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O Carrasco
Hauptsturmführer Theodor Dannecker chegou a Roma de trem no final do dia 8 de outubro de 1943. Tinha trinta e três anos de idade, era solteiro, magro, de queixo comprido, 1,90m de altura e não fazia nada para compensar os movimentos mal coordenados de seu corpo, entre eles um tique nervoso que continuamente movia sua cabeça para o lado.
Mais cedo naquele mesmo ano ele havia executado deportações de mais de 11 mil judeus da Bulgária, da Grécia e da Iugoslávia para Auschwitz e Treblinka. Anteriormente, já havia levado a cabo operações parecidas na França, Polônia, Bélgica e Holanda. No total, Dannecker havia enviado várias centenas de milhares de judeus ao encontro da morte. Ironicamente, sua primeira namorada, Lisbeth Stern, era judia.
Como de costume, o gabinete de Eichmann havia tomado providências para que ele viajasse sozinho em um compartimento reservado, a fim de lhe dar tempo para planejar sua próxima missão. Já no trem, lera os despachos que Kappler lhe enviara: seu pedido de mais tropas para conduzir a caça aos judeus e sua preocupação com a Resistência de Roma. Dannecker entendeu por que Eichmann havia decidido que Kappler não seria capaz de conduzir uma Judenaktion bem-sucedida. Talvez o fato de viver em Roma o houvesse amolecido. Dannecker já vira isso acontecer antes, quando um chefe da polícia local em Belgrado se recusara a realizar as execuções. Dannecker, naquela época um membro da SS-Verfügungstruppe, uma força especializada em apoio a combates, matou-o a tiros. Depois de Eichmann o escolher para chefe do Judenreferat, o departamento judeu, Dannecker resumiu seu trabalho usando as palavras de seu passatempo predileto. “Com o passar dos anos, aprendi qual anzol usar para cada tipo de peixe.”
Em seu uniforme da SS de corte impecável e coturnos polidos, encarnava alguém a ser temido e odiado; um homem brutal, malvado e cruel.
Seguindo seu costume de permanecer discreto em uma missão, Dannecker se hospedou em um hotel pequeno na Via Po. A acomodação havia sido arranjada por um dos oficiais da Judenaktion que chegara a Roma antes dele; já trabalhava com Dannecker havia um ano e conhecia seus hábitos.
Dannecker trocou seu uniforme por um terno e foi jantar sozinho em um restaurante próximo; a qualidade da comida era mediana, mas, ainda assim, melhor do que a oferecida em Berlim. Depois disso, caminhou por Roma, estudando as estátuas de mármore sólido e os sarcófagos. Chegou à conclusão de que a cidade era ainda mais impressionante que Paris. Roma tinha padres com batinas pretas, brancas e vermelhas e missas em latim; pôde constatar isso quando passou em frente a uma igreja. E, é claro, havia os romanos: crianças sentadas nas beiras de mármore das fontes de água; as mulheres jovens, muitas vezes com cabelos cor de fogo; homens e mulheres idosos sentados às mesas espalhadas pelas calçadas em frente aos cafés. Quantos daqueles que vira eram judeus? Quantos morreriam sob suas ordens?
Derry concluiu que o jantar com D’Arcy Osborne, no apartamento do ministro em Santa Marta, teria três etapas. Primeiro, foram servidos coquetéis, durante os quais Osborne deu a impressão de que sabia lidar com qualquer problema que abalasse, mesmo que momentaneamente, sua compostura. Havia recebido Derry com a cortesia inglesa usual, como se já esperasse o retorno do hóspede de alguma terra distante. O’Flaherty estava ao lado do anfitrião quando Derry descreveu a viagem desde o campo de prisioneiros de guerra.
Circulando próximo, May sempre estava pronto para reabastecer os copos antes de anunciar o jantar. Osborne levou seus dois convidados para a mesa reluzente por conta da prataria e cristais. Enquanto May começava a servir a refeição, Osborne revelou que o número de prisioneiros fugitivos de guerra que procuravam esconderijo em Roma estava crescendo e que não só se destacavam na multidão por causa de suas roupas esfarrapadas, mas muitas vezes também por causa de sua condição física ruim. Durante o café e o conhaque, oferecidos na sala de visitas do apartamento, o ministro contou a Derry que o Vaticano, compreensivelmente, estava cada vez mais preocupado com o perigo de se tornar um refúgio para os soldados fugitivos.
A Santa Sé era um Estado neutro e, sob as leis internacionais, tinha de confiná-los. Ela nunca iria, nem poderia, fazer isso; não havia espaço para encarcerá-los nem guardas para tomar conta deles. Mas o papa não poderia permitir que uma série de prisioneiros fugitivos das forças aliadas se escondesse dentro do Vaticano. Os alemães acusariam a Santa Sé de dar abrigo a seus inimigos e exigiria que fossem entregues.
Osborne esperou que May servisse mais bebidas antes de continuar. Segundo o que ouvira falar — sua fonte era Simonds, apesar de ele nunca ter mencionado seu nome —, milhares de prisioneiros ainda se escondiam nos Apeninos. Disse que estavam sem liderança, sem noção do que deveriam fazer, a não ser se dirigir a Roma e ao Vaticano. Em parte, a culpa era da BBC. Em junho, ela havia aconselhado os fugitivos a tomar essa atitude.
A irritação na voz de Osborne estava muito clara para Derry. “Fui asperamente criticado pelo secretário de Estado por questionar aquela transmissão radiofônica e disse ao Ministério das Relações Exteriores que não deveria ser repetida. Mas a história já corre solta, incontrolável, e agora vemos os fugitivos virem aos montes para se esconder em Roma e até pular para dentro do Vaticano.”
O ministro disse a Derry que o papa havia escolhido O’Flaherty para estabelecer uma rede de padres e romanos com suas casas seguras: eles davam abrigo às primeiras centenas de prisioneiros fugitivos. Mas ainda havia milhares mais escondidos nas montanhas e prestes a ir para Roma.
Derry fez sua primeira pergunta: como conseguiam dinheiro para comprar alimentos e fornecer roupas adequadas aos fugitivos?
Osborne explicou que somas suficientes haviam sido fornecidas pelo Ministério das Relações Exteriores por meio do Banco do Vaticano, e uma parte também vinha do próprio Vaticano. Mas, embora o apoio financeiro não fosse mais um problema, haveria outro. O ministro mais uma vez olhou para Derry, balançando a cabeça como se houvesse chegado a uma resolução. Anos mais tarde, Derry se lembraria das palavras ditas por ele:
Major Derry, vi seu histórico militar. O senhor é a pessoa ideal para resolver o problema de não termos um oficial britânico sênior para comandar estes soldados fugitivos e impor a disciplina necessária nessas situações. O senhor trabalhará estreitamente com o monsenhor e John. Ficará hospedado, é claro, com monsenhor O’Flaherty e terá os documentos adequados.
Derry sentou-se, atordoado demais para falar, dominado por uma sensação de inadequação, enquanto os outros continuavam a olhar para ele. Por fim, Osborne reclinou-se em sua cadeira e perguntou-lhe se estava preparado para assumir aquela tarefa.
Derry assentiu com a cabeça.
O rabino-mor Israel Zolli nunca faltava às reuniões regulares do Conselho de Administração do Fatebenefratelli, realizadas na sala de reuniões da diretoria, que ficava dentro do hospital, sob a presidência do professor Giovanni Borromeo. A agenda de outubro tinha somente um item a ser discutido: a lista de benfeitores judeus que contribuíram com a manutenção do hospital deveria ser destruída para que não caísse nas mãos dos alemães? Renzo Levi colocou a proposta em pauta; havia sido adiada na reunião do mês anterior. Borromeo relatou ter descoberto, desde a última reunião, que duas outras listas de doadores — uma guardada no Ministério do Interior e outra na Prefeitura da cidade — haviam sido removidas por Settimio Sorani para serem usadas pelaDelasem.
Zolli disse que todos os nomes da lista que não estivessem mais fazendo contribuições para a manutenção do hospital deveriam ser usados pela Delasem para “fabricar documentos que ajudem os judeus que queiram deixar Roma, apesar das garantias dadas pelo presidente Foa”.
Em volta da mesa de conferências, algumas vozes se pronunciaram contra o rabino. Se os alemães descobrissem que usavam documentos falsos, tomariam atitudes severas.
Zolli fez mais uma tentativa de convencer os presentes. Argumentou que ainda havia pessoas no gueto que não acreditavam que os alemães honrariam a promessa feita a Foa e Almansi depois da coleta do ouro. Todos sabiam que, havia algumas semanas, corriam rumores de que os alemães estavam considerando evacuar Roma, pois as forças aliadas avançavam lentamente. As pessoas lhe perguntavam o que aconteceria antes de os alemães irem embora. Levariam os judeus junto com eles? Os alemães poderiam usá-los como escudos humanos enquanto se afastavam das forças aliadas? Ou será que poderiam quebrar sua promessa de alguma outra forma?
Suas questões foram recebidas com escárnio. Finalmente Borromeo convocou uma eleição, pedindo que os presentes levantassem a mão. Zolli foi a única pessoa a votar em favor de não destruírem as listas com os nomes. Saiu da reunião sabendo que o diretor médico secretamente já havia dado carteiras de identidade a todos os funcionários judeus, providenciadas pela Delasem.
Um a um, os membros fundadores da rede secreta de O’Flaherty tomavam seu rumo, atravessando o pátio interno do Colégio Alemão até chegar aos aposentos dele. Derry já estava lá, tomando um café servido por uma das freiras do colégio. Apesar de ela se perguntar quem era ele e por que havia recebido um quarto ao longo do corredor, havia muito tempo aprendera a não ser curiosa em relação aos atos do monsenhor.
Antes de os padres chegarem, O’Flaherty deu duas carteiras de identidade a Derry. Uma delas em alemão, que o descrevia como funcionário do Vaticano. Continha o carimbo da Embaixada da Alemanha na Santa Sé. A outra carteira foi expedida em italiano e o identificava como cidadão de Dublin, na Irlanda, empregado como scrittore, escritor, na biblioteca do Vaticano. Ambos os documentos tinham a intenção de satisfazer a quaisquer perguntas feitas pelos policiais de Roma e as patrulhas alemãs. Cada uma delas declarava que seu prenome era Patrick, que deveria ser usado por Derry a partir daquele momento. Não podia ser mais irlandês, disse O’Flaherty, acompanhado de mais uma de suas risadas estrondosas.
Apresentou os padres à medida que chegavam, usando o codinome de cada um. Derry assentiu com a cabeça, dizendo que os códigos secretos eram parte importante do papel que desempenhariam. O’Flaherty disse que Derry poderia explicar o que estava envolvido na ajuda aos soldados fugitivos.
Derry começou descrevendo as táticas de fuga e evasão que haviam ajudado os soldados a chegar a Roma; contudo, o motivo de estarem se escondendo era o fato de verem nesse gesto um atalho para encontrar o caminho de volta à unidade, ao regimento ou ao exército de origem. Aqueles que os ajudavam jamais deveriam esquecer que fugitivos fariam de tudo para atingir esse objetivo.
Os amigos não os deveriam colocar em uma posição em que tivessem que lutar por sua liberdade, precisando mutilar ou até mesmo matar um soldado inimigo ou qualquer pessoa que atrapalhasse a fuga. Isso não só violaria as Convenções de Genebra, como também acarretaria represálias fatais para quem estivesse ajudando.
Derry fez uma pausa: se alguém desejasse desistir, esse era o momento. Nenhum padre se mexeu.
Emma Zolli aos poucos começava a se sentir mais relaxada desde que havia retornado a casa com as filhas, depois de passarem um tempo no apartamento que seu marido havia encontrado para que pudessem se esconder. Ele a convenceu a caminharem pelo gueto, onde as pessoas o cumprimentavam como professore, em respeito a seu cargo, e ele as lembrava de que era chegada a hora de attenzione, esperando pela chegada das forças aliadas. Foa lhe pedira que repetisse a informação ao final de cada Tefilá, o serviço diário na sinagoga.
Nas discussões que teve com o presidente, Zolli percebeu que a cada dia estava mais relaxado, desde a coleta de ouro. Foa chamou a atenção para o fato de ainda não ter havido nenhuma patrulha alemã no gueto e disse que Zolli deveria fazer todo o possível para tranquilizar as pessoas, assegurando que não havia motivos para alarme.
Zolli havia guardado para si a discussão que tivera com o padre Weber e Settimio Sorani. O padre palotino dissera que a atmosfera calma que permeava a cidade era “irreal, e algo vai acontecer”. Sorani dissera a Zolli que havia terminado de analisar os arquivos da Delasem e que retirara tudo que pudesse ser comprometedor, caso caíssem nas mãos dos alemães. Ele também havia ido com Renzo Levi discutir a situação com Foa. Mais uma vez o presidente os tranquilizara. Levi e Sorani concluíram que tudo que poderiam fazer era visitar seus amigos da comunidade judaica e instá-los a deixar a cidade. Ninguém aceitara o conselho.
Na reunião mais recente que tiveram, o padre Weber dissera a Zolli que havia recebido notícias de Estocolmo falando de uma caçada na qual 1.600 judeus dinamarqueses haviam sido transportados de trem e de navio para campos de concentração poloneses.
Aparentemente, Foa manteve sua conduta de confiança inabalável em sua caminhada diária para a sinagoga. As pessoas contavam umas às outras que o presidente havia obtido a melhor parte do acordo com Kappler. Muitos repetiram as palavras do ourives Angelo Anticoli: “che de sense ne resta!” Se Deus quiser, nosso ouro pode até dar azar para os alemães!
Certa manhã, Emma decidiu que caminharia até o centro da cidade, algo que não fazia havia semanas. Ao chegar à Via del Portico d’Ottavia, viu uma figura familiar um pouco mais à frente; conversava com um casal de idosos. Tratava-se de Celeste di Porto; Emma reconheceu o casal como membros da congregação. Embora vivessem fora do bairro, no subúrbio, eram fiéis que compareciam regularmente à sinagoga. Emma supunha que provavelmente estavam indo para casa depois da celebração religiosa da manhã. Mas se perguntava como conheciam Celeste; Emma não a via na sinagoga já fazia algum tempo, mas ela parecia conhecer bem o casal de idosos, a julgar pela forma como ouviam atentamente, enquanto Celeste assentia com a cabeça e observava um carro se aproximar. Parou ao lado de Celeste; dois oficiais da Gestapo desceram e enfiaram o casal apavorado dentro do automóvel. A Pantera Negra acabava de ganhar outra recompensa por denunciar mais dois judeus.
Emma correu de volta ao gueto, espalhando em voz alta o que acabara de presenciar.
O papa Pio continuava a receber relatórios da rede.
Uma sinagoga havia sido aberta no porão do mosteiro de SãoFrancisco de Assis, onde quase uma centena de judeus podia celebrar seus ritos religiosos às escondidas, enquanto os monges rezavam pouco acima, na capela. O gabinete de informações do Vaticano, onde irmã Luke trabalhava, havia aberto uma unidade especial para ajudar os judeus do exterior que procuravam notícias de seus parentes. Em outubro de 1943, a unidade respondeu a 20 mil consultas em um mês. O papa havia nomeado seu próprio homem de contato com a Delasem, o padre capuchinho Bourg D’re. Ele recebeu uma soma inicial de 5 milhões de liras para fornecer alimentos, roupas e remédios aos refugiados judeus que chegavam a Roma.
A resposta do papa a cada relatório continha um lembrete: além de salvar a vida dos judeus, também era necessário empreender todos os esforços para salvar os materiais das sinagogas e dos centros culturais, especialmente das bibliotecas. “Para o povo judeu, é tão importante proteger sua história quanto a nossa para nós”, escreveu Pio.
Naquela manhã de outubro, Rosina Sorani estava sentada a sua escrivaninha, classificando as cartas de Foa, quando ouviu passos subindo as escadas que davam para o térreo. Os passos eram pesados demais para ser de Foa, e ele geralmente ligava antes, para que seu café estivesse pronto quando chegasse. Um homem atarracado, de meia-idade, peito enorme e profundo, estava parado no vão da porta. Ofereceu-lhe um sorriso cheio de dentes e se apresentou como paleógrafo do ERR, dizendo que estava ali para inspecionar vários textos da biblioteca. Entregou-lhe uma folha datilografada.
Rosina olhou para o papel e notou que listava as obras mais raras da biblioteca: os livros da famosa editora Soncino, datados do século XV; textos originais de Constantinopla e da Tessalônica do século XVI; manuscritos que eram histórias da vida literária e intelectual de Roma; um registro de como a Cabala passara a substituir a filosofia já existente; um texto de matemática do século XIII e um vocabulário hebraico-italiano-árabe extremamente raro, publicado em Nápoles em 1488. Por fim, havia vinte e um tratados talmúdicos.
Pediu a Rosina que o levasse à biblioteca e localizasse os livros para ele.
Rosina hesitou. Os textos preciosos eram guardados em uma área trancada no fundo da biblioteca, e, apesar de ter uma chave, ela se perguntava se não precisaria da autorização de Foa para permitir a entrada de um estranho. O oficial disse que ela o poderia acompanhar até a biblioteca para ter certeza de que estava manipulando os manuscritos e livros com o cuidado necessário. Foa ainda não havia chegado, e ela julgou que ele provavelmente não faria objeções; além disso, no passado havia permitido que o rabino Zolli e um ou dois estudantes do último ano do colégio rabínico consultassem alguns livros para os trabalhos de pesquisa que estavam escrevendo. Levou o oficial até a biblioteca, deu-lhe um par de luvas de algodão brancas e destrancou a porta da sala onde os livros raros eram guardados.
Percebeu que ele era um especialista pela forma como abria um livro, tocando suavemente o papel e ao folhear as páginas, da mesma maneira que já tinha observado o rabino Zolli fazer. Aquele homem tinha o mesmo cuidado ao tocar, percorrer a mão enluvada pela página, parar em um ponto especial de interesse antes de mudar para a página seguinte. Algumas vezes, ele dava um sorriso discreto para Rosina, quando ela lhe entregava algum documento, identificando-o como códice ou palimpsesto. Ele ficava em pé, algumas vezes mexendo uma das mãos acima da página, como se estivesse dando uma espécie de bênção.
Muitos dos materiais que pedia para ver estavam escritos em alfabetos para ela desconhecidos. Ela lhe perguntou sobre um deles, e ele respondeu que se tratava de armênio, uma ramificação da antiga Igreja cristã. Mas, na maior parte do tempo, ele permanecia em silêncio, seus olhos fixos em uma página aumentando e brilhando. Ocasionalmente inspirava fundo, da mesma forma como o rabino Zolli fazia quando parecia saber onde procurar um texto em particular.
Finalmente, terminou a análise. Rosina trancou a porta atrás deles e levou-o de volta a sua mesa; ele se voltou para ela e compartilhou uma sentença aterradora: “A senhora, por favor, informe a seu presidente que a biblioteca está sob custódia e que, se quaisquer livros sumirem, a senhora pagará com a própria vida”.
Ele se voltou, desceu as escadas e foi embora.
Quando Foa chegou, mais tarde, naquela mesma manhã, ela lhe contou sobre a visita mais recente do oficial do ERR.
Ele ditou quatro cartas para que datilografasse. A primeira era destinada ao general Stahel, as outras eram para a administração neofascista da cidade: para o ministro do Interior, o ministro da Educação e o diretor-geral de Segurança Pública. Cada uma delas continha o mesmo texto: um relato sobre as visitas do ERR; a tomada em custódia da biblioteca e seu valor sem igual. Terminava com um pedido de ação imediata e adequada para que a biblioteca fosse protegida. Depois de assinar as cartas, Foa pediu que Rosina fosse entregá-las pessoalmente nos diferentes endereços. Ele jamais receberia uma resposta.
Para Dannecker, a segurança havia sido um problema em Paris quando descobrira que a polícia francesa, que havia sido recrutada para ajudar na caçada, havia avisado, em troca de dinheiro, judeus abastados sobre a prisão que estava prestes a acontecer, permitindo que escapassem de ser colocados nos trens para Auschwitz. Com base no que havia lido nos relatórios de informações secretas de Kappler, Roma poderia gerar um problema parecido.
Por esse motivo, havia aquartelado sua equipe da Judenaktion no Collegio Militare. O complexo em estilo de fortaleza ficava no monte Janículo e tinha vista para o Tibre. O grupo da SS ocupava um dos prédios em volta da enorme área de paradas militares do colégio, onde os recrutas do exército eram adestrados à sombra de uma estátua imponente do imperador Júlio César. O colégio estava vazio e em condições decrépitas. Mas Dannecker havia decidido que aquele seria o lugar ideal como área de confinamento para o começo de sua Judenaktion.
Não só ficava próximo ao gueto, mas também era seguro para prender seus prisioneiros antes de serem colocados em um trem com destino a Auschwitz. Mas ele não receberia um trem até que pudesse informar ao Ministério de Transportes em Berlim o tempo mais adequado para sua caçada e o número aproximado de judeus a transportar.
A esperança de Dannecker de manter sua missão em sigilo falhou por causa de uma regulamentação introduzida pelo general Stahel. Assim como qualquer outro hóspede de hotel em Roma, Dannecker teve de se registrar. Na condição de oficial a serviço, só precisava fornecer seu nome, posto e unidade no formulário que era rotineiramente coletado e levado ao quartel-general do Stadtkommandant no Hotel Flora. Lá, era comparado com uma lista de nomes de oficiais militares que eram aguardados na cidade; normalmente estavam de férias ou a caminho de assumir algum novo posto.
Mas o nome de Dannecker não constava na lista. A ausência na lista poderia ter sido causada por descuido de algum outro quartel-general, mas, desde o princípio de sua nomeação como Stadtkommandant, Stahel havia ordenado que qualquer omissão fosse rastreada e corrigida. Um de seus oficiais da equipe de funcionários recebeu ordens para ligar para Berlim e foi informado de que Dannecker estava em Roma por ordem do Obersturmbannführer Eichmann e que sua presença deveria permanecer secreta, uma classificação aprovada pelo Reichsführer Himmler.
Stahel ficou furioso. Para ele, ninguém poderia ir a Roma, nem mesmo em missão secreta, sem que lhe dissessem o motivo. Já havia sido irritante saber pelo rádio e pelos jornais que havia um plano para sequestrar o papa, assunto sobre o qual nada soubera de antemão e que havia causado tanto protesto. Mas descobrir que Eichmann — um homem pelo qual Stahel tinha aversão profunda — havia atraído de alguma forma o apoio de Himmler para uma missão secreta já era demais; telefonou para Kesselring em seu quartel-general em Frascati. O comandante em chefe foi firme: A missão de Dannecker deveria permanecer um Geheime Reichssache, assunto secreto do Reich.
Stahel enviava relatórios detalhados diários para Berlim e outras autoridades nazistas e fascistas de Roma. Entre eles, estavam Weizsäcker e o novo embaixador da Embaixada da Alemanha na Itália, Eitel Friedrich Möllhausen. Percebeu que o relatório mais recente mencionava a chegada de Dannecker.
Aquele solteiro elegantemente vestido de trinta anos rapidamente chamou a atenção de mais de uma mulher romana, e atualmente tinha um caso com uma viúva jovem e rica. Ela lhe contou sobre a família de refugiados judeus que mantinha escondida dentro do porão de seu palazzo e como estava cada vez mais difícil alimentá-los, pois não podiam ter carnê de racionamento. Ele imediatamente tomou providências para que recebessem alimentos por meio da embaixada.
Sentindo que Weizsäcker compartilhava a mesma oposição ao nazismo,Möllhausen o via como seu mentor e mencionou o nome deDanneckerna lista de Stahel. O colega embaixador pediu que Möllhausen fosse discutir o assunto com ele e Kessel.
Weizsäcker disse ter certeza de que Dannecker estava em Roma por um único motivo e apresentou uma cópia da Judenaktion que já havia mostrado ao general Wolff. Dannecker estava lá para assegurar que Kappler executasse a Judenaktion ou para assumir as operações pessoalmente.
A carreira de Möllhausen havia sido devotada a evitar o que ele chamava de “situações difíceis”. Ele sabia que os colegas da embaixada o viam como um diplomata que rapidamente havia galgado os degraus hierárquicos, enquanto muitos outros ainda estavam inertes nos escalões inferiores. Embora Möllhausen evitasse qualquer discussão com os funcionários da embaixada sobre o que eles chamavam da “questão judaica”, aquele documento o deixou chocado. A única coisa que importava era o que poderia ser feito para interrompê-la.
Kessel sugeriu que um alerta fosse comunicado aos judeus por uma voz que levariam a sério: a do papa. Disse que poderia entrar em contato com a doutora Hermione Spier. Ela era uma judia alemã e trabalhava no Vaticano como consultora de arqueologia. Kessel disse que poderia tentar persuadi-la a ir ao gueto e alertar seu povo, “como representante do papa”, sobre as ameaças.
Weizsäcker pediu a Kessel que ligasse para ela. Ninguém atendeu do outro lado da linha. Então, Kessel ligou para o número do diretor do Instituto Arqueológico Alemão em Roma. Kessel recordaria mais tarde:
Informei que a situação atual para os judeus em Roma estava difícil e que gostaria que a doutora Spier soubesse disso. Que minha intenção era enviar um sinal, a ser repassado por ela aos líderes da comunidade judaica. Mas ela deu a entender que nunca teve qualquer contato com a comunidade.
Kappler estava em seu escritório quando Dannecker entrou, cumprimentou-o e se apresentou antes de lhe dar a carta do SS-GruppenführerMüller, que lhe dava poderes para assumir o comando da Judenaktion. Kappler leu a carta e a devolveu. Por dentro, disse mais tarde, estava fervendo: não havia sido comunicado sobre a mudança de comando e via o gesto como um insulto ao modo como executava suas obrigações em Roma até o momento — especialmente depois da coleta bem-sucedida do ouro. Ele havia concebido aquela operação como a precursora perfeita da caça aos judeus.
Os relatórios que havia recebido dos chefes de gangue Giovanni Mezzaroma e Pietro Koch confirmavam que o gueto permanecia calmo. Os dois também haviam recebido suas recompensas financeiras depois de atualizar Kappler sobre o número de judeus capturados nas ruas e que eram mantidos no presídio Regina Coeli, esperando para serem incluídos na caçada. Por alguns momentos mais, Kappler permaneceu sentado e olhando para Dannecker, a cicatriz em seu rosto mais arroxeada que o normal.
Dannecker estava acostumado com reações desse tipo, provenientes de chefes locais da Gestapo. Embora tivesse hierarquia maior, Dannecker sabia que Kappler também tinha ciência de que, no relatório final sobre a missão a ser enviado para Eichmann, Dannecker poderia prejudicar seriamente a carreira futura de Kappler. Mais de um oficial já havia sido enviado para a frente na Rússia depois de Dannecker reclamar sobre sua falta de cooperação.
Contudo, depois de estudar os arquivos sobre Kappler e Stahel em Berlim, Dannecker concluiu que ambos eram idênticos quando o assunto era proteger seus próprios postos. Sabia que, se sua Judenaktion desse errado, eles certamente evitariam criticá-lo. Teria de trazer Kappler para seu lado. Dannecker disse a Kappler que receberia de braços aberto o conhecimento sem igual que tinha sobre Roma. Kappler disse que ofereceria toda a assistência possível.
Dannecker lhe contou sobre o aquartelamento de seus homens no Collegio Militare e o papel que o local exerceria como área de confinamento. Em Paris, ele havia cometido “o erro” de agendar sua Judenaktion para o Dia da Bastilha, quando a cidade estava celebrando seu feriado nacional mais patriótico. S ó postergou a caçada por dois dias, depois de um informante lhe chamar a atenção para a possibilidade de os parisienses atrapalharem suas operações. Ele não queria ver isso acontecer em Roma.
Kappler lhe assegurou que não haveria problemas. Os judeus haviam acabado de celebrar o Yom Kippur.
Dannecker deu um breve sorriso de alívio. Mas, admitiu, havia outras questões em rela ção às quais a orientação de Kappler seria bem-vinda.
Kappler apresentou a lista que havia obtido da Questura. O tique nervoso no rosto de Dannecker aumentou enquanto a estudava: havia mais judeus que o previsto. Provavelmente teria de solicitar o agendamento de mais de um trem para o Ministério dos Transportes e também precisaria de mais homens que a quantidade que havia levado consigo.
Mais tarde, Kappler alegou:
Eu lhe disse que não teria homens para pôr a sua disposição. Quando ele perguntou por informações topográficas para que pudesse organizar sua operação, eu lhe disse que nenhum de meus oficiais conhecia a cidade o suficiente. Em lugar da informação solicitada, eu lhe dei um mapa com as ruas do gueto.
Mais uma vez Dannecker expressou sua gratidão. Kappler sentiu que havia “algo de tenebroso” no homem sentado à sua frente. Certamente devem ter formado uma dupla impossível e incompatível: Kappler, com seu cabelo loiro impecavelmente penteado, a testa recuada, olhos cinza-azulados penetrantes e uma cicatriz de luta; Dannecker, com seu tique nervoso que constantemente fazia virar sua cabeça de um lado para o outro enquanto estudava os documentos.
Depois de marcar vários pontos no mapa, perguntou a Kappler que relação tinha com a polícia. Kappler normalmente não gostava de ser questionado, mas reconhecia que Dannecker estava fazendo um esforço para ser amig á vel. Disse que Pietro Caruso, o chefe das forças policiais, era um fascista leal e que poderia confiar nele em qualquer situação. Dannecker perguntou se seria possível usar a polícia na caça aos judeus para fechar as ruas que levavam ao gueto, além de fornecerem guardas do Collegio Militare.
Kappler hesitou. Ele havia nomeado Caruso e não gostaria de perder controle sobre ele ao permitir que Dannecker tratasse diretamente com o chefe de polícia. Pegou seu telefone e ligou para a Questura, pedindo para falar com Caruso. Ordenou que colocasse quarenta de seus homens em “guarda especial”. Até lá, precisariam ficar em um complexo de edifícios alemães, de forma a não chamar a atenção. Colocou o telefone no gancho e se voltou novamente para Dannecker. O oficial da SS tinha mais perguntas. Em Berlim, haviam lhe contado que o Vaticano era dirigido por “amantes dos judeus, incluindo o papa”. Como isso poderia afetar a caçada? Kappler disse que era preciso ser cuidadoso.
O chefe da Gestapo deu uma rápida aula sobre a neutralidade do Vaticano; sobre a recusa do Stadtkommandant de tratar a Resistência com firmeza, apesar de serem comunistas em sua maioria; sobre como os diplomatas do Reich na cidade eram “jovens e brandos”. No fim, havia tensão na voz de Kappler quando disse as seguintes palavras:
Em Roma, tudo isso levou à convicção de que a relação entre os judeus e o Vaticano é próxima. Os judeus acreditam nisso, a Resistência acredita nisso e a maior parte dos romanos acredita nisso. É por isso que o senhor precisa ser cuidadoso com a forma como sua operação será executada.