CIDADE DOS GRITOS

JAMES ROLLINS E REBECCA CANTRELL

23 de outubro, 14h09

Cabul, Afeganistão

Começava com os gritos.

O sargento Jordan Stone escutou uma vez mais o fragmento de uma chamada de SOS que chegara ao comando militar em Cabul, às 4h32 da manhã. Assentou os cotovelos na gasta mesa cinzenta, as palmas a apertar os auscultadores enormes contra as orelhas, tentando retirar todas as pistas que a gravação tivesse para oferecer.

Um almoço de kebab de carneiro e pão lavash aguardava esquecido, embora o cheiro a caril e cardamomo ainda permeasse o ar, contribuindo para as náuseas que sentia enquanto escutava. Estava sentado, sozinho, numa pequena sala sem janelas, na Academia de Técnicas Criminais afegã, um edifício de um só piso, sem nada que o diferenciasse dos restantes, nos limites do aeroporto de Bagram, às portas de Cabul.

Mas a mente estava lá fora, perdida no tiroteio registado na gravação.

Esforçou-se, de olhos fechados, escutando pela décima quarta vez.

Primeiro os gritos, depois um chorrilho de palavras:

Vêm lá outra vez… ajudemnosajudemnosajudemnos…!

O som ia e vinha, mas isso em nada ajudava a esconder o terror e o pânico daquelas palavras simples.

Seguiram-se os disparos — frenéticos, esporádicos, descontrolados, ecoando à sua volta. Mas o que lhe fez levantar os pelos finos da nuca foi o silêncio que se seguiu, uma espécie de vácuo enquanto o rádio continuava a transmitir. Ao fim de dois minutos, uma frase solitária, rouca, distorcida e ininteligível fez-se ouvir, como se os lábios do seu emissor estivessem suficientemente perto para raspar no microfone. Essa intimidade, mais do que qualquer outra coisa, fê-lo rilhar os dentes.

Jordan esfregou os olhos, depois afastou os auscultadores das orelhas. Claramente, o que quer que fosse tinha terminado mal, às primeiras horas da madrugada. Daí a necessidade de chamarem a equipa de Jordan. Ele e os seus homens trabalhavam para a JEFF, a Joint Expeditionary Forensic Facility, a partir de Cabul. A sua equipa atuava como investigadores do local do crime para os militares: reunindo provas de insurgentes suspeitos, examinando e testando bombas caseiras, desmantelando os telemóveis encontrados nos campos de batalha ou em emboscadas. Se houvesse um mistério, cabia-lhes a eles resolvê-lo.

E eram bons naquilo que faziam. Também haveriam de solucionar aquele caso.

— Tenho mais informações — disse o especialista Paul McKay quando entrou e se deixou cair numa cadeira metálica. Esta rangeu sob o seu peso. O homem erguia-se uma cabeça acima e uma barriga a mais do que Jordan, e sabia do seu ofício, tendo sido recrutado à Divisão de Engenhos Explosivos. Esperto e inabalável.

— A gravação foi feita por uma equipa arqueológica no vale de Bamiyan. Quatro homens e uma mulher. Todos americanos. O comando enviou uma equipa de Rangers para guardar o local. Temos uma hora para descobrirmos o que conseguirmos aqui, depois teremos de os seguir para o campo.

Jordan assentiu. Estava habituado à pressão, apreciava-a, até. Mantinha-o em movimento, impedia-o de pensar demasiado.

— Vou trabalhar nesta mensagem. Tu e o Cooper reúnam um kit de homicídio completo e encontramo-nos no helicóptero.

— Certo, sargento. — McKay dirigiu-lhe uma continência rápida e saiu apressado.

Jordan escutou de novo a misteriosa frase no final da mensagem, após o que chamou os tradutores. Isso de nada serviu. Nenhum deles lhe conseguia dizer, sequer, que língua poderia ser aquela; nem mesmo os afegãos locais a reconheciam. Alguns alegavam que não seria sequer humana, mas pertencente a algum tipo de animal.

Alguém localizou rapidamente um historiador e arqueólogo britânico, o professor Thomas Atherton, que tinha estado a trabalhar com a equipa em Bamiyan, e levou-o a Jordan. Académico em boa forma e robusto, de sessenta e poucos anos, o arqueólogo tinha viajado para Cabul dois dias antes, para lhe tratarem um braço partido. Enquanto ouvia os gritos, o historiador empalideceu. Deslizou uma mão pelo cabelo grisalho, de corte aprumado.

— Acho que é a minha equipa, mas não posso ter a certeza. Nunca os ouvi gritar dessa maneira. — Estremeceu. — O que os poderá ter feito gritar assim?

Jordan entregou-lhe um copo de plástico com água.

— Temos um helicóptero cheio de Rangers a caminho para os ajudar.

O professor parecia achar que a ajuda chegaria tarde demais. Ajustou os óculos de aro fino no nariz estreito e nada disse. Quando ergueu o copo, a mão tremia-lhe de tal maneira que entornou água sobre a secretária. Voltou a pousar o copo, batendo com o gesso na mesa.

Jordan deu-lhe um minuto para se recompor. Ouvir a morte dos colegas tinha-o afetado profundamente, uma reação natural.

— Aquela última frase. — Jordan andou para trás com a gravação até chegar àquela última frase sussurrada. — Sabe em que língua é?

Voltou a passar a gravação para Atherton.

Um músculo sob um dos olhos do professor estremeceu.

— Não pode ser.

Agarrou a beira da mesa com as duas mãos, como se estivesse à espera de que esta saísse a voar. O que quer que fosse, deixava-o ainda mais nervoso do que os gritos.

— Não pode ser o quê? — perguntou Jordan.

— Bactriano. — O professor sussurrou a palavra. Os nós dos dedos ficaram brancos quando ele apertou a beira da mesa com mais força.

— Bactriano? — Jordan já tinha ouvido falar de camelos bactrianos, mas nunca de uma língua bactriana. — Professor?

— Bactriano. — O professor fitou os auscultadores como se estes lhe estivessem a mentir. — Uma língua perdida do norte do Afeganistão, um dos dialetos menos conhecidos do iraniano médio. Não é falada desde… há séculos.

Estranho.

Portanto, alguém atacara um grupo de arqueólogos, deixando em seguida uma mensagem numa língua antiga. Ou teria a mensagem sido deixada por um sobrevivente? Fosse como fosse, para Jordan aquilo não parecia um ataque insurgente.

— Pode dizer-me o que significa?

Ao responder, o professor não ergueu os olhos da mesa.

— A rapariga. Significa a rapariga é nossa.

Ainda mais estranho.

Jordan moveu-se na cadeira, ansioso. Seriam aquelas últimas palavras uma ameaça? Indicariam que um dos elementos da equipa — uma mulher — ainda estava viva e mantida refém ou torturada? Há alguns anos poder-se-ia ter perguntado quem faria tal coisa, mas agora sabia. Quando se tratava de lidar com as forças talibãs ou tribos isoladas, já nada surpreendia Jordan.

E isso preocupava-o.

Como é que um rapaz do Iowa rural tinha acabado no Afeganistão a investigar homicídios? Ele sabia que ainda se parecia com quem fora, com o cabelo louro como o trigo, límpidos olhos azuis e rosto de maxilar quadrado. Ninguém precisava de ver a bandeira de estrelas e riscas no ombro da farda para saber que ele era americano. Contudo, se olhasse mais de perto — para as cicatrizes no seu corpo, para aquilo que os seus homens chamavam o olhar vazio — veria um outro lado dele. Perguntou-se quão bem se enquadraria naqueles milheirais da sua antiga casa. Se algum dia poderia regressar.

— Quantas mulheres estavam no local? — perguntou Jordan.

A porta abriu-se e McKay espreitou para o interior, um dedo a apontar para o pulso.

Está na hora de ir.

Jordan ergueu uma mão, dizendo-lhe que esperasse.

— Professor Atherton, quantas mulheres estavam no local?

O professor fitou-o durante um longo segundo antes de responder.

— Três. A Charlotte. Quer dizer, a doutora Bernstein, da Universidade de Chicago, uma mulher local que cozinhava para nós e a filha dela. Uma menina. Talvez com uns dez anos?

Jordan sentiu o estômago às voltas, perturbado com a ideia de que uma criança pudesse ter sido apanhada pelo que parecia ser um massacre. Também se deveria sentir ultrajado. Procurou o sentimento, mas tudo o que descobriu foi a desilusão e a resignação.

Estou assim tão empedernido?

23 de outubro, 16h31

Vale de Bamiyan, Afeganistão

Jordan olhava pela janela do helicóptero para o vale em baixo em forma de taça. Enquadrado pelas cordilheiras montanhosas salpicadas de neve, a norte e a sul, o vale estendia-se por perto de cinquenta quilómetros, um oásis de terras agrícolas e ranchos de ovelhas aninhado entre os picos pedregosos do Hindu Kush. Embora ficasse a um curto salto de helicóptero sobre as montanhas, a cidade de Cabul parecia a um milhão de quilómetros daquele vale isolado.

Contornaram a aldeia vazia, onde os arqueólogos tinham montado acampamento. A aldeia era pouco mais que um pequeno aglomerado de uma dúzia de edifícios de tijolos de lama, alguns com telhados de colmo, outros cobertos por chapas de metal enferrujado, outros abertos para o céu de onde a neve caía. Aparentemente, não vivia lá ninguém muito tempo antes de os arqueólogos se terem mudado.

A neve caía à sua volta, flocos espessos, fofos, que se acumulavam no chão e obscureciam quaisquer provas. Jordan movia-se impacientemente no seu banco. Se não chegassem em breve, a sua presença de nada serviria. Além disso, com o sol a pôr-se na próxima meia hora, estavam prestes a ficar sem luz do dia.

Aterraram, e ele e a sua equipa, que agora incluía o professor Atherton, percorreram o caminho até ao local identificado pelos Rangers como local do crime. Jordan levara o professor com ele para o caso de precisarem de um tradutor de bactriano.

Ou alguém para identificar os corpos dos arqueólogos. Esperava que o professor fosse capaz de cumprir a tarefa. O tipo tinha-se mostrado cada vez mais nervoso à medida que se aproximavam do local. Começara a esgaravatar a ponta do gesso.

Jordan percorreu cuidadosamente os limites da horripilante cena do crime. A neve que espessava e os passos descuidados já tinham perturbado os pormenores do crime, mas sem esconderem o sangue.

Havia demasiado: salpicava as paredes de pedra que desmoronavam de ambos os lados da estrada de terra compactada, arrastado para um trilho vermelho-ferrugem que saía da aldeia. A mancha larga parecia a impressão digital do polegar de um deus sangrento. Parecia que esse mesmo deus roubara os corpos, deixando apenas as provas de um massacre recente.

Mas para onde teriam sido levadas as vítimas? E porquê?

E como?

Fitou os flocos pesados que caíam de um céu cinzento cada vez mais carregado. Tudo o que lhes restava eram farripas de luz do dia.

— Tratem toda a aldeia como o cenário de um crime — indicou aos seus dois colegas de equipa. — Quero tudo intacto. E não quero que mais ninguém entre aqui até termos terminado.

— Em casa roubada, trancas à porta? — McKay bateu no rosto para se proteger da baixa temperatura e apertou o equipamento para o frio ainda mais sobre os ombros largos. Apontou para a impressão de uma bota que marcava uma poça de sangue. — Parece que alguém se esqueceu de tirar os sapatos.

Jordan reconheceu a marca de uma bota das forças armadas dos EUA. Aquela infeliz contaminação do local do crime era, decerto, o resultado da passagem da equipa de Rangers que fechara o vale nas horas anteriores, garantindo a segurança da zona para a chegada da equipa de Jordan.

— Então aprendamos a lição e mantenhamos os nossos próprios passos leves a partir daqui — avisou Jordan.

— Certo. Leves como uma pena — confirmou o seu segundo colega de equipa. O especialista Madison «Mad Dog» Cooper pousou uma grande mão preta sobre o ombro de McKay e tocou no amplo estômago do amigo com a outra. — Mas isso pode ser um problema para o McKay. Em Cabul, tem passado mais tempo na fila da messe do que no ginásio.

McKay empurrou-o.

— Não é uma questão de peso. É uma questão de técnica.

Cooper fungou.

— Eu fico com o lado norte. Tu cobres o lado sul.

McKay acenou, puxando a mochila mais para cima no ombro e pegando na câmara Nikon digital, pronto para começar a fotografar o local.

— O primeiro a voltar com uma pista a sério paga a próxima rodada quando regressarmos a casa.

— Como se precisasses de mais uma cerveja nessa tua grande barriga — disse Cooper, acenando-lhe em sinal de despedida.

Jordan observou-os, enquanto se afastavam em diferentes direções, seguindo o protocolo, preparando-se para passar a pente fino a periferia da vila, em busca de marcas de pneus, pegadas, armas abandonadas, qualquer coisa que lhes permitisse identificar os perpetradores do ataque. Os seus dois homens eram acompanhados, cada um deles, por um agente da polícia afegã — um chamava-se Azar; o outro Farshad — ambos estudantes da Academia de Técnicas Criminais afegã.

Jordan sabia que a troca de palavras entre os seus dois colegas de equipa mascarava a sua inquietude. Leu-o nos seus olhos. Não gostavam da situação, tal como ele. Uma cena do crime sangrenta, sem corpos, no meio do nada.

— Porque haveria alguém de viver aqui? — balbuciou, sem esperar uma resposta, mas obtendo-a.

— É possível que tenha sido esse isolamento a atrair os primeiros monges budistas para este vale — disse o professor Atherton atrás de si. Jordan quase tinha esquecido a sua presença.

— Como assim? — Jordan retirou da mala a sua câmara de vídeo. Se a neve continuasse, era provável que aquelas imagens fossem tudo o que lhes restasse. Desenhou uma grelha mental e avançou até ao limite. Tirou as luvas para poder usar a câmara. — Por favor, fique atrás de mim e não pise o local do crime.

Atherton inspirou longamente através do nariz estreito, os olhos dardejando de um lado para o outro, como se tivesse medo de se fixar num qualquer pormenor. Quando falou, a voz era aguda e apressada.

— Todo este vale era reverenciado pelos budistas. Desenvolveram um vasto complexo monástico, escavando grutas de meditação e túneis nos penhascos. Algumas das primeiras pinturas a óleo ainda decoram as paredes daquelas grutas.

— Mmm-hmm. — Jordan adaptou a câmara à luz fraca. Queria apanhar todos os pormenores que conseguisse.

O professor virou as costas ao vale fitando os penhascos e continuou com o que parecia um discurso muitas vezes proferido, caindo numa narrativa monótona.

— Os monges esculpiram estátuas colossais de Buda na face dos penhascos há séculos. Se semicerrar os olhos, ainda consegue identificar os nichos que, outrora, as abrigaram.

Jordan fitou os penhascos amarelos distantes e conseguiu distinguir as bolsas escuras que marcavam o túnel e a abertura das grutas, juntamente com as arcadas gigantescas, os nichos de que o professor falava.

— Os Budas que os talibãs destruíram em 2001 — disse Jordan, recordando a reação internacional.

— É pena, mas é verdade. Vieram com tanques e bombas e fizeram explodir as famosas estátuas, declarando-as um insulto ao Islão. — O professor manteve os olhos fixos nos penhascos distantes, claramente tentando não olhar para o sangue à sua volta. Sangue que poderia ter sido o seu. Falou mais um pouco, a sua voz nunca abandonando aquele tom uniforme. Jordan começava a achá-lo um bocado assustador. — Tudo o que resta dos antigos colossos são aqueles nichos vazios e os destroços. É como se este vale estivesse amaldiçoado.

Jordan apercebeu-se de que a atenção do professor se tinha virado dos penhascos para um monte alto, sobranceiro à minúscula aldeia, que lançava a sua sombra sobre o local do crime. Conseguiu distinguir ruínas de paredes de pedra, partes de parapeitos antigos e secções de torres. Fê-lo pensar num castelo de areia feito por uma criança e depois espezinhado e abandonado aos elementos. A superfície tinha sido erodida pela chuva, pelo vento e pela neve, até todo o edifício se ter dissolvido numa versão distorcida de si mesmo, esboroando-se em areia e pedra, com meras sugestões do seu passado ainda visíveis.

— Se este vale está, de facto, amaldiçoado — continuou Atherton —, eis a origem. Os muçulmanos chamam àquele conjunto de ruínas Mao Balegh, que significa Cidade Amaldiçoada.

Jordan sentiu a curiosidade crescer face àquelas palavras, juntamente com uma pontada de medo. Havia algo naquele local que o perturbava e eram poucas as coisas que o deixavam desconfortável.

— O que lhe aconteceu? — Continuou a filmar. Mais valia retirar alguma informação de contexto ao professor enquanto ele falava.

— Traição e massacre. Mas, como tantas histórias, começou com um trágico par de jovens amantes. — O professor fez uma pausa, como se esperasse uma reação de Jordan.

Jordan não tinha tempo para lhe fazer a vontade. Tentou mover-se um pouco mais depressa. O vale estava a perder a luz depressa e no dia seguinte a neve já teria coberto tudo. Odiava a ideia de terem de terminar a sua investigação depois de escurecer, quando poderiam deixar escapar algo vital.

— Esta cidade foi, outrora, uma das mais ricas do Afeganistão. — O professor apontou para as ruínas com o braço envolto em gesso. — Servia não só como centro monástico, mas também como importante posto comercial para as caravanas que viajavam pela Rota da Seda, da Ásia Central até à Índia. Para proteger essa riqueza, um rei shansabani chamado Jalaludin construiu aquela cidadela. Durante um século, foi considerada inexpugnável, crescendo até ser habitada por mais de cem mil pessoas. As histórias dizem que estava repleta de passagens secretas que permitiam aos defensores atacar os seus inimigos. Tinha até a sua própria nascente subterrânea, para poder suportar com maior facilidade os cercos prolongados.

— Então, como acabou assim? — As ruínas estavam claramente longe dos seus dias de glória. Jordan filmou um grande plano de uma mancha de sangue, tentando obter uma imagem nítida sob a luz fraca.

— Gengis Khan. De ascendência mongol, queria assumir o controlo deste vale. Por isso enviou o seu neto preferido para negociar uma conquista pacífica, mas em vez disso o jovem foi morto. Assim, Khan fez avançar as suas forças para o vale, jurando matar todas as criaturas vivas como castigo. Mas uma vez chegado, as suas enormes forças não conseguiram encontrar forma de penetrar na cidadela.

Continuando a filmar, Jordan deu mais um cauteloso passo em frente.

— Deve ter encontrado uma forma. Disse qualquer coisa sobre uma traição…

A voz inflexível prosseguiu.

— E uma história de amor. A filha única do rei tinha-se apaixonado durante os meses que antecederam o cerco. Mas o pai recusara-lhe o jovem que desejava como pretendente, decapitando-o quando o casal tentou fugir. De coração partido e furiosa, deixou a cidadela e abordou Gengis Khan a coberto da escuridão. Para vingar o seu amor, mostrou aos mongóis as passagens secretas, disse a Gengis Khan onde se escondiam as forças do rei e revelou a localização da nascente subterrânea.

Jordan escutou a história apenas com um ouvido, concentrando-se no seu trabalho, terminando um dos lados. Os seus esforços não eram tão cuidadosos quanto teria gostado, mas as condições estavam a piorar. Atravessou para o outro lado da rua, limpou um floco de gelo derretido da lente e filmou o seu avanço.

Atherton manteve o silêncio durante um segundo, depois, voltou a falar subitamente como se nunca tivesse parado.

— E quando Gengis Khan derrubou as muralhas, fez o que tinha prometido. Matou todos os habitantes da cidade, mais de cem mil pessoas. Mas não se ficou por aí. Diz-se que chacinou todos os animais que viviam nos campos. Foram esses atos sombrios que deram à cidade o nome que hoje usa. — O professor estremeceu. — Shahr-e-Gholghola. A Cidade dos Gritos.

— E o que aconteceu à filha? — Jordan apercebera-se de que o professor falava quando estava nervoso. Precisava de uma história antiga para o distrair da realidade do que acontecera aos seus colegas.

— Gengis trespassou-a com a espada, por ter traído o pai. Diz-se que os seus ossos, juntamente com os dos outros mortos, tanto homens como animais, continuam enterrados naquele monte. Até hoje, nunca foram encontrados. — Atherton olhou de relance para o trilho ensanguentado que seguia até uma fenda na montanha a algumas centenas de metros e piscou os olhos. O seu tom de voz esmoreceu, dando lugar a um sussurro suplicante. — Mas estávamos perto. Tínhamos de trabalhar tanto quanto possível antes da chegada do inverno. Tinha de ser. Tínhamos de desenterrar quaisquer artefactos históricos existentes e garantir a sua segurança antes que nos arriscássemos a vê-los sofrer o mesmo destino das estátuas de Buda. Tínhamos de trabalhar depressa para alcançar os artefactos, para os salvar.

— A equipa pode ter sido atacada por causa do que descobriu nos últimos dias, depois de o professor ter partido? Talvez algum tipo de tesouro?

— Impossível — disse o professor. — Se as histórias em relação a este local são verdadeiras, Gengis Khan levou tudo o que existia de valor antes de destruir a cidade. Nunca encontrámos nada por que valesse a pena matar. Mas as tribos supersticiosas não queriam que perturbássemos este túmulo gigantesco dos seus antepassados. As histórias sobre fantasmas, djinns e maldições abundam, e eles tinham medo de que despertássemos um qualquer mal. Talvez o tenhamos feito.

Jordan deixou escapar um fungar suave.

— Estou menos preocupado com os inimigos mortos do que com os vivos.

Estava satisfeito por ter o apoio dos Rangers. Não confiava no professor ou nos habitantes locais, nem mesmo nos formandos afegãos sob o seu cuidado. Ali, as lealdades alteravam-se em menos de um segundo. Raios, aquele rei shansabani perdera o reino porque nem na própria filha podia confiar.

Virou as costas às ruínas e fitou um par de helicópteros Chinook CH-47 que repousavam a um quilómetro de distância, a neve cobrindo as pás, posicionados nos limites da cidade vizinha de Bamiyan. Tinham uma equipa de investigadores a interrogar os aldeãos. Todos lutavam contra a noite.

Jordan desligou a câmara. Estudaria o vídeo depois, mas por ora queria pensar, sentir a cena.

O que poderia dizer a partir do que observara? Alguém tinha atacado os arqueólogos com uma brutalidade raramente vista. Havia sangue por todo o lado. Parecia que tinha ocorrido uma luta de facas, não uma troca de tiros, o sangue jorrando em arco de uma miríade de golpes, não em grandes manchas como acontecia com os ferimentos de bala. Mas o sangue era tanto que se tornava difícil ter a certeza.

Quem tinha feito aquilo… e porquê?

Teriam os talibãs considerado o trabalho que ali estava a ser realizado como uma afronta religiosa? Ou talvez um grupo de habitantes locais oportunistas tivesse raptado os arqueólogos como parte de um esquema de resgate que se tivesse descontrolado? Ou talvez o professor estivesse certo — as tribos supersticiosas tinham-nos matado porque temiam o que os arqueólogos ali poderiam perturbar. Esperava que os Rangers tivessem mais sucesso do que a sua equipa, porque ele não gostava de nenhuma daquelas respostas.

Por aquela altura, a neblina gelada tornara-se mais espessa, a queda de neve mais pesada, apagando lentamente o mundo à sua volta. Jordan perdeu de vista os helicópteros, a cidade distante de Bamiyan. Até as ruínas vizinhas de Shahr-e-Gholghola tinham desaparecido quase por completo, oferecendo meros vislumbres das pedras e das ruínas.

Era como se o mundo tivesse encolhido até às dimensões daquela pequena aldeia.

E dos seus segredos sangrentos.

O professor tirou a luva e curvou-se para apanhar alguma coisa.

— Pare! — gritou Jordan. — Isto ainda é um local de crime.

O professor apontou para um pedaço de tecido verde-mar congelado numa poça de sangue. A sua voz tremia.

— Aquilo é da Charlotte. Do casaco dela.

Jordan estremeceu. Havia muitas formas cruéis e sem sentido de morrer.

— Lamento, professor Atherton. — Jordan afastou os olhos do rosto angustiado do professor e fitou as suas próprias mãos. A mão direita torcia a aliança de ouro de um lado para o outro no dedo. Um hábito nervoso. Largou o anel.

Passos pesados, apressados e determinados, fizeram-se ouvir à sua esquerda. Girou sobre si mesmo, libertando a arma, uma pistola metralhadora Heckler & Koch MP7 compacta.

A forma de McKay surgiu da neblina, seguido por Azar, o seu formando afegão.

— Sargento, olhe para isto.

Jordan guardou a arma e acenou a McKay para que avançasse.

O cabo aproximou-se e usou o corpo para proteger a câmara Nikon da neve que soprava.

— Tirei fotografias de uns rastos que encontrei.

— Pegadas?

— Não. Veja.

Jordan baixou os olhos para o minúsculo ecrã digital. Mostrava um rasto de pegadas ensanguentadas através de uma extensão de rocha coberta de neve.

— Isso são marcas de patas?

McKay avançou mais algumas fotos, mostrando um grande plano das impressões.

— Sem dúvida um animal de algum tipo. Talvez um lobo?

— Um lobo não — interveio Azar num inglês afetado. — Um leopardo.

— Leopardo? — perguntou McKay.

Azar aproximou-se deles e acenou com a cabeça.

— Os leopardos das neves vivem nestas terras há milhares de anos. Há muito tempo eram o símbolo real deste local. Mas agora já não restam muitos. Talvez algumas centenas. Atacam as ovelhas e as cabras dos agricultores. Não as pessoas. — Coçou a barba. — Não houve chuva suficiente este ano, mesmo no início do inverno. Talvez tenham descido em busca de alimento.

Aquela era uma ameaça que até àquele momento nem sequer ocorrera a Jordan. Sentia-se melhor ao pensar que tinham sido animais a atacar os arqueólogos. Animais era algo com que podia lidar. Os leopardos não tinham armas, e não era provável que permitissem que os habitantes locais os abrigassem. Também explicava a ferocidade do ataque, a troca de tiros e o sangue. Mas poderia ser assim tão simples?

Jordan endireitou-se com um abanar da cabeça.

— Não sabemos se os felinos os mataram. Podem ter-se aproximado mais tarde em busca de alimento. Se calhar foi por isso que não encontrámos os corpos. Por terem sido levados para onde quer que esteja o bando dos leopardos…

Alcateia de leopardos — corrigiu McKay, sempre atento aos pormenores. — Os animais ferozes formam alcateias.

Atherton dobrou-se sobre si mesmo.

— Se foram os felinos a levar os corpos, estão por perto. Apontou o olhar na direção das ruínas. — Este local está pejado de esconderijos. Bem como de minas terrestres deixadas pelas muitas décadas de guerra que aqui foram travadas. É preciso terem cuidado onde põem os pés naquelas ruínas.

— Excelente — resmungou McKay —, como se não tivéssemos problemas de sobra com leopardos devoradores de homens. Também temos minas.

Jordan tinha mapas da área onde haviam sido assinaladas as minas, mas não ansiava por percorrer aquele labirinto para recuperar os corpos — em especial no escuro —, embora soubesse que isso se poderia tornar necessário. Era possível que ainda existissem naqueles cadáveres estropiados pistas sobre quem matou os arqueólogos. Não podiam ser leopardos, apercebeu-se. Os leopardos não sussurram em línguas antigas. Assim sendo, as palavras tinham provindo ou de um sobrevivente ou de um assassino. Tinham de partir de imediato. Quanto mais tempo esperassem, menos provável seria que um possível sobrevivente continuasse vivo, ou que o homicida pudesse ser presente à justiça.

— Quão grandes são estes felinos? — perguntou Jordan.

Azar encolheu os braços.

— Grandes. Já ouvi falar de machos que chegam aos oitenta quilos.

Jordan fez as contas, convertendo os quilos na unidade de peso utilizada nos EUA.

— Isso são cerca de cento e setenta e cinco libras.

Assustador, mas não demasiado.

McKay apresentou o seu desacordo.

— Então é melhor olharem para isto.

Passou para outra fotografia, uma que mostrava a impressão de uma pata com uma moeda brilhante ao seu lado, para revelar a perspetiva do seu tamanho.

Jordan sentiu um medo frio profundamente enraizado, uma reação primitiva que remontava ao tempo em que os seus antepassados se reuniam em cavernas para se protegerem dos seres que caçavam na noite. A impressão da pata parecia ter cerca de vinte centímetros de diâmetro, o tamanho de um prato de jantar pequeno.

— Encontrei uma outra série de rastos. — McKay mostrou-lhos na câmara.

Terminava com outra impressão de uma pata, uma vez mais fotografada com uma moeda, esta mais pequena, não por muito, mas claramente diferente.

— Portanto, há pelo menos dois felinos a caçar aqui — disse Jordan.

— E ambos com muito mais de oitenta quilos — acrescentou McKay. — Estimo o dobro disso, talvez mais. O tamanho dos leões africanos.

Jordan fitou as ruínas cobertas de neblina, recordando a história de dois leões africanos, aos quais haviam chamado O Fantasma e A Escuridão, que aterrorizaram o Quénia durante quase um ano no virar do século. Dizia-se que os dois leões tinham matado mais de cem pessoas, muitas vezes arrancando-as das suas tendas a meio da noite.

— Vamos precisar de mais poder de fogo — disse McKay, como se lesse a mente de Jordan.

Infelizmente, a equipa viajara até ali leve, uma arma para cada. Estavam a contar chegar e partir antes de escurecer. Além disso, com uma unidade de Rangers nas proximidades, parecia-lhes que teriam proteção suficiente.

Isso, até àquele momento.

Um estalar no rádio levou Jordan e McKay a estremecer e a levar a mão aos auriculares. Era Cooper.

— Tenho movimento do meu lado — transmitiu Cooper. — Dentro da aldeia. Vi um tremeluzir através de janelas.

— Fica onde estás — ordenou Jordan. — Vamos ter contigo. E fica atento à presença de leopardos. É possível que não estejamos sós.

— Entendido. — A voz de Cooper soava mais irritada do que assustada. Mas ele não vira os rastos.

Depois de Cooper ter transmitido a sua localização, Jordan guiou os outros ao lado oposto da aldeia. Encontrou Cooper agachado com Farshad, junto a um amontoado de pedregulhos no limite da aldeia. As ruínas de Shahr-e-Gholghola erguiam-se atrás da sua posição. Jordan sentia-se inquieto em voltar as costas ao túmulo montanhoso para fitar a aldeia.

— Ali — disse Cooper, e apontou com a espingarda para uma pequena casa de tijolos de lama com o telhado de colmo coberto pela neve. A porta estava fechada, mas a janela encontrava-se virada para eles. — Está ali alguém.

— Ou talvez te estejas a assustar com as sombras — disse McKay. — Os Rangers verificaram todos os edifícios. Não encontraram nada.

— O que não significa que não se possa ter esgueirado alguém para o seu interior quando não estávamos a ver. — Cooper voltou-se para Jordan. — Juro que tive um vislumbre de algo claro a passar pela janela. Não foi um aglomerado de neve ou um rasto de neblina. Era algo sólido.

McKay mostrou a Cooper as imagens das pegadas gigantes.

Cooper agachou-se mais e praguejou.

— Não me alistei para fazer caça grossa. Se isso é um leão enorme que anda por aí…

— Leopardo — corrigiu McKay.

— Estou-me nas tintas para o que possa ser. Se tem dentes e gosta de comer pessoas, vou deixar que o traseiro enorme do McKay assuma a liderança.

— Por mim, tudo bem — disse McKay. — Em especial tendo em conta que são pelo menos dois e aqui o professor acha que estão escondidos naquele monte rochoso atrás de ti.

Cooper olhou de relance por cima do ombro e voltou a praguejar. Jordan resolveu a questão.

— Cooper e Farshad, fiquem aqui com o professor. McKay e Azar, vocês vêm comigo para vermos a casa.

Com a pistola H&K na mão, Jordan conduziu os dois homens em direção à casa, os passos silenciosos na neve acabada de cair. Estava confiante de que a sua arma tinha poder de fogo suficiente para o que quer que estivesse escondido naquela casa. Ainda assim, não parava de olhar por cima do ombro, desejando ter mais munições ao seu dispor.

Enquanto Azar mantinha a arma apontada à janela, ele e McKay aproximaram-se da porta. Deslizaram um para cada lado e prepararam-se. Jordan olhou de relance e obteve uma confirmação silenciosa do seu colega.

Perante o sinal de Jordan, McKay avançou e deu um pontapé na porta.

Esta abriu-se com um estalo sonoro da madeira.

Jordan correu agachado para o interior, com a arma encostada ao ombro. McKay ficou onde estava, erguendo-se mais alto, percorrendo a sala com a sua própria arma.

A casa era composta por uma só divisão, com uma pequena mesa, um fogão de pedra a um canto e um par de camas de palha, uma grande e uma pequena. Vazias. Tal como a equipa dos Rangers tinha relatado. Cooper estava enganado, o que deixou Jordan simultaneamente surpreendido e aliviado. Já devia saber…

— Não se mexa, sargento — disse McKay a partir da porta.

Jordan obedeceu, ouvindo a urgência na voz do colega de equipa.

— Olhe devagar para cima. Às suas oito horas.

Jordan deslizou o olhar na direção indicada, quase sem mover a cabeça. Seguiu a parede de tijolos de lama até ao ponto onde esta se cruzava com o telhado de colmo. Meio escondido por uma viga, um par de olhos fitava-o, brilhando como que iluminado por um fogo interior. Um restolhar de palha sussurrou na sala silenciosa, enquanto o observador escondido deslizava para o interior do ninho de colmo, um esconderijo perfeito, que permitia usar o cheiro almiscarado e húmido da palha para mascarar qualquer odor.

Inteligente.

Jordan guardou a arma e ergueu os braços vazios.

— Está tudo bem — disse baixinho, calmamente, como se estivesse a encorajar um potro assustadiço. — Estás segura. Podes descer.

Ele não sabia se as suas palavras seriam compreendidas, mas esperava que o tom e os gestos tornassem clara a intenção.

— Porque não…

O ataque foi súbito. A criatura escondida nas sombras saltou das vigas, descendo com uma chuva de colmo seco. A arma de McKay ergueu-se.

— Não! — avisou Jordan.

Apanhou com os braços o vulto que assim mergulhava, reconhecendo a pura necessidade naquela forma em queda. Tinha sido criado com um bando de irmãos e irmãs, e agora sobrinhos e sobrinhas. Embora não tivesse filhos seus, conhecia esse desejo simples. Ia para lá das línguas, dos países e das fronteiras.

Uma criança que precisava de conforto e segurança.

Braços pequenos apertaram-se em redor do seu pescoço, uma bochecha macia e quente apertou-se contra a sua. Pernas magras envolveram a sua cintura.

— É uma miúda — disse McKay. Uma miúda aterrorizada.

Ela estremeceu-lhe nos braços, tremendo de medo.

— Estás em segurança — garantiu-lhe, ao mesmo tempo que esperava silenciosamente que fosse verdade. Virou-se para McKay. — Traz o Cooper e os outros para aqui.

McKay saiu a correr, deixando Jordan sozinho com a criança. Jordan calculou que a rapariga não teria mais de dez anos. Atravessou até à mesa e sentou-se. Abriu o casaco e envolveu-a com ele, aninhando a sua forma magra contra o peito. O seu corpo ardia contra o dele, febril através da roupa tipo pijama que vestia. Leu o terror cru em cada estremecimento e nos suaves soluços, enquanto ela pairava no limite do choque.

O que teria ela visto?

Odiava tratar aquela criança como uma testemunha, em especial naquele estado, mas possivelmente seria a única a ter a resposta para o que ali acontecera verdadeiramente.

Os outros homens encheram a sala apertada, o que levou a que a rapariga se agarrasse ainda mais a ele, de olhos arregalados, fixos nos recém-chegados. Cingiu-a, tentando transmitir-lhe tanta segurança quanto possível. O seu rosto pequeno e redondo, enquadrado pelo cabelo preto de risco ao meio, olhava constantemente de relance para ele, como se se quisesse assegurar de que não desaparecia.

— Há rastos de leopardo em redor da casa, sargento — disse Cooper. — É como se tivessem feito um baile lá fora.

Atherton falou a partir da porta.

— É a filha da cozinheira. Não sei o nome dela.

A rapariga olhou para Atherton como se o reconhecesse, depois encolheu-se contra Jordan.

— Pode fazer-lhe algumas perguntas? — pediu Jordan. — Descobrir o que aconteceu?

Atherton manteve a sua distância em relação à rapariga. Disparou as perguntas como se quisesse despachá-las tão depressa quanto possível. O olho estremecia loucamente. Ela respondia em monossílabos, os olhos nunca deixando o rosto de Jordan.

Segurando a rapariga suavemente, Jordan apercebeu-se de que os dois afegãos se tinham aproximado da mais pequena das duas camas. Um deles ajoelhou-se e pegou numa pitada de pó branco do chão de terra batida, levando-o aos lábios. Parecia sal e, tendo em conta a careta e o cuspir, provavelmente sabia ao mesmo.

Jordan apercebeu-se de que um círculo esbranquiçado rodeava a cama, e um pedaço de corda pendia de um dos postes da mesma.

Os dois afegãos mantinham as cabeças próximas e curvadas, olhando para o sal e depois para a rapariga. Os olhos brilhantes de desconfiança, e uma dose considerável de medo.

— O que é aquilo? — sussurrou McKay a Jordan.

— Não sei.

Atherton respondeu à pergunta.

— De acordo com o folclore, os fantasmas ou djinn atacam frequentemente as pessoas enquanto dormem, e o sal mantém-nos ao longe. O mais provável é que a mãe acreditasse que tinha de proteger a filha, estando a trabalhar à sombra de Shahr-e-Gholghola. E talvez precisasse. Acontecem coisas nas montanhas que são inacreditáveis para quem vive na segurança da cidade.

Jordan impediu-se de revirar os olhos. A última coisa de que precisava era que o professor começasse a dizer disparates.

— O que disse a rapariga sobre o que aconteceu aqui?

— Disse que a equipa tinha feito progressos ontem. — Tocou no gesso e fez uma careta. — E eu ausente. De qualquer maneira, o túnel que tinham estado a escavar abriu-se para um repositório de ossos. Tanto humanos quanto animais. Iam começar a removê-los nos próximos dias.

— E a noite passada? — perguntou Jordan.

— Já lá ia chegar — disse Atherton com uma ponta de irritação.

Voltou a fazer perguntas à rapariga, mas Jordan sentiu o corpo da criança a ficar rígido. Ela abanou a cabeça, cobriu o rosto e recusou-se a falar. A respiração tornou-se mais rápida e entrecortada. O calor do corpo dela queimava-o através do casaco.

— Talvez seja melhor parar por agora — disse Jordan, sentindo que a rapariga regressava ao estado de choque.

Ignorando-o, Atherton agarrou-lhe rudemente o braço. Jordan apercebeu-se de um pedaço de corda que pendia do pulso esguio. Ela tinha estado atada à cama?

As palavras de Atherton tornaram-se mais duras, mais insistentes.

— Professor. — Jordan afastou a mão dele da criança. — Trata-se de uma criança doente e traumatizada. Deixe-a em paz.

McKay afastou Atherton. O professor recuou até as suas costas tocarem na parede de lama e depois fitou-a como se também ele tivesse medo dela. Mas porquê? Ela não passava de uma rapariguinha assustada.

A rapariga olhou de relance para Jordan, o corpo ardendo-lhe nos braços. Até os olhos brilhavam com aquele fogo interior. Falou com Jordan, num tom suplicante, leve, antes de adormecer.

Quanto tempo teria ficado sem comer ou beber alguma coisa?

— Por agora chega — disse Jordan a McKay. — Vamos procurar ajuda médica.

Pegou na sua garrafa de água e tentou que ela bebesse um pouco.

A rapariga sussurrou algo tão baixinho que Jordan não conseguiu distinguir as palavras, se é que eram palavras e não apenas um suspiro.

O rosto do professor empalideceu. Atherton olhou de relance para os dois afegãos, como se quisesse verificar se também tinham ouvido as suas palavras. Azar recuou até à porta. Farshad dirigiu-se até à cama, entrando no círculo de sal e curvando-se para reparar a zona de onde, um momento antes, tinha retirado uma pitada de sal.

— Que foi? — perguntou Jordan.

— Que raio se está a passar? — ecoou McKay.

Foi Atherton a responder.

— A última parte do que a rapariga disse. Não foi no dialeto hazara. Foi bactriano. Como na gravação.

Fora? Jordan não estava assim tão certo. Não estava certo de que ela tivesse dito alguma coisa e, se tinha, que o professor a tivesse conseguido ouvir. Ele escutara uma e outra vez a gravação da chamada SOS. As palavras no final decerto não se pareciam com o que a rapariga acabara de dizer. Lembrava-se das palavras, profundas, guturais, que soavam furiosas: A rapariga é nossa.

A voz estava carregada de possessividade.

Talvez fosse o pai dela.

— Então o que disse ela? — perguntou Jordan. Sentia um ceticismo crescente em relação ao professor. Como podia uma rapariga de dez anos falar uma língua que estava morta há centenas de anos?

— Ela disse: Não o deixes levar-me de volta.

Do outro lado das paredes de tijolo de lama da casa, um uivo ululante atravessou a neblina.

Um instante depois foi respondido por outro. Os leopardos.

Jordan olhou de relance em direção à janela, apercebendo-se de que o sol se tinha posto durante a última meia hora, de forma súbita como acontecia nas montanhas. E, com o sol desaparecido, os leopardos tinham saído de novo para caçar.

Azar correu para a porta aberta, em pânico. Farshad chamou-o, claramente implorando-lhe que voltasse, mas foi ignorado. O homem desapareceu na escuridão nevada. Seguiu-se um longo silêncio. Jordan ouviu apenas o suave sussurro da neve a cair.

Depois, passado um minuto, irromperam tiros, seguidos de um grito penetrante. O grito parecia simultaneamente distante e tão próximo quanto a entrada. Soava a sangue e dor e terror absoluto. Depois fez-se de novo silêncio.

— McKay, guarda a entrada — vociferou Jordan.

McKay correu em frente e usou o ombro para voltar a fechar a porta.

— Cooper, tenta contactar o batalhão de Rangers estacionado em Bamiyan. Diz-lhes que precisamos de apoio. Rápido.

Enquanto McKay apontava a arma para a porta, Jordan afastou-se da mesa, colocando um joelho no chão, arrastando a rapariga consigo. Esta agarrava-se a ele, respirando com dificuldade. Ele libertou a pistola automática e manteve os olhos fixos na janela, esperando que os felinos passassem.

— Então e agora, sargento? — perguntou McKay.

— Esperamos pela cavalaria — respondeu ele. — Não devem demorar a levantar voo.

Cooper abanou a cabeça e ergueu o rádio na mão.

— Não estou a conseguir estabelecer a ligação. Só apanho estática. Não faz sentido, nem mesmo com esta tempestade.

Atherton olhava para a rapariguinha como se tivesse sido ela a estragar os rádios. Jordan agarrou-a com mais força.

— Alguém está a ouvir aquilo? — perguntou McKay, inclinando ligeiramente a cabeça.

Jordan ficou tenso, depois também ouviu. Fez sinal para que ficassem todos em silêncio. Através da escuridão, sobre a queda da neve, um sussurro chegava até eles. Uma vez mais, distante e próximo ao mesmo tempo. Não era possível distinguir quaisquer palavras, mas o som fazia-o rilhar os dentes, como uma estação de rádio mal sintonizada. Lembrou-se de ter pensado que já nada o surpreendia. Teria de repensar isso. Toda aquela situação era surpreendente o suficiente para o arrancar à sua zona de conforto.

— Acho que também é bactriano — disse Atherton, a voz revelando uma ponta de pânico óbvia. Agachou-se como um coelho assustado perto do fogão de pedra. — Mas não consigo perceber nada.

A Jordan não soava de todo como uma língua. Talvez o choque do dia tivesse alcançado o professor. Ou talvez nem sequer fosse bactriano o que se ouvia na gravação.

Farshad agachou-se ao lado da cama envolta em sal. Fitava com um olhar assassino a rapariga, como se ela fosse a culpada de tudo aquilo.

— Lembra-se do que traduzi daquele telefonema desesperado? — Os olhos vidrados fitavam o vazio para lá do ombro de Jordan. — Aquelas últimas palavras. A rapariga é nossa. É notório que eles a querem.

O professor apontou um dedo trémulo à criança.

Os sussurros na noite tornaram-se mais sonoros, assumindo um som balbuciante, um coro de loucura para lá do limite da sua audição. Era como se as palavras tivessem comido as suas orelhas, arranhando para entrar no seu crânio. Mas talvez não passassem de sons vulgares de leopardo. Jordan não fazia ideia de qual deveria ser o som de um leopardo.

Atherton tapou os ouvidos com as mãos e agachou-se ainda mais contra o chão.

Farshad gritava palavras em pashto, a sua língua nativa, e apontou uma espingarda a Jordan e à rapariga. Indicou a porta com a ponta da arma. Entre a pantomima e o pouco pashto que Jordan compreendia, a mensagem era clara.

Manda a rapariga lá para fora.

— Isso não vai acontecer — disse Jordan sombriamente, fitando-o de cima.

Farshad tinha ficado de rosto vermelho, os olhos escuros e selvagens. Gritou de novo em pashto. Jordan identificou a palavra djinn e algo como petra. Estava constantemente a repetir a palavra, agitando belicosamente com a arma na direção de Jordan. Depois disparou uma bala e acertou na terra junto ao joelho de Jordan.

Foi o suficiente para os seus homens.

Defendendo-o, Cooper e McKay dispararam as armas ao mesmo tempo.

Farshad caiu para trás sobre a cama, morto antes de tombar sobre o colchão de palha.

A criança gritou e enterrou o rosto no peito de Jordan.

Atherton gemeu.

— O que estava o Farshad a gritar no fim? — perguntou Jordan. — Aquela palavra petra.

Atherton balançou ao de leve, sem nunca erguer o rosto.

— Uma antiga palavra em sânscrito, usada tanto pelos budistas como pelas tribos desta região. Pode traduzir-se como que seguiu e partiu, mas normalmente refere-se a fantasmas demoníacos, aqueles que ainda anseiam por algo, espíritos perturbados.

Jordan queria troçar de uma tal coisa, mas não conseguiu encontrar as palavras.

— O Farshad acreditava que a rapariga estava possuída por um djinn que fugiu e que os fantasmas na neblina a querem de volta.

— O que fotografei lá fora — disse McKay — pareciam pegadas de leopardo, não de fantasmas.

— Eu… eu não sei. — Atherton não parava de se balançar. — Mas talvez ele tivesse razão. Talvez devêssemos enviar a rapariga lá para fora. Então deixar-nos-iam em paz. Talvez eles só a queiram a ela.

— Eles quem? — ripostou Jordan. Não ia enviar a rapariga para a morte.

Em resposta, algo pesado aterrou no telhado de colmo por cima das cabeças deles, fazendo chover palha seca. Jordan girou a pistola automática e disparou para o telhado. Os seus homens seguiram-lhe o exemplo, as explosões ensurdecedoras naquele espaço apertado.

Um grito guinchado — não de dor, apenas de raiva — respondeu aos seus esforços, seguido por uma retirada apressada. Não parecia ter sido ferido, parecia estar apenas irritado. Estaria a criatura a tentar atrair o seu fogo, um ardil para os fazer desperdiçar munições?

Jordan verificou a arma. Apercebeu-se dos sobrolhos franzidos dos seus colegas de equipa quando fizeram o mesmo. Não era bom. Estavam rapidamente a ficar sem balas.

Um novo grito felino fez-se ouvir perto da porta. Cooper e McKay viraram-se, apontando para lá as armas. Jordan voltou o olhar para a janela, fitando as ruínas envoltas na neblina.

— Se os virem, disparem. Mas tenham atenção às munições.

— Percebido — disse Cooper. — Esperem até lhes verem o branco dos olhos.

— O telhado não vai suportar muitos mais ataques como aquele — frisou McKay. — Mais alguns saltos e os leopardos vão cair sobre nós.

McKay tinha razão. Jordan reconheceu a futilidade de ficarem ali escondidos. Não tinham poder de fogo suficiente para manter à distância um par de monstros de mais de cento e trinta quilos, em especial num espaço tão apertado. Era quase tão provável que disparassem uns contra os outros como contra os animais.

Jordan levantou-se, tomando a rapariga nos braços.

— Tens um plano? — perguntou Cooper.

Jordan fitou a porta.

— Mas não é um bom plano.

— O que vais fazer? — perguntou McKay, parecendo preocupado.

— Vou dar-lhes o que eles querem.

17h18

Jordan correu pela neve, através da noite, mantendo-se baixo, mas transportando o fardo sobre um ombro, mole e silencioso. A manga da rapariga tocou-lhe no rosto, cheirando a suor e medo. Não sabia se ela seria a fonte de tudo aquilo, se os leopardos se tinham fixado no cheiro dela. Não sabia se aqueles sussurros na neblina seriam ecos de algo distante ou outra coisa qualquer.

Naquele momento, não importava.

Se queriam a rapariga teriam de seguir o seu rasto, os seus movimentos.

Fugia para longe do brilho distante de Bamiyan e em direção às ruínas de Shahr-e-Gholghola. Seguiu as instruções dadas por Atherton, que o conduziriam ao local das escavações da equipa de arqueólogos. Era apenas uma corrida de menos de cinquenta metros.

Aquele cemitério oferecia-lhes agora a única esperança.

Ele e os seus homens tinham poucas armas e um número limitado de munições. E aquelas criaturas já tinham dado provas de serem caçadores ardilosos e experientes, sem dúvida difíceis de matar, claramente desconfiados das armas. A sua melhor esperança era atrair as feras para longe e encurralá-las.

Depois de as despachar, lidaria com o que quer que andasse por ali a sussurrar na neblina.

Ou pelo menos era esse o plano.

Enquanto corria, McKay mantinha-se próximo.

Tinham deixado Cooper na casa, a cobrir a sua fuga pela janela. Talvez os felinos ficassem no seu campo de visão, e Cooper os pudesse derrubar e resolver assim todos os seus problemas.

Jordan percorreu o que restava do caminho, desviando-se pelo labirinto de carrinhos de mão, montes de gravilha e areia escavada, e pilhas de ferramentas abandonadas, de modo a alcançar a entrada do local das escavações. O vento frio cortava através da camisa dele. Sentia a falta do casaco. Subiu a custo pelo túnel, apoiou melhor o fardo ao ombro, assegurando-se de que não comprometia a arma.

McKay arquejava ao seu lado. O esforço não o deixava com falta de ar, nem a altitude. Era apenas o medo.

— Sabes o que tens de fazer — disse Jordan.

— Vou ver o que consigo desenterrar… literalmente.

Jordan sorriu, apreciando o espírito leve do amigo, sabendo ao mesmo tempo o medo que escondia.

— Se eu não estiver de volta dentro de dez minutos…

— Ouvi-te à primeira. Agora vamos. — Um uivo gritado marcou a ordem.

McKay bateu no ombro de Jordan, depois desapareceu com um mapa a abanar na mão. Jordan ligou a lanterna tática de xénon montada na arma e apontou-a para o túnel que tinha sido escavado no coração das ruínas.

Agora para montar a armadilha…

Agachou-se de modo a impedir que as roupas da rapariga se rasgassem nas paredes rugosas e partiu pelo túnel. Precisava que os felinos o seguissem, atraindo-os com a luz saltitante, a luz frenética, e o odor das roupas húmidas da febre da rapariga. O teto baixo exigia que corresse agachado, os ombros batendo nas paredes de ambos os lados.

Enquanto seguia aquele raio de luz pelas profundezas das ruínas escuras, apercebeu-se de uma brisa mais quente que se erguia de baixo, como se tentasse soprá-lo de novo para o exterior. Cheirava a rocha húmida, com um toque químico, como petróleo a arder. Sentiu-se grato pelo calor, até os olhos começarem a lacrimejar e a cabeça a andar à roda.

Sabia que algumas grutas naturais respiravam, exalando ou inalando dependendo da pressão e da temperatura à superfície. Terá sido assim que os arqueólogos descobriram onde escavar? Teriam notado uma secção do Shahr-e-Gholghola a suspirar, revelando os seus segredos mais escondidos, e escavado na sua direção?

Passados mais alguns metros, teve a sua resposta. As paredes escavadas deram lugar à pedra natural. Descobriu degraus escavados na rocha por baixo dos seus pés. Os arqueólogos teriam entrado numa secção das passagens secretas que, outrora, tinham enchido a antiga cidadela.

Mas, o que teriam encontrado?

Um grito de raiva perseguiu-o, repetido por outro. Imaginou os dois felinos agachados na mesma entrada, sentindo a sua presa encurralada. Suspirou de alívio por McKay.

Continuam atrás de mim…

Incitado por aquele pensamento, Jordan correu mais para o fundo, sabendo onde tinha de chegar, um local atabalhoadamente descrito por Atherton, embora o professor nunca o tivesse visitado pessoalmente.

Alguns passos adiante, o túnel terminava numa grande caverna, um beco sem saída. Deslizou levemente na pedra húmida, parando junto a uma pilha de ossos, uma massa emaranhada de membros, crânios e caixas torácicas. Os ossos espalhados cobriam o solo de pedra da caverna, formando uma praia macabra no limite de uma piscina de águas negras. Outros ossos brilhavam a partir dos baixios.

Jordan recordou a história de Atherton sobre a nascente subterrânea da cidadela e a chacina que aí decorreu séculos antes.

Mas nem todas as mortes eram antigas.

Repousando sobre os ossos, no limite da água, estavam os corpos ensanguentados de presas frescas. Os cadáveres estavam rasgados, esventrados, e tinham os membros partidos. Ali jaziam os restos mortais da equipa de arqueólogos, e do que parecia ser a mãe da rapariga. Pelas marcas de dentes nos corpos, Jordan sabia que tinha encontrado o covil dos leopardos. Não tinham demorado a ocupar a caverna recém-descoberta.

Como se sentisse a sua presença indesejada, um uivo chegou até ele, soando muito mais próximo do que antes. Ou talvez fosse o medo a acentuar os seus sentidos. A cabeça também continuou a girar devido aos gases que enchiam o espaço. Por aquela altura, já os seus olhos choravam, e o nariz ardia.

Tinha de trabalhar depressa.

Avançou até ao limite do cemitério e lançou para longe o seu fardo. As roupas da rapariga abriram-se, espalhando a palha que roubara do colchão dela e colocara no seu interior. Se as criaturas caçassem seguindo um odor ou usando a visão, queria dar o seu melhor para convencer os caçadores de que a rapariga estava com ele.

Ou talvez isso não importasse.

Talvez, como acontecera com Azar, a sua fuga bastasse para atrair as criaturas.

Os gatos caçam coisas que fogem deles.

E para o caso de não os conseguir atrair, deixara Cooper na casa de tijolos de lama com a rapariga e o professor. Era o melhor plano que conseguia conceber, em tão pouco tempo, para os manter em segurança com os parcos recursos de que dispunha.

Jordan soltou a lanterna da arma e atirou-a para o lado oposto da caverna. O feixe de luz girou e girou, um efeito estonteante para quem já tinha a cabeça a andar à roda. A luz parou perto do lado oposto da nascente subterrânea. Agachou-se, sacou da arma e esperou. Não demorou.

Sentiu o cheiro almiscarado dos leopardos antes de a primeira criatura enorme ter entrado na caverna. Era um monstro musculoso, com quase três metros de comprimento, de pelo cor de fogo e marcado por rosetas negras, um macho. Fluiu como a maré pelo espaço, silencioso, determinado, imparável. Uma segunda criatura seguia-o, mais pequena, uma fêmea.

Os seus olhos negros viram qualquer coisa enquanto percorriam o espaço. Arderam com um fogo interior, à semelhança dos olhos da rapariga antes dele.

Jordan susteve a respiração.

O mundo tornou-se aquoso, a sua cabeça mais entorpecida. O movimento parecia ocorrer em borrões desfocados.

O macho correu para as roupas descartadas, cheirando-as profundamente, determinado na sua concentração.

O segundo animal passou pelo companheiro, atraído pela luz, avançando agachada na sua direção.

Um ondular nas águas chamou-lhe a atenção para a piscina alimentada pela nascente. Observou o reflexo do felino a estremecer, a vacilar. Por um brevíssimo tremeluzir, pareceu-lhe ter visto uma outra imagem escondida para lá do pelo ardente, algo pálido e doentio, sem cabelo e encurvado. Jordan pestanejou, sentindo os olhos a arder, e a imagem desapareceu.

Abanou a cabeça e afastou o olhar. Não se atreveu a esperar mais.

Deslizou do seu esconderijo tão silenciosamente quanto possível e avançou para o túnel aberto, esgueirando-se pelo mesmo caminho por onde viera. Teve de se apoiar com uma mão na parede para se manter direito.

Um movimento súbito fê-lo estacar. O leopardo, ainda de costas voltadas para Jordan, ergueu a cabeça do monte de roupas descartadas e uivou a sua frustração para o teto, sabendo que tinha sido enganado.

Debaixo das suas patas, os ossos começaram a mexer-se.

Para os sentidos entorpecidos de Jordan, pareciam mexer-se sozinhos, raspando uns contra os outros, emitindo sons ocos. Arquejou, tentando convencer-se de que o movimento era apenas a criatura gigantesca a mudar de posição.

Não conseguiu.

Atordoado por um terror primitivo, cambaleou para trás na direção da boca do túnel. O tremer dos ossos agravou-se. Observou o corpo de um dos arqueólogos erguer-se, de barriga para cima, as costas partidas.

Queria afastar o olhar, mas o horror deixara-o hipnotizado.

Enquanto fitava, a carcaça ergueu-se sobre membros retorcidos de forma bizarra. Correu sobre o campo de ossos como um caranguejo. A cabeça pendia para o lado, a boca estava aberta. A partir da garganta jorravam sussurros impercetíveis. Palavras na mesma língua arcaica da gravação.

Um segundo cadáver agitou-se, faltava-lhe o maxilar inferior, a garganta estava aberta e exposta.

Juntou-se ao coro insano.

Não pode ser… estou a ver coisas.

Agarrando-se a essa leve esperança, virou-se e fugiu pelo túnel, chocando contra as paredes de tempos a tempos. O mundo continuava a girar à sua volta, trocando-lhe os passos. Esforçou-se por encontrar a lanterna tipo caneta que levava no bolso.

Encontrou-a, acendeu-a e perdeu-a quando lhe escapou dos dedos.

Saltitou para longe atrás dele.

Ainda assim, o brilho projetava luz suficiente desde detrás dele para ajudar a iluminar o caminho em direção ao exterior.

Jordan correu, enquanto um uivo se erguia atrás dele.

Quando o seu eco se desvaneceu, ouviu um ténue sussurro no seu ouvido.

— … depressa. Estou despachado…

McKay.

Jordan obrigou-se a avançar: impelido por aquele vento nauseabundo, perseguido pelos uivos, caçado por coisas que arranhavam as rochas com unhas e ossos podres.

As sombras lançadas de baixo dançavam nas paredes à sua volta, à sua frente, cambaleando a partir dos fogos do Inferno.

Passos pesados corriam pelo túnel atrás dele. Os uivos tinham terminado.

Restava apenas a caçada silenciosa.

Jordan deslizou as palmas das mãos pela parede para se manter equilibrado. Arranhou a pele na pedra áspera, mas não quis saber. A dor significava que tinha abandonado as paredes lisas da gruta natural e subira para os afiados ângulos escavados pelo homem.

Atrás dele, ecoava um rouco arfar. O brilho da lanterna desapareceu.

A escuridão desceu sobre ele, enquanto as criaturas se aproximavam.

Correu mais depressa, os pulmões a arder.

Conseguia sentir o cheiro das criaturas, o fedor projetado até ele pela respiração nauseabunda da gruta: tresandava a carne, sangue e horror.

Depois viu luz à sua frente. A saída.

Voou na sua direção, mergulhando para ela a quase um metro de distância, ansiando pela liberdade, aterrando com força, quase se esquecendo de dar aquele último salto que lhe salvaria a vida.

McKay apanhou-o nos braços e rolou com ele para o lado.

Um uivo jorrou pelo túnel, carregado com a frustração e a promessa de uma vingança sangrenta.

Enquanto Jordan rebolava para longe, viu o leopardo a alcançar a boca do túnel… então, o mundo explodiu.

Fogo. Fumo.

Saraivada de pedras e o picar da areia.

Jordan libertou-se dos braços de McKay, mas deixou-se ficar de joelhos.

Inspirou grandes golfadas de ar fresco, tentando desanuviar a cabeça.

Procurou um qualquer sinal dos leopardos através do fumo, mas o túnel colapsara por completo. Enquanto o fitava, uma avalancha de pedras continuou a cair das alturas, selando ainda mais a passagem, voltando a enterrar aqueles ossos, juntamente com os dois leopardos, no interior.

— Quantas minas é que usaste? — arquejou Jordan, os ouvidos ainda a zumbir devido à explosão.

— Só uma. Não tive tempo para desenterrar mais do que isso. De qualquer maneira, foi suficiente.

À sua frente, a massa de Shahr-e-Gholghola fumegava e estremecia. Jordan imaginou a caverna subterrânea a colapsar numa pilha de pedras. Mais explosões atravessaram as ruínas, projetando fumo e rocha.

— Os abalos estão a provocar a explosão das outras minas — disse McKay. — É melhor pormo-nos a andar daqui.

Jordan não discordou, mas foi lançando um olhar desconfiado às ruínas.

Retiraram para a casa de telhado de colmo. Cooper surgiu cambaleante, saindo ao seu encontro. O sangue corria-lhe pelo rosto.

— O que aconteceu? — perguntou Jordan.

Mas antes que Cooper conseguisse responder, Jordan correu para lá do colega de equipa, descobrindo a casa vazia.

Mas que raio…

A preocupação pela rapariga crescia dentro dele.

Cooper explicou.

— Mal entraram na gruta, a rapariga mergulhou através da janela. Tentei ir atrás dela, mas aquele maldito professor deu-me uma paulada, enquanto gritava «Deixa-a ir! Deixa que os demónios a levem». Aquele tipo desde o início que se revelou um doido varrido.

— Onde estão agora?

— Não sei. Acabo de despertar.

Jordan saiu a correr da casa. A neve que continuava a cair ia preenchendo os rastos, mas conseguiu ver que os pequenos pés da rapariga apontavam para oeste, os do professor para leste. Tinham seguido em direções opostas.

McKay alcançou-o.

Um tump-tump fazia-se ouvir ao longe.

Um helicóptero, todo iluminado, avançou na direção deles, vindo de Bamiyan, atraído como as traças por uma chama. Os Rangers tinham ouvido as explosões.

— Excelente — disse McKay. — Agora é que vem a cavalaria.

— O que se segue, sargento? — perguntou Cooper.

— Deixamos que outra pessoa vá buscar o professor — disse Jordan, redescobrindo o sentimento de ultraje. Este fluía através dele, aquecendo-o, dizendo-lhe o que tinha de fazer, levando-o a concentrar-se de novo. — Temos de ir atrás da miúda.

Três dias depois, estou sentado no meu quente gabinete da Academia de Técnicas Criminais afegã. Toda a papelada foi preenchida; o caso está fechado.

A culpa pelos eventos dessa noite foi atribuída a uma descoberta inusitada nas ruínas de Shahr-e-Gholghola: um gás que emanava das profundezas do subsolo. O gás era um composto de hidrocarbonetos chamado etileno, conhecido por provocar alucinações e estados semelhantes a um transe.

Lembro-me da minha própria confusão, das coisas que pensava ter visto, as coisas que desejava nunca ter visto. Mas não eram reais. Não podiam ser. Foi o gás.

A explicação científica serve-me. Ou, pelo menos, quero que sirva.

Os relatórios também atribuem a raiva e o comportamento agressivo dos leopardos à mesma intoxicação por hidrocarbonetos.

Outras pontas soltas vão-se também resolvendo.

O professor Atherton foi encontrado a um quilómetro e meio das ruínas de Shahr-e-Gholghola, descalço, delirante e com hipotermia. Acabou por perder quase todos os dedos dos pés.

McKay, Cooper e eu procurámos a rapariga a noite toda e acabámos por descobri-la, aninhada numa pequena gruta, incólume e quente como uma torrada debaixo do meu casaco. Senti-me grato por a ter encontrado, aliviado por me ter preocupado o suficiente para continuar a procurar. Talvez, um dia, afinal, consiga encontrar o caminho de volta àqueles inocentes milheirais do Iowa.

A rapariga não se lembrava dos eventos decorridos nas ruínas, o que provavelmente é uma bênção. Pedi que a enviassem a um médico, entregando-a depois aos familiares em Bamiyan, pensando que seria o fim da história.

Mas a gruta onde a encontrei, não muito distante das ruínas, revelou ser a entrada para uma pequena cripta. No interior repousavam os restos de um jovem, enterrado com as armas e as roupagens de um nobre mongol. Estão em curso estudos genéticos para determinar se o corpo não será o do neto de Gengis Khan, o emissário que o rei de Shahr-e-Gholghola matou há tantos séculos e que pôs em movimento os eventos que conduziriam à destruição da cidadela.

Mas foi a maneira como o jovem morreu que me manteve sentado à secretária nesta manhã de inverno, a olhar para o relatório cuidadoso e a pensar.

De acordo com as histórias de Atherton, o rei Shansabani tinha matado o pretendente da filha, decapitando-o, depois de ter descoberto a fuga que haviam planeado. E o corpo mongol no túmulo não tinha cabeça.

Poderiam, emissário e amante, ser o mesmo homem? Teria a filha do rei caído de amores pelo neto de Khan? Teria esse amor trágico desencadeado o massacre que se seguiu? Todos dizem que o amor conduz sempre a coisas boas, mas não é assim. Dou por mim, de novo, a brincar com a aliança, e obrigo-me a parar.

Não sei, mas enquanto aqui estou sentado, a enfiar os relatórios numa pasta, lembro-me de mais pormenores. De Azar ter dito que os leopardos eram os símbolos dos reis Shansabani. De Farshad ter gritado que a rapariga tinha sido possuída por um djinn e era perseguida por fantasmas.

Estaria ele certo, afinal?

Com a abertura dos túmulos, teria escapado alguma coisa?

Teria o espírito da princesa há muito falecida entrado na rapariga, procurando alguém que a pudesse levar até ao seu amor perdido?

Teria o pai, ainda carregado de raiva e vingança, possuído aqueles dois leopardos, os símbolos reais da família, e tentado levá-la de volta para os horrores escondidos sob Shahr-e-Gholghola?

E, no final, as explosões que voltaram a selar aquele túmulo teriam fechado a sua campa juntamente com os ossos dos leopardos, pondo um fim a demanda fantasmagórica do rei pela sua filha?

Ou eram os dois caçadores meros leopardos, não tendo sido possuídos por nada mais do que a fome, a sua agressividade alimentada pelo gás tóxico do seu novo covil?

E aquelas vozes. Teriam sido apenas os felinos? Não fui capaz de localizar qualquer outro académico que conheça bactriano, pelo que não tive mais ninguém, além do professor, a traduzir aqueles sons fantasmagóricos em palavras. Talvez ele tivesse ficado desequilibrado pela notícia das mortes dos colegas ou já tivesse sido afetado pelo gás durante o trabalho que realizara anteriormente no local da escavação.

Abano a cabeça, tentando decidir entre a explicação lógica e a sobrenatural. Por norma, sou um tipo lógico.

Estes pensamentos loucos devem ser os efeitos secundários de todo aquele gás que respirei na gruta. Mas quando recordo as palavras do professor, não consigo ter a certeza: acontecem coisas nas montanhas que são inacreditáveis para quem vive na segurança da cidade.

Uma pancada na porta interrompe a minha cadeia de pensamento e sinto-me grato por isso.

McKay entra e aproxima-se da secretária. Traz na mão um papel.

— Novas ordens, sargento. Parece que nos vamos pôr a andar.

— Para onde?

— Masada, Israel. Parece que foram reportadas algumas mortes estranhas na sequência de um terramoto.

Estendo o braço para a pasta sobre a mesa e fecho-a, pondo um ponto final no assunto.

— Aposto que esta missão vai ser mais fácil do que a última.

McKay franze o sobrolho.

— Que piada é que isso tinha?