O FOSSO
JAMES ROLLINS
O cão grande estava pendurado na parte de baixo do baloiço de pneu pelos dentes. As patas de trás agitavam-se a uns noventa centímetros do chão. Por cima da cabeça dele, o sol permanecia uma bolha vermelha num céu dolorosamente azul. Depois de muito tempo, os músculos do maxilar do cão sofriam de cãibras e tinham dado um nó tenso. A língua transformara-se num pedaço de couro seco pelo sal, pendendo de um dos lados. Ainda assim, no fundo da garganta sentia o sabor do petróleo e do sangue.
Mas não largava.
Tinha aprendido a lição.
Duas vozes falavam atrás dele. O cão reconheceu a rouquidão do treinador. Mas a segunda era de alguém diferente, guinchada e dada a fungadelas entre palavras.
— Há quanto tempo está ali pendurado? — perguntou o estranho.
— Quarenta e dois minutos.
— Não posso! Isto é que é um filho da puta duro. Mas não é pit puro, pois não?
— Pit e boxer.
— A sério? Sabes, tenho uma cadela Staffordshire pronta para ele para o mês que vem. E deixa-me que te diga, a cadela é do demo. Dou-te parte do que fizer com os cachorros.
— Para ele a cobrir são mil.
— Dólares? ‘Tás drogado ou quê?
— Vai-te foder. No último combate ganhou doze milhas.
— Doze? ‘Tás a gozar comigo. Num combate de cães?
O treinador fungou.
— E isso depois de pagar à casa. Derrotou o campeão da Central. Devias ter visto aquele monstro do Crip. Todo ele músculo e cicatrizes. Tinha mais dez quilos do que o Brutus. O árbitro quase não autorizava o combate por causa da pesagem. Chamou ao meu cão isco de ringue! Mas o sacana mostrou-lhes. E com tais odds o retorno foi dos diabos.
Riso. Cru. Sem qualquer calor por trás.
O cão observava pelo canto do olho. O treinador erguia-se do lado esquerdo, envergando umas calças largas e uma t-shirt branca, mostrando braços decorados com tatuagens, a cabeça rapada até ao couro cabeludo. O recém-chegado usava cabedal e transportava um capacete debaixo do outro braço. Os olhos saltavam de um lado para o outro.
— Vamos sair da merda do sol — disse por fim o estranho. — Falar de números. Tenho um quilo a chegar no final da semana.
Enquanto se afastavam, algo bateu no flanco do cão. Com força. Mas ele não largou. Ainda não.
— Larga!
Com aquela ordem, o cão abriu por fim os maxilares e deixou-se cair no chão do pátio de treino. Tinha as patas traseiras dormentes, pesadas de sangue. Mas virou-se para enfrentar os dois homens. De ombros erguidos, semicerrou os olhos contra o sol. O treinador erguia-se com o taco de madeira. O recém-chegado tinha as mãos enfiadas nos bolsos do casaco e deu um passo atrás. O cão sentiu o cheiro do medo do estranho, uma humidade ácida, como ervas ensopadas em urina velha.
O treinador não mostrava igual receio. Segurava o taco com uma mão e franzia o sobrolho de insatisfação. Baixou-se e soltou a placa de ferro pendurada na coleira do cão. A placa caiu na terra compactada do pátio.
— Um peso de nove quilos — disse o treinador ao estranho. — Antes da próxima semana há de subir aos catorze. Ajuda a engrossar o pescoço.
— Se ficar mais grosso, não será capaz de virar a cabeça.
— Não quero que ele vire a cabeça. Isso pode fazer-me perder umas massas no ringue.
O taco apontou para a linha de jaulas. Uma bota pontapeou o flanco do cão.
— Põe esse cu a andar para o canil, Brutus.
O cão revirou o lábio, mas afastou-se, sequioso e exausto. O fundo do pátio está repleto de canis vedados. O piso é de betão sujo. Nas jaulas vizinhas, erguem-se cabeças enquanto ele se aproxima, depois baixam-se sombriamente. À entrada, ele levanta a pata e marca o seu canto. Esforça-se para não tremer na pata traseira dormente. Não pode mostrar fraqueza.
Foi algo que aprendeu logo no primeiro dia.
— Põe-te a andar lá para dentro!
Levou um pontapé por trás ao entrar na jaula. A única sombra é oferecida por um pedaço de estanho pregado ao fundo dos canis. A porta de arame fecha-se atrás dele.
Avança pelo espaço imundo até ao bebedouro, baixa a cabeça e bebe.
As vozes afastam-se enquanto os dois homens se dirigem a casa. Uma pergunta paira no ar.
— Quem é que deu o nome Brutus àquele monstro?
O cão ignorou-os. Essa memória era como um pedaço de osso amarelado profundamente enterrado dentro de si. Durante os dois últimos invernos tentou afastá-lo. Mas permaneceu alojado, uma verdade que jamais poderá ser esquecida.
Ele nem sempre se chamou Brutus.
— Anda cá, Benny! Lindo menino!
Era um daqueles dias que fluíam como leite quente, tão doces, tão reconfortantes, enchendo de alegria todos os espaços vazios. O cachorrinho preto saltava pelo relvado verde e infindável. Mesmo do outro lado do pátio, sentiu o cheiro do cachorro-quente na mão escondida atrás das costas do rapaz. Atrás dele, uma casa de tijolos sóbria erguia-se sobre um alpendre envolto em videiras e flores roxas. As abelhas zumbiam e os sapos coaxavam em coro com o aproximar do lusco-fusco.
— Senta! Benny, senta!
O cachorro deslizou até parar na relva húmida e deixou-se cair sobre as patas traseiras. Todo ele estremecia. Queria o cachorro-quente. Queria lamber o sal dos dedos do rapaz. Queria que o coçassem atrás da orelha. Queria que aquele dia nunca chegasse ao fim.
— Lindo menino.
A mão saiu de trás das costas e os dedos abriram-se. O cachorro enfiou o nariz frio na palma da mão do rapaz, agarrou no pedaço de carne, depois aproximou-se mais. Abanou a cauda e os quartos traseiros e encostou-se ainda mais ao rapaz.
De membros emaranhados, caíram os dois na relva.
O riso era como o brilho do sol.
— Cuidado! Aí vai a Junebug! — gritou a mãe do rapaz a partir do alpendre. Balançava num baloiço enquanto via o rapaz e o cão a rebolar. A voz era gentil, o toque suave, os modos calmos.
Tal como a mãe do cachorrinho.
Benny lembrava-se de como a mãe costumava lavar-lhe a testa, cheirar-lhe os ouvidos, como os mantinha em segurança, aos dez, emaranhados num monte de patas, caudas e queixumes choramingados. Embora essa memória também estivesse a desaparecer. Já quase não se lembrava do seu rosto, apenas do calor dos seus olhos castanhos que os fitavam enquanto se alimentavam, lutando por uma teta. E ele tivera de lutar pois era o mais pequeno dos seus irmãos e irmãs. Mas nunca tivera de lutar sozinho.
— Juneeeee! — guinchou o rapaz.
Um novo peso saltou sobre a refrega no relvado. Era a irmã de Benny, Junebug. Ela latia e ladrava e puxava tudo o que estivesse solto: mangas de camisa, pernas de calças, caudas a abanar. A última era a sua especialidade. Tinha puxado muitos dos seus irmãos e irmãs das tetas da mãe, pela cauda, para que Benny pudesse ter a sua vez.
Agora, aqueles mesmos dentes afiados apertavam a ponta da cauda de Benny e puxavam com força. Ele guinchou e saltou, não tanto de dor, quanto de vontade de brincar. Os três rebolaram sem parar no jardim, até o rapaz se ter deixado cair de costas, rendendo-se, permitindo que irmão e irmã lhe lambessem o rosto, um de cada lado.
— Já chega, Jason! — chamou a mãe desde o alpendre.
— Oh, mãe… — O rapaz ergueu-se sobre um cotovelo, flanqueado pelos dois cachorros.
O par fitava o peito do rapaz, de caudas a abanar, línguas penduradas, a arfar. Os olhos da irmã brilhavam sobre ele, naquele momento parado no tempo, repletos de riso, matreirice e encanto. Era como olhar para si mesmo.
Daí terem sido escolhidos juntos.
«São inseparáveis, esses dois», disse o velhote quando se ajoelhou junto à ninhada e ergueu o irmão e a irmã perante os visitantes. «A orelha direita do rapaz tem uma mancha branca. A orelha esquerda da rapariga é igual. Como num reflexo. São um par e tanto, não vos parece? Odiava separá-los.»
E, no final, não tivera de o fazer. Irmão e irmã foram levados juntos para a sua nova casa.
— Não posso brincar mais um bocado? — gritou o rapaz para o alpendre.
— Não quero discussões, meu jovem. O teu pai deve estar a chegar a casa. Por isso, vai-te lavar para o jantar.
O rapaz levantou-se. Benny leu o entusiasmo nos olhos da irmã. Era igual ao seu. Não tinham compreendido nada, a não ser a última palavra da mãe.
Jantar.
Saltando do lado do rapaz, os dois cachorros correram para o alpendre. Embora fosse mais pequeno, Benny compensava o seu tamanho com uma enorme velocidade. Correu pelo relvado em direção à promessa de uma tigela cheia para o jantar e talvez de um biscoito para roer depois. Oh, se ao menos…
… depois o familiar puxão na cauda. O ataque de surpresa vindo de trás fê-lo tropeçar. Caiu de focinho na relva e deslizou de membros abertos.
A irmã passou por ele e subiu os degraus.
Benny puxou as patas para debaixo de si e seguiu-a. Embora a irmã maior lhe tivesse passado a perna, como era habitual, não se importou. A sua cauda abanava e abanava.
Esperava que aqueles dias nunca terminassem.
— Não devias tirá-lo daí?
— Ainda não!
Brutus agitava as patas no meio da piscina. As patas traseiras agitavam a água, os dedos abertos. As patas da frente lutavam por manter o focinho à tona da água. A coleira, uma pesada corrente de aço, procurava arrastá-lo para o fundo de betão. Cordas entrançadas prendiam-no no meio da piscina de cimento. O coração martelava-lhe na garganta. Cada inspiração carregada de desesperados jorros de água.
— Então, meu! Vais afogá-lo!
— Um bocadinho de água não o vai matar. Tem um combate dentro de dois dias. Um espetáculo dos diabos. Tenho muito em jogo.
Movendo as patas da frente e de trás, a água a ardia-lhe nos olhos. A visão começou a escurecer nos limites. Ainda assim, via o treinador de um dos lados, de calções, sem camisa. No peito nu estavam tatuados dois cães a rosnar um para o outro. Dois outros homens seguravam as correntes, impedindo-o de alcançar o limite da piscina.
Completamente exausto e gelado, o traseiro começou a deslizar para dentro de água. Lutou, mas a cabeça também desceu. Inspirou uma golfada de água para os pulmões. Engasgando-se, deu às patas e conseguiu trazer de novo o focinho para fora de água. Tossiu para limpar os pulmões. Seguiu-se um pouco de bílis, turvando a água à volta dos seus lábios. Espuma saía-lhe pelas narinas.
— Ele está acabado, meu. Tira-o.
— Vamos ver de que é feito — disse o treinador. — O cão está aí há mais tempo do que alguma vez esteve.
Durante mais uma extensão de eternidade dolorosa, Brutus lutou por suportar a corrente e o peso ensopado do seu próprio corpo. A cabeça ficava debaixo de água a cada quatro movimentos das patas. Inspirava tanta água ardente quanto ar. Ensurdecera a tudo com exceção do bater do seu coração. A visão diminuíra até não ser mais do que um ponto ofuscante. Depois, por fim, não conseguiu lutar mais por vir à superfície. A água inundou-lhe os pulmões. Ele afundou-se… para as profundezas e para a escuridão.
Mas não havia paz.
A escuridão ainda o aterrorizava.
A tempestade de verão agitava os estores e ribombava com grandes trovões que soavam como o fim de todas as coisas. Pingos de chuva batiam nas janelas e o brilho dos relâmpagos trespassava o céu noturno.
Benny escondeu-se debaixo da cama, com a irmã. Tremia contra o flanco dela. Ela estava agachada, de orelhas erguidas, focinho atento. Cada ribombar ecoava-lhe no peito, enquanto ela rosnava em resposta ao ruído aterrorizador. Benny deixou escapar parte do seu medo, ensopando o tapete por baixo dele. Não era tão corajoso quanto a irmã.
…bum, bum, BUM…
A luz invadiu o quarto, afugentando todas as sombras.
Benny gemeu e a irmã ladrou.
Um rosto surgiu sobre a cama e agachou-se para os fitar. O rapaz, de cabeça para baixo, levou um dedo aos lábios.
— Chiu, Junie, vais acordar o pai.
Mas a irmã dele não queria saber. Ladrava e ladrava, tentando assustar o que quer que pairasse na tempestade. O rapaz rolou da cama e deitou-se no chão. Esticando os braços, puxou-os aos dois na sua direção. Benny foi de bom grado.
— Blah… estás todo molhado.
Junie contorceu-se para se libertar, depois correu em redor do quarto, a ladrar, de cauda esticada, orelhas levantadas.
— Chiu — disse o rapaz, tentando apanhá-la sem largar Benny.
Uma porta abriu-se de rompante no corredor. Os passos ecoaram. A porta do quarto abriu-se. Pernas grandes e despidas, como troncos de árvore, entraram.
— Jason, filho, tenho de acordar cedo.
— Desculpa, pai. A tempestade está a assustá-los.
Seguiu-se um grande suspiro. O homem grande apanhou Junie e ergueu-a nos braços. Ela lambeu-lhe o rosto, a cauda a bater contra os braços dele. No entanto, continuava a rosnar enquanto o céu ribombava em resposta.
— Têm de se habituar a estas tempestades — disse o homem. — Estas trovoadas vão acompanhar-nos todo o verão.
— Vou levá-los lá para baixo. Podemos dormir no sofá do alpendre das traseiras. Se estiverem comigo… talvez isso os ajude a habituar-se.
Junie foi entregue ao rapaz.
— Está bem, filho. Mas leva um cobertor extra.
— Obrigado, pai.
Uma mão grande tocou no ombro do rapaz.
— Estás a cuidar bem deles. Estou orgulhoso de ti. Estão a ficar enormes.
O rapaz lutou com os dois cachorros que se contorciam e riu.
— Eu sei!
Alguns momentos depois, os três estavam enterrados num ninho de cobertores no sofá de cheiro almiscarado. Benny sentia o cheiro a caganitas de rato e de pássaro, realçadas pelo vento e pela humidade. Ainda assim, estando todos juntos, era a melhor cama em que alguma vez tinha dormido. Até a tempestade acalmara, embora a chuva pesada continuasse a cair dos céus escuros e sem lua. Batia contra o telhado de telha do alpendre.
No preciso instante em que Benny se acalmava o suficiente para deixar que as pálpebras se fechassem, a irmã levantou-se, rosnando mais uma vez, de pelos eriçados. Deslizou de debaixo dos cobertores, sem perturbar o rapaz. Benny não teve escolha senão segui-la.
O que é?
As orelhas de Benny estavam agora arrebitadas e iam girando. Do último degrau do alpendre, fitou o pátio fustigado pela tempestade. Os ramos das árvores agitavam-se. A chuva corria pelo relvado em lençóis ondulantes.
Depois Benny também o ouviu.
Um chocalhar no portão lateral. Alguns sussurros furtivos.
Estava ali alguém!
A irmã saiu disparada do alpendre. Sem pensar, Benny correu atrás dela. Aceleraram em direção ao portão.
Os sussurros transformaram-se em palavras.
— Calado, idiota. Deixa-me ver se os cães estão aqui atrás!
Benny viu o portão abrir. Duas formas mergulhadas nas sombras avançaram. Benny abrandou, depois sentiu o cheiro da carne, ensanguentada e crua.
— O que te disse eu?
Uma luz fraca surgiu na escuridão, revelando a irmã. Junie abrandou o suficiente para Benny a alcançar. Um dos estranhos apoiou um joelho no chão e estendeu a palma da mão aberta. O cheiro rico, a carne, intensificou-se.
— Querem, não querem? Venham cá, cãezinhos.
Junie aproximou-se mais, a barriga perto do chão, a cauda a abanar num cumprimento hesitante. Benny cheirou e cheirou, de focinho erguido. O cheiro tantalizante atraía-o atrás da irmã.
Uma vez perto do portão, as duas formas negras saltaram sobre eles. Algo pesado abateu-se sobre Benny e envolveu-o com força. Tentou gritar, mas os dedos apertavam-lhe o focinho e impediam que o grito crescesse para lá de um gemido abafado. Ouviu o mesmo vindo da irmã.
Foi içado e levado.
— Não há nada como uma noite de tempestade para apanhar isco. Nunca há quem desconfie. Culpam sempre a tempestade. Acham que assustou os merdinhas e os levou a fugir.
— Quanto é que vamos fazer?
— Cinquenta por cabeça, na boa.
— Fixe.
O trovão fez-se ouvir de novo, marcando o fim da velha vida de Benny.
Brutus entrou no ringue. O cão mantinha a cabeça baixa, os ombros altos, as orelhas encostadas ao crânio. Os seus pelos estavam já eriçados. Ainda lhe doía respirar profundamente, mas o cão escondeu a dor. Enterrado nos pulmões, um fogo fraco ardia devido à água da piscina, crescendo a cada inalação. Cautelosamente, atentou a todos os cheiros à sua volta.
A areia do ringue ainda estava a ser raspada para retirar o sangue do combate anterior. Ainda assim, o rasto fresco enchia o velho armazém, juntamente com o toque da gordura e do petróleo, a cal, o cimento, e o cheiro pungente da urina, do suor e das fezes, tanto dos cães como dos homens.
Os combates haviam começado com o pôr do sol e prolongar-se-iam noite fora.
Mas ninguém saía.
Não enquanto não assistissem àquele combate.
O cão tinha ouvido o seu nome gritado repetidamente:
— Brutus… meu, olha para os cajones daquele monstruo… é um sacaninha, mas já vi o Brutus a enfrentar um cão com o dobro do tamanho dele… arrancou-lhe o pescoço.
Enquanto Brutus esperava no seu redil, as pessoas tinham passado por ele, muitas arrastando crianças atrás de si, para o fitar. Apontavam dedos, tiravam fotografias, cegando-o com os flashes, arrancando-lhe pequenas rosnadelas. Por fim, o tratador correra com todos, ameaçando-os com um taco.
— Ponham-se andar! Isto não é nenhum espetáculo à borla. Se gostam assim tanto dele, vão fazer uma maldita aposta!
Agora, enquanto Brutus passava pelo portão da vedação de madeira de noventa centímetros de altura do ringue, os gritos e os assobios saudavam-no a partir das bancadas, juntamente com as gargalhadas ruidosas e as explosões furiosas. O ruído fez acelerar o coração de Brutus. Enterrou as garras na areia, os músculos tensos.
Foram os primeiros a entrar no ringue.
Para lá da multidão estendia-se um mar de jaulas e redis vedados. Grandes formas mergulhadas nas sombras agitavam-se e andavam para trás e para a frente.
Poucos ladravam.
Os cães sabiam que deviam poupar as forças para o ringue.
— É melhor que não percas — balbuciou o tratador e puxou pela corrente presa à coleira com tachas de Brutus. Luzes fortes brilhavam sobre o ringue. Refletia-se na cabeça rapada do tratador, revelando a tinta nos seus braços, preta e vermelha, como nódoas negras ensanguentadas.
O par continuou até ao limite do ringue e esperou. O treinador bateu no flanco do cão, depois limpou a mão às calças de ganga. O pelo de Brutus ainda estava húmido. Antes do combate cada cão fora lavado pelo tratador do adversário, para se assegurarem de que o pelo não tinha sido coberto por gordura escorregadia ou óleos venenosos que dessem uma vantagem ao animal.
Enquanto esperavam que o adversário entrasse no ringue, Brutus sentiu o cheiro da excitação no seu tratador. Um esgar permanecia fixo no rosto do homem, mostrando ligeiramente os dentes.
Para lá da vedação, um outro homem aproximou-se dos limites do ringue. Brutus reconheceu-o pela forma como fungava entre as palavras e o toque amargo do medo que sentia. Se o homem fosse um cão, teria a cauda enfiada entre as pernas, colada à barriga, e da sua garganta sairiam latidos.
— Apostei um monte de massa neste sacana — disse o homem quando se aproximou da vedação e fitou Brutus.
— E então…? — perguntou o tratador.
— Acabei de ver o cão do Gonzales. Credo, meu, ‘tás louco? Aquele monstro é meio bullmastiff.
O tratador encolheu os ombros.
— Sim, mas só tem um olho bom. O Brutus vai acabar com ele. Ou, pelo menos, é bom que o faça. — Mais uma vez a corrente chocalhou.
O homem moveu-se atrás da vedação e inclinou-se para a frente.
— Fizeram algum tipo de acordo?
— Vai-te foder. Não preciso disso.
— Mas eu ouvi dizer que o outro cão já foi teu. Aquele sacana de um só olho.
O tratador franziu o sobrolho.
— Pois foi. Vendi-o ao Gonzales há uns anos. Não pensei que o cão sobrevivesse. Depois de ter perdido a merda do olho e tudo. Ficou todo infetado. Vendi-o a esse latino de merda por duas garrafas de Special K. A venda mais estúpida que alguma vez fiz. E o cão vai e faz àquele mexicano uma batelada de dinheiro. Ainda não parou de o esfregar na minha cara. Mas hoje é dia de vingança.
A corrente foi puxada e ergueu Brutus na ponta dos dedos.
— É melhor que não percas. Ou somos capazes de fazer mais um barbecue quando voltarmos para casa.
O cão ouviu a ameaça por trás das palavras. Embora não o compreendesse plenamente, sentia o significado. Não percas. Durante os dois últimos invernos vira os cães derrotados levarem tiros na cabeça, serem estrangulados até à morte com as suas próprias correntes ou abandonados no ringue para serem estraçalhados. No verão passado, um bull terrier mordera a barriga da perna do tratador de Brutus. O cão estava baralhado pela perda de sangue, depois de ter perdido um combate, e ripostou. Mais tarde, de volta ao pátio, o bull terrier tentara suplicar perdão, mas o tratador ensopara o cão e pegara-lhe fogo. O terrier em chamas correra em círculos em redor do pátio, uivando, chocando cegamente contra os canis e as vedações. Os homens no pátio tinham rido e rido, deixando-se cair ao chão.
Os cães, nos seus canis, tinham assistido em silêncio.
Todos sabiam a verdade sobre as suas vidas.
Nunca perder.
Por fim, um homem alto e magro avançou para o centro do ringue. Ergueu um braço.
— Cães, aos vossos lugares!
O portão oposto do ringue abriu e uma forma gigantesca avançou, trazendo quase de arrasto o seu pequeno e entroncado tratador, que apresentava um grande sorriso e um chapéu de cowboy. Mas a atenção de Brutus estava fixa no cão. O mastiff era uma parede de músculo. As orelhas tinham sido cortadas rente. Não tinha cauda. As patas esmagavam a areia enquanto ele tentava chegar à linha que marcava a sua posição inicial.
O animal puxou, mantendo a cabeça inclinada para um lado, permitindo que o seu único olho analisasse o ringue. O outro olho era um nó cicatrizado.
O homem no centro do ringue apontou para as duas linhas marcadas na areia.
— Às vossas posições! Este é o último combate da noite, malta! Aquele por que todos esperaram! Dois campeões de novo unidos! Brutus e Caesar.
O riso e os vivas ergueram-se da multidão. Pés batiam nas tábuas de madeira das bancadas.
Mas tudo o que Brutus ouviu foi aquele nome.
Caesar.
Estremeceu de súbito. O choque agitou-o como se os seus ossos tivessem chocalhado. Lutou por se manter firme e olhou para o seu adversário do outro lado… lembrava-se.
— Caesar! Vá lá, sacana, tens fome ou não?
Sob o sol de meio da manhã, Benny pendia da mão de um estranho. Os dedos apertavam rudemente o pescoço do cachorro e deixavam-no pendurado no centro de um pátio estranho. Benny latia e deixou escapar um fio de urina para a terra sob ele. Viu outros cães atrás das vedações. Cheirou ainda outros, mais distantes. A irmã estava apertada nos braços de um dos homens que os roubara do seu jardim. A irmã ladrava ruidosamente.
— Cala essa cadela. Está a distraí-lo.
— Não quero ver isto — disse o homem, mas apertou o focinho da irmã dele.
— Oh, vê se tens tomates. Porque achas que te paguei cem dólares? O cão tem de comer, não é? — O homem enterrou os dedos ainda mais no cachaço de Benny e abanou-o com força. — E isco é isco.
Um outro homem chamou das sombras do outro lado do pátio.
— Ei, Juice! Quanto peso queres no trenó desta vez?
— Vamos aos quinze tijolos?
— Quinze?
— Preciso que o Caesar crie bom músculo até ao combate de sexta-feira.
Benny ouviu o bater e arrastar de algo pesado.
— Lá vem ele! — gritou o homem que se mantinha nas sombras. — Deve estar com fome!
Da escuridão emergiu um monstro. Benny nunca tinha visto um cão tão grande. O gigante arfava contra o arnês preso em redor do peito. Fios de baba escorriam-lhe pelos cantos dos lábios. As garras enterravam-se na terra escura, enquanto ele avançava. Atrás dele, preso ao arnês, estava um trenó com patins de aço. Encontrava-se carregado de blocos de cimento.
O homem que segurava Benny riu no fundo da garganta.
— Deve estar com uma fome dos diabos! Não lhe dou de comer há dois dias!
Benny deixou pingar um pouco mais do seu medo. O olhar do monstro estava fixo nele. Benny leu a fome vermelha e crua naqueles olhos. A baba fluía mais espessa.
— Despacha-te, Caesar! Se queres comer o teu pequeno-almoço!
O homem deu um passo atrás com Benny.
O animal de grandes dimensões puxou com mais força, pressionando o arnês, a língua comprida dependurada, coberta de espuma. Arquejava e rosnava. O trenó arrastava-se pela terra com o som rangente dos ossos roídos.
O coração de Benny martelava-lhe no peito pequeno. Contorceu-se, mas não conseguia escapar ao punho férreo do homem… ou ao olhar inabalável do monstro. Vinha atrás dele. Benny uivou e chorou.
O tempo estendeu-se numa longa linha de terror.
A passo constante, o animal foi-se aproximando.
Por fim, o homem explodiu com uma fungadela satisfeita.
— Está bom! Soltem-no!
Um outro homem saiu a correr das sombras e puxou por uma tira de cabedal. O arnês caiu dos ombros do monstro e o cão enorme saltou pelo pátio, lançando baba a cada passo.
O homem puxou o braço atrás, depois atirou Benny para a frente. O cachorro voou pelo ar, rodopiando. Estava demasiado aterrorizado para gritar. Enquanto girava, foi obtendo vislumbres do monstro que corria atrás dele, mas também viu a irmã. O homem que segurava Junie começara a virar-se, não querendo ver. Devia ter aligeirado o suficiente a força com que a segurava, pois Junie libertou o focinho. Mordeu-lhe com força o polegar.
Depois Benny caiu ao chão e rebolou pelo pátio. O impacto tirou-lhe o ar do peito. Jazia atordoado enquanto o cão maior corria para ele. Aterrorizado, Benny usou a única vantagem de que dispunha: a sua velocidade.
Rolou, levantando-se, e correu para a esquerda. O cão não conseguiu virar com rapidez suficiente e deslizou para lá do local onde Benny aterrara. Benny fugiu pelo pátio, puxando as patas de trás para o meio das da frente, no seu desespero por avançar mais depressa. Ouvia o arfar do monstro junto à sua cauda.
Se se conseguisse enfiar por baixo do trenó rasteiro, esconder-se lá…
Mas não conhecia o pátio. Uma das patas acertou num azulejo partido entre as ervas altas e perdeu o equilíbrio. Bateu com o ombro e rebolou. Acabou por parar deitado de lado, enquanto o cão enorme se lançava sobre ele.
Benny encolheu-se. Desesperado, expôs a barriga e fez xixi sobre si mesmo, mostrando submissão. Mas não importava. Lábios recuaram revelando dentes amarelos.
Depois o monstro estacou, subitamente, a meio de um movimento, acompanhado por um latido de surpresa. O brutamontes girou. Benny viu algo preso à cauda dele.
Era Junie. Largada pelo seu captor, lançara-se ao monstro com o seu ataque matreiro habitual. O monstro girou mais algumas vezes, enquanto Junie continuava presa à cauda dele. Não se tratava de uma dentadinha brincalhona. Teria enterrado profundamente os dentes. Enquanto tentava ver-se livre dela, o cão grande conseguira apenas arrancar mais pelo e pele da sua própria cauda ao mesmo tempo que Junie era lançada de um lado para o outro.
O sangue jorrava para a terra.
Mas por fim, nem mesmo Junie conseguira resistir à força bruta do monstro. Saiu a voar, o focinho ensanguentado. O monstro seguiu-a e aterrou sobre ela, violentamente. Bloqueado pelo seu corpo, Benny não conseguia ver… mas ouviu.
Um grito agudo de Junie, seguido pelo esmagar dos ossos.
Não!
Benny levantou-se de um salto e correu para o monstro. Não havia um plano — apenas uma raiva rubra, escura. Lançou-se ao monstro. Apanhou um vislumbre de uma pata rasgada, o osso visível. O monstro agarrou na sua irmã e sacudiu-a. Ela pendia, flácida. O vermelho jorrava, depois pingou-lhe dos lábios, misturado com baba.
Com aquela imagem, Benny mergulhou num lugar escuro, um fosso de onde sabia que jamais conseguiria escapar. Atirou-se ao monstro e aterrou sobre o rosto do bruto. Arranhou e mordeu e puxou, qualquer coisa para que ele largasse a sua irmã.
Mas era muito mais pequeno.
Um movimento da sua cabeça enorme, e Benny saiu a voar… para sempre perdido em sangue, raiva e desespero.
Enquanto Brutus fitava Caesar, recordou-se de tudo. O passado e o presente sobrepuseram-se e fundiram-se num borrão carmesim. Erguia-se na linha traçada no ringue, sem se lembrar de andar até ela. Não sabia dizer quem estava na linha.
Se Brutus ou Benny.
Depois da mutilação da irmã, Benny tinha sido poupado a uma morte brutal. O treinador ficara impressionado com a sua fogosidade. Um verdadeiro Brutus, este. A atacar o Caesar sozinho! E rápido também. Viram-no desviar-se e correr. Talvez seja demasiado bom para ser apenas isco.
Caesar não se saiu tão bem, depois do breve combate. Durante o ataque, uma unha de trás rasgara-lhe a pálpebra e lacerara-lhe o olho esquerdo, cegando-o desse lado. Até a ferida na cauda, da dentada de Junie, infetou. O treinador experimentara cortar-lhe a cauda com um machado e queimar o toco com um pau em chamas. Mas o olho e a cauda ficaram piores. Durante uma semana, o fedor do pus e da carne morta jorrava do seu canil. As moscas rodeavam-no em nuvens negras. Por fim, um estranho, com um chapéu de cowboy, apareceu com um carrinho de mão, apertou a mão ao tratador, e levou Caesar para longe, açaimado, febril e a gemer.
Todos pensaram que ele tinha morrido.
Estavam enganados.
Os dois cães raspavam a linha na areia. Caesar não reconheceu o seu adversário. Nenhum reconhecimento brilhava naquele olho, nada mais do que sede de sangue e fúria cega. O monstro puxou pela corrente, enterrando-se ainda mais na areia.
Brutus baixou as patas traseiras sob o corpo. A velha raiva ardia através do seu sangue. Um longo rosnado escapou pelo seu focinho, erguendo-se das profundezas dos seus ossos.
O homem alto e magro ergueu os dois braços.
— Cães, prontos! — Baixou os braços ao mesmo tempo que recuava. — Vão!
De repente, foram libertados das suas correntes. Os cães saltaram um sobre o outro. Os corpos chocaram por entre rosnadelas selvagens e saliva a voar.
Brutus avançou sobre o lado cego de Caesar. Mordeu-lhe o toco da orelha, tentando agarrá-lo. A cartilagem rasgou-se. O sangue correu-lhe pela língua. Era demasiado pequeno para que o conseguisse agarrar durante muito tempo.
Caesar, por sua vez, atacou com força, usando o seu corpo mais pesado para fazer rolar Brutus. Os caninos afundaram-se-lhe no ombro. Brutus largou-o e viu-se preso sob o peso dele. Caesar ergueu-lhe o corpo e lançou-o contra a areia.
Mas Brutus ainda era rápido. Estremeceu e contorceu-se até ficar barriga com barriga com o monstro. Usou as patas traseiras para o empurrar e obrigou Caesar a largar-lhe o ombro. Solto, Brutus atirou-se à garganta por cima dele. Mas Caesar tentou mordê-lo ao mesmo tempo. Acabaram focinho com focinho, mordendo-se um ao outro. Brutus por baixo. Caesar por cima.
O sangue jorrava e voava.
Voltou a espernear, arranhando com as unhas a barriga tenra do seu adversário, cortando-o profundamente — depois saltou e agarrou-se ao maxilar de Caesar. Usando aquele ponto de apoio, esperneou e deslizou, saindo de debaixo daquele corpo. Manteve-se à esquerda da besta, do seu lado cego.
Deixando momentaneamente de ver Brutus, Caesar virou-se na direção errada. Deixou o flanco exposto. Brutus atacou uma pata traseira. Mordeu a carne espessa na parte de trás da coxa e roeu os músculos com os maxilares. Puxou com força e abanou a cabeça.
Nesse momento de fúria crua, Brutus lembrou-se de uma pequena forma flácida, apertada nos maxilares ensanguentados, sacudida e despedaçada. A escuridão abateu-se sobre os seus olhos. Usou todo o seu corpo — músculo, osso e sangue — para arrancar e cortar. Os fortes ligamentos da parte de trás da pata soltaram-se do tornozelo.
Caesar rugiu, mas Brutus continuou a apertar e içou-se nas patas traseiras. Fez o outro cair de costas. Só então largou e se lançou sobre o adversário. Mergulhou na direção da garganta exposta e mordeu profundamente. Os caninos afundaram-se na carne tenra. Abanou e rasgou, rosnou e escavou.
Do outro lado da escuridão, ouviu-se um apito. Era o sinal para pararem e regressarem aos seus cantos. Os tratadores correram.
— Larga! — gritou o treinador e agarrou-lhe a parte de trás da coleira.
Brutus ouviu os gritos, reconheceu a ordem. Mas estava muito longe. Nas profundezas do fosso.
O sangue quente enchia-lhe a boca, fluía para os seus pulmões, ensopava a areia. Caesar contorcia-se debaixo dele. Uma rosnadela feroz transformada em lamento. Mas Brutus não o ouvia. O sangue corria para todos os lugares vazios dentro dele, tentando enchê-lo, mas não conseguindo.
Algo lhe bateu nos ombros. Uma e outra vez. O taco de madeira do tratador. Mas Brutus não largava a garganta do outro cão. Não podia, para sempre preso no fosso.
A madeira partiu-se nas suas costas.
Depois um novo som cortou o rugido nos seus ouvidos. Mais assobios, mais agudos e urgentes, acompanhados pelo som estridente das sirenes. Luzes tremeluzentes trespassavam a escuridão. Os gritos seguiram-se, juntamente com as ordens ampliadas numa urgência penetrante.
— POLÍCIA! TODOS DE JOELHOS! MÃOS EM CIMA DA CABEÇA!
Brutus ergueu por fim o focinho dilacerado da garganta do outro cão. Caesar jazia imóvel na areia, ensopado numa poça de sangue. Brutus ergueu os olhos para o caos à sua volta. As pessoas tentavam fugir das bancadas. Os cães ladravam e uivavam. Figuras escuras com capacetes e escudos transparentes fecharam um círculo em redor da área, formando um ringue maior em redor do fosso de areia. Através das portas abertas do armazém, os carros iluminavam a noite.
Cansado, Brutus erguia-se sobre o corpo do cão morto.
Não sentia qualquer alegria com a matança. Apenas um torpor morto.
O treinador estava a um passo de distância. Uma torrente de raiva jorrava dos lábios do homem. Lançou o taco partido para a areia. Um braço apontava para Brutus.
— Quando eu digo larga, tu largas, saco de merda burro!
Brutus fitou o braço apontado para ele, depois o rosto. Pela expressão do homem, Brutus soube o que o tratador via. Brilhava de todo o ser do cão. Brutus estava preso num fosso mais fundo do que qualquer coisa coberta de areia, um fosso de onde jamais poderia escapar, um lugar infernal de dor e sangue quente.
Os olhos do homem abriram-se e ele deu um passo atrás. O animal avançou atrás dele, já não era um cão, mas apenas uma criatura de raiva e fúria.
Sem aviso — sem rosnar ou abocanhar o ar — Brutus mergulhou na direção do treinador. Agarrou-se ao braço do homem. O mesmo braço que acenava com os cachorros que usava como isco, um braço agarrado ao verdadeiro monstro naquele ringue de areia, um homem que trazia horrores das sombras e pegava fogo a cães.
Os dentes envolveram o pulso pálido. Os maxilares esmagaram. Os ossos afundaram-se e estalaram sob a pressão.
O homem gritou.
Pelo canto do olho, Brutus viu uma figura de capacete correr para eles, um braço erguido, apontando uma pistola preta.
Viu um brilho na boca da arma.
Depois um crepitar de dor ofuscante.
E, por fim, de novo a escuridão.
Brutus estava deitado no frio chão de betão do canil. Descansava a cabeça sobre as patas e fitava o portão da vedação. Uma lâmpada de teto, envolta em arame, brilhava sobre as paredes de cimento caiado e as filas de canis. Escutou com um ouvido surdo os movimentos dos outros cães, o ladrar ou o uivar ocasionais.
Atrás dele, uma pequena porta dava acesso a um espaço exterior vedado. Brutus raramente lá ia. Preferia as sombras. O focinho rasgado fora tratado com agrafos, mas ainda lhe custava beber. Não comia. Já ali estava há cinco dias, apercebendo-se do nascer e pôr do sol através da porta.
As pessoas vinham fitá-lo de quando em vez. Escrevinhavam numa tábua de madeira pendurada na porta. Homens de casaco branco injetavam-no duas vezes por dia, usando um laço preso a uma vara de aço comprida para o manter preso contra a parede. Ele rosnava e tentava abocanhar. Mais por irritação do que verdadeira raiva. Só queria que o deixassem em paz.
Tinha acordado ali, depois daquela noite no fosso.
E uma parte de si ainda lá estava.
Por que razão ainda respiro?
Brutus sabia o que eram armas. Reconhecia as suas formas e tamanhos ameaçadores, o cheiro dos óleos, o fedor amargo do fumo que libertavam. Vira dezenas de cães serem abatidos, uns depressa, outros por diversão. Mas a pistola que sobre ele disparara no ringue atingira-o com um crepitar e retorcera-lhe os músculos e arqueara-lhe as costas.
Ele vivera.
Isso, mais do que qualquer outra coisa, mantinha-o enraivecido e doente de espírito.
Um arrastar de sapatos de borracha chamou-lhe a atenção. Não ergueu a cabeça, apenas moveu os olhos. Era demasiado cedo para a vara e as agulhas.
— Ele está aqui — disse uma voz. — O Controlo Animal recebeu a ordem do juiz para eutanasiar todos os cães esta manhã. Este também está na lista. Ouvi dizer que tiveram de usar um Taser para o arrancar de cima do treinador. Por isso não teria grande esperança.
Brutus observou as pessoas que avançavam para o canil. Uma delas usava um fato-macaco cinzento com um fecho-éclair à frente. Cheirava a desinfetante e tabaco.
— Aqui está ele. Foi uma sorte terem-lhe feito o scan e encontrado o antigo microchip. Conseguimos encontrar a vossa morada e o vosso telefone. Dizem que alguém o roubou do vosso quintal?
— Há dois anos — disse um homem mais alto, de sapatos pretos e fato.
Brutus moveu uma orelha. A voz era-lhe vagamente familiar.
— Levaram-no, a ele e à irmã de ninhada — continuou o homem. — Pensámos que tinham fugido durante uma tempestade.
Brutus ergueu a cabeça. Um rapaz abriu caminho entre os dois homens mais altos e avançou para o portão. Brutus cruzou o seu olhar com o dele. O rapaz estava mais velho, mais alto, mais magro, mas o seu cheiro era tão familiar quanto uma meia velha. Enquanto o rapaz fitava o canil escuro, o brilho de esperança que lhe iluminava inicialmente o rosto desvaneceu-se numa expressão de horror.
A voz do rapaz era um guincho chocado.
— Benny?
Chocado e incrédulo, Brutus baixou-se de novo sobre a barriga. Emitiu uma rosnadela de aviso enquanto se afastava. Não se queria lembrar… e não queria aquilo. Era demasiado cruel.
O rapaz olhou de relance por cima do ombro, para o homem mais alto.
— É o Benny, não é, pai?
— Acho que sim. — Um braço apontou. — Tem aquela mancha branca sobre o ouvido direito. — A voz ficou carregada de temor. — Mas o que foi que lhe fizeram?
O homem no fato-macaco abanou a cabeça.
— Brutalizaram-no. Transformaram-no num monstro.
— Há alguma esperança de reabilitação?
Ele abanou a cabeça e tocou no gráfico.
— Pedimos a um comportamentalista que examinasse todos os cães. Ela considerou que este não poderia ser salvo.
— Mas, pai, é o Benny…
Brutus enroscou-se no fundo do canil, tão profundamente mergulhado nas sombras quanto lhe era possível. O nome era como uma chicotada.
O homem tirou uma caneta do bolso do fato-macaco.
— Dado que legalmente são os proprietários e não tinham qualquer relação com o ringue de lutas de cães, não o podemos abater sem a vossa autorização.
— Pai…
— Jason, tivemos o Benny durante dois meses. Eles tiveram-no durante dois anos.
— Mas ainda é o Benny. Eu sei. Não podemos tentar?
O homem de fato-macaco cruzou os braços e baixou a voz num aviso.
— Ele é imprevisível e muitíssimo forte. Uma má combinação. Até atacou o treinador. Tiveram de lhe amputar a mão.
— Jason…
— Eu sei. Terei cuidado, pai. Prometo. Mas ele merece uma oportunidade, não merece?
O pai suspirou.
— Não sei.
O rapaz ajoelhou-se e fitou os olhos de Brutus. O cão quis fugir, mas não podia. Olhou para o rapaz e deslizou para um passado que pensava ter enterrado há muito, dedos que seguravam cachorros-quentes, corridas por relvados verdes e infindáveis dias de sol. Afastou tudo aquilo. Era demasiado doloroso, provocava-lhe demasiada culpa. Não merecia sequer essa recordação. Não tinha lugar no fosso.
Um roncar baixo abanou-lhe o peito.
Ainda assim o rapaz agarrou a vedação e fitou o monstro no interior. Falava com a autoridade natural da inocência e da juventude.
— Ainda é o Benny. Algures lá dentro.
Brutus virou as costas e fechou os olhos, com uma convicção igualmente firme.
O rapaz estava errado.
Brutus dormia no alpendre das traseiras. Tinham passado três meses e as suturas e agrafos tinham saído. Os medicamentos na sua comida desapareceram. Com o passar dos meses, ele e a família alcançaram uma trégua inquieta, um empate frio.
Todas as noites tentavam chamá-lo para dentro de casa, em especial quando as folhas começaram a ficar castanhas e a acumular-se em pilhas sob a estrutura de madeira e o relvado gelava ao início da manhã. Mas Brutus continuava no seu alpendre, evitando até o velho sofá coberto com um edredão espesso e coçado. Mantinha a distância de todas as coisas. Ainda estremecia quando lhe tocavam e rosnava enquanto comia, incapaz de o impedir.
Mas já não o mantinham açaimado.
Talvez tivessem sentido a derrota que transformara em pedra o seu coração. Daí passar os dias a olhar para o jardim, só se movendo ocasionalmente, agitando uma orelha se um esquilo se atrevesse a correr ao longo da vedação, a cauda felpuda e sem medo.
A porta de trás abriu-se e o rapaz saiu para o alpendre. Brutus levantou-se e recuou.
— Benny, tens a certeza de que não queres entrar? Fiz uma cama para ti na cozinha. — Apontou para a porta aberta. — É quente. E, olha, tenho uma coisa boa para ti.
O rapaz estendeu a mão, mas Brutus já sentira o cheiro do bacon, que ainda fumegava com a gordura queimada e estaladiça. Virou as costas. Nos seus dias no pátio de treino, os outros também tinham tentado usar isco com ele. Mas depois da irmã, Brutus recusara-se sempre, por muita fome que tivesse.
O cão dirigiu-se ao último degrau do alpendre e deitou-se.
O rapaz foi sentar-se com ele, mantendo a distância.
Brutus permitiu.
Ficaram sentados durante muito tempo. O bacon ainda nos seus dedos. O rapaz acabou por comê-lo.
— Está bem, Benny, tenho trabalhos de casa.
O rapaz começou a levantar-se, parou, depois estendeu cuidadosamente a mão até tocar na cabeça dele. Brutus não rosnou, mas eriçou o pelo. Apercebendo-se do aviso, o rapaz esmoreceu, afastou a mão e levantou-se.
— Muito bem. Vemo-nos de manhã, Benny.
Ele não viu o rapaz afastar-se, mas ouviu a porta fechar-se. Satisfeito por ficar sozinho, repousou a cabeça nas patas. Fitou o jardim.
A lua já se erguera, cheia e brilhante. As luzes tremeluziram. Ao longe, ouviu a casa a aquietar-se para passar a noite. Uma televisão sussurrava na sala. Ouviu o rapaz falar do primeiro andar. A mãe respondeu.
Depois, de repente, Brutus estava de pé, rígido, sem saber ao certo o que o fizera levantar-se. Manteve-se absolutamente imóvel. Só as orelhas se moviam.
Bateram à porta da frente.
De noite.
— Eu vou lá — disse a mãe.
Brutus virou-se. Saltou para o sofá no alpendre e pousou nele as patas da frente, o suficiente para olhar pela janela. A sua posição permitia-lhe ver através do corredor central, escuro, até à sala de estar iluminada.
Brutus viu a mulher avançar até à porta e abri-la. Antes que conseguisse sequer entreabri-la, a porta abriu-se de rompante. Bateu-lhe e fê-la cair. Dois homens entraram, envergando roupa escura e máscaras puxadas sobre as cabeças. Um outro manteve-se de vigia junto à porta aberta. O primeiro homem recuou para o corredor e apontou uma grande pistola à mulher no chão. O outro intruso esgueirou-se para a esquerda e apontou a arma a alguém na sala de estar.
— NÃO SE MEXAM! — gritou o segundo homem armado.
Brutus ficou tenso. Conhecia aquela voz, rouca e implacável. Num instante o coração bateu-lhe no peito e o pelo ergueu-se-lhe pelo corpo, tremendo de fúria.
— Mãe? Pai? — chamou o rapaz do cimo das escadas.
— Jason — griou o pai da sala de estar. — Fica onde estás!
O líder avançou para o pai, na sala. Sacou da arma, segurando-a de lado.
— Senta-te, velho!
— O que querem?
A arma agitava-se de novo.
— Yo! Onde está o meu cão?
— O seu cão? — perguntou a mãe, caída no chão, a voz trémula de medo.
— Brutus! — uivou o homem. Ergueu o outro braço e exibiu o pulso sem mão. — Devo àquele sacana a minha vingança… e isso inclui todos os que queiram cuidar dele! Na verdade, acho que vamos fazer um barbecue à antiga. — Virou-se para o homem à porta. — De que estás à espera? Vai buscar a gasolina!
O homem desapareceu na noite.
Brutus desceu para o alpendre e recuou. Baixou-se nas patas traseiras.
— Yo! Onde têm o meu maldito cão? Eu sei que o têm!
Brutus saltou em frente, impulsionado por toda a força do seu corpo. Chegou junto do sofá e voou sobre o mesmo. O vidro estilhaçou-se, quando chocou contra a janela com o topo do crânio. Voou diretamente para a sala e aterrou na cozinha. As patas da frente já tinham tocado no chão antes do primeiro pedaço de vidro. Saltou para longe, enquanto os estilhaços caíam, e deslizou pelo linóleo axadrezado.
Ao fundo do corredor, o primeiro atirador começou a virar-se atraído pelo barulho. Mas era demasiado tarde, Brutus voou ao longo do corredor e mergulhou. Agarrou o homem pelo tornozelo e rasgou-lhe o tendão, fazendo o homem cair enquanto passava por baixo dele. A cabeça do homem bateu na mesa alta de nogueira e tombou com estrondo.
Brutus viu um homem no alpendre da frente, parado a meio do passo, segurando dois grandes bidões. O homem viu Brutus a correr para ele. Os olhos enormes. Largou os bidões, virou-se e fugiu.
Uma pistola disparou, ensurdecedora no espaço fechado. Brutus sentiu algo na pata da frente. Esta estilhaçou-se debaixo dele, mas já ia a meio do salto na direção do atirador de uma só mão, o velho treinador e tratador. Brutus caiu sobre ele como uma saca de cimento. Bateu-lhe com a cabeça no peito. O peso e o impulso fizeram o homem cair para trás. Caíram juntos.
A pistola disparou pela segunda vez.
Algo ardeu junto à orelha de Brutus e caiu estuque do teto.
Depois ambos tombaram com força no chão. O homem aterrou de costas, Brutus por cima dele. A arma voou-lhe dos dedos e deslizou para baixo da mesa da sala de estar.
O treinador tentou afastar Brutus com um pontapé, mas tinha ensinado o cão demasiado bem. Brutus desviou-se do joelho. Rosnando, lançou-se à garganta do homem. O homem agarrou-lhe a orelha, mas Brutus tinha perdido parte dela num antigo combate. A orelha deslizou das mãos do homem e Brutus lançou-se ao pescoço tenro. Os caninos mergulharam para matar.
Depois um grito fez-se ouvir atrás dele.
— Benny! Não!
Pelo canto do olho, viu o pai agachar-se junto à mesa da sala. Tinha recuperado a pistola e apontava-a a Brutus.
— Benny! Para! Larga-o!
A partir da escuridão do fosso, Brutus rosnou ao pai. O sangue fluiu, enquanto Brutus apertava a presa com mais força. Recusava-se a largar. Debaixo dele, o treinador gritava e gorgolejava. Um punho esmurrava cegamente, mas Brutus apertou com mais força. O sangue fluía com intensidade.
— Benny, larga-o, já!
Uma outra voz guinchou de medo. Vinha das escadas.
— Não, pai!
— Jason, não o posso deixar matar alguém.
— Benny! — gritou o rapaz. — Por favor, Benny!
Brutus ignorou-o. Ele não era Benny. Sabia que pertencia verdadeiramente ao fosso, era onde sempre acabaria. A sua visão estreitou-se e a escuridão abateu-se sobre ele, deixou-se cair ainda mais para aquele fosso escuro e sem fundo, arrastando o homem consigo. Brutus sabia que não conseguia escapar; nem o iria largar.
Era tempo de pôr um fim a tudo aquilo.
Mas enquanto Brutus se afundava no fosso, deslizando para a escuridão, algo o deteve, o impediu de continuar. Não fazia sentido. Embora não estivesse ninguém atrás dele, sentiu que o puxavam. Pela cauda. O agarravam com firmeza, puxando-o depois lentamente do fosso. A compreensão desceu lentamente sobre ele, penetrando o desespero. Ele conhecia aquele toque. Era tão familiar quanto o seu próprio coração. Embora não tivesse uma verdadeira força, quebrou-o, estilhaçou-o em mil pedaços.
Lembrou-se do tapete, de há muito, da emboscada especial dela.
Determinada a protegê-lo.
Sempre a sua guardiã.
Mesmo agora.
E sempre.
Não, Benny…
— Não, Benny! — ecoou o rapaz.
O cão ouviu-os a ambos, as vozes dos que o amavam, toldando a fronteira entre passado e presente, não com sangue e escuridão, mas com luz do sol e calor.
Com um último estremecimento contra o terror, o cão virou as costas ao fosso. Abriu a boca e saiu de cima do corpo do homem. Ergueu-se sobre os membros trémulos.
Ao seu lado, o treinador arquejava e gorgolejava atrás da máscara preta. O pai aproximou-se dele com a arma.
O cão coxeou para longe, sobre três patas, um dos membros da frente dependurado.
Passos aproximaram-se por trás. O rapaz surgiu ao seu lado e pousou a palma da mão no seu ombro. Deixou aí a mão esquerda. Sem medo.
O cão tremeu, depois encostou-se a ele, precisando de ser reconfortado.
E foi.
— Lindo menino, Benny. Lindo menino.
O rapaz caiu de joelhos e envolveu o cão com os braços.
Por fim… Benny deixou que o fizesse.