O TURNO DA MEIA-NOITE
JAMES ROLLINS
25 de abril, 00h21 EDT
Washington, D.C.
Estamos a ser atacados.
Sem casaco, com as mangas arregaçadas até ao cotovelo, Painter Crowe andava para trás e para a frente no ninho de comunicações no coração do comando central da Força Sigma. Os dados corriam pelos monitores que cobriam as paredes curvas, enquanto um guerreiro solitário travava uma batalha contra um inimigo sem rosto.
Jason Carter estava sentado em frente de um dos computadores, a teclar com uma mão e com um copo do Starbucks na outra, enquanto estudava o ecrã à sua frente.
— Parece que incluíram a sua própria backdoor na rede do Smithsonian usando um acesso de administrador de sistema de alto nível. Nesta altura, estão literalmente na posse das chaves do reino.
— Mas quem são eles? — Painter parou para olhar por cima do ombro de Jason. O jovem de vinte e três anos era o principal analista de informação da Sigma. Fora recrutado por Painter depois de ser expulso da marinha por ter pirateado os servidores do Departamento de Defesa, usando apenas um BlackBerry e um iPad modificado.
— Podem ser os russos ou os norte-coreanos, mas aposto nos chineses. Isto tem as impressões digitais deles por todo o lado. Há alguns meses entraram no Gabinete de Gestão de Pessoal e roubaram informações sobre milhões de funcionários federais. Utilizaram uma backdoor semelhante, que lhes concedia privilégios de administrador dos servidores OPM.
Painter acenou com a cabeça. Sabia que o governo chinês empregava um exército de piratas informáticos, que chegavam a mais de cem mil, dedicados exclusivamente a invadir os computadores americanos. Corriam rumores de que tinham conseguido piratear com sucesso todas as grandes empresas americanas ao longo dos últimos anos, subtraindo plantas de centrais nucleares, apropriando-se de tecnologia de fábricas de aço, chegando mesmo a entrar nos servidores da Lockheed Martin para copiar os esquemas ultrassecretos do caça F-35 do exército dos EUA. Caso houvesse dúvidas em relação a este último, bastava ver o novo FC-31 chinês. Era quase uma cópia exata do jato americano.
— Se são os chineses, o que procuram? — perguntou Painter. — Porquê piratear os servidores do Smithsonian?
Jason encolheu os ombros.
— Ou roubo de dados ou sabotagem. Esse é o objetivo da maior parte dos ataques, mas, tendo em conta o código, parecem estar a apoderar-se aleatoriamente de ficheiros. Não vejo qualquer tentativa de instalar malware nos sistemas.
— Portanto, roubo de dados — disse Painter. — Podes pará-los?
No reflexo de um monitor desligado próximo, Painter viu o sorriso enviesado do jovem.
— Tratei disso há um minuto — disse Jason — e bati a porta atrás deles quando os expulsei. Não vão voltar a entrar por ali. Neste momento, estou a tentar identificar que ficheiros foram retirados de que servidores.
Painter olhou de relance para o relógio.
00h22
O ataque tinha sido iniciado precisamente à meia-noite, muito provavelmente cronometrado para atacar numa altura em que seria menos provável que fosse detetado. Ainda assim, vinte e dois minutos era demasiado tempo para um inimigo ter livre acesso aos servidores do Smithsonian. O Instituto era a sede de nove centros de investigação diferentes, abarcando uma multiplicidade de programas que se estendiam pelo globo.
Ainda assim, tinham tido sorte. A única razão por que o seu ataque fora tão prontamente detetado era o facto de os servidores da Força Sigma estarem ligados aos sistemas do Smithsonian, embora as operações da Sigma estivessem fortemente protegidas por trás de múltiplas firewalls para manter a sua presença oculta. Painter imaginou as altas paredes digitais. Era uma metáfora adequada. O comando central da Sigma tinha sido secretamente instalado por baixo do Castelo Smithsonian. Olhou para cima, imaginando as torres e torreões de arenito vermelho por cima da sua cabeça, um verdadeiro castelo normando empoleirado na orla do National Mall.
Uma fortaleza que alguém tentara penetrar.
Ou pelo menos era esse o maior receio de Painter: que os servidores do Smithsonian não fossem os principais alvos do ataque, que os piratas informáticos estivessem, isso sim, a cheirar as paredes da fortaleza digital da Sigma. A Sigma era a ala secreta da DARPA, a divisão de investigação e desenvolvimento do Departamento de Defesa. A unidade recrutava antigos soldados das Forças Especiais e treinava-os em diversas disciplinas científicas para atuarem como agentes de campo para a DARPA. Era uma das razões por que o Castelo tinha sido escolhido para instalar o seu comando central. Tinha uma localização ideal no coração da paisagem política, ao mesmo tempo que permitia que a Sigma e os seus operacionais tivessem acesso aos recursos e alcance global do Smithsonian.
Se a Sigma alguma vez fosse comprometida, os seus agentes expostos…
Um pequeno suspiro impaciente atraiu a atenção de Painter de volta ao mundo tangível.
Jason deslizou com a cadeira para trás, afastando-a do computador, levantou-se e fitou as filas de monitores que continuavam a correr os dados encriptados. O jovem estudou os ecrãs, passando a mão pelo cabelo louro, claramente preocupado.
Painter colocou-se ao seu lado.
— Que foi?
— O padrão do roubo não é aleatório, embora se tenham esforçado por que assim parecesse. — Apontou para um dos monitores. — Isto não foi uma simples recolha. Há aqui intenção, ainda que mascarada pelo restante ruído.
— Que intenção?
Jason regressou ao seu computador e começou de novo a teclar, desta feita com as duas mãos, o nariz a poucos centímetros do ecrã.
— A maior parte dos ficheiros foram roubados de um centro de investigação específico.
— Qual?
A voz de Jason estava tensa, revelando uma clara confusão.
— O Conservation Biology Institute do Smithsonian.
Painter compreendia a sua consternação. Era um alvo estranho para um ataque cibernético tão sofisticado e elaborado por parte de um inimigo estrangeiro.
Jason continuou ao mesmo tempo que teclava.
— O CBI do Smithsonian tem laboratórios e instalações na Virginia e aqui em D.C., no National Zoo em Rock Creek Park. Neste caso, tanto o campus como o zoo estão a ser atacados.
— Há alguma lógica por trás dos ficheiros específicos que estavam a ser roubados?
— Não uma que faça qualquer sentido, mas uma parte considerável do material de investigação que estava a ser retirado provém de um programa específico. — Jason olhou por cima do ombro, com um franzir de sobrolho profundo. — Um programa intitulado ADN Ancestral.
— ADN Ancestral?
Jason encolheu os ombros, igualmente perdido.
— Os ficheiros pirateados pertencem todos à mesma investigadora, uma pós-doutoranda de seu nome Sara Gutierrez.
O jovem afastou-se do monitor, revelando um cartão de identificação no ecrã. A mulher no cartão não parecia mais velha do que Jason, o cabelo preto cortado num bob curto, os olhos intensos e um sorriso tímido estampado no rosto.
— Devem ter levado metade dos ficheiros dela antes de eu lhes ter fechado a porta.
— Então não conseguiram levar tudo… — Painter sentiu uma ponta de inquietação. — Em que estava ela a trabalhar?
Jason abanou a cabeça.
— Tudo o que tenho aqui são nomes de ficheiros, o que não me diz grande coisa. Mas se puder aceder ao computador dela, talvez consiga rastrear a localização dos piratas. Quando cortei a ligação, é possível que algumas peças de código possam ter ficado no terminal dela, uma impressão digital que nos possa dar alguma pista quanto a quem esteve por trás deste ataque.
— Podes fazer isso?
— Posso tentar, mas admito que é um tiro no escuro. Ainda assim, as probabilidades serão maiores se conseguir aceder ao computador antes que mais alguém o use e limpe acidentalmente essa impressão digital.
— Compreendido. Vou ver o que consigo arranjar. Também vamos querer entrevistar a doutora Gutierrez assim que possível. De preferência esta noite. — Olhou de relance para o relógio de parede. — Esperemos que seja uma notívaga.
— Tirei o número de telefone dela dos registos. — Jason agarrou no seu próprio telefone, erguendo uma sobrancelha.
— Telefona-lhe. Diz-lhe que sabemos o que aconteceu e que precisamos da sua ajuda. Devíamos combinar o encontro no gabinete dela.
Enquanto Jason marcava o número, Painter considerava quem poderia enviar àquela hora tardia. O operacional a quem normalmente recorria, o comandante Gray Pierce, estava num voo transatlântico com destino à Europa para se encontrar com Seichan em Paris. Monk e Kat estavam de regresso de uma viagem a Boston com as duas filhas pequenas. Mentalmente, percorreu a lista de agentes de campo restantes que melhor se adequavam à investigação.
A voz de Jason chamou-lhe a atenção quando a doutora Gutierrez atendeu o telefone. Depois de uma breve troca de palavras, o jovem sentou-se mais direito e pôs o telemóvel em alta-voz.
— E quem lhe telefonou? — perguntou Jason.
Uma voz fraca sussurrava do telefone, mas a sua confusão era simples.
— Disseram que eram da polícia do jardim zoológico. Alegaram que alguém tinha entrado no meu escritório. Iam mandar um agente para me levar até lá. Mas…
A voz calou-se.
— Mas o quê? — perguntou Jason.
— É que… não quero parecer racista, mas a pessoa que telefonou era difícil de compreender. Tinha um sotaque carregado. Asiático, pareceu-me. Provavelmente não é nada, mas fiquei com um mau pressentimento quando desliguei.
Jason olhou de relance na direção de Painter.
— Revelou-lhe a sua localização? — perguntou à mulher.
— Eu… sim.
— Onde está agora?
— Estou no Museu Nacional de História Natural. Estava a recolher amostras de ADN em algumas das exposições como parte do meu programa. É mais fácil depois de estar fechado ao público. Disse à pessoa que telefonou que esperaria por eles no exterior do museu, na esquina da Twelfth com a Madison.
— Fique onde está. — Jason olhou para Painter em busca de confirmação. — Vamos ter consigo dentro do museu.
Painter acenou com a cabeça.
Do pequeno altifalante do telefone irrompeu um som novo: um toque agudo e estridente.
O alarme.
A voz da investigadora ergueu-se sobre o ruído. Parecia assustada.
— Que faço?
Jason olhou para Painter enquanto oferecia à mulher a sua única esperança.
— Esconda-se.
Painter pensou rapidamente. Com o alarme a soar no museu, não tinha tempo para chamar nenhum operacional de campo que não pertencesse à equipa. Considerou momentaneamente ir ele mesmo, mas sabia que a sua presença era precisa ali, para ajudar a manter ao largo as forças da lei locais, pelo menos durante o tempo suficiente para extrair a mulher em segurança.
Isso deixava apenas um membro da Sigma capaz de apoiar Jason, alguém que ainda estava nas instalações àquela hora tardia. Veio-lhe à mente a figura corpulenta do ex-militar da marinha, a cabeça rapada, o nariz torto e o forte sotaque do Bronx.
Deus do céu, ajudai-nos a todos…
Joe Kowalski estava deitado de costas numa poça de óleo. Deu um último puxão à chave para apertar o novo filtro do velho Jeep. Limpou a superfície para se assegurar de que a junta tinha deixado de pingar.
Isto deve bastar.
Rolou de debaixo do veículo e virou-se para agarrar no charuto que repousava sobre um copo de vidro virado. Ainda de costas, pôs a beata entre os lábios e deu duas passas com força para fazer a ponta brilhar, depois suspirou libertando uma longa torrente de fumo. Talvez fosse estúpido — e definitivamente contra as regras — fumar na garagem da Sigma, mas quem havia por perto para se queixar àquela hora tardia?
Tinha o espaço todo para si, que era como preferia.
Levantou-se e inspecionou o Jeep CJ7 de 1979 que estava a restaurar. Tinha comprado o todo-o-terreno três meses antes a um funcionário dos Serviços Florestais reformado que tinha puxado bastante por ele e depois o deixara parado durante quase uma década. Isso nunca era bom para uma criatura que adorava cortar através da paisagem inóspita. Kowalski já tinha feito uma pequena reconstrução do motor Chevy 400, ao mesmo tempo que procurava possíveis problemas com a caixa de velocidades, a direção e a transmissão, mas ainda não estava completamente satisfeito com a parte elétrica.
A carroçaria aberta era uma manta de retalhos de resina Bondo e primário, onde ainda se via parte da sua pintura verde-azeitona original. Os lugares da frente e o banco de trás, todos eles originais, estavam rasgados e gastos. Haveria de os arranjar, mas por agora apreciava o progresso da sua obra.
— Podes ser um filho da mãe feio — balbuciou em torno do charuto —, mas pelo menos agora consegues andar.
Fitou a mão-cheia de outros veículos na garagem, a maioria uma mistura elegante e reluzente de Land Rovers, sedans alemães e um par de motorizadas Ducati. Passou a mão pelo painel traseiro do Jeep, sentindo a rude textura de Bondo e uma pequena mossa de um antigo choque, um testemunho do seu uso intenso e da sua resistência.
Mal podia esperar por levar aquela besta para o ar livre, para a deixar verdadeiramente à solta.
Enquanto o imaginava, agarrou na barra de segurança e trepou para trás do volante, uma manobra relativamente fácil dado que as duas portas estavam encostadas à parede vizinha, à espera de ser instaladas. Rodou a chave. O motor tossiu duas vezes, libertando fumo do escape, depois aquietou-se num som rouco.
Recostou-se, permitindo que um sorriso de satisfação se abrisse no seu rosto.
— Kowalski!
A voz aguda fê-lo saltar. Contorceu-se e viu a forma esguia do cromo da informática residente da Sigma a correr pela garagem. Um corta-vento largo, azul-escuro, agitava-se em redor dos ombros magros do miúdo, revelando o coldre que trazia ao peito.
— Temos de nos pôr a andar!
Kowalski soprou o fumo do charuto que lhe enchia os pulmões.
— Para onde? — rosnou, em torno da ponta brilhante.
— Para o outro lado do Mall. Para o Museu Nacional de História Natural.
Uma pontada de medo deslizou pelas costas de Kowalski, não por ele, mas por outra pessoa. Era uma reação instintiva. A namorada — ou melhor, ex-namorada — trabalhara lá nos últimos dois anos, supervisionando as exposições sobre mitologia grega e história antiga. Mas Elizabeth partira para o Egito há três meses para ajudar numa escavação arqueológica. A relação deles já tinha passado por momentos difíceis antes disso e estava a dar as últimas. Por muito que os opostos se possam atrair inicialmente, não era necessariamente a melhor receita para uma relação duradoura. E embora aquela escavação no Egito tivesse sido uma oportunidade para ela, sabia que uma grande parte do seu impulso para partir estava relacionado com a vontade de pôr alguma distância entre ambos, menos por ela do que por ele, desconfiava Kowalski. Não era segredo nenhum entre os dois que a paixão dele era mais inflamada.
E ainda era.
Era uma das razões por que tinha comprado o Jeep e levado a cabo o seu restauro. Precisava de algo que o distraísse.
Jason apontou para um dos BMW sedans.
— Vamos! Vou-te dizendo o que se passa no caminho!
Kowalski apagou o charuto numa bacia com água próxima de si.
— Traz para aqui esse traseiro! — gritou, acelerando o motor para realçar as suas palavras. — Vamos levar o meu Jeep!
Jason derrapou até parar e olhou com ceticismo para o veículo, mas adaptou-se à mudança com a flexibilidade própria da juventude. Correu para o lado do passageiro e saltou para o assento. Procurou o cinto de segurança, mas, como as portas, também os cintos estavam ausentes.
Kowalski pôs o Jeep em movimento e o veículo soluçou para a frente. Jason teve de se agarrar à barra de segurança para se manter no assento.
Hum… talvez a caixa de velocidades precise de um pouco mais de afinação.
Kowalski agarrou o volante e lançou o Jeep a roncar em direção a uma rampa que subia em espiral até uma saída privada na Independence Avenue.
Jason foi falando rapidamente enquanto subiam, informando Kowalski acerca dos pormenores de um ataque cibernético aos servidores do Smithsonian — e para a presença de um potencial elemento crucial escondido no museu do outro lado do Mall.
— O diretor Crowe acha que o inimigo pôs em andamento um plano de recurso. Não tendo sido capazes de obter eletronicamente a informação, vão diretamente à fonte.
A esta mulher…
Uma vez no cimo da rampa, Kowalski apontou para o porta-luvas.
— Abre isso.
Jason obedeceu, abrindo com um estalido o porta-luvas e revelando no seu interior uma grande pistola de aço. Passou a arma a Kowalski, usando as duas mãos.
— Que raio é isto?
Kowalski aceitou a grande pistola com um sorriso. O punho revestido a borracha encaixava na perfeição na palma da sua mão.
— Uma Desert Eagle calibre cinquenta.
— Cinquenta? — disse Jason com um assobio. — Qual é o problema da quarenta e cinco?
— O facto de fazerem uma cinquenta — declarou Kowalski, afirmando o óbvio.
Enfiou a grande pistola no cinto.
Uma vez a caminho da Independence Avenue, Jason recebeu uma chamada de Painter, enquanto Kowalski os levava num grande círculo à volta do Mall. Viram-se atrás de um gigantesco camião do lixo que avançava lentamente e enchia o seu lado da rua. Embora o Museu Nacional de História Natural e o Castelo estivessem situados em frente um do outro, ficavam em lados opostos do Mall e o caminho indireto era complicado por um projeto em curso para restaurar o relvado irregular do Mall, o que tinha transformado aquela secção do parque e relvados em pilhas altas de terra e pedra.
Jason desligou.
— O diretor conseguiu convencer a DC Metro de que se tratou de um falso alarme, atribuindo as culpas a uma descarga elétrica do projeto de construção vizinho. Mas esse ardil só nos dá uma janela de tempo limitada.
Kowalski abanou a cabeça. Tinha de dar crédito ao diretor. Painter era um mestre no que dizia respeito a puxar os cordelinhos em Washington.
— Também estamos autorizados a entrar no museu pela entrada do lado noroeste — acrescentou Jason. — Está localizada…
Kowalski interrompeu-o.
— Sei onde fica.
Por vezes tinha usado essa entrada para chegar ao gabinete de Elizabeth. Era o caminho mais direto, contornando o tumulto da entrada principal e o seu rebanho de turistas. Quando o camião do lixo virou para Madison, Kowalski pôde finalmente ultrapassá-lo e acelerar, alcançando o parque de estacionamento do lado ocidental do museu.
Acelerou pelo parque vazio e carregou no travão, derrapando até à entrada. Ambos saíram e correram para a porta. Jason virava a cabeça para um lado e para o outro em busca de um qualquer sinal do inimigo. Alguém tinha ativado o alarme. Mas significaria isso que já estavam lá dentro ou teriam meramente ativado o alarme para atrair a sua presa para céu aberto?
Só há uma maneira de descobrir.
Jason chegou à entrada primeiro e passou um cartão preto com um S holográfico em baixo-relevo de um dos lados pelo leitor eletrónico. A porta foi destrancada com um clique sonoro. Jason começou a abrir a porta, mas Kowalski afastou-o para o lado e seguiu à frente, empunhando a sua Desert Eagle. Entrou numa antecâmara vulgar com uma porta que dava para os pisos principais do museu. À sua esquerda ficava uma escadaria sombria.
— Onde está essa doutora? — perguntou Kowalski com Jason na sua esteira.
— O alarme foi acionado numa janela do rés do chão do edifício do lado norte. — Apontou nessa direção genérica. — Para a manter bem longe desse local, disse-lhe que se fosse esconder no antigo gabinete da doutora Polk, na cave.
Kowalski lançou um olhar cortante ao miúdo.
— O velho gabinete da Elizabeth?
Porquê mandá-la para o gabinete da minha ex?
— Sabíamos que o gabinete da doutora Polk estava vazio. O diretor escolheu esse ponto de encontro porque tu estás familiarizado com a área envolvente. Para o caso de nos depararmos com problemas.
Excelente… começo mesmo a odiar este sítio.
Com um suspiro, Kowalski guiou Jason até à escadaria e desceu. Os degraus terminavam num labirinto de passagens estreitas que se estendiam por baixo do museu. O caminho em frente estava fracamente iluminado com o clarão carmesim das luzes de emergência. Era uma das secções mais antigas do edifício, quase intocada durante as renovações periódicas dos espaços públicos. Por baixo das suas botas, o velho piso de mármore tinha sido polido por décadas de pés de passagem. Portas de madeira com janelas de vidro fosco alinhavam-se de cada lado, cada vidro gravado com designações académicas:
Kowalski conhecia bem o caminho para o gabinete de Elizabeth. As recordações piscavam nas sombras da sua mente enquanto ele tentava concentrar-se e ouvir qualquer sinal de ameaça. Lembrou-se de terem feito um piquenique no gabinete de Elizabeth, de ouvir as suas gargalhadas, de se deliciar com os seus sorrisos. Lembrou-se de os dois se terem esgueirado para os antigos túneis de exaustão do vapor por baixo do museu para fumar charutos, que até ela por vezes experimentava. Também se lembrou de outras horas tardias em que dormitava no sofá do gabinete de Elizabeth enquanto esta acabava de catalogar um novo carregamento vindo da Grécia ou de Itália, outras vezes em que se envolveram em demandas menos eruditas nos braços um do outro. Sentiu o seu sangue agitar-se perante esses últimos pensamentos e afastou-os bem para o fundo da mente.
Agora não era o momento certo.
Ainda assim, não conseguia fugir às memórias sombrias desses tempos em que a sua impaciência a irritava, quando os sorrisos se transformavam em franzires de sobrolho; quando as palavras, pronunciadas de ambos os lados, se tornavam dolorosas. Eram ambos estouvados, ambos demasiado fáceis de ferir. Talvez com o tempo aprendessem a adaptar-se um ao outro com mais cuidado, mas ele fora chamado para missões no estrangeiro com demasiada frequência, operações sobre as quais não podia sequer falar ao regressar. Da mesma maneira, ela ausentava-se durante semanas a fio: para escavações poeirentas, laboriosas conferências científicas. E enquanto estavam afastados, os seus íntimos telefonemas diários, que até então tinham durado horas, acabaram por desaparecer em secas mensagens de texto.
E quando o fim chegou, não foi devido a um qualquer ato operático de traição. Foi simplesmente a maré da sua relação a recuar, até nenhum deles poder ignorar o inevitável. Indubitavelmente mais inteligente que ele, Elizabeth foi a primeira a reconhecê-lo e a apresentar os factos durante um longo e frio jantar.
Ainda assim doía.
Por fim, uma porta escura surgiu à sua frente. No vidro fosco lia-se ANTROPOLOGIA. Por baixo disso, pendurada em pequenos ganchos na porta, estava uma placa de metal preta com letras prateadas onde se lia ELIZABETH POLK, PHD.
— Chegámos — disse Kowalski desnecessariamente.
Surpreendido por ela ter deixado ficar a placa, curvou-se para a soltar. Ao fazê-lo, o vidro por cima da sua cabeça estilhaçou-se, acompanhado pela forte réplica de um tiro de pistola.
Jason caiu sobre um joelho e deu meia-volta, sacando da sua arma num só gesto, uma SIG Sauer P226. Apertou o gatilho duas vezes, disparando cegamente pelo corredor na direção do tiro, na esperança de desencorajar o atirador de voltar a disparar. Não foi completamente bem-sucedido. Um segundo tiro soou vindo das sombras, estilhaçando a moldura da porta junto ao seu ombro.
Depois um canhão ressoou junto ao seu ouvido.
Ouviu-se um grito abafado ao fundo do corredor.
Kowalski empunhou a arma fumegante e rosnou-lhe.
— Entre!
Jason mergulhou atrás do corpulento homem, rodou a maçaneta — felizmente a porta estava destrancada — e abriu-a, empurrando com o ombro. Rolou para o interior, com Kowalski no seu encalço. Uma vez a salvo, Jason fechou a porta do gabinete, fazendo cair alguns estilhaços de vidro. Embora este lhe oferecesse pouca proteção, fechou o trinco com o polegar.
— Sara — chamou na sala escura, mantendo-se agachado. — Sou o Jason Carter.
Um pequeno arquejo fez-se ouvir atrás da secretária.
— Estou aqui.
Jason viu uma sombra que se erguia atrás da secretária.
— Fica agachada — avisou.
— Devem ter-nos seguido até aqui — resmungou Kowalski, erguendo-se o suficiente para espreitar para a janela estilhaçada.
Fazia sentido. Deviam ter sido mais cautelosos. O inimigo decerto não sabia onde a doutora Gutierrez se tinha escondido.
Até os termos trazido para aqui, constatou Jason.
Ou ele e Kowalski tinham sido vistos a entrar no edifício, ou uma pequena força expedicionária estava já no interior e cruzara-se com eles ali em baixo. De qualquer modo, estavam encurralados.
— Por aqui — disse Kowalski, e afastou-se da porta, agachado e curvado. — Há um pequeno armazém nas traseiras.
Jason seguiu-o, levando a doutora Gutierrez de passagem.
Envergando uma bata branca por cima das calças de ganga, ela deslocou-se furtivamente ao lado dele. Apertava uma pasta de cabedal preto contra o peito com um braço.
— Obrigada — sussurrou-lhe.
Não nos agradeça já.
Jason olhou à volta. O gabinete era grande, com paredes repletas de prateleiras, uma secretária de grandes dimensões e um velho sofá de pele contra uma parede. Com exceção de uma mão-cheia de papéis perdidos, tinha sido completamente esvaziado. Kowalski conduziu-os a uma porta estreita do lado oposto, que estava entreaberta.
Entraram na sala seguinte, que tinha o dobro do tamanho do gabinete e estava dividida por estantes de metal altas. Um par de paletes de madeira estava encostado a uma parede. Jason calculou que o armazém tivesse sido usado como sala de exposição para o trabalho da doutora Polk com a sua coleção de antiguidades.
Kowalski fechou a porta de pinho sólido. Ainda assim, não representaria grande obstáculo a um inimigo determinado, em especial tendo em conta que não havia forma de a trancar por dentro. Aquilo não pareceu incomodar Kowalski enquanto este avançava para o meio da sala e se inclinava para uma sólida grelha no chão. Estava fechada com um cadeado.
Apoiando um joelho no chão e usando a luz do telemóvel como iluminação, Kowalski girou o mostrador para um lado e para o outro. Atrás dele, o som de vidros a caírem sussurrava vindo da divisão adjacente. Jason imaginou uma mão a estender-se através do vidro partido em busca da fechadura.
Depressa…
Kowalski soltou o cadeado e ergueu a pesada grelha com um braço. Uma passagem escura abria-se por baixo.
— Há uma escada do lado esquerdo. É uma breve descida até um dos túneis de serviço por baixo do museu.
Jason não questionou o plano de Kowalski, nem se perguntou onde os conduziria. De momento, o objetivo era manterem-se um passo à frente do inimigo. Foi o primeiro a descer, agarrando-se aos degraus de aço, ajudando em seguida Sara a descer. Apressando-se, tropeçou quando uma bota escorregou. Acabou por deslizar ao longo do resto das escadas, que felizmente tinham menos de dois metros. Aterrou desajeitadamente, mas conseguiu manter-se de pé e trazer Sara em segurança para o chão.
Por cima deles, Kowalski fechou a grade com um som metálico suave, depois deslizou pela escada sem que as suas botas tocassem num único degrau. Claramente já tinha feito aquilo antes.
Jason acendeu uma lanterna e apontou-a para o corredor. O espaço era abafado, cheirava a cimento molhado e ecoava com o pingar da água. Canos velhos, cobertos por teias de aranha, percorriam o teto.
— Onde estamos? — perguntou Sara.
Kowalski passou entre eles e guiou-os em frente.
— Nos velhos túneis de exaustão do vapor e de serviço. Por vezes, eu e a Elizabeth costumávamos esgueirar-nos cá para baixo para fumar. — Tocou nas paredes com a mão. — Era o lugar mais seguro, sem que tivéssemos de subir até ao exterior.
Jason ouviu uma miscelânea de tristeza e desejo na voz de Kowalski.
— Para onde vamos? — perguntou Sara, dando voz à preocupação de Jason.
Kowalski tossiu para limpar um pouco a garganta.
— Este espaço é um labirinto autêntico. Há quem diga que estes túneis chegavam em tempos à Casa Branca, mas, com a segurança crescente, uma grande parte foi seccionada e emparedada. — Apontou em frente, enquanto virava uma esquina. — Há ali escadas que conduzem a uma porta de serviço que dá acesso ao museu.
Quando dobraram a esquina, um som metálico forte fez-se ouvir atrás deles.
O inimigo tinha descoberto a sua via de fuga.
Jason apontou a luz para o chão do túnel. As suas pegadas na sujidade seriam fáceis de seguir.
Vozes abafadas ergueram-se atrás deles.
— É tempo de acelerar — avisou o homem grande, incitando-os a seguir em frente.
Uma vez mais, Jason não questionou o plano.
Kowalski enfiou de novo a Desert Eagle no cinto e seguiu os outros pelas escadas de cimento. Atrapalhou-se com a carteira enquanto subia, vasculhando o seu conteúdo.
Onde raio estás tu…?
Por aquela altura, Jason já tinha alcançado o patamar de cimento manchado no topo das escadas. Uma lâmpada de emergência oferecia uma parca iluminação, o suficiente para revelar uma porta de aço sem qualquer marca diferenciadora. Parecia datar do dia da abertura do museu, mas estava trancada por uma moderna fechadura eletrónica.
Jason rodou o puxador sem sucesso.
Os dedos de Kowalski tiraram finalmente um cartão entre os muitos que tinha guardados na bolsa lateral da sua carteira de pele. Era um velho keycard de colaborador. Num canto, quase impossível de distinguir sob o brilho da lâmpada solitária, estava uma foto minúscula de Elizabeth Polk. O cabelo cor de avelã emoldurava-lhe as maçãs do rosto altas, enquanto um par de óculos pequenos se empoleirava no seu nariz. Elizabeth tinha-lhe dado o cartão pouco depois de começarem a namorar, facilitando as suas idas e vindas quando a visitava. Ele devia ter-lho devolvido ou destruído, mas não fora capaz de o fazer.
O som furtivo de botas a bater na pedra ecoou vindo debaixo.
— Kowalski… — silvou-lhe Jason.
Kowalski avançou com o cartão, rezando para que este ainda mantivesse o código da porta de serviço. Passou o cartão pela ranhura por baixo da luz que brilhava vermelha… e que permaneceu vermelha.
Filho da…
Jason fitou-o de olhos muito abertos. A doutora Gutierrez encolhia-se contra o seu ombro. Gotas de suor perlavam-lhe a testa, enquanto os seus lábios se mantinham fixos num esgar de medo. Eram um alvo fácil ali.
Kowalski esfregou a tira magnética do cartão na manga do casaco.
— Por vezes, estes leitores antigos são temperamentais.
Deus, espero que seja isso.
Um gritou ergueu-se em baixo, quando o inimigo abandonou qualquer tipo de furtividade.
Jason girou para o lado e usou o cano da arma para estilhaçar a lâmpada solitária na sua gaiola. A escuridão caiu à sua volta, oferecendo algum abrigo. O miúdo puxou a mulher para baixo, ao mesmo tempo que apontava a arma na direção das escadas. Disparou uma vez para encorajar os seus perseguidores a avançarem com maior cautela.
Kowalski voltou a passar o cartão.
Vamos lá, Elizabeth, não me dececiones.
Apesar da sua súplica silenciosa, a minúscula luz permaneceu vermelha.
Mas que raio!
Tocou com o dedo no cartão, perguntando-se se não mereceria aquele destino. Mas sob as pontas dos dedos, apercebeu-se que a tira magnética estava do lado errado. No escuro, voltara o cartão para o lado errado.
Virou o cartão, deslizou-o pelo leitor e viu a luz passar a verde, acompanhada pelo gratificante abrir da fechadura. Agarrou no puxador e abriu a porta.
Passaram todos para o corredor. Kowalski fechou a porta atrás deles, depois encostou-se a ela, aliviado. O som de tiros abafados fez-se ouvir do outro lado, fazendo ricochete no aço, recordando-lhes que não tinham tempo para apreciar aquele pequena vitória.
— Temos de continuar em movimento — avisou Jason. — Não temos como saber quantos mais estarão aí.
Kowalski acenou com a cabeça.
— Sigam-me.
Empurrou a porta e correu ao longo do corredor até uma escadaria. Era a mesma que ele e Jason tinham usado para chegar ao nível da cave. Voltaram a subir em direção à saída lateral. Kowalski tinha de novo a Desert Eagle na mão e fez sinal a Jason e à doutora Gutierrez para que passassem pela porta enquanto a mantinha aberta e lhes cobria a retirada. Analisou o parque de estacionamento em busca de sinais de uma emboscada, ao mesmo tempo que mantinha um ouvido atento a qualquer som que indicasse que estavam a ser seguidos do interior do museu.
O Jeep erguia-se a poucos metros. Jason ajudou a jovem a sentar-se no lugar da frente do passageiro, depois saltou para o banco de trás. O miúdo colocou-se de pé, as costas encostadas à barra de segurança, e ergueu a SIG Sauer movendo-a em arco de modo a cobrir o parque de estacionamento.
— Vai! — ordenou Jason.
Kowalski rolou para longe da porta, deixando que esta se fechasse atrás de si, e correu para a frente do Jeep, para alcançar o lugar do condutor. Ao entrar, ouviu um lamento gritado vindo das traseiras do museu. Lembrou-se de Jason ter dito que o alarme tinha sido acionado por uma janela partida daquele lado.
Enquanto Kowalski enfiava a chave na ignição, observou um farol solitário a dobrar velozmente o canto mais distante do parque de estacionamento. Era uma mota, sobre a qual se encontravam dois homens de capacete. O que seguia atrás ergueu-se no assento com uma espingarda ao ombro.
Kowalski rodou a chave e o motor tossiu e morreu.
Uma rajada da espingarda explodiu na noite silenciosa.
O vidro traseiro partiu-se.
Filho da mãe…
Jason respondeu aos tiros na parte de trás, disparando por cima da barra de segurança. Kowalski pisou uma vez o acelerador, depois voltou a tentar a chave, subitamente preocupado com o seu trabalho elétrico na bobina da ignição. Mas o motor tossiu… depois pegou com um sacão da estrutura, rosnando roucamente.
É o suficiente.
Engatou a marcha-atrás, depois carregou com a bota até ao fundo. O Jeep recuou, arrancando um uf sonoro a Jason quando a barra de segurança lhe bateu no peito. Mas o ataque do miúdo tinha forçado a mota a desviar-se para o lado, obrigando o inimigo a ziguezaguear por entre o conjunto de árvores que flanqueava a Twelfth Street.
Aproveitando o momento, Kowalski gritou «Agarrem-se bem!» e puxou com força o volante.
O Jeep fez um pião.
Jason agarrou-se à barra de segurança com um braço para manter o equilíbrio.
A doutora Gutierrez deslizou do seu assento para o lado de Kowalski, mas ainda assim este conseguiu engatar a primeira. Acelerou, levando-os na direção de Madison Drive, que corria ao longo da frente do museu.
— Kowalski! — gritou Jason.
Mas ele já tinha visto a ameaça. Outras duas motas convergiam para a sua posição, vindas de direções oposta ao longo da Madison: uma viajando no sentido do trânsito, serpenteando veloz por entre os poucos carros que aí circulavam àquela hora; a outra avançando em sentido contrário pela rua de sentido único.
Os tiros irromperam atrás deles, enquanto da primeira mota disparavam erraticamente na sua direção.
As balas cravavam-se no para-choques e painel traseiro.
Jason disparava com igual ferocidade.
Enquanto o Jeep alcançava o final do parque de estacionamento, Kowalski pensou rapidamente. Detestava a ideia de levar aquele confronto para as ruas, onde os transeuntes inocentes podiam ser apanhados no fogo cruzado. Além disso, se tentasse entrar na Madison, ficaria encurralado de ambos os lados.
Isso só lhe deixava uma escolha.
— Baixem-se e agarrem-se! — ordenou aos seus passageiros.
Acelerou, passando rapidamente pelas três mudanças, e disparou pela Madison. Cortou o caminho de um autocarro da linha noturna e passou entre as duas motas que convergiam. Bateu no passeio oposto, o que fez saltar o Jeep, e chocou contra a vedação temporária que rodeava a secção do National Mall que estava em obras. Aterrou com força sobre os quatro pneus e continuou sem abrandar.
O terreno à frente era uma confusão de pilhas de pedras, dunas altas de terra e fossos traiçoeiros. Aquela fase do projeto de construção estendia-se pelos oitocentos metros da Seventh Street quase até à base do Washington Monument.
— Que estás a fazer? — gritou Jason.
— Que raio te parece?
— Parece que não sabes o que estás a fazer!
— Exatamente! Chama-se improvisar!
Enquanto Jason resmungava alto e bom som, Kowalski avançava ainda mais profundamente pelo terreno acidentado a uma velocidade alucinante. Pelo retrovisor viu as três motas aproximarem-se atrás dele. O inimigo não ia desistir facilmente.
Kowalski lembrou-se de quanto tinha desejado, mais cedo, testar o Jeep em terra batida.
Parece que estou prestes a ter a minha oportunidade.
Jason pôs o braço à volta da barra de segurança, enquanto o Jeep acelerava cada vez mais através do local das escavações. Mais à frente, a flecha bem iluminada do Washington Monument erguia-se no céu noturno.
Enquanto o Jeep chocalhava sobre o solo irregular, ele fazia os possíveis por manter o equilíbrio no banco traseiro, auxiliado pelo facto de uma das botas ter atravessado o tecido gasto e se ter afundado até às molas.
Uma espingarda disparou atrás dele e a bala ressaltou na parte de trás do veículo. Mantendo o braço na barra para se segurar, Jason ergueu a SIG Sauer e disparou ferozmente para a motorizada mais próxima. Esta levava uns bons nove metros de avanço em relação às outras duas e parecia prestes a alcançá-los.
Mais tiros irromperam da motorizada. Uma vez mais as balas atingiram zonas baixas: enterrando-se no chão ou fazendo ricochete no para-choques.
Devem estar a tentar rebentar os pneus traseiros…
Se assim fosse, isso queria dizer que queriam Sara viva.
Mas porquê?
— Agarrem-se! — gritou Kowalski.
Que achas que estou a fazer aqui atrás?
Enquanto a mota da frente acelerava na sua direção, Kowalski curvou abruptamente para contornar um monte de terra solta. O veículo inclinou-se precariamente. Com mestria, Kowalski reduziu, depois voltou a carregar no acelerador.
Os pneus de rasto largo enterraram-se no montículo e lançaram uma nuvem vermelha para trás do Jeep. A onda de terra e gravilha atingiu a motorizada que os seguia, engolindo-a e atirando-a ao chão.
Kowalski afastou-se do monte e acelerou de novo.
Jason recuperou o equilíbrio, observando o espaço atrás deles.
Menos um…
As outras duas motas alcançaram o monte, voaram e aterraram habilmente sobre a roda traseira — e aceleraram atrás deles.
Uma nova rajada de tiros seguiu-os, vinda de ambas as motas.
Jason sentiu uma bala assobiar ao passar junto ao seu ouvido. Outras duas bateram no cimo do para-brisas. Kowalski empurrou Sara, obrigando-a a baixar-se mais, enfiando-a no espaço à frente do banco. Jason seguiu o seu exemplo e deitou-se sobre o banco traseiro.
Aquela súbita alteração da tática utilizada pelo inimigo sugeria que as circunstâncias tinham mudado, que tinham sido emitidas novas ordens pelos seus superiores.
Atirar a matar.
Kowalski mantinha um olho no terreno mergulhado nas sombras à sua frente e o outro no espelho retrovisor. As duas motas pretas iam ganhando terreno. Os seus condutores tinham deixado momentaneamente de disparar, optando antes por se baixar e abdicar do ataque para acelerar mais depressa.
Kowalski compreendeu o plano.
Tencionavam flanqueá-lo, encurralar o Jeep entre fogo cruzado.
O tanas… agora estão no meu território.
Embora reconhecidamente fosse um território algo acidentado. Ao longo do último mês, subira frequentemente ao telhado do Castelo e observara o equipamento pesado a arrancar o antigo relvado, transportando camiões cheios de terra nova e escavando valas de irrigação e fossos profundos para as futuras cisternas. Achava o roncar dos motores John Deere e a conversa dos trabalhadores calmante. Era o seu ruído branco, a sua versão do tamborilar da chuva ou dos sonoros chamamentos das baleias.
— Para onde vais? — gritou-lhe Jason com uma ponta de pânico na voz.
À sua frente, uma montanha de terra bloqueava o caminho, subindo à altura de dois andares.
— Para cima — respondeu.
Não tinha qualquer dúvida de que o Jeep fosse capaz de chegar ao topo, mas precisava de toda a aceleração que conseguisse arrancar ao motor Chevy. Abrandou momentaneamente, metendo uma mudança mais baixa. As duas motorizadas reduziram a distância para o Jeep, afastando-se uma da outra e preparando-se para o flanquear. Pelo ruído estridente das motas, calculou que estivessem a forçar os motores a dois tempos até ao limite.
Mas seria suficiente para a íngreme encosta de terra solta?
Vamos descobrir.
Quando chegou à base do monte, carregou no acelerador ao mesmo tempo que metia a primeira. As rodas do Jeep rodaram momentaneamente — depois aderiram ao terreno e o veículo saltou para a frente como um cavalo chicoteado. Disparou pela íngreme encosta, acelerando rapidamente, provando que aquele veículo era, no fundo, um verdadeiro puro-sangue.
A doutora Gutierrez arquejou, caindo para trás no assento; Jason praguejou nas suas costas.
O inimigo perseguiu-os, subindo pelo monte de terra. Os dois condutores eram claramente hábeis, fazendo oscilar os pneus traseiros para impedir que se enterrassem no solo. Em breve ficaram junto ao para-choques traseiro de Kowalski, os seus reflexos enchiam os espelhos retrovisores de ambos os lados. Os condutores soltaram as pistolas dos seus coldres, preparando-se para abrir fogo sobre o Jeep.
— Kowalski! — gemeu Jason.
O cimo do monte estava a poucos metros. Ainda assim, jamais chegariam ao topo antes de serem alcançados.
Não faz mal.
Kowalski carregou com força nos travões, obrigando o Jeep a parar.
A manobra foi demasiado súbita para que o inimigo conseguisse reagir. As duas motas passaram velozes para lá da posição imóvel do Jeep, alcançando o cume e saindo disparadas. Kowalski tentou imaginar a vista a partir dessas motas.
Sorriu sombriamente e avançou lentamente até ao topo com o Jeep. Desse ponto elevado, viu as duas motas desenharem um arco — caindo depois de cabeça na direção de um fosso gigantesco do lado oposto. O monte tinha sido formado quando a equipa de construção escavara uma profunda cisterna, destinada a armazenar mais de setecentos e cinquenta mil litros de água.
E, agora, mais duas motas.
O par de motas caiu com força na lama do fundo do fosso.
Jason deu uma palmadinha no ombro de Kowalski, enquanto este descia a encosta de marcha-atrás.
— Fico a dever-te uma.
— Uma dúzia de cubanos enrolados à mão e ficamos quites. — Kowalski virou-se para a doutora Gutierrez, que parecia pálida e quase em choque. — Então porque é que a senhora é tão importante?
Jason deixou Sara respirar pesadamente durante alguns minutos antes de seguir a linha de interrogatório de Kowalski. Logo que o Jeep saiu da zona em obras e entrou em Madison Drive, inclinou-se para a frente no banco traseiro. Atrás de si, eram visíveis as luzes brilhantes dos veículos de emergência que se aproximavam do Mall.
Era tempo de saírem dali e obterem algumas respostas.
— Sara, podes explicar-nos em que estavas a trabalhar para o Smithsonian? Porque estavas no museu?
Ela virou-se para Jason. Os seus olhos ainda estavam muito abertos, mas a respiração era mais calma.
— Estou aqui com uma bolsa, a trabalhar no programa de ADN Ancestral do Smithsonian.
Isso já Jason tinha compreendido graças à análise do seu ficheiro.
— Que tipo de trabalho estavas a fazer para eles?
Sara abanou a cabeça, confusa.
— O objetivo do programa é estudar a variabilidade genética e as alterações ocorridas com o passar do tempo em diversas espécies. Para o fazer, eu e os meus colegas extraímos e analisámos o ADN de fontes ancestrais.
— Fontes ancestrais?
— Ossos mineralizados, artefactos arqueológicos ou, no caso desta noite… — Agarrou na mochila de pele que estava aos seus pés e pousou-a no colo como se estivesse a protegê-la. — Espécimes do museu.
Kowalski olhou para a mochila com uma careta.
— Que tipo de espécimes?
— Foi atribuída uma família taxionómica diferente a cada um de nós. No meu caso, trabalho com todos os Hominidae. Isso cobre todos os grandes macacos. Orangotangos, gorilas, chimpanzés e bonobos.
— Mas também um outro — acrescentou Jason. — Os Hominidae também incluem o género Homo, que inclui os humanos.
Ela acenou com a cabeça, olhando para Jason mais atentamente por ele o saber.
— É verdade. Recolhi e documentei amostras genómicas de quase todas as espécies hominídeas, do homem mais antigo ao mais moderno. — Foi-os enumerando pelos dedos. — Homo erectus, Homo habilis, Homo neanderthalensis, e vários outros antepassados obscuros. Era para fazer isso que estava no museu esta noite. Para recolher amostras de ADN de um conjunto de fósseis recentemente adquiridos.
— E tem estado a armazenar esses resultados no computador do laboratório?
— Sim.
Jason recostou-se, esforçando-se por compreender o que poderiam os chineses querer com aqueles dados científicos tão esotéricos. Não fazia sentido. Mas por agora, isso podia esperar. Lembrou-se da missão que lhe tinha sido atribuída: garantir a segurança não só da doutora Gutierrez, mas também do seu computador. Para além de salvaguardar os ficheiros que não tinham sido roubados no ataque cibernético inicial, ainda esperava que pudessem existir provas digitais no computador que apontassem para o perpetrador.
— Sara, vou precisar de aceder ao teu computador… esta noite… antes que alguém possa corromper o que lá se encontra. Depois de te deixar num local seguro…
Ela virou-se para ele.
— Terei de ir convosco.
— Porquê?
— O meu computador tem uma dupla proteção, com uma palavra-passe alfanumérica e um sistema EyeLock myris.
— Que é isso? — perguntou Kowalski.
Jason resmungou, sabendo a resposta. Era um scanner de íris disponível comercialmente e usado para autenticação da identidade.
— Parece que vamos ficar todos juntos mais algum tempo.
Quinze minutos depois, Kowalski conduzia o Jeep por uma estrada estreita e sinuosa através do Rock Creek Park. A sombria estrada florestal ia dar à entrada das traseiras da propriedade do National Zoo, onde um portão privado oferecia acesso fácil ao campus do Rock Creek Research Labs.
— O portão deve ser logo depois da próxima curva — disse Sara, tremendo sob as rajadas de vento frio que varriam o veículo aberto.
Kowalski aumentou a temperatura do aquecimento tanto quanto possível, mas era como tentar proteger com as mãos a chama de uma vela no meio de um nevão. Até os seus dentes tinham começado a bater.
— O meu gabinete fica a pouca distância depois da vedação — garantiu-lhes.
Jason inclinou-se na direção de Kowalski.
— O diretor mandou a polícia do parque fechar o campus. Devem estar à nossa espera no portão.
Sara ergueu um cartão branco.
— Se não, tenho o meu passe.
Quando o Jeep contornou a curva, a vedação em torno do perímetro tornou-se visível. O pequeno portão de serviço estava aberto, iluminado por um só poste de iluminação. Kowalski não viu quaisquer guardas nas proximidades nem a prometida escolta policial.
Trocou um olhar preocupado com Jason.
— Talvez o pessoal o tenha deixado aberto para nós — alvitrou o miúdo. — Ou talvez estejam à nossa espera no gabinete da Sara.
E talvez saiam porcos voadores do meu traseiro.
Quando se aproximou do portão, Kowalski acelerou ainda mais o Jeep, não fosse alguém tentar fazer-lhes uma emboscada junto à vedação. Nenhum dos passageiros lhe pediu para ir mais devagar.
Acelerou através do portão e da propriedade do jardim zoológico. Um grupo de edifícios de escritórios abraçava dos dois lados a estrada à sua frente, parecendo-se com qualquer outro complexo de empresas. Para lá deles, depois de outra vedação, estava localizado o parque principal.
— O meu gabinete fica no segundo edifício à esquerda.
Parecia ser o único iluminado naquela noite. Uma figura solitária desenhava-se contra aquele clarão.
— Aquela é a Jill Masterson — disse Sara, suspirando de alívio, claramente feliz por ver um rosto familiar. — Faz parte da polícia do parque.
Kowalski parou ao lado da oficial, continuando atento a qualquer ameaça. Mesmo com o motor ligado, distinguia os gritos e chamamentos noturnos dos residentes no parque vizinho. A brisa transportava consigo o cheiro das flores de cerejeira, juntamente com um cheiro almiscarado mais pesado vindo dos terrenos do parque.
A tenente aproximou-se. Parecia estar na casa dos trinta. Em forma, envergando um imaculado uniforme do parque, com o cabelo castanho-acobreado preso num boné. Pelo franzir de sobrolho fixo no seu rosto, não estava satisfeita com aquela missão noturna.
Apresentou-se e depois acrescentou:
— Não sei ao certo por que razão o meu chefe convocou os serviços do parque para abrir o portão e garantir a segurança deste edifício. Tem estado tudo calmo. — Dirigiu um breve sorriso a Sara. — Mas parece que teve uma noite difícil, doutora Gutierrez.
— E ficarei feliz quando chegar ao fim.
Saíram todos do carro e avançaram para o edifício de escritórios.
— Pensei que teriam mais homens no terreno — comentou Jason.
Masterson fitou-o, erguendo uma sobrancelha.
— A esta hora? Não somos a DC Metro. Com os cortes orçamentais, quase não temos pessoal durante o dia. Ainda assim, consegui três agentes para passarem o edifício a pente fino e garantirem que está tudo bem. Ainda tenho um homem lá dentro.
— Então e os outros dois? — perguntou Kowalski.
— Quando terminaram, mandei-os de volta ao parque. Recebemos um alarme de vidro partido no quiosque do portão principal há alguns minutos. Foram ver o que… — Tendo em conta as expressões deles, a tenente deve ter percebido que havia algo de errado. — O que foi?
— É como no museu — gemeu Sara.
Jason obrigou-os a avançar mais depressa.
— Todos lá para dentro. Precisamos de chegar ao computador e montar uma defesa. Comunique com o seu homem, tenente.
Ela obedeceu, confirmando que tudo permanecia calmo no interior.
Ainda assim, Kowalski sacou da sua Desert Eagle, o que lhe mereceu um segundo olhar de Masterson. Jason pegou no telemóvel e ligou a Painter, fazendo uma rápida atualização da situação. Quando passaram a porta da frente do edifício, Sara guiou-os apressadamente em direção aos gabinetes do seu laboratório nas traseiras.
— A ajuda vem a caminho — disse Jason ao desligar.
Esperemos que aqui cheguem a tempo.
Quando atravessaram o lobby, um forte rugido ecoou até eles.
Kowalski estacou, mas Sara sorriu-lhe nervosamente.
— É o Anton, um tigre-siberiano que se encontra numa jaula no Departamento de Ciências Reprodutivas aqui ao lado. Têm estado a recolher sémen como parte de um programa de reprodução de tigres em risco de extinção.
Sorte a dele.
Ela olhou de relance para um corredor lateral.
— O Anton por norma é um gatinho, mas fica consideravelmente rabugento quando o acordam cedo.
Também eu.
Apressaram-se para as traseiras do edifício e encontraram o outro homem de Masterson à espera no interior do gabinete de Sara. Este apresentou-se como John Kress e juntou-se à chefe, ficando de guarda no corredor enquanto Jason seguia Sara para as profundezas do seu laboratório. O pequeno espaço estava repleto de equipamento de aço inoxidável, prateleiras de frascos de vidro e pipetas, congeladores altos e uma bancada de trabalho com um trio de computadores.
— O meu é o do meio — disse Sara.
Jason sacou de uma pen-drive.
— Se me puderes dar acesso, preciso de uma cópia do diretório de raiz para captar qualquer código malicioso executável e para obter um registo das ligações TCP/IP desta noite. Depois disso, vou tentar…
Sara interrompeu-o.
— Faz tudo o que tiveres de fazer.
Tirou o computador do modo de pausa, introduziu a longa palavra-passe e ergueu o aparelho azul até ao rosto. Um pequeno flash de luz iluminou-lhe o olho esquerdo, depois o ecrã de login branco desapareceu, dando lugar ao ambiente de trabalho.
Ela recuou.
— É todo teu.
Jason tomou o lugar dela e enfiou a pen numa porta USB na lateral do teclado. Começou a teclar rapidamente com uma mão, ao mesmo tempo que manipulava o rato sem fios com a outra.
— Interessante — balbuciou Jason.
Sara aproximou-se mais.
— Que foi?
— Os piratas pareciam estar interessados nos teus ficheiros marcados como N¬¬_sis. — Jason olhou de relance para ela. — O que significa isso?
— É apenas a minha abreviatura para Neanderthalensis — respondeu ela. — Esses são os ficheiros onde comparo as sequências dos neandertais com as do homem moderno, realçando os genes que obtivemos dos nossos antepassados há muito perdidos. A maioria de nós tem uma pequena percentagem de genes neandertais, uns mais que outros.
Kowalski esperou que alguém olhasse de relance na sua direção perante aquela última afirmação, mas felizmente ninguém o fez.
Jason praguejou de súbito, erguendo as mãos do teclado. Os ficheiros surgiam no ecrã, abrindo-se e fechando-se sozinhos, como se houvesse um fantasma na máquina. Mas não era um fantasma.
— Estamos a ser atacados — constatou Jason. — Agora mesmo.
Jason censurou-se por ser tão idiota, tão curto de vistas. Considerou desligar o cabo de alimentação do computador, mas sabia que era tarde demais. Numa mísera fração de desatenção, tinham roubado tudo.
— O que está a acontecer? — perguntou Sara, observando enquanto ele teclava furiosamente.
— Mal fizeste o login, a primeira coisa que fiz foi isolar o teu computador da Internet, do mundo em geral, mas alguém usou a LAN para entrar. A rede local.
— E o que significa isso?
— O pirata ainda deve estar suficientemente perto para estabelecer uma ligação local ao sistema. Provavelmente no mesmo edifício. Devem ter esperado para fazer uma emboscada ao sistema, mas precisavam que a Sara o desbloqueasse primeiro.
Não era de admirar que o inimigo tivesse evitado matá-la. Queriam levá-la até ali para aceder ao computador.
— Até o falso alarme deve ter sido usado para atrair os homens de Masterson para longe tempo suficiente para conseguirem introduzir um operacional por perto para orquestrar o ataque — constatou Jason em voz alta.
— Mas onde estão? — perguntou Kowalski.
Jason continuava a matraquear nas teclas.
— É isso que estou a tentar descobrir, mas quem quer que tenha feito isto espelhou o rasto através de oito computadores diferentes.
Sara cruzou os braços sobre o peito.
— Esse é o número de computadores ligados em rede neste edifício — disse ela, confirmando o seu receio.
— Não importa — disse Kowalski, avançando para a porta. — Eu sei onde estão.
Jason olhou para ele por cima do ombro.
— Como?
Kowalski apanhou a tenente Masterson e o outro oficial no corredor.
— Um de vocês vá lá fora e dê a volta ao perímetro. O outro fique no átrio e cubra a porta da frente.
Não se vá dar o caso de eu estar enganado.
Tinha uma janela estreita para apanhar os culpados em flagrante e recuperar o que fora roubado. Deixou Masterson no átrio enquanto o outro agente corria para a porta da frente. Quanto a si, virou à esquerda, para o corredor para onde vira Sara olhar de relance quando o tigre rosnara.
Lembrou-se das suas palavras: O Anton por norma é um gatinho, mas fica consideravelmente rabugento quando o acordam cedo.
Esperou que ela estivesse certa nas duas coisas.
Inicialmente, tinha atribuído a explosão do tigre a um protesto contra a sua chegada, mas e se o que quer que tivesse incomodado o tigre estivesse mais próximo e à mão, tendo invadido o espaço privado do animal? Talvez tivesse sido isso que o deixara zangado.
Era uma pista fraca, mas era melhor que nada.
Alcançou um conjunto de portas duplas com um sinal onde se lia DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS REPRODUTIVAS. Esperou que Jason fosse tão bom quanto alegava ser. O miúdo tinha dito que conseguia entrar no sistema de segurança e desativar as fechaduras eletrónicas do edifício, abrindo um caminho para Kowalski.
Experimentou a maçaneta e esta rodou livremente.
Bom trabalho, miúdo.
Empunhando a sua Desert Eagle, abriu a porta o suficiente para se esgueirar para o interior, depois fechou-a atrás de si. O corredor à sua frente estava escuro, flanqueado por pequenos gabinetes. O principal laboratório reprodutivo estava diretamente à sua frente, no final do corredor.
Fora ali que Sara dissera que estava o servidor principal do departamento. Esperou que aquele fosse o computador certo, tinha uma hipótese em oito de estar certo.
Avançou ao longo do corredor, mantendo-se colado a uma parede.
Os seus ouvidos esforçavam-se por captar um qualquer sinal do intruso, depois ouviu um vidro partir-se seguido por um grito no exterior. Um tiro fez-se ouvir no interior do laboratório.
Kowalski correu para a frente, irrompeu pelas duas portas oscilantes e avançou para a sala. Deslizando de joelhos, analisou o espaço ao mesmo tempo que apertava nas mãos a Desert Eagle. O laboratório de reprodução parecia-se mais com uma sala de operações com duas mesas hidráulicas de aço inoxidável, um braço de luzes sobre elas e filas de armários de vidro.
Entre as mesas, estava um computador pousado numa grande secretária.
À sua frente, uma figura pequena e magra removia um disco externo do tamanho da palma de uma mão da parte de trás do monitor, enquanto à esquerda de Kowalski um homem que lhe equivalia em tamanho e músculo se erguia banhado na luz do luar que entrava pela janela estilhaçada. O tipo tinha na mão uma pistola fumegante, provavelmente utilizada para disparar contra o agente do lado de fora. A arma girou na direção de Kowalski e disparou.
Incapaz de se afastar suficientemente rápido, o tiro acertou-lhe em cheio no peito. O impacto roubou-lhe o ar dos pulmões e uma dor violenta explodiu na sua caixa torácica. Deixou-se cair de costas — e disparou em resposta por baixo da mesa daquele lado. O canhão ribombou ensurdecedoramente na sua mão. O estuque atrás das pernas do homem explodiu, quando o tiro passou ao largo. Ainda assim, Kowalski aproveitou o momento para rebolar para trás de um carrinho de aço. O homem disparou na sua direção, as balas cravaram-se na lateral do carrinho, mantendo Kowalski imobilizado.
Levou a mão ao peito, esperando encontrar sangue, mas em vez disso sentiu a placa de aço amolgada que enfiara no bolso do casaco. Era a placa de identificação que retirara da porta do gabinete de Elizabeth. Tinha-se esquecido de que a tinha roubado, tendo-a guardado sem pensar no bolso de dentro do casaco. Tinha-lhe salvado a vida, pelo menos de momento.
As sirenes soavam ao longe, apressando-se na sua direção.
Devem ser os reforços enviados pelo diretor Crowe.
Kowalski apertou a pistola nas mãos e arriscou-se a espreitar para lá do limite do seu abrigo.
A pequena figura ao computador — uma mulher jovem — também reconheceu a ameaça que se aproximava e chamou o parceiro, apontando para a janela.
— Kwan, zǒu!
O homem fez uma careta, claramente recebendo ordens para sair.
Com o disco externo na mão, a mulher colocou-se ao lado do parceiro, pronta para fugir. Tinha sacado a sua própria pistola e apontava-a na direção da posição de Kowalski, como se o desafiasse a mostrar-se.
Mas Kowalski não era o único irritado pelos intrusos.
À sua esquerda, a porta da jaula alta e mergulhada nas sombras abriu-se com um ranger das pesadas dobradiças e uma criatura gigantesca avançou pelo laboratório. Aparentemente, quando Jason destrancara todas as fechaduras eletrónicas do edifício, também incluíra a jaula do tigre. Um rugido sibilante irrompeu da garganta do felino e o seu pelo eriçou-se em faixas de preto e ferrugem. Patas do tamanho de pratos avançavam pelo chão em passos lentos e determinados, atraídos pelos vultos que se erguiam à luz da Lua.
A mulher recuou, assustada com o que via. Tentou guardar o disco externo no bolso, mas este deslizou entre os seus dedos e caiu no chão. Claramente em pânico, ela agarrou a pistola com as duas mãos.
O parceiro também virara a arma para o animal.
— Bù, Shu Wei — sussurrou à mulher, avisando-a de que não devia disparar, pois arriscar-se-ia a antagonizar o tigre, que ainda estava claramente baralhado pelo ruído e pela confusão.
Com o braço livre, o homem rodeou a cintura da mulher, erguendo-a e puxando-a para si tão facilmente como se ela fosse uma boneca, depois o par deixou-se cair para trás, através da janela aberta. O tigre aproximou-se, atraído pela confusão. Cheirou o ar, depois esticou o pescoço e abriu a boca num bocejo de fazer estalar o maxilar.
Kowalski aproveitou a distração para recuar lentamente do seu esconderijo — mas o joelho embateu no canto do carrinho de metal. O tigre virou-se com o ruído súbito, agachando-se e sibilando. Kowalski mergulhou para o único refúgio próximo. Lançou-se de cabeça pela porta aberta da jaula e fechou-a atrás de si.
O tigre saltou atrás da sua presa, batendo contra a porta da jaula.
Kowalski mantinha as mãos nas grades, segurando a porta fechada.
O tigre rolou, levantou-se, andou para trás e para a frente, agitando o pelo como se sacudisse água. Os seus grandes olhos castanhos fitavam Kowalski, ao mesmo tempo que a sua respiração quente passava entre as grades.
— Anton, gatinho bonito — disse Kowalski baixinho, na esperança de que fosse verdade.
Um grande suspiro escapou-se da garganta do animal, como se tivesse reconhecido o nome. O tigre voltou a andar para trás e para a frente mais duas vezes, depois deitou-se no chão, encostando-se às grades. Passados alguns momentos de tensão, um ronronar baixinho fluiu do seu corpo.
Kowalski engoliu em seco, depois, sabendo que nunca mais teria uma oportunidade melhor, arriscou-se a estender a mão por entre as grades e deslizar os dedos pela pelagem quente da enorme criatura. O ronronar tornou-se ainda mais profundo, provando que Sara estava certa.
És um gatinho.
Como se Anton tivesse pressentido os seus pensamentos, o timbre do seu ronronar transformou-se num rosnar profundo de aviso. Kowalski afastou a mão.
Está bem, talvez não.
Três horas depois, Kowalski estava de volta à garagem. Painter tinha-o inquirido e o departamento médico dera-lhe alta. Embora ainda lhe doessem as costelas sempre que respirava, não tinha sequer uma costela partida.
Com um charuto fumegante apertado entre os molares, Kowalski fitava o aço comprido, dobrado e amolgado no centro pela bala de nove milímetros. Queria considerar a sua sobrevivência como nada mais do que sorte, como algo saído de um filme, mas sabia que parte de si tinha posto a placa no bolso de propósito.
Colocando-a sobre o meu coração.
A única sorte que tivera fora a de o assassino chinês ter uma grande pontaria.
Se ele tivesse acertado alguns centímetros em qualquer outra direção…
Deslizou os dedos pelas letras prateadas, sabendo naquele momento que o seu amor o salvara naquela noite.
Obrigado, Elizabeth…
Considerou reparar a placa, devolver-lhe o seu estado imaculado. Talvez até enviá-la para o Egito com um bilhete, uma derradeira tentativa de reconciliação. Em vez disso, deixou sair uma nuvem de fumo, reconhecendo a futilidade de um tal ato e aceitando a realidade da situação, fazendo-o, talvez, verdadeiramente pela primeira vez.
E não fazia mal.
Com um movimento do pulso, atirou a placa com o nome para um caixote do lixo, sabendo que era aí que pertencia.
Virou-se e avançou para o Jeep. Deslizou a mão ao longo do painel da frente, sentindo também aí as marcas das balas.
Sorriu em redor do charuto.
Tu, minha preciosidade… posso arranjar-te.
Painter Crowe encontrava-se no interior do ninho de comunicações do comando Sigma, enquanto Jason Carter trabalhava uma vez mais em frente de um dos computadores. Tinha sido uma noite longa, com mais reuniões marcadas ao nascer do dia. Havia ainda muitas perguntas por responder, mistérios que necessitavam de mais investigação nos dias vindouros.
Ainda que a Sigma tivesse recuperado o disco abandonado pelo par de espiões chineses no laboratório — assim protegendo quase toda a investigação da doutora Sara Gutierrez —, a análise forense de Jason ao ataque cibernético não oferecia respostas concretas sobre quem estaria por trás de tudo aquilo. O governo chinês já tinha entrado em modo de negação plausível, e Painter duvidava que qualquer tentativa para identificar os três corpos recuperados do local das escavações do Mall permitisse ligá-los a Pequim. Os outros atacantes, juntamente com os dois espiões no jardim zoológico, tinham desaparecido sem deixar rasto.
Mas ainda mais desconcertante era o facto de o objetivo por trás de tudo aquilo continuar a ser um enigma absoluto.
Em frente do computador, Jason resmungou.
— Desisto. Não consigo encontrar qualquer significado para este símbolo. Talvez quando chegar a capitã Bryant seja capaz de usar os seus contactos nas agências de informação para obter mais alguma resposta.
Painter juntou-se a Jason, fitando o conjunto de caracteres chineses que brilhavam no ecrã. Os símbolos estavam gravados na caixa do disco externo recuperado.
— Tudo o que lhe posso dizer é que em mandarim significa «A Arca» — disse Jason. — Mas, para além disso, não faço ideia do que possa significar.
Painter pousou a mão no seu ombro.
— Por ora terá de chegar. Porque não vais para casa, para um bem merecido descanso?
Jason acenou com a cabeça, mas não parecia feliz.
Nem eu.
Quando ficou com a sala para si, Painter passou um ficheiro de vídeo noutro ecrã. Era a gravação de uma das inúmeras câmaras de segurança que monitorizam a capital da nação. Neste caso, cobria o National Mall.
Observou enquanto um pequeno Jeep subia por uma montanha de terra, parando abruptamente. O par de motorizadas passou pelo veículo parado e saiu disparado antes de mergulhar para a morte naquele fosso escuro.
Painter esfregou o queixo, apreciando a rapidez de raciocínio e a perícia necessárias para levar a cabo aquela manobra. Sentiu que havia naquele condutor capacidades inexploradas. Até se permitiu considerar uma proposta impossível.
Talvez tenha chegado a hora de dar a Kowalski a sua própria missão.