OS OSSOS DO DIABO
JAMES ROLLINS E STEVE BERRY
O comandante Gray Pierce encontrava-se na varanda da sua suíte no luxuoso barco fluvial avaliando o que o rodeava.
Era hora de dar início ao espetáculo.
Partira há dois dias, rio acima, de Belém, buliçosa cidade portuária brasileira que servia de entrada para a Amazónia, e deixara para trás a última paragem do barco, uma movimentada aldeia fluvial, da qual se despedira há uma hora. O navio tinha como destino Manaus, uma cidade nas profundezas da floresta tropical, onde o seu alvo deveria encontrar-se com os compradores.
Algo que Gray não podia permitir.
O comprido barco fluvial, o MV Fawcett, deslizava pelas águas negras, a selva que o rodeava refletida na sua superfície. A partir da floresta, os macacos bugios gritavam à sua passagem. Relâmpagos escarlates e dourados esvoaçavam por entre os ramos mergulhados nas sombras, assinalando o voo dos papagaios e araras. O crepúsculo da selva aproximava-se, e os morcegos pesqueiros estavam já a caçar sob os caramanchões pendentes, mergulhando e dardejando entre o emaranhado de raízes negras, obrigando as rãs a saírem dos seus esconderijos, o suave plop dos seus corpos na água a anunciar uma retirada estratégica.
Perguntou-se o que estaria Seichan a fazer. Deixara-a no Rio de Janeiro, tendo-a visto pela última vez enquanto vestia um par de calções cor de caqui e uma t-shirt preta, sem se dar ao trabalho de usar soutien. Por ele tudo bem. Nela, quanto menos melhor. Tinha observado enquanto ela enfiava as botas a cascata de cabelo negro, como este lhe deslizava pelo rosto e encobria os olhos cor de esmeralda. Ultimamente dera por si a pensar cada vez mais nela.
O que era bom e mau.
Uma campainha fez-se ouvir por todo o barco.
A chamada para o jantar.
Olhou para o relógio. A refeição ia começar em dez minutos e normalmente estendia-se por uma hora. Teria de entrar e sair do quarto antes que o seu alvo acabasse de comer. Olhou para o nó da corda que tinha atado à amurada e lançou-a pelo lado. Cortara um pedaço de comprimento suficiente para alcançar a varanda diretamente abaixo de si, que dava acesso à suíte que pertencia ao seu alvo.
Edward Trask. Etnobotânico da universidade de Oxford.
Gray tinha recebido um dossiê completo. Um investigador de trinta e dois anos desaparecera na selva brasileira há três anos, tendo regressado há cinco meses, queimado pelo sol e escanzelado, com uma história de aventuras, privações, tribos perdidas e clarividência. Tornara-se uma celebridade instantânea, o rosto enrugado enchendo as páginas da Time e da Rolling Stone. O sotaque britânico e a humildade encantadora pareciam talhados para a televisão e foi convidado para uma miríade de programas, do Good Morning America ao Daily Show. Depressa vendeu a sua história a uma editora de Nova Iorque por uma maquia na casa dos milhões. Mas havia um aspeto da história de Trask que jamais seria impresso, um pormenor descoberto há uma semana.
Trask era uma fraude.
E uma fraude perigosa.
Gray agarrou na corda e desceu rapidamente por ela. Alcançou a varanda por baixo e galgou o corrimão, assumindo a sua posição de um lado das portas de vidro.
Espreitou pela cortina entreaberta e testou a porta.
Destrancada.
Deslizou o painel de vidro e entrou na cabina. A disposição era idêntica à da sua suíte, por cima. Só que Trask parecia desmazelado. As roupas sujas estavam empilhadas no chão. As toalhas molhadas espalhadas sobre a cama por fazer. O que restava de uma qualquer refeição enchia a mesa. O único aspeto positivo? Não seria difícil esconder a sua busca.
Primeiro verificaria o óbvio. O cofre do quarto. Mas teria de manter o silêncio, para não alertar o guarda no exterior. Fora essa medida de segurança que exigira aquele ponto de entrada improvisado.
Encontrou o cofre no roupeiro do quarto e deslizou um keycard, ligado a um descodificador eletrónico, pelo mecanismo de abertura. Já tinha testado e calibrado a unidade no cofre do seu próprio quarto. A combinação foi descoberta e o cofre aberto. Mas neste não estava mais do que a carteira de Trask, algum dinheiro e um passaporte.
Nada que interessasse a Gray.
Fechou o cofre e iniciou um exame sistemático dos cantos e recantos escondidos do quarto, mantendo os movimentos lentos e silenciosos. Tinha realizado o reconhecimento na sua própria suíte, em busca de locais onde fosse possível esconder algo pequeno.
E havia muitas possibilidades.
Na casa de banho, verificou nos espaços vazios por baixo do lavatório, por baixo das gavetas, na portinhola de serviço da banheira de hidromassagem.
Nada.
Aguardou um momento e observou o espaço exíguo, assegurando-se de que não deixara escapar nada. O tampo de mármore do toucador parecia uma colagem de pasta de dentes seca, lenços de papel enrolados e uma miscelânea de cremes e géis. Pelas suas observações nos últimos três dias, sabia que Trask só deixava que a empregada e o mordomo entrassem no quarto uma vez por dia e, mesmo nessa altura, eram acompanhados por um guarda, um tipo encorpado, de cabeça rapada e um franzir de sobrolho perpétuo.
Deixou a casa de banho.
Seguir-se-ia o quarto.
Um umpf sonoro reverberou pela porta da cabina, surpreendendo-o.
Gray estacou.
Estaria Trask de volta? Tão cedo?
O que se parecia com algo pesado deslizou pela porta e tombou para o chão, do lado de fora.
O ferrolho foi destrancado e a maçaneta rodou.
Raios.
Tinha companhia.
Cotton Malone agachou-se sobre o guarda caído. Encostou o dedo ao pescoço grosso do homem e assegurou-se de que tinha pulsação. Ténue, mas estava lá. Conseguira surpreender a sentinela numa manobra de submissão que lhe demorou muito mais tempo do que tinha esperado. Agora que o homem de grandes dimensões estava caído, tinha de o tirar do corredor. Entrara no barco há uma hora, na sua última paragem, pelo que tudo estava a ser improvisado. O que não representava um problema. Ele gostava de ir inventando.
Abriu a porta da cabina de Trask e içou o corpo flácido pelas axilas. Apercebeu-se de um coldre de ombro por baixo do casaco do guarda e retirou rapidamente a arma ao homem. Não tivera tempo para arranjar uma arma, devido à natureza imprevista da sua missão. No dia anterior estava a assistir a um leilão de antiguidades em Buenos Aires, à caça de primeiras edições raras para a sua livraria dinamarquesa. Cassiopeia Vitt acompanhava-o. Era suposto ser uma viagem divertida. Passarem algum tempo juntos no Brasil. Sol e praias. Mas um telefonema de Stephanie Nelle, a sua velha empregadora no Magellan Billet, fizera-o mudar esses planos.
Há cinco meses, o doutor Edward Trask tinha regressado da floresta tropical brasileira, depois de ter estado desaparecido durante três anos, exibindo um conjunto de raros espécimes botânicos — raízes, flores, folhas e casca — todos eles para a empresa farmacêutica que financiara a sua viagem. Alegava que as suas descobertas tinham um grande potencial, representando a esperança para o próximo tratamento contra o cancro, medicamento para problemas cardíacos ou comprimido para a impotência. Regressara também com histórias curiosas para cada uma das suas amostras, narrativas supostamente contadas por xamãs remotos e tribos locais. Durante os meses seguintes, contudo, começaram a ouvir-se rumores, provenientes da empresa, de que as amostras eram inúteis. A maioria nada representava de novo. Um investigador que trabalhava para a empresa farmacêutica tinha oferecido, confidencialmente, a melhor descrição para o tão publicitado tesouro. Foi como se o sacana tivesse agarrado nas primeiras coisas que viu. Tanto para salvar a face como para proteger o preço das suas ações, a empresa impôs o silêncio aos seus funcionários e esperou que o assunto morresse por si mesmo.
Não morreu.
De facto, histórias mais sombrias tinham chegado aos ouvidos do governo dos EUA, pois ao que parecia Trask não deixara a floresta de mãos completamente a abanar. Embrulhado no meio dos seus espécimes — como um grão de trigo por entre uma grande quantidade de joio — estava o verdadeiro jackpot botânico. Uma flor rara, ainda por classificar, da família das orquídeas, que provara conter uma neurotoxina cem vezes mais mortífera do que o sarin.
Isso é que era um jackpot.
Trask fora suficientemente esperto para reconhecer e apreciar o valor daquela descoberta. Tinha analisado e purificado a toxina num laboratório privado, pago por ele do seu próprio bolso, o livro e as presenças na televisão suficientemente lucrativos para financiar o projeto. Parte P.T. Barnum, parte monstro, na semana anterior Trask oferecera secretamente a sua descoberta em leilão, partilhando a sua análise química, o seu potencial, e um vídeo de demonstração de uma sala repleta de chimpanzés que sangravam dos olhos e dos narizes, arquejando, depois caindo mortos, o ar pesado com um vapor amarelo. O anúncio tinha despertado a atenção de organizações terroristas de todo o mundo, bem como dos serviços de informação dos EUA. O velho covil de Malone, o Magellan Billet, tinha sido encarregue pela Casa Branca de impedir a venda e recuperar a amostra. O seu erro fora ter referido a Stephanie Nelle, na semana anterior, durante uma conversa descontraída entre velhos amigos, que ele e Cassiopeia iam a caminho do Brasil.
— A venda vai decorrer em Manaus — dissera-lhe Stephanie no dia anterior, ao telefone.
Ele conhecia o local.
— O Trask vai a caminho com uma equipa de vídeo do Discovery Channel, a bordo de um navio de luxo. Estão a percorrer a floresta tropical vizinha e a preparar-se para um especial televisivo sobre os anos perdidos na selva. O seu verdadeiro objetivo, contudo, é vender a amostra purificada. Temos de lha retirar, e tu és o agente mais próximo do local.
— Estou reformado.
— Vou recompensar-te.
— Como a poderei reconhecer, se a encontrar? — perguntara ele.
— Está armazenada numa pequena caixa metálica, em frasquinhos, mais ou menos do tamanho de um baralho de cartas.
— Presumo que queiras que faça isto sozinho?
— De preferência. É altamente secreto. Diz à Cassiopeia que só irás demorar uns dias.
Cassiopeia não tinha gostado, mas compreendera a condição de Stephanie. Telefona-me se precisares de mim, foram as suas últimas palavras quando a deixou para seguir para o aeroporto.
Cotton puxou o guarda para o interior da cabina, fechou a porta e prendeu o ferrolho.
Estava na hora de encontrar os frascos.
Um movimento perturbou o silêncio.
Girou sobre si mesmo e viu uma forma na luz ténue, que erguia uma pistola. Trask tinha partido. Estava na sala de jantar. Certificara-se disso antes de atacar a sentinela.
Então quem era aquele?
Ainda tinha nas mãos a arma que tirara ao guarda, portanto apontou-a à ameaça.
— Eu não faria isso — disse uma voz rouca, adocicada, com um leve toque texano.
Cotton conhecia aquela voz.
— Gray Pierce de um raio.
Gray manteve a pistola firmemente apontada e reconheceu a entoação arrastada do sul.
— Cotton Malone. E esta, hein? Regressado do passado.
Analisou o antigo agente sob a luz ténue. Quarenta e poucos anos. Ainda em forma. O cabelo castanho-claro com pouco cinzento. Sabia que Malone se tinha reformado, que vivia em Copenhaga, sendo proprietário de um alfarrabista que se dedicava a livros raros. Até o visitara certa vez, há alguns anos. Dizia-se que Malone ia fazendo uns trabalhinhos ocasionais para a antiga patroa, Stephanie Nelle. Malone fora um dos doze agentes originais do Magellan Billet, até ter optado pela reforma antecipada. Gray conhecia a unidade. Altamente especializada. Trabalhava a partir do Departamento de Justiça. Só prestava contas ao procurador-geral e ao presidente.
Baixou a arma.
— Era mesmo disso que precisávamos, de um raio de um advogado.
— É quase tão mau quanto a presença do senhor Feiticeiro — disse Malone, baixando também a sua arma.
Gray percebeu a ligação. A Sigma Force, para a qual trabalhava, era parte da DARPA, a Defense Advanced Research Projects Agency. A Sigma era composta por um grupo clandestino de antigos soldados das forças especiais, treinados em diversas disciplinas científicas, que serviam como operacionais de campo. Enquanto a Sigma lidava com muita ciência e pouca história, o Magellan Billet lidava com ameaças globais que estavam mais relacionadas com a história e tinham pouca ciência.
— Deixa-me adivinhar — disse a Malone. — Souberam da neurotoxina do Trask.
— Foi o que aqui vim buscar.
— Parece que estamos perante uma incapacidade de comunicação entre agências. Os treinadores mandaram dois quarterbacks para o campo.
— Nada de novo. Que tal eu voltar para Buenos Aires e vocês tratam disto?
Gray percebeu o verdadeiro significado.
— Tens lá uma miúda?
— Tenho mesmo.
Uma explosão agitou o barco a partir da popa, fazendo erguer consideravelmente o casco, lançando-os a ambos contra a parede. Gray esbarrou em Malone, batendo em algo sólido, mas conseguiu manter a arma na mão. A explosão desvaneceu-se e os gritos encheram o ar, ecoando pelo navio.
O barco inclinava-se para estibordo.
— Pelo som, alguém acabou com este barco — disse Malone enquanto recuperavam o equilíbrio.
— Achas?
O barco continuava a tombar, inclinando-se mais para estibordo, confirmando que o casco estava a meter água. Um olhar de relance para lá da varanda revelou uma coluna de fumo preto a erguer-se para o céu.
Algo ardia.
O bater de botas soou do outro lado da porta da cabina. Uma caçadeira foi disparada contra o ferrolho e a porta abriu-se com estrondo. Tanto ele quanto Malone viraram as armas na direção da porta meio obscurecida pelo fumo. Dois homens entraram de rompante, envergando roupas paramilitares, os rostos obscurecidos por lenços pretos. Um levava consigo uma caçadeira, o outro uma espingarda de assalto. Gray deu um tiro ao homem da arma de cano duplo, enquanto Malone acabava com o outro.
— Muito bem, isto é interessante — murmurou Malone, enquanto Gray verificava rapidamente o corredor e confirmava que ali só se encontravam aqueles dois atiradores. — Parece que não somos os únicos à procura do veneno do Trask. Conseguiste encontrá-lo?
Gray abanou a cabeça.
— Só tive tempo para revistar metade da suíte. Mas não deve demorar muito…
Tiros fizeram-se ouvir ao longe.
Ele inclinou um ouvido.
— O som veio da sala de jantar.
— Os nossos visitantes devem andar atrás do Trask — disse Malone. — Para o caso de ele o ter consigo.
O que representava uma verdadeira possibilidade. Já tinha considerado essa opção, razão pela qual tanto se esforçara por manter oculta a sua busca na cabina. Caso o esforço se revelasse fútil, não queria alertar Trask e torná-lo ainda mais reservado.
— Termina a tua busca aqui — disse Malone. — Vou buscar o Trask.
Gray não tinha escolha. As coisas estavam a acontecer depressa e de forma imprevisível. Advogado ou não, precisava da ajuda.
— Força.
Malone correu pela passagem inclinada, uma mão na parede para o ajudar a manter o equilíbrio. Já não via Gray Pierce desde aquele dia na sua livraria há alguns anos. Na verdade, gostava do tipo. Havia muitas semelhanças entre eles. Eram ambos antigos soldados. Ambos tinham sido recrutados para os serviços de informação. Ambos pareciam ter cuidado de si mesmos fisicamente. A grande diferença era a idade, Pierce tinha pelo menos dez anos a menos e isso era algo determinante. Em especial naquele tipo de trabalho. A outra diferença era que Pierce ainda estava no jogo, ao passo que Malone não passava de um jogador ocasional.
E não era tão tolo que não compreendesse que isso era importante.
Deslizou até parar, quando se aproximou das escadas que desciam até à sala de jantar do barco. A partir daqui teria de avançar mais devagar. Através de uma janela, fitou o rio no exterior. O barco estava enviesado, afundando-se na corrente veloz. Para lá de uma coluna de fumo, viu uma embarcação de um cinzento metálico a aproximar-se. Um homem de uniforme, cujas feições estavam obscurecidas por um pano negro que lhe envolvia a cabeça, erguia-se na popa, o comprido tubo de um lança-foguetes apoiado no ombro.
Aparentemente, fora assim que atacaram o navio.
Contornou o patamar e as portas duplas tornaram-se visíveis mais abaixo. Um corpo jazia junto à porta, numa poça de sangue, o homem estava vestido como maître d’. Malone abrandou o passo e avançou com cautela, aproximando-se da porta por um dos lados, e espreitou rapidamente para a sala.
Havia mais corpos espalhados pelas mesas e cadeiras caídas.
Pelo menos duas dúzias.
Um grande grupo de passageiros amontoava-se de um dos lados da sala espaçosa, mantidos sob ameaça de arma por um par de homens. Outros dois avançavam por entre os corpos, procurando. Um deles tinha na mão uma fotografia, provavelmente em busca de alguém cujo rosto se assemelhasse ao de Trask. Entre os cativos, Malone viu o cientista. Stephanie fornecera-lhe uma imagem por e-mail. Trask estava de costas para os homens armados, encurvado no interior do seu casaco de gala, uma mão a cobrir parte do rosto. Tentando ser apenas mais um entre muitos.
Um tal ardil não duraria muito tempo.
Trask era espantosamente belo de um modo travesso, com o cabelo castanho-avermelhado despenteado e um rosto de feições aguçadas. Era fácil de perceber como se tornara um querido dos media. Mas esse aspeto distinto permitiria distingui-lo da multidão e lançá-lo para as mãos da força de assalto num instante.
Malone não podia permitir que isso acontecesse.
Por isso, curvou-se e tocou com a mão no sangue do maître d’. Não era a coisa mais higiénica do mundo, mas tinha de ser feito. Pintou o rosto com a palma da mão ensanguentada, depois deslizou a pistola para a cintura das calças, na parte de trás das costas, e escondeu-a com a bainha da camisa.
Porque fazia aquele tipo de coisas, jamais o saberia.
Cambaleou para o interior da sala, coxeando, levando a mão ensanguentada ao rosto sujo.
— Ajudem-me — gritou num tom choroso, enquanto avançava mais para o interior da sala, sendo abordado por um dos homens armados que guardavam os passageiros.
Foram-lhe gritadas ordens em português.
Fingiu surpresa e confusão, embora tivesse compreendido todas as palavras, um benefício da memória eidética que tornava as línguas mais fáceis. Permitiu que o homem o levasse para o grupo de passageiros. Foi empurrado para o meio da multidão, chocando contra uma mulher de ar imponente que o marido mantinha próximo de si. Avançou mais para o meio do grupo, cambaleando ao longo do caminho, até chegar ao lado de Trask. Uma vez ali, deslizou a pistola da cintura e encostou-a ao flanco do botânico.
— Fica quieto e calado — sussurrou. — Estou aqui para salvar a tua triste pessoa.
Trask estremeceu e parecia estar prestes a falar.
— Não abras a boca — murmurou Malone. — Sou a tua única esperança de saíres daqui vivo. Por isso, lembra-te que a cavalo dado não se olha o dente.
Trask ficou imóvel e perguntou, sem mover os lábios:
— O que queres que faça?
— Onde está a biotoxina?
— Tira-me daqui e farei com que não te arrependas.
Um oportunista típico, a adaptar-se rapidamente.
— Não te vou dizer nada, enquanto não me levares para um lugar seguro.
Claramente o tipo pressentia uma vantagem momentânea.
— Posso simplesmente identificar-te perante estes cavalheiros — clarificou Malone.
— Tenho os frascos comigo. Se um que seja se partir, matará tudo e todos num raio de noventa metros. Acredita em mim, não há nada que o possa parar, com exceção da incineração. — Trask lançou-lhe um glorioso sorriso de vitória. — Por isso sugiro que te despaches.
Malone avaliou os quatro homens armados. Os dois que se dedicaram a passar em revista a sala tinham percorrido quase todos os cadáveres. Para aumentar a probabilidade de sucesso, ele precisava que estivessem todos juntos. Enquanto esperava que isso acontecesse, decidiu aproveitar o momento a seu favor.
— Onde encontraste a orquídea?
O cientista abanou lentamente a cabeça.
— Diz-me isso, ao menos, ou abro caminho a tiro e deixo-te entregue a estes homens, assegurando-me simplesmente de que estou a noventa metros daqui bem depressa.
Trask apertou o maxilar e pareceu compreender o que Malone lhe estava a dizer.
Ambos continuaram a fitar a cena macabra.
— Seis meses depois de ter entrado na floresta, ouvi rumores de uma planta chamada Huesos del Diablo — disse Trask mantendo os lábios imóveis.
Malone traduziu silenciosamente.
Os ossos do diabo.
— Precisei de mais um ano para descobrir uma tribo que soubesse alguma coisa de concreto. Mergulhei na aldeia, tornei-me aprendiz do xamã. Por fim, ele levou-me a umas ruínas enterradas na bacia do Amazonas, revelando um vasto complexo de fundações que se estende por quilómetros. O xamã disse-me que, outrora, tinha sido habitado por dezenas de milhares de pessoas. Uma vasta civilização de que não há registo.
Malone já tinha ouvido falar de ruínas com aquela, identificadas em imagens de satélite, localizadas nas profundezas da Amazónia, onde se pensava que não vivia ninguém. Cada descoberta desafiava a sabedoria convencional que declarava a floresta tropical incapaz de sustentar uma civilização. As estimativas colocavam o número dos seus habitantes na casa dos sessenta mil. O destino dessas pessoas permanecia desconhecido, embora se colocasse a hipótese de a fome e a doença terem sido os principais culpados do seu desaparecimento.
Mas talvez existisse outra explicação.
Os homens que passavam revista à sala de jantar, verificaram os últimos corpos. Os dois homens armados mais próximos alternavam a sua atenção entre os colegas e os cativos.
— Entre as ruínas, encontrei pilhas de ossos, muitos deles enterrados. Outros corpos pareciam ter morrido ali mesmo. O xamã contou-me a história de uma grande peste que matava em segundos e descolava a carne dos ossos. Mostrou-me uma orquídea preta incomum, que crescia nas proximidades. Eu não sabia, na altura, se a orquídea seria a fonte da peste, mas o xamã alegava que a planta era a morte em si mesma. O simples facto de lhe tocar podia matar. O xamã ensinou-me a recolhê-la em segurança e a extrair o veneno das suas pétalas.
— E quando aprendeste a colher a toxina?
Trask olhou de relance para ele.
— Tive de a testar, claro. Primeiro no xamã. Depois na aldeia dele.
O sangue de Malone gelou perante a calma com que ele admitia o massacre.
Trask voltou-se para trás.
— Depois, para garantir que tinha a única fonte, queimei todas as bolsas de orquídeas que consegui encontrar. Por isso, meu salvador, como vês, tenho a chave de tudo.
Malone já tinha ouvido o suficiente.
Fique ao meu lado, disse sem mover os lábios.
Avançou para os limites da multidão, levando Trask atrás de si. Uma vez lá, Malone soube que tinha de incapacitar os quatro homens armados tão depressa quanto possível. Haveria apenas alguns segundos de indecisão. Os homens estavam finalmente reunidos num único grupo. O carregador da sua arma tinha sete balas. Não havia grande margem para erro. Olhou para uma mesa virada, com um tampo de mármore, que deveria oferecer-lhe uma cobertura decente. Mas precisava de se afastar dos civis antes que começassem os tiros.
Agarrou em Trask pelo cotovelo e apontou para a mesa.
— Vem comigo. Quando eu disser.
Contou rapidamente até três, depois correu na direção da mesa, revelando a arma, mas o chão por baixo dos seus pés ergueu-se, lançando-o pelo ar. Voou para lá da mesa, caindo com força, deixando fugir a arma, que deslizou pelo chão para longe do seu alcance. Rebolou e viu a parte da frente da sala de jantar a ser arrancada, o vidro a explodir, as paredes a dividir-se.
A selva escura invadiu a sala.
Depois percebeu.
O barco tinha embatido na margem e encalhado.
Todos tinham sido lançados ao chão, até os homens armados. Procurou Trask. O botânico tinha sido atirado para o meio da equipa de assalto. Trask endireitou-se e nem mesmo o sangue que lhe jorrava do nariz partido escondia as suas feições. Vozes surpreendidas irromperam dos quatro homens armados. Foram apontadas espingardas e Trask ergueu os braços, rendendo-se.
Malone procurou a pistola, mas esta desaparecera.
Trask olhou de relance para ele, o medo e a súplica visíveis no seu rosto. Os pensamentos do homem eram claros. Ajuda-me. Senão. Malone abanou a cabeça e levou um dedo aos lábios, fazendo-lhe sinal para que ficasse em silêncio, na esperança de que o cientista percebesse que entregá-lo não era uma boa ideia.
Um deles tinha de se manter livre para agir.
Trask hesitou, foi erguido de forma repentina, mas nada disse.
Um papagaio gritava através das ruínas da sala de estar, palrando, parecendo dar voz à frustração de Malone.
E este não podia fazer mais o que olhar enquanto Trask e os seus captores desapareciam no escuro emaranhado da selva.
Gray fitou as ruínas da sala de jantar, estudando a selva escura para lá das paredes abertas.
— Portanto, perdeste-o.
— Não havia muito que pudesse fazer — disse Malone, de joelhos, procurando no meio de um emaranhado de cadeiras e mesas viradas. — Em especial depois de o barco ter encalhado.
A cabina de Trask nada revelara. Mas Gray sabia agora que o cientista tinha a amostra escondida consigo. Também ouvira enquanto Malone relatava tudo o que Trask dissera.
Malone estendeu o braço por baixo de uma toalha e sacou a pistola que tinha perdido.
— De muito me serve agora. Qual é o próximo passo?
— Não tens de continuar. Estás reformado. Podes voltar para a tua senhora em Buenos Aires.
— Quem me dera poder. Mas a Stephanie Nelle dava cabo de mim. Temo que tenhas de me aturar. No entanto, vou tentar não atrapalhar.
Gray percebeu o sarcasmo.
Até ver, esta breve parceria entre a Justiça e a Defesa revelara-se infrutífera. Mas com Trask capturado por um grupo de guerrilheiros, por muito que Gray odiasse admiti-lo, precisava de ajuda.
Malone avançou pela sala de jantar até à parede demolida do navio. Gray observou enquanto o antigo agente se curvava e examinava algo. Todos os outros passageiros tinham desaparecido, sendo passados para outros barcos.
— Temos aqui um rasto de sangue.
Ele aproximou-se.
— Só pode ser do Trask — disse Malone. — Ele partiu o nariz quando o navio bateu. Estava a sangrar consideravelmente.
— Então seguimo-lo.
— Vi um barco-patrulha há pouco. Podem tê-lo transportado pelo rio.
— Também vi a embarcação, a partir da cabina. Mas partiu pouco depois de termos encalhado. O ataque, o fogo, o choque… atraiu imenso movimento para o rio.
— Achas que a equipa de terra e a da embarcação estão a planear encontrar-se mais à frente no Amazonas? Onde haverá menos olhos?
— Faz sentido. E isso dá-nos uma janela de oportunidade.
— Uma pequena, que está a encolher rapidamente. — Malone apontou para as gotas de sangue, pisadas pelas botas de um dos guerrilheiros. — Uma vez na selva, será difícil segui-los depois de escurecer.
— Mas eles estão com pressa — disse Gray. — Não estão à espera de que alguém os siga. E terão de se manter perto da margem, dado que esperam por boleia. Com quatro homens e um prisioneiro a reboque, devem ser fáceis de seguir.
O que se revelou verdadeiro.
Poucos minutos depois, avançando através da margem lamacenta, Gray constatou que não era difícil identificar o local onde os guerrilheiros tinham penetrado na floresta. Olhou de relance para trás, para o barco encalhado, o casco inclinado no rio, a popa lançando ainda o seu fumo para a noite que escurecia. Outros navios tinham vindo em seu auxílio. Os passageiros eram transportados para longe, enquanto os fogos se espalhavam a bordo.
Virou as costas às ruínas fumegantes do MV Fawcett.
O barco tinha, sem dúvida, sido batizado em honra do explorador britânico Percy Fawcett, que desaparecera na Amazónia em busca de uma cidade mítica perdida. Gray fitou a selva densa, na esperança de que não os esperasse o mesmo destino.
— Vamos — disse, abrindo caminho.
Nem três metros percorridos depois de penetrarem na densa vegetação, a floresta abafava a pouca luz que restava. A noite envolveu-os. Limitou toda a iluminação a uma pequena lanterna tipo caneta, que apontava em frente, assinalando as marcas deixadas pelas botas no solo lamacento e nos caules partidos dos arbustos. O rasto era fácil de seguir, mas difícil de percorrer. Cada gavinha estava armada de espinhos. Os ramos pendiam baixos. O matagal emaranhado era denso como lã de aço.
Avançaram a custo, movendo-se tão silenciosamente quanto possível. Os sons cada vez mais audíveis da floresta noturna ajudavam a mascarar o seu avanço. A toda a sua volta, ouviam-se gritos, zumbidos, piados e coaxares. O brilho da pequena luz era igualmente refletido pelos olhos que os fitavam. Macacos aglomerados nas árvores. Papagaios que faziam os seus ninhos no topo das árvores. Um par de pupilas maiores — como berlindes amarelos com pontos pretos — brilhou.
Um jaguar ou uma pantera, talvez.
O que não era bom.
Passados quarenta minutos de avanços cautelosos, Malone sussurrou:
— Para a esquerda. É um fogo?
Gray parou e cobriu a lanterna com a palma da mão. Na escuridão, viu um tremeluzir carmesim por entre as árvores.
— Montaram acampamento? — sussurrou Malone.
— Talvez estejam à espera de que caia a noite em pleno antes de avançarem para o rio e para o barco.
— Se forem, de facto, eles.
Só havia uma maneira de descobrir.
Gray apagou a lanterna e continuou em direção ao brilho, reparando que o caminho que percorriam também seguia nessa direção. Foram necessários vinte minutos de avanço cuidadoso para percorrer a distância. Pararam junto a um aglomerado de árvores cobertas de vides, que lhes oferecia cobertura e um ponto elevado para espiar o acampamento.
Gray fitou a clareira.
Cabanas de lama e colmo indicavam uma aldeia nativa. Viu um aglomerado de crianças e uma mão-cheia de homens e mulheres, incluindo um idoso enrugado que segurava um braço ferido. Um dos guerrilheiros do barco mantinha-os sob ameaça de uma arma. O fogo no centro da aldeia teria atraído a sua atenção. Gray viu Trask, de joelhos, junto às chamas. Um dos elementos da guerrilha estava inclinado sobre ele, claramente a gritar, mas era impossível ouvir as palavras. Trask abanou a cabeça, a sua teimosia levou a que fosse agredido com as costas da mão, um gesto que lançou o cientista ao chão. Outro dos assaltantes avançou, equilibrando na palma da mão aberta uma pequena caixa metálica. Os captores tinham, decerto, revistado Trask e encontrado os frascos. Era possível ver o ténue brilho de luzes LED na caixa.
— Trancada com um código eletrónico — comentou Malone.
Gray concordou.
— Que estão a tentar obter de Trask.
— E posso dizer-te, pela nossa pequena conversa, que ele vai fazer-se difícil.
Contou os mesmos quatro guerrilheiros, todos eles fortemente armados. As suas hipóteses não eram boas. Dois para um. E qualquer troca de tiros representava o risco de ferir ou matar os aldeãos.
Um novo grupo surgiu no limite ocidental da aldeia, enchendo um trilho bem desgastado que, provavelmente, conduzia ao rio.
Eram mais seis, aos quais se juntava um sétimo, que se erguia mais alto do que os restantes e que desenrolou o pano preto do rosto. Uma cicatriz profunda corria-lhe pela face esquerda, até ao queixo. Vociferava as suas ordens, que eram cumpridas de imediato.
Era ele quem mandava.
— Isto não é bom — disse Malone.
Não, não era. Os dois para um, acabavam de se transformar em cinco para um.
Os recém-chegados também estavam fortemente armados, com espingardas de assalto, lança-granadas e caçadeiras.
Gray apercebeu-se da futilidade da sua situação. Mas Malone não parecia afetado.
— Nós conseguimos.
Malone observou enquanto a força de assalto erguia Trask e apontava para oeste, em direção ao rio, onde era provável que o barco os aguardasse.
— Não os podemos deixar chegar à água — disse. — Quando abandonarem a aldeia, podemos usar a selva a nosso favor.
— Uma guerra de guerrilha contra guerrilheiros. — Pierce encolheu os ombros. — Gosto. É isso que ensinam na faculdade de direito?
— Na marinha.
Pierce sorriu.
— Com alguma sorte pode ser que, no meio da confusão, consigamos deitar a mão ao Trask e aos frascos.
— Eu contento-me com os frascos.
Os seus alvos deixaram a aldeia.
Mantinham-se discretos, correndo em paralelo. Era curioso que o grupo que seguiam não fizesse qualquer esforço por manter o silêncio. As ordens eram ruidosamente vociferadas, o esmagar das botas e o partir dos ramos anunciava claramente o seu avanço em direção ao rio. O grupo movia-se como se controlasse por inteiro o ambiente que os rodeava, e, num certo sentido, assim era. Estavam a jogar em casa. Mas isso não significava que a equipa visitante não pudesse marcar alguns pontos de vez em quando.
Aproximaram-se da clareira da aldeia e Malone apercebeu-se de que dois dos homens armados tinham ficado para trás, as espingardas de assalto apontadas aos aldeãos.
Um problema.
Aparentemente, os guerrilheiros não tencionavam deixar quaisquer testemunhas. Chamou a atenção de Pierce, comunicando-lhe por gestos o que deveriam fazer. Percorreram a correr a distância em falta, emergindo na clareira, surgindo num instante atrás dos dois homens armados.
Com um tiro no peito, Malone abateu um deles.
Pierce matou o outro.
Os estouros das pistolas revelaram-se sonoros, ecoando na floresta.
Malone deslizou de joelhos e apanhou a espingarda de assalto, ao mesmo tempo que o seu alvo caía. Apontando-a para o céu, lançou uma forte rajada na direção das estrelas. Esperava que os tiros iniciais das pistolas, acompanhados pelo fogo das espingardas, fossem entendidos pelos guerrilheiros em retirada como a sangrenta limpeza da aldeia.
Pierce fez sinal aos locais para se manterem calmos e não estragarem o ardil. O ancião acenou com a cabeça, parecendo compreender, e fez sinal aos outros para que se acalmassem, assegurando-se de que as mães mantinham em silêncio as crianças assustadas, fazendo sinal aos homens para que reunissem o que pudessem, de modo a poderem fugir.
Pierce guardou a SIG Sauer e agarrou na espingarda do guerrilheiro. Malone seguiu-lhe o exemplo. Viu um lança-granadas pousado no chão, perto de um dos corpos. Pensou em levá-lo também, mas o mais certo era que se revelasse um empecilho no espaço apertado da selva. A espingarda e a pistola teriam de chegar.
Fugiram em direção ao trilho seguido pelos guerrilheiros.
Percorridos menos de trinta metros, o vulto sombreado de um guerrilheiro bloqueou-lhes o caminho. Alguém teria sido mandado para trás, para se assegurar de que a aldeia já não era um problema. Antes que conseguissem reagir, o homem abriu fogo, cortando folhas e obrigando-os a mergulhar na vegetação.
Malone rebolou para trás das raízes de uma árvore e virou-se a tempo de ver o brilho dos disparos de Pierce.
Nada mau. Resposta rápida.
O guerrilheiro tinha sido empurrado para trás, o peito aberto pelas balas que lhe mordiam a carne.
O corpo caiu ao chão com um baque surdo.
— Continua — disse Pierce. — Vamos tentar manter-nos nos flancos.
Malone refreou um queixume devido aos joelhos doridos. A guerra na selva era, sem dúvida, para os mais novos.
Mas ele aguentava.
Avançou.
Gray foi acompanhando o progresso de Malone, sincronizando o seu ritmo pelo dele. O que lhes daria jeito era que o barco que esperava o grupo estivesse inutilizado. Infelizmente, faltava-lhes apoio e teriam de lidar com a situação quando lá chegassem.
Continuou a avançar pela floresta, seguindo em paralelo ao caminho percorrido pelos guerrilheiros. Ele de um lado do trilho, Malone do outro, invisível. Um vento ligeiro soprava por entre as árvores. A sua direção parecia a oposta ao rio, para terra. Gritos mais à frente fizeram-no parar. Primeiro em português, depois em inglês.
— Mostra-te ou mato o teu homem.
Gray avançou, devagar e agachado.
Uma clareira abria-se mais à frente, no local onde a copa das árvores caíra recentemente abrindo um buraco na floresta. A luz das estrelas banhava a ferida aberta, revelando o líder da guerrilha. Tinha nas mãos a pequena caixa de aço, o ecrã LED ainda aceso. Outro dos guerrilheiros tinha a boca da espingarda apoiada na parte de trás do crânio de Trask. Gray não queria saber da vida do cientista. Malone partilhara com ele como Trask obtivera aquele prémio e a que preço. Tudo o que queria era apoderar-se da toxina antes que esta escapasse para o laboratório de um qualquer inimigo estrangeiro onde pudesse ser produzida em massa.
— Sai já, ou mato-o — gritou o líder.
No limite da clareira, surgiu mais um par de homens armados.
Só então Gray se apercebeu do seu erro.
O teu homem.
Empurrado sob ameaça de uma arma, um segundo prisioneiro ficou visível, amordaçado, o rosto ensanguentado.
Malone.
Malone continuava com os dedos entrelaçados no topo da cabeça. Tinha sido emboscado pouco depois de se separar de Pierce. Uma sombra impusera-se atrás dele, tapando-lhe a boca com a mão, um braço em redor da garganta. Depois um segundo vulto agrediu-o com a coronha da espingarda no estômago, fazendo-o cair ao chão. Atordoado, fora amordaçado com um dos lenços que os homens usavam para tapar o rosto e obrigado a avançar sob a ameaça da arma. Agora fitava a floresta mais escura, desejando que Pierce não se mostrasse.
Infelizmente, o seu pedido silencioso não foi acatado.
A cerca de vinte metros Pierce emergiu da selva, a espingarda erguida sobre a cabeça, em sinal de rendição.
Um dos captores empurrou Malone para a frente.
Pierce cruzou o olhar com o dele, quando Malone cambaleou para a frente, e com os lábios articulou as palavras Prepara-te para fugir.
Gray passou por Malone e gritou «Rendo-me», o que lhe garantiu a plena atenção do líder da guerrilha.
Atirou para longe a espingarda de assalto, rodando ligeiramente o corpo. Como esperara, todos os olhos seguiram a trajetória da arma através da clareira. Baixou rapidamente o braço, levando a mão à cintura e agarrando a SIG Sauer. Disparou a partir da cintura, derrubando os dois homens armados mais próximos.
Agora para o verdadeiro prémio.
Apontou para o líder e disparou.
Em vez de um tiro certeiro, a bala trespassou a mão esticada do homem, furando a caixa de aço, depois penetrando-lhe o peito. Uma névoa amarelada começou de imediato a expandir, engolindo os que estavam mais próximos. Lembrou-se dos avisos do botânico que Malone lhe transmitira. Se um que seja se partir, matará tudo e todos num raio de noventa metros.
A nuvem espalhou-se.
Começaram os gritos.
Recuou, enquanto a brisa apanhava a nuvem e a empurrava na sua direção. Malone, ainda amordaçado, não precisou que lhe dissessem duas vezes e correu para o trilho. Gray virou-se para o seguir, mas viu uma figura que emergia da nuvem tóxica.
Trask.
O rosto parecia escaldado, os olhos a chorar e cegos. Outros passos e uma convulsão agitou-lhe todos os músculos, fazendo o corpo perder o equilíbrio e cair ao chão.
Não haveria pessoa mais indicada a quem acontecer aquilo.
Gray virou-se e correu atrás de Malone. O perigo, empurrado pelo vento, rolava atrás dele. Olhou de relance para trás, para a devastação que se espalhava. Os macacos caíam dos ramos das árvores. Os pássaros levantavam voo e desciam até ao chão. Tudo o que andasse, deslizasse ou voasse parecia sucumbir de imediato. Alcançou Malone e, juntos, desceram a correr a parte final do trilho e entraram na clareira da aldeia.
Que infelizmente não estava vazia.
Os habitantes locais ainda lá estavam, não tendo tido tempo para evacuar a aldeia. As crianças correram para trás das pernas das mães, assustadas com a aparição súbita deles, pensando que os guerrilheiros poderiam ter regressado. O facto de Malone estar amordaçado e ensanguentado não ajudava. Gray estacou e virou-se de frente para o trilho. Por cima da copa das árvores um grupo de morcegos voava em círculos e dardejava, começando a sua refeição noturna de insetos. Depois começaram a cair dos céus, primeiro os mais distantes, a seguir os mais próximos.
A morte corria na direção deles, empurrada pelo vento.
Virou-se para os aldeãos e viu rostos assustados. Nenhum deles, incluindo o próprio Gray, seria capaz de correr suficientemente depressa para escapar à nuvem.
O seu tiro errante tinha-os condenado a todos.
Malone procurou a sua única esperança, colocando-se de novo de joelhos e agarrando no lança-foguetes.
Uma verificação rápida confirmou que a arma estava carregada.
Graças a Deus.
— O que estás a fazer? — gritou Pierce.
Não havia tempo para explicar.
Levou a arma ao ombro, apontou para o trilho e disparou. A arma saltou contra o seu rosto, cuspindo fumo atrás dele. Uma granada assobiou num arco tenso, depois saiu lançada pela abertura do trilho.
Uma explosão de fogo iluminou a noite.
As árvores irromperam numa chuva ardente de ramos e folhas.
O calor chegou até ele. Seria suficiente? As palavras de Trask ecoavam na sua mente. No que dizia respeito àquela toxina, não havia cura ou descontaminação. Exceto a incineração.
Malone tirou a mordaça.
O fogo espalhou-se a partir do ponto da explosão. As chamas dançavam na noite. O fumo subia, mascarando as estrelas, consumindo todo o ar à sua volta, o que, com sorte, incluiria a toxina. Susteve a respiração, não que isso o salvasse caso a nuvem ali chegasse. Depois, no limite da floresta, uma sombra escura saltou para a sua frente, um farrapo de uma sombra viva. Uma pantera. As garras amareladas enterravam-se na terra. Os olhos escuros refletiam o brilho da fogueira. O grande felino silvou, mostrando os dentes, depois saltou para o lado, mergulhando de novo na floresta escura.
Vivo.
Um bom presságio.
Esperou mais um minuto. Depois outro.
A morte nunca veio.
Pierce juntou-se a ele, dando-lhe uma palmadinha no ombro.
— Fizemos aqui uma bela equipa. E isso é que foi pensar depressa, velhote.
Malone baixou a arma.
— A quem estás tu a chamar «velhote»?