A «MADAME » DE JOUARRE
(Trad.).
Lisboa, Junho.
Minha Querida Madrinha.—Naquela casa de hóspedes da Travessa da Palha, onde vive, atrelado à lavra angustiosa da Verdade, meu primo o Metafísico, conheci, logo depois de voltar de Refaldes, um padre, o Padre Salgueiro, que talvez a minha madrinha, com essa sua maliciosa paciência de colecionar Tipos, ache interessante e psicologicamente divertido. O meu distraído e pálido Metafísico afirma, encolhendo os ombros, que Padre Salgueiro não se destaca por nenhuma saliência de Corpo ou Alma entre os vagos padres da sua Diocese;—e que resume mesmo, com uma fidelidade de índice, o pensar, e o sentir, e o viver, e o parecer da classe eclesiástica em Portugal. Com efeito, por fora, na casca, Padre Salgueiro é o costumado e corrente padre português, gerado na gleba, desbravado e afinado depois pelo Seminário, pela frequentação das autoridades e das Secretarias, por ligações de confissão e missa com fidalgas que têm capela, e sobretudo por longas residências em Lisboa, nestas casas de hóspedes da Baixa, infestadas de literatura e política. O peito bem arcado, de fôlego fundo, como um fole de forja; as mãos ainda escuras, ásperas, apesar do longo contacto com a alvura e doçura das hóstias; o carão cor de couro curtido, com um sobretom azul nos queixos escanhoados; a coroa lívida entre o cabelo mais negro e grosso que pêlos de crina; os dentes escaroladamente brancos—tudo nele pertence a essa forte plebe agrícola de onde saiu, e que ainda hoje em Portugal fornece à Igreja todo o seu pessoal, pelo desejo de se aliar e de se apoiar à única grande instituição humana que, realmente, compreende e de que não desconfia. Por dentro, porém, como miolo, Padre Salgueiro apresenta toda uma estrutura moral deliciosamente pitoresca e nova para quem, como eu, do Clero Lusitano só entrevira exterioridades, uma batina desaparecendo pela porta duma sacristia, um velho lenço de rapé posto na borda dum confessionário, uma sobrepeliz alvejando numa tipoia atrás dum morto... O que em Padre Salgueiro me encantou logo, na noite em que tanto palestramos, rondando pachorrentamente o Rossio, foi a sua maneira de conceber o Sacerdócio. Para ele o Sacerdócio (que de resto ama e acata como um dos mais úteis fundamentos da sociedade), não constitui de modo algum essa função espiritual—mas unicamente e terminantemente uma função civil. Nunca, desde que foi colado à sua paróquia, Padre Salgueiro se considerou senão como um funcionário do Estado, um Empregado Público, que usa um uniforme, a batina (como os guardas da Alfândega usam a fardeta), e que, em lugar de entrar todas as manhãs numa repartição do Terreiro do Paço para escrevinhar ou arquivar ofícios, vai, mesmo nos dias santificados, a uma outra repartição, onde, em vez da carteira se ergue um altar, celebrar missas e administrar sacramentos. As suas relações portanto não são, nunca foram, com o Céu (do céu só lhe importa saber se está chuvoso ou claro)—mas com a Secretaria da Justiça e dos Negócios Eclesiásticos. Foi ela que o colocou na sua Paróquia, não para continuar a obra do Senhor, guiando docemente os homens pela estrada limpa da Salvação (missões de que não curam as secretarias do Estado), mas, como funcionário, para executar certos atos públicos que a lei determina a bem da ordem social—batizar, confessar, casar, enterrar os paroquianos. Os sacramentos são, pois, para este excelente Padre Salgueiro, meras cerimônias civis, indispensáveis para a regularização do estado civil,—e nunca, desde que os administra, pensou na sua natureza divina, na Graça que comunicam às almas, e na força com que ligam a vida transitória a um princípio Imanente. Decerto, outrora, no seminário, Padre Salgueiro decorou em compêndios ensebados a sua Teologia Dogmática, a sua Teologia Pastoral, a sua Moral, o seu S. Tomás, o seu Liguori—mas meramente para cumprir as disciplinas oficiais do curso, ser ordenado pelo seu bispo, depois provido numa paróquia pelo seu ministro, como todos os outros bacharéis que em Coimbra decoram as Sebentas de Direito natural e de Direito romano, para «fazerem o curso», receber na cabeça a borla de doutor, e depois o aconchego de um emprego fácil. Só o grau vale e importa, porque justifica o despacho. A ciência é a formalidade penosa que lá conduz—verdadeira provação, que, depois de atravessada, não deixa ao espírito desejos de regressar à sua disciplina, à sua aridez, à sua canseira. Padre Salgueiro, hoje, já esqueceu regaladamente a significação teológica e espiritual do casamento:—mas casa, e casa com perícia, com bom rigor litúrgico, com boa fiscalização civil, esmiuçando escrupulosamente as certidões, pondo na bênção toda a unção prescrita, perfeito em unir as mãos com a estola, cabal na ejaculação dos latins, porque é subsidiado pelo Estado para casar bem os cidadãos, e, funcionário zeloso, não quer cumprir com defeitos funções que lhe são pagas sem atraso. A sua ignorância é deliciosa. Além de raros atos da vida ativa de Jesus, a fuga para o Egito no burrinho, os pães multiplicados nas bodas de Canaã, o azorrague caindo sobre os vendilhões do Templo, certas expulsões de Demônios, nada sabe do Evangelho— que considera todavia muito bonito. À doutrina de Jesus é tão alheio como à Filosofia de Hegel. Da Bíblia também só conhece episódios soltos, que aprendeu certamente em oleografias—a Arca de Noé, Sansão arrancando as portas de Gaza, Judite degolando Holofernes. O que também me diverte, nas noites amigas em que conversamos na Travessa da Palha, é o seu desconhecimento absolutamente cândido das origens, da história da Igreja. Padre Salgueiro imagina que o Cristianismo se fundou de repente, num dia (decerto um domingo), por milagre flagrante de Jesus Cristo:—e desde essa festiva hora tudo para ele se esbate numa trava incerta, onde vagamente reluzem nimbos de santos e tiaras de papas, até Pio IX. Não admira, porém, na obra pontifical de Pio IX, nem a Infalibilidade, nem o Syllabus:—porque se preza de liberal, deseja mais progresso, bem-diz os benefícios da instrução, assina O Primeiro de Janeiro. Onde eu também o acho superiormente pitoresco, é cavaqueando acerca dos deveres que lhe incumbem como pastor de almas—os deveres para com as almas. Que ele, por continuação de uma obra divina, esteja obrigado a consolar dores, pacificar inimizades, dirigir arrependimentos, ensinar a cultura da bondade, adoçar a dureza dos egoísmos, é para o benemérito Padre Salgueiro a mais estranha e incoerente das novidades! Não que desconheça a beleza moral dessa missão, que considera mesmo cheia de poesia. Mas não admite que, formosa e honrosa como é, lhe pertença a ele Padre Salgueiro! outro tanto seria exigir de um verificador da alfândega que moralizasse e purificasse o comércio. Esse santo empreendimento pertence aos Santos. E os Santos, na opinião de Padre Salgueiro, formam uma Casta, uma Aristocracia espiritual, com obrigações sobrenaturais que lhes são delegadas e pagas pelo Céu. Muito diferentes se apresentam as obrigações de um pároco! Funcionário eclesiástico, ele só tem a cumprir funções rituais em nome da Igreja, e portanto do Estado que a subsidia. Há aí uma criança para batizar? Padre Salgueiro toma a estola e batiza. Há aí um cadáver para enterrar? Padre Salgueiro toma o hissope e enterra. No fim do mês recebe os seus dez mil-réis (além da esmola) —e o seu bispo reconhece o seu zelo. A ideia que Padre Salgueiro tem da sua missão determina, com louvável lógica, a sua conduta. Levanta-se às dez horas, hora classicamente adotada pelos empregados do Estado. Nunca abre o breviário—a não ser em presença dos seus superiores eclesiásticos, e então por deferência jerárquica, como um tenente, que, em face ao seu general, se perfila, pousa a mão na espada. Enquanto a orações, meditações, mortificações, exames de alma, todos esses pacientes métodos de aperfeiçoamento e santificação própria, nem sequer suspeita que lhe sejam necessários ou favoráveis. Para quê? Padre Salgueiro constantemente tem presente que, sendo um funcionário, deve manter, sem transigências, nem omissões, o decoro que tornará as suas funções respeitadas do mundo. Veste, por isso, sempre de preto. Não fuma. Todos os dias de jejum come um peixe austero. Nunca transpôs as portas impuras de um botequim. Durante o Inverno só uma noite vai a um teatro, a S. Carlos, quando se canta o Poliúto uma ópera sacra, de puríssima lição. Deceparia a língua, com furor, se dela lhe pingasse uma falsidade. E é casto. Não condena e repele a mulher com cólera, como os Santos Padres:—até a venera, se ela é econômica e virtuosa. Mas o regulamento da Igreja proíbe a mulher: ele é um funcionário eclesiástico, e a mulher portanto não entra nas suas funções. É rigidamente casto. Não conheço maior respeitabilidade do que a de Padre Salgueiro. As suas ocupações, segundo observei, consistem muito logicamente, como empregado (além das horas dadas aos deveres litúrgicos), em procurar melhoria de emprego. Pertence por isso a um partido político:—e em Lisboa, três noites por semana, toma chá em casa do seu chefe, levando rebuçados às senhoras. Maneja habilmente eleições. Faz serviços e recados, complexos e indescritos, a todos os diretores gerais da Secretaria dos Negócios Eclesiásticos. Com o seu bispo é incansável:—e ainda há meses o encontrei, suado e aflito, por causa de duas incumbências de S. Ex.a, uma relativa a queijadas de Sintra, outra a uma coleção do Diário do Governo. Não falei da sua inteligência! É prática e metódica—como verifiquei, assistindo a um sermão que ele pregou pela festa de S. Venâncio. Por esse sermão, encomendado, recebia Padre Salgueiro 20$000 réis—e deu, por esse preço, um sermão suculento, documentado, encerrando tudo o que convinha à glorificação de S. Venâncio. Estabeleceu a filiação do Santo; desenrolou todos os seus milagres (que são poucos) com exatidão, exarando as datas, citando as autoridades; narrou com rigor agiológico o seu martírio; enumerou as igrejas que lhe são consagradas, com as épocas da fundação. Enxertou destramente louvores ao Ministro dos Negócios Eclesiásticos. Não esqueceu a Família Real, a quem rendeu preito constitucional. Foi, em suma, um excelente relatório sobre S. Venâncio. Felicitei nessa noite, com fervor, o reverendo Padre Salgueiro. Ele murmurou, modesto e simples: —S. Venâncio infelizmente não se presta. Não foi bispo, nunca exerceu cargo público!. . . Em todo o caso, creio que cumpri. Ouço que vai ser nomeado cônego. Larguissimamente o merece. Jesus não possui melhor amanuense. E nunca realmente compreendi por que razão outro amigo meu, um frade do Varatojo, que, pelo êxtase da sua fé, a profusão da sua caridade, o seu devorador cuidado na pacificação das almas, me faz lembrar os velhos homens evangélicos, chama sempre a este sacerdote tão zeloso, tão pontual, tão proficiente, tão respeitável—«o horrendo Padre Salgueiro!» Ora veja, minha madrinha! Mais de trinta ou quarenta mil anos são necessários para que uma montanha se desfaça e se abata até ao tamanhinho dum outeiro, que um cabrito galga brincando. E menos de dois mil anos bastaram, para que o Cristianismo baixasse dos grandes padres das Sete Igrejas da Ásia, até ao divertido Padre Salgueiro, que não é de Sete Igrejas, nem mesmo duma, mas somente, e muito devotamente, da Secretaria dos Negócios Eclesiásticos. Este baque provaria a fragilidade do Divino—se não fosse que realmente o Divino abrange as religiões e as montanhas, a Ásia, o Padre Salgueiro, os cabritinhos folgando, tudo o que se desfaz e tudo o que se refaz, e até este seu afilhado, que é todavia humaníssimo.—FRADIQUE.