me disse várias coisas — disse Dorothy, recostando-se com um suspiro.

— Quando você é mãe, aprende sobre o medo. Você está sempre com medo. Sempre. De tudo, desde portas de madeira a sequestradores e do clima. Não há nada que não possa machucar seus filhos, juro. — Ela se virou. — A ironia é que eles precisam que sejamos fortes.

Dorothy engoliu em seco.

— Fui forte para a minha Katie — disse Margie.

Dorothy percebeu o nó na garganta da amiga e, sem pensar, levantou-se da cadeira e abraçou Margie. Ela sentiu como a mulher era magra, como ela tremia a esse toque, e Dorothy compreendeu. Às vezes dói mais ser confortada do que deixada sozinha.

— O Johnny quer espalhar as cinzas dela no verão. Não sei como fazer isso, mas sei que é a hora.

Dorothy não tinha ideia do que dizer.

Quando Margie recuou, seus olhos estavam úmidos de lágrimas.

— Você me ajudou, sabia? Para o caso de que nunca ter lhe dito. Todas as vezes que me deixou sentar aqui e fumar meus cigarros enquanto você plantava sementes e tirava ervas daninhas.

— Eu não falava nada.

— Você estava lá para mim, Dorothy. Como estava lá para a Tully. — Ela enxugou os olhos e tentou sorrir, depois ficou em silêncio. — Vá ver sua filha.

Tully acordou de um sono profundo, desorientada. Ela se sentou rapidamente — rápido demais; a tontura fez o ambiente estranho girar por um instante.

— Tully, você está bem?

Ela piscou lentamente e se lembrou de onde estava. Em seu velho quarto, na casa da Firefly Lane. Ligou o abajur.

Sua mãe estava sentada numa cadeira contra a parede. Ela se levantou, as mãos dadas. Dorothy estava usando roupas largas, meias brancas e sandálias Birkenstock. E os resquícios do colar de macarrão que Tully fizera para ela no acampamento bíblico. Sua mãe o guardara durante todos esses anos.

— Eu... estava preocupada — disse sua mãe. — Sua primeira noite aqui e tal. Espero que você não se importe por eu estar aqui.

— Oi, Cloud — disse Tully, baixinho.

— Sou Dorothy agora — disse sua mãe. Ela deu um sorriso tímido e se aproximou da cama. — Escolhi o nome “Cloud” numa comuna nos anos 1970. Estávamos chapados o tempo todo, e nus. Muitas más ideias pareciam boas na época. — Ela olhou para Tully.

— Me disseram que você cuidou de mim.

— Não foi nada.

— Um ano cuidando de uma mulher em coma? Isso não é pouca coisa.

Sua mãe pôs a mão no bolso e pegou uma medalhinha. Era dourada, redonda e pouco maior do que uma moeda de vinte e cinco centavos. Havia um triângulo gravado na medalha; no lado esquerdo do triângulo estava escrito sobriedade; no lado direito, aniversário. Dentro do triângulo estava o número romano X.

— Lembra da noite em que você me viu no hospital, em 2005?

Tully se lembrava de todas as vezes em que vira sua mãe.

— Sim.

— Foi o fundo do poço para mim. Uma mulher se cansa de ser espancada. Entrei na reabilitação não muito depois daquilo. Você pagou por isso, então, obrigada.

— E você permaneceu sóbria?

— Sim.

Tully tinha medo de acreditar na esperança que se anunciava diante da confissão de sua mãe. E tinha medo de não acreditar.

— Foi por isso que você foi ao meu apartamento e tentou me ajudar.

— No que diz respeito à intervenção, foi péssimo. Só uma velha e uma filha irritada. — Ela deu um sorriso torto. — Você vê a vida com mais clareza quando está sóbria. Cuidei de você para compensar todas as vezes em que não cuidei de você.

Sua mãe se aproximou, tocando o colar de macarrão no pescoço. Havia uma gentileza no seu olhar que surpreendeu Tully.

— Sei que foi só um ano. Não espero nada.

— Ouvi sua voz — disse Tully. Ela se lembrava de pedaços, momentos. Escuridão e luz. Disto: Sinto tanto orgulho de você. Nunca lhe disse isso, disse? A lembrança era como o recheio cremoso de um chocolate caro. — Você ficou ao meu lado e me contou uma história, não é?

Dorothy pareceu surpresa e depois um pouco triste.

— Eu deveria ter lhe contado há vários anos.

— Você disse que tinha orgulho de mim.

Ela finalmente estendeu o braço e tocou o rosto de Tully com a ternura de uma mãe.

— Como posso não ter orgulho de você?

Seus olhos se encheram de lágrimas.

— Sempre amei você, Tully. Era da minha vida que estava fugindo. — Lentamente, ela pegou uma fotografia no criado-mudo. — Talvez este seja nosso início. — Ela deu a foto para Tully.

Tully pegou a fotografia que pendia dos dedos magros e trêmulos de sua mãe.

Era quadrada e pequena, do tamanho de uma carta de baralho, com as extremidades gastas. Os anos criaram uma pátina sobre a impressão em preto e branco.

Era a fotografia de um homem, um jovem, sentado numa varanda, com uma das pernas esticadas. Seus cabelos eram longos, pretos e sujos. Marcas de suor escureciam a camiseta branca que ele usava; suas botas de caubói já haviam visto dias melhores e suas mãos estavam sujas.

Seu sorriso era amplo e branco e deveria ser grande demais para seu rosto cheio de arestas, mas não era; o sorriso pendia um pouco para um dos lados. Seus olhos eram escuros como a noite e pareciam conter mil segredos. Ao lado dele, no degrau da varanda, havia um bebê de cabelos castanhos dormindo e usando fralda. A enorme mão do homem repousava possessivamente sobre as costas nuas da criança.

— Você e seu pai — disse sua mãe.

— Meu pai? Você disse que não sabia quem...

— Menti. Eu me apaixonei por ele na escola.

Tully olhou para a imagem. Ela passou o dedo sobre a fotografia, estudando cada traço e sombra, quase incapaz de respirar. Ela nunca tinha visto qualquer traço de sua aparência no rosto de um parente. Mas ali estava seu pai, e ela se parecia com ele.

— Tenho o sorriso dele.

— Sim. E sua risada é como a dele.

Tully sentiu algo dentro dela se encaixar de repente.

— Ele amava você — disse Dorothy. — E eu também.

Tully percebeu o tremor na voz de sua mãe. Quando ela levantou os olhos, as lágrimas na voz de sua mãe se igualavam às suas próprias lágrimas.

— Rafael Benecio Montoya.

Tully disse o nome com reverência:

— Rafael.

— Rafe.

Tully não podia conter a emoção inflando seu coração. Isso mudava tudo, mudava-a. Ela tinha um pai. Um papai. E ele a amava.

Posso...?

— O Rafe morreu no Vietnã.

Tully não havia se dado conta de que construíra um sonho, mas, com aquela palavra, sentiu que aquele sonho se despedaçava ao seu redor.

— Oh.

— Mas vou lhe contar tudo sobre ele — disse Dorothy. — Como ele lhe cantava músicas em espanhol e jogava você no ar para ouvir sua risada. Ele escolheu seu nome porque era Choctaw e ele dizia que este nome fazia de você uma norte-americana de verdade. Por isso sempre chamei você de Tallulah. Para lembrá-lo.

Tully olhou nos olhos úmidos de sua mãe e viu amor, perda e dor. E esperança também. Toda a vida delas.

— Esperei tanto tempo.

Dorothy tocou cuidadosamente o rosto de Tully.

— Eu sei — disse, baixinho.

Era o carinho pelo qual Tully esperara toda a sua vida.

Em seus sonhos, Tully estava sentada numa das cadeiras Adirondack na minha varanda. Eu estava ao lado dela, claro, como sempre estávamos: jovens e rindo. Sempre conversando. Nos galhos do velho bordo, com folhas vermelhas e douradas do outono, vários potes de vidro pendiam de trepadeiras; neles, velas queimavam sobre nossas cabeças, derramando luz pelo chão.

Sei que, às vezes, quando Tully se senta naquela cadeira, ela pensa em mim. Ela se lembra de nós duas andando de bicicleta na Summer Hill, os braços para o alto, acreditando que o mundo era impossivelmente grande e feliz.

Aqui, em seus sonhos, sempre seremos amigas, juntas. Crescendo, usando roxo e cantando músicas tolas que não significam nada e significam tudo. Aqui não há câncer, envelhecimento, chances perdidas, brigas.

Estou sempre com você, digo-lhe no sono dela, e ela sabe que é verdade.

Viro-me — mal me movimento —, dando uma olhada de soslaio, e estou em algum outro lugar, em algum outro tempo. Dentro da minha casa em Bainbridge Island. Minha família está reunida, rindo de alguma piada que não ouço. Marah veio da faculdade para as férias de inverno; ela fez uma daquelas amizades que duram para toda a vida — e meu pai está saudável. Johnny começou a sorrir de novo — em pouco tempo ele vai se apaixonar. Ele vai lutar contra isso... e vai ceder. E meus meninos — meus belos filhos — estão se tornando homens diante de meus olhos. Wills ainda vive em quinta marcha, alto, valente e desafiador, enquanto Lucas segue atrás, mal notado na multidão até que se veja seu sorriso. Mas é Lucas que ouço à noite, é Lucas que fala comigo no seu sono, com medo de me esquecer. Sinto uma falta quase insuportável deles. Mas eles ficarão bem. Sei disso e agora eles sabem também.

Em pouco tempo, minha mãe estará comigo, embora ela não saiba disso ainda.

Desvio o olhar por um instante e estou de volta a Firefly Lane. É manhã. Tully entra na cozinha e toma chá com sua mãe e elas trabalham na horta e posso ver como ela está ficando forte. Nada de cadeira de rodas. Nem mesmo uma bengala.

O tempo passa. Quanto?

No mundo dela, talvez dias. Semanas...

E de repente há um homem no orquidário, conversando com Dorothy.

Tully deixa de lado sua xícara e se aproxima dele; seus passos são lentos e inseguros na terra do jardim. Seu equilíbrio ainda é tênue. Ela passa por sua mãe e vai até o homem, que segura um par de...

Chinelos?

— Des — diz Tully. Ela dá a mão para ele. Quando eles se tocam, vejo o futuro deles — uma praia cinza com um par de cadeiras de madeira colocadas perto da água... Uma mesa posta para os jantares de festas, com minha família e a deles reunida e uma poltrona alta... Uma casa velha com varanda coberta e vista para o mar. Vejo tudo isso num segundo.

Sei que ela vai ficar bem. A vida vai continuar para ela; corações serão partidos e sonhos serão realizados e riscos serão aceitos, mas ela sempre se lembrará de nós — duas meninas que confiaram uma na outra há muito tempo e se tornaram melhores amigas.

Aproximo-me dela; sei que ela me sente. Finalmente, sussurro em seu ouvido. Ela me ouve, ou talvez apenas ache que sabe o que eu diria agora. Não importa.

É tempo de eu sair de cena.

Não de TullyeKate. Sempre seremos parte uma da outra. Melhores amigas.

Mas tenho de seguir em frente, como ela.

Quando olho pela última vez, de muito, muito longe, ela está sorrindo.