ALGUÉM TERÁ DE LHE EMPRESTAR AS PALAVRAS, porque as desconhece, mas se lhas tivessem ensinado seria incapaz de dizê-las, estonteado pelo remoinho, a vida a desfilar em ondas de desespero, ocasiões falhadas, sempre ele o que perde, a sofrer envergonhado, o que baixa os olhos e até de si próprio tem de fugir.
Quando pensa no que ficou para trás deveria usar o passado em vez do presente, mas pouco adianta que os verbos se conjuguem, o medo dá-lhe do tempo uma noção onde se funde o que foi e o que é, o que viu acontecer e as vezes que perdeu, horas sofre em que o garoto e o homem quase velho são um, igual neles a dor, enraivecidos ambos na mesma impotência.
Precisado de sossego, corre para ali, sem memória de quando lá foi a primeira vez, nem porquê, entregando-se à força que nele manda como bruxaria ou praga rogada.
Instinto, voz que lho sussurra, certas noites mete pela estrada velha, e quando chega ao segundo cruzamento vira à esquerda, sobe pelo atalho do pinhal, o carro em primeira a resvalar no piso de caruma e terra solta.
No alto apaga os faróis, desliga o motor, espera que os olhos se habituem, entranha-se de silêncio, e num automatismo procura o maço, o isqueiro, tira um cigarro que vai esquecer entre os dedos.
Já ouviu dizer que são quase mil metros, e pode ser verdade, só muito longe, avultando para o lado da Espanha, se recortam picos mais altos.
O olhar habituou-se, a noite perdeu o negrume, roda sobre si próprio a orientar-se, procurando distinguir qual será o reflexo das luzes de Salamanca, talvez aquela claridade, ou a outra, para a esquerda. Reconhece Foz Côa, o mais são luzinhas de pueblos e aldeias, fazendo um tremular de pirilampos na noite de calor abafado.
Aguarda o momento de poder separar o antes do depois, o proveito da perda, e que os vultos se esfumem, os rostos percam as feições, deixe de ouvir os gritos, os suspiros, as ameaças, o ronco do homem montado na irmã.
Quase uma hora passada e ainda respira a custo, como se tivesse corrido, mas o alívio há-de chegar.
Acende o cigarro.
Fragas, atalhos, cotovelos de estrada, arribas e desfiladeiros. Torvelinhos de água. Becos, janelas sem vidros, pardieiros, estrume a fumegar, cães de gado, dentro dele tudo se esboroa, mingua e some em nevoeiro, sem adivinhar com que fim ou sem distinguir para que longe. Palavras e subentendidos, juras e gestos, intenções, promessas, aquele sorriso, aquele abraço, a partida, as voltas, os desencontros, a perdição. Que lhe resta do que pareceu ou do que foi? Do que disseram? Do que julgou ouvir?
Sem dar conta, menino ainda actor se criou, dois palmos e já sofrido de medo, certo de que a vida era guerra, o seu teatro, um escape, o corpo de poucas forças, um revés. No sangue a intuição de perda, vinda do mais escuro do tempo, sabe Deus que mágoas dos que passaram sem deixar nome ou pegada, iguais aos bichos, como eles apodrecendo em campa rasa, lembrados por um jeito e logo esquecidos.
Silhuetas apenas, vê-os desfilar na contraluz, de aspecto têm o que lhes empresta na fantasia e um pouco do que guardou por ter ouvido. Mas donde vêm os que sem hora nem aviso o assaltam e molestam? Que razões têm quem as não descobre? A alguns nem sequer conhece, ou talvez não lembre, serão os que enterramos fundo no esquecimento, a vala comum dos amores traídos, das amizades findas, das derrotas, traições e ignomínias a que o viver obriga, mesmo quando a decência é o norte.
Deitada no chão, a este pariu-o a mãe em manta de burel, lençol teve só o da mortalha, no esquife dos pobres em que o levaram a enterrar. A vida inteira fez cama na manjedoura, dormindo sobre a palha que depois atirava às burras, e que elas, às patadas, ensopariam de bosta e mijo.
Vestimenta de esmola, toda em remendos. Chapéu de feltro, enrijado pelo sebo de anos, botas já sem cardas, ganhas faz muito com sete jeiras de monda, dez de segada, dez de vindima. Jeiras de sol a sol, modo de dizer da alvorada ao lusco-fusco, merenda de comida seca e um litro de vinho, o couro duro a moer pés nus, tormento que findava quando calejavam.
Conchego de amor nunca teve, nem conheceu mulher, de alegrias gozou as mais simples: o remanso da sombra na canícula, um cibo de carne na festa, copinho de aguardente, naco de queijo, talhada de melancia.
O seu gólgota começa de madrugada, quando carrega nas burras os sacos de serapilheira, cheios do carvão de choça que a semana inteira andou a fazer.
Cortar lenha para a «sepultura», cova funda de metro e meio, acender o lume, cuidar que arda vagaroso, nem forte nem fraco, de modo que seja muita a brasa, pouca a cinza.
Reza se o céu escurece. Reza para que o vento pare. Reza as graças quando as nuvens passam sem chuva. Olhos no alto. Olhos na fogueira. Calor não sente, nem fome, nem sede, só pensa nas chamas, esperançado de assim as domar.
Escureceu, quase de repente é noite, mas tem olhos de gato e o luar ajuda. Com gestos de semeador atira ao lume punhados de terra, a que chegue para que não abafe logo, vá morrendo aos poucos.
Olha em redor e estaca, o instinto alerta para o barulho de gente, mas não distingue vultos nem bestas, demora a ver os dois homens que um momento parados se recortam contra o céu, e agora aos berros descem a ladeira. Reconheceu as vozes, mas por razões que mal compreende, como se tivesse culpa de estar ali e tê-los visto, baixa os olhos.
São vizinhos, não precisa de temer, de verdade em tantos anos só uma vez o roubaram. Culpa sua. Abrira a «sepultura» perto do caminho, e os ciganos, só podiam ser eles, vendo o fumo ou cheirando lume, tinham rapado tudo.
Reza, persigna-se, desata as burras do azevinho a que as prendeu e toca-lhes de leve na garupa, manda-as na dianteira.
Trôpego nos passos, moído do corpo, o chapéu a tapar os olhos, vem derreado da soalheira e de cavar, responde com um meneio de cabeça a quem lhe dá as boas-horas.
Pensamentos não tem, nem perguntas, sonhos ou desejos, só cansaço. Acomodou as bestas, tirou-lhes a albarda e os arreios, mediu uma quarta de aveia para cada, enche-lhes a pia. Agora é a sua vez. Encosta-se à manjedoura, põe o cântaro à boca, sôfrego, metade da água a escorrer-lhe pelo peito.
Um a um sobe os degraus e aninha-se a varrer a cinza da lareira com a vassourinha de giesta, arranja as pinhas, os gravatos, um punhado de cascas de amêndoa, outro de caruma.
Canhoto de nascença, a navalha na esquerda, a outra segurando a pederneira, petisca fogo, bafeja a chama para que aumente, com o fole dá-lhe alento, dois sopros mais tem o lume feito. Sentado no banquinho chega a panela, a cesta das batatas, a almotolia, o saleiro, as cebolas. Levanta-se a despendurar o arame da saca do pão, enganchada na trave por causa dos ratos.
Corta o centeio. Deita as fatias na água que já ferve, pitada de sal, fio de azeite, quatro batatas. Uma cebola.
Vai-lhe o pensamento para a «sepultura» na ladeira, onde desde ontem as brasas devem ter esfriado. Afasta a panela do lume e remexe com a colher de pau, corta o dente de alho que tinha esquecido. Três vezes enche a malga e não deixa resto.
O sono é morte súbita de que irá ressuscitar à cantada do galo, em prece para que na fogueira apagada seja muito o carvão.
Uma côdea, um gole de água, por ser rotina de toda a vida mal dá conta que albarda as bestas, aperta as cilhas, os cabrestos, abre a porta.
O dia rompe quando avista a «sepultura», e o palpite é bom, os galhos estão na mesma. Reza agradecido. Bom é também o carvão de brasas medianas, o que paga melhor, gastam-no as mulheres nos ferros de passar, nas braseiras e nos fogareiros.
Seis sacas enche, das que guardou do adubo, carga leve, três em cada besta. Fracas como andam, malcomidas, com mais peso não aguentariam as nove léguas de ida e volta e o tempo que vai perder nas ruas da vila, pára aqui, pára além, batendo as aldrabas, chamando, rouco de apregoar «Brasas! Quem quer brasas!»
O dia passa, às tantas só pergunta nas casas onde costuma ter freguesia, a meio da tarde vendeu duas sacas, trinta mil réis. Um mal-encarado diz que lhe compra uma se mear o preço. Ele responde que não pode, e o homem vira-lhe costas com um «Então guarda-as!»
Apiedada, a viúva deu-lhe uma tigela de caldo e água para as bestas, mas brasas tem de sobra, que no estio pouco gasta. Fora isso, o carvão de pedra da mercearia dá bom calor e é mais em conta.
Nunca ouviu falar, nem sabe o que seja, carvão só conhece o de choça, que ele faz com lenha de carrasco, castanho e sobreiro. Mas não pergunta. Agradece o caldo, seja pelas almas de quem lá tem, o Senhor a favoreça, e ela diz «Deus te acompanhe».
Quando reparou no que tinha andado, já não se viam as casas nem ladravam os cães, o negrume viera de repente, mas de olhos fechados andaria o caminho que era o do seu único longe.
Uma quebreira, ardume no peito, a oura a embaraçar-lhe o passo, queixoso de não haver por ali fio de água onde acalme a sede, nem porta a que possa bater.
Quis sentar-se na borda da rodeira, mas a fraqueza pôde mais, julgando que se endireitava rebolou, caiu de bruços num derradeiro esforço virou a cara, anojado do pó que se lhe colava à boca.
Foi esmorecendo e finou-se em paz, os que de madrugada o encontraram quase tinham passado adiante, julgando que dormia.
Recorda que trouxeram o homem atravessado na albarda de um jerico que mal aguentava o peso do morto e do que o segurava. Recorda bem tê-lo visto depois no esquife dos pobres, coberto por um lençol remendado na ourela, e que as mulheres tinham ido pela ladeira em busca de flores, para que não fosse a enterrar sem ao menos um raminho.
Noutra vida? Outra era? Em lugar sem nome, tempo sem história? Visita ao Purgatório? Sufocando num escuro de pesadelo revive a hora da tarde, a ventania a sarilhar poeira na rua sem calçada, casas de pedra solta, uma ou outra coberta do barro amarelado que pertence nas aldeias de Castela.
Longe demais para que distinga se é homem ou mulher, passa um vulto, outro, um terceiro curvado sob um molho de galhos, os braços erguidos a segurar o fardo.
Lentas, como de enterro, um sino badala pancadas que não são de relógio a dar horas nem das Trindades, pois o sol vai alto. Não sabe onde está, quem é ou o que o trouxe, mas nada o surpreende ou transtorna, sente sua a vestimenta grossa de feitura antiga, os tamancos, o gorro de lã, as mãos calejadas.
Ignora o que o trouxe, donde vem ou porque pára defronte daquela casa de paredes toscas, janelas estreitas, um fumo de lareira a subir da telha-vã.
Estaca e aguarda como se lho ordenassem, ouve o rangido, vê que uma das janelas se abre, puxada por mão invisível.
Demora a que a mulher se mostre por inteiro, anciã de cabelo revolto, olhos desorbitados, o rosto uma estampa de desespero, os lábios torcidos num esgar. Coberta do que parece um sambenito de pano encardido, debruça-se, aponta com o braço descarnado, ruge um mandamento:
– Diz à minha filha que vou morrer! – E de súbito, como se tivesse caído num alçapão, some-se da janela.
Queda-se petrificado. Nada reconhece do lugar nem do tempo, o tanger do sino vai esmorecendo, os vultos desapareceram.
Que poder traduziu da língua desconhecida o recado para que ele entendesse? Para que foi chamado? Terá sido sonho em que se perdeu, laço que o prende à estranha e ao tão assombrado lugar?
Quer esquecer e não pode. Seca os olhos na mão, tosse a desfazer a gosma que lhe corta o ar.
Ali no alto, um escuro de breu, em momentos assim perde o entendimento e, feito outro, encarna neste, naquele, incapaz de distinguir se viu, se ouviu, sem força que o defenda, obrigado a assistir e a recordar.
Serras. Despenhadeiros. Pedregulhos. Acolá um tufo de verde, além um riacho, caminhos onde há muito não passa alma, silvedos, vertentes, penedias que semelham muros de fortaleza. Um longe de terras de escasso pão e de inocência medieva, gente sem nome nem conta, a viver no que alguns chamam o antigamente, o primitivo de tempos idos. Calam e escondem, olham de lado, vivem o medo, a pobreza, geram como animais, aceitam o destino.
Será que um dia lho disseram? Ouviu contar em segredo?
Estes dois, que em noite de grande calor e fraco luar se sentam num penhasco, mudos, costas voltadas e cabeça baixa, trazem horas de caminho, há muito estariam ali não fosse o terem vindo aos bordos, mais as vezes que se encostaram a golfar, ou arriando as calças por não segurarem a tripa.
Têm pela frente meia légua plana de searas, uma descida de mau piso e muitas voltas, o riacho, a calçada que levará cada um a sua casa. Por enquanto arrotam, peidam, repetem o vómito.
Um cai e fica de bruços, o outro escorrega do assento mas consegue firmar-se, desaperta a braguilha, tropeça, cambaleia, avança para o camarada e, vagaroso, mija-lhe por cima. Riem ambos, engalfinham-se aos murros de bebedeira, não sentem se os dão ou recebem, empurram-se e caem às arrecuas, adormece um contra o pedregulho, o outro na poça de mijo.
Desde miúdos une-os estranha afeição, constantemente a procurar-se, sofrendo se se não vêem. Cresceram maldosos, bons na fisga e nas armadilhas, ágeis que nem macacos a roubar no cocuruto das cerejeiras os ninhos da passarada. Feitos homens, acasalaram, geraram, menos ligados à família que ao sentimento que constantemente os faz procurar-se no trabalho ou na folga. Assentaram praça juntos. Cumprido o tempo, festejaram com uma carraspana de três dias, vencendo a que usavam tomar na festa do padroeiro.
Acordam e ainda é noite. Não se encaram nem falam, sofrem o ar morno, limpam o suor às costas da mão.
Lado a lado, o passo mais seguro, viram da rodeira para o atalho. Na descida vão em fila, às vezes escorregam na caruma dos pinhos e embatem um no outro, empurram-se de marotice, o que primeiro a vê desata a correr e salta para a ribeira, que ali faz poço.
Embora a água só dê pelo peito, braceja a fingir que nada, sem tempo para se desviar quando o companheiro lhe cai em cima de trambolhão, ambos a perder o pé, a afundarem-se com o peso da roupa encharcada.
Voltam à tona agarrados pelos braços, sem saber porque se encaram assim, que sentimento é aquele, delícia e maldição, gozo, praga, precipício. Beijam-se com a sanha de cachorros que mordem, e empurram-se, voltam a agarrar-se, as bocas de novo se procuram. Socam-se, esgadunham-se, outra vez se beijam e acarinham, repousam a cabeça no ombro do outro, esgotados de forças e de sentir.
Os galos tinham cantado, a luz era de alvorada, saíram da água que lhes tinha sido esconderijo, insensíveis ao desconforto, incapazes de fala, evitando olhar-se, como se por momentos tivessem encarnado e agora, contrafeitos, contra vontade, se vissem despojados do sonho.
Atacaram a subida exagerando o cambalear para que os julgassem ainda bêbedos, fingindo não ouvir as boas-horas que lhes davam um ou outro que ia cedo a caminho da horta.
Separaram-se no fontenário, sem palavra nem aceno, dois estranhos que se viram costas. Nunca mais falaram no caso, morreriam ambos na ilusão de que com eles se enterrava o segredo.
Espectros. Pouco importa donde vêm, como nascem, o que os traz ou significam. Chegam em turbilhão, imagens a desenlear um emaranhado de vivências sem lógica nem cronologia, mistura de retratos, histórias, ameaças sussurradas por não sabe quantas vozes, uma ou outra familiar.
Nada que lhe permita descobrir se é doença, castigo ou maluqueira. Sonho não será, pois, espectador involuntário, também os vê acordado. Talvez uma forma de revelação de que não pode descortinar o benefício, quiçá aviso, prenúncio de sofrimento, janela para o que mais receia: os infernos à sua volta e os precipícios que a existência oculta. Quem sabe se ajuste de contas a que por remorso inconscientemente se sujeita, ou é forçado, pois a sua é vida de ardis e faltas, contradições, promessas vãs, pecados. A fugir dos outros, mais ainda de si próprio, a hesitar na estrada e na resposta, na decisão, avesso a certezas.
No melhor serão apenas imagens distorcidas numa galeria de espelhos que por acaso atravessa, temendo entraves e carências, exorcizando medos. Também é possível que, sem luz do que espera, se procure no semelhante, veja nele o que suspeita que poderia ser, ter sido, talvez seja, mas que por cegueira não descortina, ou o assusta, e prefere ignorar.
Visões do inverosímil, semelhanças de realidade, desassossego, ameaças, chamamentos de tentação, resíduos da memória entrelaçados numa fábula em que se observa, desconhecido de si mesmo.
Em formas diferentes e ritmos desiguais, os fantasmas não dão trégua, desconhecem intervalo, forçam-no a testemunhar, escondem o motivo, é como se quisessem desnorteá-lo ou fornecer prova da irrelevância do seu empenho em querer descobrir.
As palavras deturpam, escondem, diminuem, fracturam. Traduzem mal a réstia de luar que toca a vidraça, o modo como ela se despiu e o espera na cama, retesada, medrosa, no chão os sapatos de cetim branco, o vestido de noiva pendurado na cadeira.
As palavras dizem pouco das carícias desajeitadas, da falta de saber, do desencontro dos corpos, da estranheza do desejo e do interesse que os junta. Dela, duas terras, o pinhal, a horta, um lameiro. Dele, a casa na vila, o trabalho lá fora.
As palavras nada contam do mistério que ali e naquele momento sela uns quantos destinos, nem das voltas que ambos irão dar, as versões sempre em mudança: a minha verdade, a tua mentira, a minha razão, o teu pecado, a tua sorte, a minha desgraça. Tudo ainda no longe, rios de água a passar antes que se atrevam a zangas e juízos.
Fala só, imita vozes, num ou noutro dia murmura diálogos, quem o encontra acena e passa adiante, de sobra lhe conhecem os repentes e a língua solta, a força bruta.
António Roque. Antoninho em miúdo, o diminutivo mudado para «Antolinho» na primária, porque por um nada desatava aos gritos e não podia estar quieto.
Já então parecia ter raiva do mundo, e homem feito era melhor não o contrariar, porque desafiava à toa, pouco lhe importando o perigo ou a valentia do outro.
Passou a ser o «Meças», a alcunha tão entranhada que assinou António Meças quando foi para a Alemanha e teve de pagar ao que lhe emendasse a papelada. Vinte e dois anos em Oberhausen, donde voltou mais zonzo do que antes, ainda mais avesso, dispensando amigos, bebendo sozinho, grande novidade cada vez que no café se chega a um grupo ou entra na conversa.
Suspeita-se, mas a ninguém se lhe meteria na cabeça perguntar, se é verdade que nunca mais voltou ao lugar onde nasceu. Pode ser jura ou alguma desgraça, não se sabe, certo é que se desvia da gente da sua terra se por acaso a encontra, nem sequer aos da mesma criação dá fala.
No princípio correu que devia ter sido coisa de partilhas na morte do pai. Também contaram que tinha a ver com o caso da irmã, mas são mexericos, a ele, de frente, ninguém se atreveria a perguntar. Fingem que é neura, a bizarria de nem de longe querer ver a terra onde veio ao mundo, de nem uma só vez atravessar a ponte do Sabor.
O filho no Luxemburgo, a filha na Suíça, quando o encontrava no banco falavam um bocadito sobre a vida lá fora, o Pimenta do Espírito Santo, a rir, disse-lhe um dia que achava aquilo sem jeito, todos se sentem presos ao lugar onde nasceram. O Meças que não, ele que sim, e então, julgando que o acalmava, quis saber se era verdade que a Deolinda se tinha atirado pra debaixo do comboio por causa do… A resposta que levou foi ficar sem os dentes da frente e semanas no hospital a compor o nariz.
Receoso de que os olhos se lhe vão para onde não quer, evita o rio, se tem de ir a Vila Real dá a volta por Foz Côa, São João da Pesqueira, até à Régua. Para o Porto faz quase o dobro dos quilómetros e vai apanhar o IP5 a Celorico.
«Coisas do Meças.» Dizem aquilo e encolhem os ombros, mas mexericam, danam-se de não saber, pois nem os segredos de confessionário costumam durar tanto.
Sempre de cara torcida, ultimamente vêem-no pouco, raro aparece nos cafés, pensaram que andasse metido nalguma e estivesse outra vez preso, como quando numa zaragata na Covilhã, com tanta porrada que lhe dera, tinha deixado um cigano às portas da morte.
Não lhe faz mossa o que pensam ou cochicham, mais o aflige sentir que, à medida que os anos passam, o casulo em que de pequeno se meteu às vezes lhe tira o ar. Acha que viu mundo, lidou com outra gente – Vinte e dois anos lá fora, caramba! –, mas são repentes, ao mesmo tempo que as palavras lhe saem é como se nunca tivesse ido a parte nenhuma, preso ao miúdo atormentado que foi, perdendo a cabeça no turbilhão.
Ronda a nora e sente o perigo. A esconder mal o que nele sobe, nas horas de tino berra-lhe, aponta desleixos, censura-lhe os modos e a pintura, a minissaia.
Mas noutras, como ontem, quando se esqueceu de fechar o quintal, quase perde a cabeça, esteve vai-não-vai para lhe assentar um par de bofetadas, possesso de uma fúria de que se livrou saindo a correr, certo de que se lhe tocasse ia ser ali mesmo.
Foge dela e culpa o filho, os três na mesma casa vai em meio ano, desde a tarde de domingo em que por distracção se tinha sentado no muro junto à estrada.
Estava ali há um bocado quando a carreira chegou, olhara por olhar e caíram-se-lhe os queixos: se o não soubesse em Toulouse ia dizer que aquele grandão era o «Bolota», o filho que Nosso Senhor bem podia ter levado ao nascer, só enxúndia e moleza, um estupor que não parece do seu sangue.
Afirmou-se. De costas, agachado, o sujeito recebia a mala que o chofer tirava do alçapão, depois outra maior. Da carreira descia gente à conversa, às vezes olhando em redor, à espera de quem os vinha buscar, e no instante em que se desinteressa da cena larga um «Porra!», está em pé, a nora acena, parada atrás de uma velhota que não sai do degrau.
– Então?
Sorriso acanhado, ela a chegar a face, roçando um beijo, o filho de mão estendida, desviando os olhos, cumprimento de estranhos.
As malas pesavam, esteve para dizer que esperassem, ia buscar o Toyota, mas o rapaz começara a andar, a Isaura entre ambos, aos saltinhos de gaja da televisão. Olhava para ela e ia atrasando o passo, sem vontade de falas, a repisar o asco pelo filho, em corpo e modos um decalque da falecida.
Essa tinha tido sorte, levada a tempo pelo enfarte, duas vezes já roxa e a língua de fora, quando pouco faltara para de vez lhe tirar o gogo. Sempre queixas, sempre contra, o estupor, ainda por cima mãos-rotas e a achar pouco, invejosa de tudo, jurando que um dia se atirava ao rio.
– Não precisas!
Perdido do juízo, tinha-lhe deitado as mãos ao pescoço, o anjo-da-guarda acudiu a ambos, recorda ser noite quando parou para uma cerveja e o rapaz da bomba meteu conversa, dizendo que por certo era de longe, não o tirava pela cara e ele ao redor conhecia toda a gente.
De volta, ao encontrá-la na cama, gritou-lhe que saísse dali, fosse dormir no quarto do filho, nunca mais lhe falasse.
Durou mês e meio. Teve o ataque à saída da loja dos trezentos, quando os bombeiros lhe vieram dizer que tinha falecido na ambulância poupou-se a comédia da triste surpresa, encolheu os ombros, resmungou que então lá teria de ir ao hospital tratar das coisas.
O Bolota telefonara que não dava para chegarem a tempo do enterro, mais isto e aquilo, a lengalenga a mostrar que a não tinha ou queria poupar a massa dos bilhetes.
Tarde de domingo, os três no sofá, cerveja na mão, vêem um Porto-Benfica, não dizem uma, sofrem o calor.
Entre ambos, a rapariga de vez em quando encosta-se, ficam-lhe as coxas à mostra, pouco adianta puxar depois a saia e sentar-se direita.
Olha-a de esguelha, a fingir que não repara, bebe devagar, segue o jogo por seguir, mais ocupado pelo que lhe tolda a cabeça do que atento aos passes da bola ou às coxas da putinha. É que não pode ser, nem está pròs sustentar, já disse e repetiu mil vezes: «Quem manda aqui, hem? Quem andou a dar o corpo ao manifesto?»
Torce a cara quando Isaura se mexe e aponta o quarto de banho. Não falha, parece que aquilo é de propósito: levanta-se, e, ao passar diante deles vira-se, pára, tapa a televisão.
Faz-lhe um gesto de que se despache e vê-a saltar ligeira por sobre o pé que ele, como se tivesse de se espreguiçar, começara a estender.
– As coisas lá estão mal – diz o filho, sem saber por onde começar. – Mesmo mal.
Não o encara. Franze os lábios a assinalar que a conversa o enfastia, queixinhas também é com este, herdou da mãe.
– Quando começaram a despedir gente…
A barulheira de um passe falhado interrompe-o, e o pai, tossicando de escárnio, ao mesmo tempo que se levanta dá um puxão às calças, vira-lhe as costas.
Isaura ouviu a porta da rua e volta à sala, Abel estremece quando ela lhe toca, mas continua imóvel, os olhos cerrados.
– Disseste?
Sacode a cabeça, acobardado, sempre incapaz de enfrentar o pai ou de se contrapor às razões da mulher.
– E agora?
– Não sei.
– Puta que pariu! O senhor não sabe!
Dá-lhe raiva e tem pena. Despachado nunca foi, mas desde que voltaram fica naquela morrinha de criança grande, amolengado, a impressão de que tudo lhe custa, acha mal, acha pouco.
– Contigo não adianta, perdes tempo e feitio.
Tira as mãos dos quadris e imita um pontapé de desprezo, vai sentar-se nos degraus do quintal.
– No que me meti! Mas no que me meti! – Repete as palavras como se as dissesse a alguém e delas pudesse vir alívio ou remédio, mas não consegue travar a memória, ansiosa por um amanhã mais suportável do que este hoje que a asfixia e tolhe.
Um passo de nada, desatino que nem foi de bebedeira, e a vida dá uma reviravolta. Tudo fácil, arranjado, num pronto tudo às avessas, como um jogo de batota que nos deixa em pêlo e de boca aberta. Culpa tua, Isaura, culpa tua, que não mudas nem aprendes.
Noites de mais brilho que o sol do meio-dia, cabeça no ar, descobrindo o mundo, tolinha por dança. E dança aprendera aquele, sabe-se lá em que musseque, a gingar na semba e na kizomba, palavras que só conhece de ouvir e falam de longes que não imagina.
Mesmo sem querer, capaz de embruxar uma santa com os requebrados, os tremores, as vibrações que lhe saíam da pele, dos olhos, da ponta dos dedos. Ao senti-las já não sabias quem eras, donde vinhas, o que davas ou porque te davas.
A tarde a findar. No quarto, só de cuecas, deitado de costas, Abel ressona e estremece, agita os braços num sonho mau.
Olha-o enquanto veste a saia. A perguntar-se, desanimada, como veio parar aqui, quanto demorará a redenção, se é que um dia virá. Mal por mal lá estavam melhor, com tempo alguma coisa se havia de arranjar, mas ele é assim, tudo lhe mete medo, magica, só vê o pior, com um nada vai-se abaixo.
Pára diante do espelho, arranja o cabelo, dá um toque aos lábios, sai-lhe um «Foda-se!» ao reparar que o batom está quase vazio.
Caminha decidida, a fingir um propósito, desce a rua e atravessa a praça, olha pelas vidraças do café, descobre o sogro numa mesa do fundo a ler o jornal, ele exagerando a surpresa, fingindo que só a vê quando puxa a cadeira.
– Que temos?
E naquele instante também ela sabe que se acobardará, não vai pedir, a vergonha da dependência a cortar-lhe a respiração.
– Então sai e não diz se vem cear?
– Foi pra isso que vieste? São horas? – A fingir que entra no jogo, mas revirando os beiços, enfadado, se bem que lhe aprecie a coragem e tenha mais respeito pela putinha do que pelo gordo.
– Vão ser.
Olha com um sorriso de troça e, apontando-a, acena ao Diogo que lhe traga um café.
– Perdeste o telemóvel? E não tinhas de vir atrás de mim, mandavas o Bolota.
– Quem?
– O Abel.
Esquecera a alcunha e sem querer abafa o riso, ele a fungar num trejeito de malícia, criando intimidade:
– A mãe enchia-o de chocolates. Os dois a comer? Só vendo. Ficou o Bolotinha.
Evita encará-lo, retoma o sério. Não gosta dele. Antes de se casarem, quando o amante a levara a conhecê-lo, estranhara os repentes, os berros por um nada, pressentindo maldade e desatino por detrás das gargalhadas.
Desde que vivem com ele, a cada momento em que por acaso se encontram sós, ressente um desconforto, tem a impressão de ouvir perguntas sem palavras, algo indefinido que leva a que o não encare, arranjando pretexto para se afastar.
Pousa a xícara, ele a sorrir do embaraço em que a vê.
– Mas então? Vem comer?
– Depois digo. Estou à espera dumas coisas. Que vai ser hoje?
– Sardinhas, arroz de grão-de-bico.
– Está bem, vai lá. O gajo não há-de demorar.
– Então até logo.
Agradece o café e levanta-se, ao mesmo tempo passa a mão a ajeitar a saia. Ele nota o gesto e faz um aceno, segue-a com os olhos enquanto atravessa a praça e vira a caminho de casa.
Alheado, como se desbobinasse um filme, pára na cena em que a mão lentamente amacia o tecido sobre a anca.
Respira fundo, a travar a sarabanda de pensamentos informes, desesperos, a manhã que nunca esquece: a mulher a apontar qualquer coisa num papel. Que ultimamente trabalhava mal, descuidava-se e era um perigo, havia queixas, aconselhavam-no a que se tratasse. Estava no contrato, e apontava uma linha na folha, iam ser obrigados.
As palavras tropeçavam, só ruído. Verstehen Sie? Ele a encará-la e a abanar a cabeça, Ja Ja, compreendo! Grandessíssima puta, fanchona de merda, compreendo! Uma vida a dar o corpo ao manifesto, Dankeschön, Dankeschön, vontade de lhe partir os cornos! Doença uma merda! Contrato uma merda! Punham-te a andar, e pronto. Rua! Raus!
Parece ontem, os anos um relâmpago. Na força da vida e outra vez cercado de muros, preso sem que saiba porquê ou lhe digam por detrás de que grades.
Empurra a cadeira e levanta-se, a resmungar como se falasse a alguém:
– Pra um dá. Inda dá. Mas três bocas…
Espalma os dedos e a mão descai por si própria, em resposta à certeza que dispensa a conta. Vinte e dois anos em Novembro.
Nas tantas vezes que sem querer recorda, vê-se a descer o carreiro com a mala no ombro, surdo aos berros, depois pela ribanceira até à estrada e à ponte, debruçado um instante no parapeito sem razão que adivinhasse.
Curiosidade não era, nem fadiga, tão-pouco lhe interessava o rio naquela correnteza de Inverno, os remoinhos saltando a margem como coisa viva a espumar raiva. Talvez tivesse parado por dar conta que duma ou doutra maneira aquela fúria igualava a que lhe fazia tremer o corpo, e a modos de bêbedo o levava num andar descompassado.
Se pudesse! Oh se pudesse!
Já não são as labaredas a queimar o peito, as que então, no escuro, lhe faziam dar gritos que eram de ódio e dor, humilhação, impotência. Com os anos tornaram-se um arder de brasas que a cinza cobre, mas donde por um nada, um trejeito, certo modo dos olhos, as labaredas rebentam.
Por isso se acautela dos repentes, busca a solidão. Sobe ao alto e pára o mundo, torna-o longínquo, silencioso.
Com tanto melhoramento hoje decerto será menos, nesse tempo a carreira da Eurolines levava duas noites e um dia. Quase sempre a dormir, desinteressado da vista, dos letreiros ou de por onde iam, se paravam ou não, assombro só da primeira vez ao atravessar Paris, aquele mar de luzes, o fim do mundo de carros, em parte nenhuma sinal de gente.
Fosse ou viesse era igual o desarranjo, o sentimento de ameaça que nunca perdia e o levava a olhar em volta, temeroso, incapaz de acertar no porquê, incapaz também de esquecer as palavras, os rostos, as ocasiões.
Nesse tempo a fronteira tinha acabado, mas descia em Vilar Formoso, arranjara lá puta certa, desenfastiava-o ela do amargo de boca que trazia das que num ou noutro domingo, quase a rebentar, pronto o esvaziavam da langonha e de cinquenta marcos, que por menos o não faziam, e a abrir a porta ele ainda a puxar as calças.
Ficava um dia, dois, a Raquel sabida em paparicos e na ginástica, pressa nenhuma de rever o estafermo, pedir-lhe contas, mostrasse para que tinha sido isto, aquilo, quem dera ordem de comprar o sofá, outro armário, um par de tabefes quando respondia torto ou se embaralhava na explicação.
Incapaz de safar a memória, em certas alturas perdia-se-lhe a cabeça em fantasias, de que aquela não era a sua mas vida alheia, também surpreso de ter filho, mal reparando no puto, uma sombra da mãe e que, estranheza ou susto, com ele perdia a fala.
Acordou, deixa-se estar, a cabeça descaída no encosto do sofá, olhos fechados, a modorra no corpo. Tem a impressão de sair dum buraco. Há luz demais na sala, passa a mão pelo rosto e olha os móveis, como se tivesse de se certificar, mas sem compreender porque o faz, nem há quanto tempo está ali. Cortaram o som da televisão quando se foram deitar, mas se viam que estava a dormir não era preciso deixar tudo aceso.
Dobra-se, aguarda que o corpo emperrado se ajeite e sinta menos a dor nas costas. Apoia-se no sofá, hesitando se apaga e vai prà cama ou fica um bocado, vontade pouca tem de como nas mais noites magicar sobre isto e aquilo, trazer à lembrança o que foi, o que não foi, o que fez, o que devia ter feito, a sarabanda em que perde o juízo, e às tantas, para não cair em perdição, pega no carro e larga para o monte.
O que agora, por sorte, não é o caso. Vai à cozinha buscar uma cerveja, um instante preso aos ruídos do quintal, ao das tábuas do soalho que o calor faz estalar.
Podia ser o soalho, mas não é, fica à escuta, precisão nenhuma de ir mais adiante, que dali também ouve. Estão na foda.
Abafa o riso, dizendo-se que tem de ser ela por cima, o Bolota não se mexe e com aquele peso quebrava-lhe os ossos.
Tira a garrafa do frigorífico, volta à sala, bebe distraído, resmungando para o ecrã que aquela merda nunca mais acaba, um maricas a cantar fininho, duas tipas de mamas ao léu a mandar beijinhos e a sacudir o rabo.
Muda de canal. Desde que estão com ele e tenha ouvido, só três, quatro se tanto. Mas sejam seis, que sejam dez. Em meio ano. É de homem? Com uma tipa que anda mesmo a pedi-lo? Que se calhar já lhos pôs?
Ó Bolotinha, um dia destes acordas com uma galhadura que nem pela porta da igreja entras!
Segura a cerveja pousada no joelho, esquecido de beber, arrastado pela fantasia que uma ou outra vez repete, a da Isaura que se despe e sobe para a cama, fingindo que o não vê, ele a apalpar o tesão, mas sem mostras de querer, encostado ao guarda-vestidos a acabar o cigarro.
Coisas que vêm sem que saiba donde ou porquê, nem lhe causa espécie que seja a nora, às vezes é alguma no café, ou que vai a passar.
Com a Raquel também, mas isso mais no princípio de conhecê-la, as férias ainda longe e querendo poupar os marcos. Nem precisava de fechar os olhos, vinha-se mal a imaginava naquelas pantominas, a dançar ou de quatro, a acirrá-lo de cadela no cio.
Sacode a cabeça, a sacudir também os pensamentos, acende outro cigarro e aspira, o fumo a encher-lhe os pulmões, sopra-o devagarinho pelos lábios em bico.
Num reflexo quer travar, mas não consegue, o gesto trivial é lâmina que o trespassa ao atrair a lembrança, sofrendo nas entranhas a dor sem cura, feita da raiva que tudo deforma.
Prende a respiração, varado, sabe que terá de sofrer até que as imagens se esfumem, o pai e a mãe deixando a sala como se estivessem de visita em casa alheia, dali a nada o homem sobe as escadas, a irmã a beijá-lo.
O retrato não desbota nem o tempo muda o aspecto do sujeito: forçudo, vestido à cidade, risca no cabelo, relógio de ouro, botas de cano. Mais velho do que o pai.
Teria sete anos? Oito? Obrigavam-no a ficar, mas baixava os olhos e não respondia, agastado quando o sacudiam a querer que agradasse.
A rir, mas a mostrar quem mandava, o homem puxava-o a si com um safanão, prendia-lhe os braços, e devagarinho, fazendo-o tossir, soprava-lhe o fumo nos olhos e no nariz, tentava meter-lhe o cigarro nos lábios, obrigá-lo a fumar:
– Pra que aprendas!
Sufocado, desigual na força, parava de estrebuchar até que de fastio ou mudando de ideias o carrasco o soltava. E a Deolinda ria, achava graça, ele correndo a esconder-se no alpendre da lenha ou na pocilga, a chorar do sentimento para que mais tarde encontraria as palavras, mas sempre incapaz de dizê-las, sofrendo-lhes o aperto como nó de enforcado.
Descerrou os olhos e estranha a presença do filho, que pelo modo deve estar ali há um bocado. Sempre descalço, o burgesso, e sempre de cuecas, se calhar pra se sentir aliviado. Estava para lhe atirar a piada do costume, enojado com a mostra das regueifas da pança, as mamas de gaja, mas deixa passar ao vê-lo pôr-se de lado, as mãos no rebordo, escorregando para o sofá aos bufos, como se até o sentar lhe custasse.
– Então inda aqui está?
Bebe o que ficou da cerveja e larga um arroto, a resposta sai-lhe com o vagar do desdém:
– Posso?
– Julguei que se tinha ido deitar.
Espreguiça-se de caçoada, fingindo que o não vê a mexer no isqueiro, a espreitar, vontade dum cigarrinho, a decidir que lho nega se tiver a lata de pedir.
– Inda há cerveja?
Acena que sim e faz uma careta, lá vai o Bolota, o soalho a ranger, um corpanzil que bamboleia e nem parece gente, menos ainda filho seu.
Dá voltas à cabeça mas pouco adianta, é como se estivesse sempre a pensar no mesmo ou tudo fosse contra. Ora tem vontade de pô-los na rua, ora se pergunta se é castigo, maldição, uma vida a aguentar, nunca um alívio, uma hora de paz.
– Ficaram duas.
Ouve e não reage, alertado pelo chiar do sofá, a dizer-se que com aquele peso não demora a que quebre, talvez o prejuízo seja boa desculpa para os mandar à procura doutro poiso. Adeus. Auf Wiedersehen.
– Que disse?
– Eu? Nada.
Abel pousa a cerveja, arrasta-se para ficar perto, mas escasseiam-lhe as palavras e a coragem, fora que para desanimá-lo basta aquele modo, sempre bastou.
Devia fazer doutra maneira, bem sabe, ter mais jeito, mas é como se fossem estranhos, ambos contrários, feitios que não se calham, e a temê-lo, sempre a temê-lo, por um nada perdendo o pé, incapaz de dizer o que sente ou a precisão que tem, fugindo ao confronto.
Deixa-se ficar, meio inclinado, imóvel, a cabeça pendente, o olhar parado no cinzeiro.
O pai vira-se, faz que não repara. Se alguém lho perguntasse atrapalhava-se, seria incapaz de dizer se aquilo lhe vem de nascença, da criação ou dos ódios entranhados, o que sabe é que mesmo sem querer, antes de o próprio se pôr a gaguejar já ele descobre no outro os fracos e o medo.
A falar verdade, ao filho não quer bem nem mal, o que tem contra é o sentimento de que se lhe pertence pelo sangue no mais é um estranho, um desarvorado que ora se faz avesso ora se agacha, medricas, a pedir um pontapé no cu.
Queria que aprendesse, não deu. No armazém do Simancas aguentou meio ano. Nunca quis saber por onde depois terá andado, do que logo o avisou foi que não esperasse ajudas. E quando descobriu que a mãe lhe mandava dinheiro às escondidas, pô-la de molho, andou meses com o braço no gesso. Aprendeu.
Mais ou menos por essa altura o janota telefonou a dizer que tinha emprego, estava de cozinheiro em qualquer parte, não se lembra, se calhar nunca soube, e foi então que um dia apareceu de visita com a putinha. Casado. De abalada para França. Chefe.
– E chefe de quê, se se pode saber? De banda?
– Chefe de cozinha. Não esteja a brincar.
– A brincar? Vai prò caralho!
Do berro, dos olhos arregalados, se calhar também da pancada que dera na mesa, a putinha assustou-se, começou no choro, pelos vistos não estava habituada, tinha tido vontade de lhe dar um safanão. E que merda era aquilo de cozinheiro? Teria o bucha dado em larilas?
Não perguntou mais, tinha-se levantado, foi-se ao passeio. Era lá com eles, tanto se lhe dava como se lhe deu, não queria chatices.
Pelos jeitos tinham-se arranjado, porque no tempo todo só se lembrava de um telefonema por causa duns papéis, e de quando tinham dito que não viriam para o enterro.
Era ver aquilo, um gajo passado dos trinta, em cuecas, sem tesão pra se mexer, de se atirar ao que aparecesse. Mas se calhar o senhor chefe nem queria nada, estava à espera da herança ou do euromilhões.
Acendeu um cigarro e, dando um piparote no isqueiro para que o apanhasse, apontou-lhe o maço. Melhor era fingir que não reparava como lhe tremiam as mãos, e olhava de esguelha, sem vontade de o aturar.
Se dissesse o que tinha a dizer, pronto, mas não senhor, estava entupido, os olhos no vazio, nem sequer reparava na cinza a cair no soalho.
– Então?
– Hem?
O sobressalto era comédia, que a este não custava fingir. Acaba lá com isso, ó gordo, despacha-te, não te encolhas, poupando as palavras com o meneio da cabeça e o arrepanhar dos beiços.
– Temos de ir a Lisboa.
Saiu-lhe aquilo num sussurro de confessionário e ele próprio o notou, repetindo mais alto, a tossicar de embaraço:
– Temos de ir a Lisboa.
– Ah sim?
– Pra falar com o senhor Vasco. Parece que…
A meter os pés pelas mãos, fulano isto, sicrano aquilo, conversa sem jeito, às tantas era o antigo patrão mais um não-sei-quantos que tinha uma churrasqueira no Lumiar, e outra vez o patrão, mais o cunhado, um sujeito das obras…
Abanou a cabeça, enfadado, ergueu as mãos a mandá-lo parar:
– E precisas de bago, é isso?
– O filho do patrão…
– Deixa-te de tretas. Precisas de bago?
– Se pudesse emprestar duzentos euros.
– Pra ires a Lisboa.
– Ficamos em casa do Samuel, mas a viagem, a comida…
– Estou a ver. A madama também.
– Tem de ir, é ela que…
– Ai é? Então esquece. À minha custa não vai.
A mostrar o nada que a resposta lhe interessava, arrebanhou o maço, o isqueiro, as chaves do carro e saiu porta fora.
Olhando sem ver, Abel acaba de esmagar lentamente a ponta do cigarro e passa a mão pela testa, menos para limpar o suor do que numa impensada busca de alívio. Custa-lhe de sobra a dependência, mas não é disso que se sente fraco ou desigual, sim porque se acobarda, nunca achando força para o enfrentar, perguntar-lhe a razão dos insultos, aquele desprezo.
Também não é a ele que poderá falar da zanga que tinham tido na cama, esquecido de como aquilo começara, Isaura a repetir que fizesse o que lhe apetecesse, sozinha com o velhote não ficava.
Parou no quintal, a mão no fecho da cancela, como se estivesse ali sem saber porquê, de facto a confessar que às vezes seria melhor ter menos repentes. Acalmasse e fosse para a cama. Mas o calor abafado tira o sono, debruça-se no muro a olhar a rua, alheado, encolhendo os ombros à lembrança do pedido do filho, perguntando-se por que raio lhe veio à cabeça de só emprestar se a putinha não for.
Que me importa que vá ou fique? Balbucia como se estivesse a convencer alguém ou a justificar a intenção num tribunal, mas os lábios arreganhados denunciam a falsidade. Foi sem pensar, um relâmpago, claro que quer que fique, e se a apanha sozinha não escapa.
Vê-se a agarrá-la, tomado duma raiva que vem das ânsias do corpo e da vontade de ferir que desde que se conhece traz em si, achar paga para o que sem compreender o tornou outro, doeu muito e ficou sem cura.
Prende-se-lhe a respiração. Como a trovoada seca que chega sem aviso e tudo são estouros, relâmpagos, ventania, sabe que não demorará a que a aflição lhe tome o peito e a cabeça, fazendo-o soltar os gritos que nunca ninguém ouviu, nem deve ouvir, as lágrimas que só assim consegue chorar.
Afasta-se do muro, reparando distraído na silhueta da nora, recortada um segundo na janela do quarto antes de a luz se apagar.
As chaves na mão, quase deita a correr para o carro, fugindo de si mesmo e das aparições, que delas não quer ver a forma nem o jeito, nem reconhecer-lhes a fala, os gritos, é como se o tivessem esconjurado, quando o assaltam volta a ser menino indefeso.
No cimo, os faróis apagados, sente um desconforto. Esperava a escuridão, mas a réstia do luar em minguante envolve as serras e os picos numa espécie de névoa, enquanto as luzes dos povoados, que no escuro brilham como estrelas, aparecem agora mortiças, dos clarões fica apenas um rasto deslavado.
Felizmente, mesmo breve todo o ritual é conforto, no automatismo do costume procura os cigarros, o isqueiro, tira um, só não tem de fechar os olhos para se habituar ao escuro.
Pode ter sido a tontura que às vezes lhe dá, um chilique de que não se apercebeu, tinha-se encostado ao carro e volta a si, sem noção do tempo, esquecido de quando tinha vindo.
Terá sido um minuto? Uma hora? Surpreende-o que o ataque não chegue. A aflição vai diminuindo e, sem dor, consegue respirar, encher o peito.
Olha em volta, desagradado sem saber de quê, inquieto. O silêncio é o de sempre, mas o luar tornou-se mais frouxo, doentio, cobrem-se os montes de uma película de nevoeiro, igual à que no Inverno subia do rio em Oberhausen quando de madrugada deixava a fábrica.
A resmungar como se lhe tenha dado prà zanga, senta-se num pedregulho, quem o encontrasse assim julgaria que estava a admirar o carro. Não está. Olha sem ver, o pensamento aos trambolhões, na volta tem de passar pela bomba, é que os pneus da frente estão gastos, recordando o dia em que comprou o outro, o Mercedes. Um Mercedes, caramba, a única vez em que se sentira dono do mundo.
Uma pechincha. Arranjara-lho o Penacova, que fazia biscates numa garagem, e foi mesmo como tinha dito: azul, cromados, jantes de alumínio, só um dono, poucos quilómetros, os papéis em ordem.
E então, quando o tal Meisner lho veio entregar! A alegria! A abrir e a fechar as portas, a experimentar os assentos, as luzes, a apertar a buzina tantas vezes que lhe disseram que parasse, vinha a polícia e levava multa.
Foi aí que o alemão resolveu que iam beber um copo, mas depois também era preciso festejar a sério, aparecessem no sábado e almoçavam. Mas o Penacova estava de turno, foi ele e perdeu-se, nunca tinha estado para aqueles lados, só com muita volta encontrou a casa: dois andares, jardim, coisa de rico.
Parou a olhar, desconfiado se seria ali, mas ao fim decidiu-se, tocou a campainha, o sujeito veio abrir.
Apertaram-se as mãos e foram por um corredor, na sala estava a mulher e uma outra dos seus quarenta, forçuda, vestida de motociclista.
Elas fizeram um aceno e continuaram na conversa, a beber por aquelas canecas de litro, e sem lhe perguntar se gostava deitaram-lhe do mesmo.
Ainda se lembra de que com a sede ou a pressa se engasgou, ia agradecer, mas a petiscar nem tinham reparado, era como se não estivesse ali, de longe a longe é que o olhavam, sorriam, chegavam-lhe isto, davam-lhe mais daquilo.
Ia topando uma ou outra palavra, mas mesmo que entendesse pouca diferença faria, o mais certo negócios, que de vez em quando escreviam uns números e faziam contas numa maquineta, depois a discutir, tão metidos no assunto que nem reparavam que tinha a caneca vazia. Às tantas deu uma tossidela e encheu-a ele.
A coisa demorou, mas a certa altura, os três na conversa, ele atrás, foram prà sala de jantar. Não tinha visto ninguém, mas de certeza havia criada, porque a mesa estava posta e a comida pronta, tudo quente, duas travessas grandes, Sauerkraut, carnes, batatas, presunto, chouriças.
A mulher começou a encher-lhe o prato, a deitar como se fosse pra dois, não adiantava dizer Genug! Genug!, ela continuava, os outros a rir, a gostar que mostrasse apetite, provasse tudo, depois mais isto, um bocado deste, orelha, chispe, a morcela que sabia a cravinho, e outra vez couve, outra vez costeletas.
Já algumas vezes tinha comido daquilo na cantina, mas nem se comparava, estava ali coisa fina.
Da cerveja tinham passado ao branco, a meio da tarde começaram a doçaria, ele mais que farto, quase a rebentar. Ao ver que o alemão desapertava o cinto fez o mesmo, as mulheres à gargalhada, tocando-lhe na barriga ao passar.
Vieram com o café, uma garrafa de aguardente que sabia a pêssego, ao terceiro ou quarto copito passou-se e deve ter demorado a acertar, porque do depois só se lembra que tinham começado na brincadeira das cócegas, aos abraços, a meter a mão aqui e ali, elas a despirem-se. A ver onde a coisa ia parar, quando reparou estava sem calças, a da mota a chupá-lo, os outros já em pêlo a tirar-lhe a camisa.
O quarto parecia o barbeiro: espelho por todo o lado, nas paredes, nos armários, até no tecto. E a cama! Não fazia ideia que as houvesse daquele tamanho, eles a engatinhar uns por cima dos outros, o Meisner aos berros, Ficken! Ficken!, a empurrá-lo pra cima da sócia, que essa pelos jeitos nem podia esperar, já estava na fressura com a amiga.
Quando sentiu que o filho da puta o queria enrabar, não lhe deu tempo nem esteve com meias: saiu da comadre, agarrou-o pela trunfa, mandou-lhe um directo na cornadura.
A mão a doer e tonto da pinga, pôs-se em pé e ficou à espera, mas ou o gajo estava mais bêbedo do que ele, ou era maluco de todo, a arregalar os olhos e a fazer caretas como se estivesse a gozá-lo, quando lhe ia assentar outro nos queixos deitou-se ele de costas, a lambuzar-se com o sangue que lhe escorria do nariz.
Vai-não-vai, porque ainda tinha vontade, quis meter o escovilhão na da mota, dar-lhe uma esfregadela como deve ser, mas essa já nem abria os olhos, quando acabou de se vestir estavam os três como mortos.
Há alturas em que esquece porque quer, noutras força a memória, não por penitência, que mal não houve, antes a passar-se atestado de ser capaz de resistir às tentações.
Mexeu na carteira e nas bolsas, contou o dinheiro. Na gaveta duma escrivaninha dois pacotes de notas, mais do dobro do que tinha pagado pelo Mercedes. Jóias, relógios, um cofre, oitocentos marcos numa caixita, se calhar os alfinetes da mulher. Deixou tudo no sítio, em encrencas não se ia meter.
Foi dar uma espreitadela ao quarto e teve de rir, aqueles corpanzis branquinhos pareciam mesmo os porcos lá na terra, espichados ao sol.
Fechou a porta da rua, meteu-lhe a chave, atirou-a depois para dentro pela frincha do correio.
Saía limpo e ladrão não entrava, do que faltasse não lhe poderiam deitar culpas.
Tão viva tem a lembrança do momento que agora ao levantar-se e dando o primeiro passo, espera a rua asfaltada, os prédios, a iluminação, olha o carro como se descresse do que vê, mas logo torna a si, aliviado de que o luar tenha desaparecido.
Senta-se ao volante, melancólico, o tablier do Mercedes era outra coisa. E o cabedal dos assentos, as luzes, o ronco do motor.
Não encontra os cigarros, devem ter ficado no pedregulho, e volta lá, abanando a cabeça pelo desencontro de pensamentos, incapaz de segui-los de ponta a ponta, horas há em que não distingue se viu o que lhe passa pela cabeça e se martiriza com razão, ou se de verdade não regula.
Ajeita-se no assento, mete a chave, mas não liga, e sem acabar o cigarro deita-o fora, a perguntar-se donde virá a quebreira, porque do trabalho não é, e que fosse não se queixaria.
Sente-se gasto pela lembrança das horas más da meninice, e este presente que o desatina dá-lhe ideia de estar mais entrevado do que se o fosse das pernas.
O olhar fixo, parecendo ter alguém defronte, chama fiapos de memória e restos de conversa, acusações que não sabe porque as faz, a remoer, sussurrando como se quisesse partilhar um segredo ou pedisse alívio. E adormece, a cabeça descaída no encosto, o corpo em estremeções.
Se fosse à consulta talvez o médico lhe dissesse o que é, mas de nada adiantaria a explicação nem quer gastar dinheiro na farmácia. Ademais, cedo aprendeu que para pouco há remédio, às grandes dores talvez nem a morte ponha termo, alguma razão deve haver para se falar tanto das penas do Inferno.
Pesadelo? Como pode ser pesadelo se vê e ouve, sabe onde está, tem frio e limpa o ranho às costas da mão?
Deolinda repara que ele se sentou no soalho e se arrasta devagarinho para a escada, mas finge não dar conta, nunca pergunta ao que vai. Só lhe interessa a malha das agulhas, e ele deixa-se escorregar no degrau, depois noutro, some-se como se caísse num buraco.
Os olhos a dizer que é brincadeira do garoto, deixá-lo ir que não se perde, mas bem lhe custa que o Antoninho seja assim e não goste do Senhor Engenheiro.
Mais tarde aprenderá que é aos sábados à noite, mas por enquanto falta-lhe entendimento do calendário, sinal dá-o ela com o capricho da limpeza, o pão-de-ló, o vinho fino na mesa, a toalha de renda. Sinal dão-no também os pais, quando àquela hora se levantam e, calados, se fecham na cozinha.
Abriu porta da rua sem barulho. Por ali nunca há gente, mas espreita, aguarda, olha outra vez, dum lado, do outro, desata pela viela dos palheiros e sobe para o cabanal, tacteia a parede até ao recanto onde se vai esconder.
Aquieta-se, mal sabendo o que o empurra ou porque espera, só conhece o anseio de ferir, vingar-se do sentimento que não compreende, o magoa e envergonha. Sabe-o sem se dar conta como, lendo nos olhares o que as bocas calam, adivinhando a mensagem dos trejeitos, dos silêncios, do cauteloso menear das cabeças, o modo como na rua falam à irmã, sorrisos que são todo o contrário e o enraivecem, a perguntar-se porque será que ela não vê e lhe belisca o braço, a mandar que se cale ainda antes de abrir a boca.
Palavras não tem, nem delas precisa, há muito o tomou o sentir de se ter feito homem em corpo de menino, fervendo de ódio, a raiva a esgazear-lhe os olhos, insensível às estaladas, aos pontapés, aos apertões de orelhas, animal acuado à espera da hora.
E a hora há-de vir, tudo lho diz, mas com os seus poucos anos terá de aprender que não se força o destino, na vida há eternidades de espera, nenhum caminho é direito.
Agachado no escuro segura a pedra às mãos ambas, a querer sentir-lhe o peso, certo da força com que a vai atirar, a cabeça um cinema e tudo em cores vivas como se fosse dia, o homem de borco a estrebuchar no chão, sangue a correr.
Perde-se a imaginar e, num relâmpago, estonteado, está preso pelo cachaço e o fundilho das calças, volteia no ar, o Senhor Engenheiro a dizer que o deixa cair, nem os ossos se lhe aproveitam.
Pousa-o no chão, agarra-lhe as orelhas e obriga-o a encará-lo:
– De que estavas à espera, ó sacaninha? Diz lá. Pra que era a pedra?
Sacode-o umas quantas vezes e dá-lhe um empurrão de nada, a palmada no rabo não é para que a sinta:
– Põe-te a andar.
Queda-se especado, teimosão, e o homem sopra-lhe à cara uma baforada de fumo do cigarro, ouve que se ri de vê-lo sufocar, mas quando abre os olhos já ele se foi. Aguarda tenso, de punhos cerrados, o ranger da porta de casa quando se abre, imaginando a irmã à espera, os beijos, os apertões, ambos a subir a escada, ela à frente, a mão dele entre as pernas.
Esquecido do choque, vai de cabeça baixa, sem pressa, antes com vontade de ficar ali em vez de ir para a lareira, o pai a remexer as brasas com a tenaz, a mãe murmurando ladainhas.
Ouve em cima os passos. Ouve e imagina. Cerra os olhos. Que o desanquem e voltem a fechar pouco se lhe dá, nem aquele tremor é de medo, mas ódio fundo, intenso demais para tão pequeno arcaboiço.
Falta-lhe a idade para o raciocínio, o que sente não é emoção mas instinto animal, cegueira de que desconhece o motivo. Nada sabe de honra manchada, baixezas, diferenças de casta, ou que será um ajuste de contas: o que nele vive dispensa palavras, passa no sangue de pai para filho, dá cegueira e rebenta em tragédia.
Mas por enquanto esse correr de ideias não é para ele, tão-pouco o será no instante em que daqui a anos degolar o homem.
Acorda estremunhado do que não sabe se foi pesadelo, a nevoenta recordação de episódios de que nem sempre pode dizer se aconteceram, ou que mistério nele os inventa.
António Roque, o Meças, nunca se perguntará porque lhe foi negado melhor berço ou que poder mandou que lhe calhasse este destino de raivas e negrume. Talvez alguns lho pudessem contar, mas não são do seu mundo, nem a ele interessaria a conversa, sabe à sobreposse que há verdades que o próprio de si mesmo esconde, martírios que vamos arrebanhando como se o sofrimento e o medo fossem a grande razão da vida.
Ar parado, calor de forno, a miopia e o corpanzil do homem escondem-lhe o despertador, Isaura tacteia o soalho em busca do telemóvel. Meia-noite e meia.
Estremunhada afasta o lençol, senta-se, despe o pijama, acordou dum sonho tão vívido que guarda a impressão de ouvir música, falas, burburinho.
Olha em redor estranhando o quarto, de facto a repetir a pergunta com que adormeceu, que desculpa terá de inventar para levar a tralha. Aceitável não há-de ser nenhuma, por isso o que tiver de ficar fica.
O Abel disse que sim, o pai emprestava os duzentos, podiam ir, mas mais explicação não quis dar, o costume que tem, sempre a esconder, a fugir com o rabo à seringa, desviando os olhos. Que estava cheio de sono e ia prà cama, teriam tempo de arranjar as coisas, a carreira era às cinco.
Soubesse ele, o desgraçado, mas criança grande nem sequer faz ideia, incapaz de ver o que se lhe mete olhos adentro.
Tem pena do bom-serás, se calha só lho vai dizer na viagem ou quando chegarem, mas uma coisa é certa, pràqui não volta. Desculpa, Abel, não volto. Não é por mal, mas não posso, não volto. Acabou.
Problema vai ser a roupa, as malas, mas que alívio quando se vir longe. Dois anos. O trambolhão podia ser maior, tem fé que alguma coisa há-de arranjar, e se vir que demora, se for capaz de resistir à tentação, volta à Mussulo ou à de Alcântara, qualquer outra, e não tem de ser no bar, pra desenrasque tudo serve, até um bico na limpeza.
Sorri, olhos cerrados, zombando de si própria, ciente da mentira que se conta, porque à tentação nunca soube resistir. A noite é imã que a puxa, febre que lhe dá asas e faz render à música, possessa da dança, a perdição a comer-lhe as entranhas quando se entrega aos braços que mal a enlaçam, mas cercam de labaredas, o som e o ritmo a dizer que são a vida, o mais não conta.
E as mãos prendem-se, as pernas deslizam, cruzam-se, gingam separadas dos corpos, o dela quebrando pela cintura, levado por Kahori, o «Gandú», que a não olha nem sorri, atento aos passes, recolhido na celebração do ritual.
Se ganhar juízo passa de largo, mas sabe que é conversa, ilusão que se dá de uma força de vontade que não possui, nem de facto quer ter.
Afasta-se, os lábios repuxados num involuntário arremedo de zombaria para aquele corpo estirado na cama de braços abertos, pernas separadas, o bucho que sobe e desce, os beiços a tremer num ressono de criança.
Sufoca menos do calor da noite que de ódio e saudade, de medo, das ocasiões falhadas. Esforçou-se, quis mostrar-se agradecida, boa companheira, mas mesmo sem querer a todo o passo lhe vêm as comparações, o que deveria ser e nunca foi, o desespero, a náusea que dá o cansaço do fingimento.
Com pena, nunca lhe disse que não lhe dá gozo, nunca deu. Faz de conta e fecha os olhos, esquece-o ou relembra o Kahori, o Dongo, o Kanzé e os outros que a tinham feito mulher de verdade, ensinando-lhe a entrega, o desvario. Chora de mansinho, e como se a nudez a envergonhasse veste o pijama, seca os olhos, esfrega o nariz na mão.
No quarto de banho evita o espelho, abre a torneira e espera, mas a água continua a sair morna, hesita se descerá à procura de gelo, desagrada-lhe encontrar o velho, que ora adormece no sofá ora passa a noite no escuro, um cigarro atrás do outro, às vezes a parecer que tem companhia, quando muda de voz ou se põe a falar alemão.
Vai descalça, os degraus estalam, desconjuntados, ouve-se a resmungar que não é só o sogro que mostra aversão, parece que até o estupor da casa a quer ver pelas costas.
Pára diante do frigorífico aberto e bebe a coca-cola em goles apressados, a frieza do líquido a tocar o estômago. Volta a encher o copo. Passa-o pelo rosto, pelos braços, vai levá-lo de novo à boca e petrifica com o barulho da porta, o sogro estacado na soleira, franzindo o sobrolho, a mão estendida como se se lhe tivesse colado o dedo no interruptor.
Naquele momento, se alguém os visse assim iria pensar que era teatro. Encaram-se em silêncio, ela volta o rosto, a ignorar a devassa, ele funga irónico, demorando o olhar no decote, nas pernas nuas.
Deixou-se cair no sofá, e acena-lhe que se chegue como o faria a uma criança, a mão a bater no assento:
– Vem cá. Senta aqui.
– O que é?
– Temos de conversar.
– De quê?
– Estavas com sede?
– …
– Se calhar foi da foda, hem? Traz uma cerveja e senta aqui. Palavra. Temos de conversar.
Não o disse alto, mal terá mexido os lábios, mas ele adivinhou e exagera a gargalhada:
– À merda vais tu, Fräulein! À merda vais tu!
Vira-lhe as costas, tensa, vulnerável, treme ao ouvi-lo erguer-se e detém-se, encara-o quando o dedo lhe toca levemente o ombro:
– Só te digo uma coisa, menina, comigo não brincas. E vais-te arrepender. Ó se vais!
Entra no quarto, esquecida de que segura o copo, a tremer de uma aflição que é tanto da ameaça como da impotência que sente.
Debruça-se na janela, sofrendo o calor que pesa sobre tudo, fogo sem chamas, de parte nenhuma um alívio de aragem. Inesperada como um ataque de febre, toma-a a sensação de que alguém lhe faz lentamente rodar a cabeça, e dobra-se, aperta o estômago às mãos ambas a temer o vómito, a casa num balancé.
Corre para o quarto de banho e vai sentar-se na sanita, desnorteada com a dor e o torvelinho de aflições, incapaz de parar o rol de misérias, a vergonha de ter andado pelos conhecidos de mão estendida, tentando adiar. Que ao fim, lá em Toulouse, nem pílula nem camisas, o dinheiro fora-se, quando pagou os bilhetes sobravam oitenta euros.
Bonzão, a jurar que se acautela, sabe o que faz. Não te aflijas, Isaura, não acontece nada. Ai dele, se me emprenhou!
Há despertares em que um sentimento de premonição se adianta à tomada de consciência, dando ideia de que o instinto de defesa nunca nos deixa, mesmo no sono profundo se mantém alerta.
Mal acordada, Isaura demora a abrir os olhos, sentindo algo de que não saberia dizer se é vazio ou estranheza, como se enquanto dormia o quarto tivesse mudado ou houvesse ali uma presença.
Soergue-se, olha em redor e nada distingue de anormal, tão-pouco estranha que, quase meio-dia, se encontre sozinha na cama, pois também nisso são contrários: ele levanta-se no escuro, por si seria capaz de ficar na cama o dia todo, amorrinhada, odiando a claridade e o relógio, o calor que a apoquenta, a falta de propósito.
Não fosse o ter de fazer as malas voltaria a pegar no sono, tempo tem de sobra, mas espreguiça-se e, arrastando o passo, vai para o quarto de banho.
Pára um instante, a escutar as vozes em baixo, não distingue se é a televisão ou são eles, e encolhe os ombros, desinteressada, tomara que estivesse na hora de se pôr a andar.
Demorou na banheira, seca-se defronte do espelho, indisposta com o que lhe falta. Nem cremes nem batom, nos boiões nada mais há que rapar, nem adianta ir à procura do que sabe que não tem.
– Foda-se!
Praga avulsa, sem destinatário e de alívio nenhum, apenas ruído. Não lhe apetece o café, menos ainda fazer-lhes companhia, fica por ali, remexendo nisto e naquilo, despendurando um vestido para de novo o repor, que não vale a pena levar, atira a mala para cima da cama e abre-a, volta a fechá-la, olhando como se lhe ignorasse a serventia ou tivesse de fazer cálculos.
Em baixo a televisão rebenta num estrondo de palmas e gargalhadas, tudo treme, ouve passos de corrida, alguém atira com uma porta e desliga.
Deve ter sido o velhote, que é distraído, tem os dedos grossos, engana-se sempre no comando.
Tira mais roupa do guarda-fatos e deita-a à toa, só coisas dela, o gordo vai ficar de beiço caído quando descobrir que já não tem escrava. Cagarolas, aceita, e em vez de ameaçá-la ou de mandar, ser homem, encolhe-se, põe-se às risadinhas de puto no recreio.
Talvez porque foi tão forte, depois do estampido o silêncio é estranho, e vai ao patamar, espreita, não os vê nem ouve barulho, o mais certo é terem ido a algum lado, com certeza ao café.
Apanha a blusa, enfia os jeans, apetece-lhe um cigarro e num automatismo as mãos procuram nos bolsos, mas sabe bem que acabaram. Se tiver sorte, ele às vezes deixa lá a chave, bifa um ao sogro, que os arranja de contrabando e guarda as embalagens no armário.
Desce as escadas sem pressa, sorri ao ver o maço e o isqueiro na mesa, grande sorte, devem estar a fazer qualquer coisa ou às voltas com o carro, porque o velho é entendido e está-lhe sempre a mexer.
Aspira o fumo, consolada, vai espreitar à janela a ver onde estarão, mas nem precisa de se voltar para sentir que o sogro entrou, vindo não sabe donde nem como, a não ser que ao ouvi-la se tenha escondido nalgum canto, porque é desses, gosta de fazer surpresas.
Põe as mãos atrás das costas, miúda apanhada em falta, mas ele só diz olá à maneira de bons-dias, faz que não vê.
Encara-o e acena, a pergunta é tanto por curiosidade como a desculpar-se do abuso:
– O Abel?
Quando está para aí virado, o Meças é bom actor. O pasmo nos olhos, a respiração presa, o modo como nem muito nem pouco se lhe descai a boca, a mão contra o queixo, Isaura desconfia que só pode ser zombaria, gracinha que lhe apetece, e por isso hesita, mas finalmente arrisca:
– Não se ponha a brincar. Onde é que ele foi?
O actor tem-na presa, goza o momento, não por maldade ou sadismo, nunca ele próprio saberá que em momentos assim inconscientemente se alivia de feridas que há muito recebeu e desconhece.
– O Bolota? Ouve lá, estás no gozo?
Aquele espanto tem de ser genuíno, assusta-a vê-lo mudar de expressão, quase diria que mostra pena, ou talvez desdém, e por isso se aproxima, obedece ao gesto de ontem que ele agora repete, batendo a mão no sofá, apostado em lhe quebrar a vontade:
– Senta aqui.
E ela senta-se, apertando os joelhos, esquecida do cigarro, o corpo a tremer, a cabeça vazia.
– Que disse eu ontem à noite? Que te disse, hem? Que tínhamos de conversar. Lembras-te?
– …
– Disse ou não disse? Mandaste-me à merda, hem? E avisei. Que comigo não brincavas. Que te ias arrepender.
– Onde é que o Abel…
– Onde está? Espera aí. – Faz de míope, levantando o pulso para ver o relógio. – A carreira saiu às sete, pelas minhas contas falta pouco, se calhar até já chegou.
– …
– Ontem ia explicar-te, até estava capaz de mudar de ideias. Foste burra.
– Como é que eu agora…?
– Agora nada. O Bolota que te explique, não tenho a ver. Arranjas-te com ele ou voltas prà tua mãe, sei lá!…
– Emprestou-lhe o dinheiro, não foi?
– Foi, mas avisei logo, não era pra vocês irem por aí abaixo a gozar à minha custa. Tu ficavas.
– Ele não me disse nada.
– Se tivesses cabeça, tinhas-me deixado falar.
Acende um cigarro, a fazer de conta que a não vê limpar as lágrimas, e estende o maço, dá-lhe lume.
O silêncio durou. O Meças a bater o pé num compasso de impaciência, ela de olhos no soalho, como se dali pudesse vir resposta ou solução, na verdade desorientada, nauseada, inconscientemente a temer que qualquer gesto ou movimento disparasse a violência.
Foi ele quem a obrigou a olhar, apontando a televisão:
– Uma e meia. Não fizeste a comida.
Abana a cabeça e volta a baixar os olhos, aceitando a culpa, o corpo retesado a prever gritaria ou pior, em sobressalto quando a mão lhe prende o braço:
– Deixa lá. Uma vez não são vezes. Vai-te arranjar. Vamos ao Caçarolo.
Vê-a no patamar, olha de novo, mas de súbito é a recordação que se sobrepõe, e num tremor volta a cara, baixa os olhos, como se assim pudesse deixar de ver a Deolinda subir a escada e o Senhor Engenheiro atrás, a mão enfiada entre as pernas repuxando a saia.
Isaura estremeceu ao ouvir o grito surdo, um empurrão contra qualquer coisa, talvez cadeira, os passos dum lado para o outro, ressoando como patadas.
Deita uma olhadela ao espelho e penteia-se, mais hábito do que vontade ou interesse, olhando desconsolada para a carteira, a perguntar-se por que raio a leva se nada tem para lá meter.
Não se atreveria a escusar-se, mas o convite perturba-a, assusta, que ele, além de forreta, sempre a queixar-se das despesas, no tempo todo nunca os tinha convidado, nem sequer nos dias de festa.
Sabe que se arrasta, a mexer nisto e naquilo, sem propósito, temendo-lhe o mau génio e a desconfiar de uma generosidade que não lhe está no feitio. Até que, com um gesto que parece de indiferença, mas é raiva e desespero, atira para dentro da carteira o pente, o isqueiro, um pacote de lenços.
Aborrecido ou zangado, com ele nunca se sabe, o Meças tamborila no volante e acelera mal a vê sentar-se, ainda a fechar a porta.
Assusta-a aquela maneira de conduzir, os arranques bruscos, desvios de arrepiar, atirando filhos da puta e cambada de paneleiros nas ultrapassagens. Disfarçando, para que ele não faça reparo, aperta as mãos no assento, esforçada a esconder o medo e que não se lhe note a ânsia de vomitar, nem a dor quando o cinto lhe magoa o seio.
Ao passarem o Caçarolo esteve para perguntar se não era ali, mas calou-se, porque além de não ser de satisfações arrelia-se logo, leva tudo a mal.
Saíram da vila há-de haver um quarto de hora e de repente guina para um atalho, pára num descampado diante dum prédio com um letreiro que não consegue ler porque ele, numa inesperada mudança de humor, ao sair a agarrou pelo braço a apressá-la, quase jovial:
– Despacha-te. Vais ver o que é posta. Alguma vez comeste?
Acena que não sem saber o que seja, e deixa-se levar, entram num espaço que a surpreende, porque se não fossem as mesas iria julgar ser loja de quinquilharia.
É já tarde, os únicos clientes são cinco ou seis homens que acabaram o almoço e, trocistas, olham o par desirmanado, baixam a voz para a piada grosseira, continuam a conversa.
O Meças aponta uma mesa no outro extremo, sentam-se, demora um pouco a que o proprietário mostre que reparou neles e como que estranha a clientela, mas por fim aproxima-se, ronceiro, alheado, dando ideia de que com o modo e aquele sorriso vai dizer que a cozinha fechou.
O Meças, porém, não retribui o sorriso nem lhe dá tempo:
– Duas postas e tinto.
Perplexo, o homem estaca, hesita, o seu olhar encontra o do hóspede e avisa-se, muda o sorriso para a deferência, tira do bolso o caderno:
– Duas postas. Muito bem.
– E tinto.
– Com certeza. Água?
O Meças não o encara nem responde.
Dali a nada chegou uma rapariguita com pão e azeitonas, a caneca de vinho, e foram debicando, calados, ela distraída a olhar em volta, perguntando-se para que serviriam as gerigonças penduradas aqui e ali: tiras de cabedal, crivos, peças de ferro, de madeira, por certo coisas da lavoura, mas não ia perguntar.
Veio a carne e sorriu sem querer: daquela grossura e enchendo o prato nunca tinha visto.
O Meças notou a surpresa, mas à maneira dele logo virou a cara, olhos na mesa, agitando o garfo e a faca como se não comesse há três dias. Depois tinha-lhe perguntado se gostava, e respondeu que sim, a carne era diferente, saborosa. O molho também, muito bom.
De verdade custava-lhe comer, o estômago num aperto de agonia, temendo o que a esperava, incapaz de descobrir a razão daquela bondade. Perdia-se a imaginar de que jeito poderia amansá-lo, ou escapar-lhe, mas os nervos e o medo cortavam-lhe o pensamento, sentia-se amolecer, perguntando-se se o aceitar não doeria menos do que o tormento.
Mas de medo e nojo, no mesmo instante retesavam-se-lhe as entranhas, desatinava como se estivesse num filme: via-se a roubar as chaves do carro, que ele deixara na mesa com os cigarros, e deitar a fugir.
Desejo tolo, e por isso as cenas que lhe rodopiavam na cabeça só tinham começo, repetiam-se como saídas dum projector avariado. Pareceu-lhe que o vira sorrir ao encará-la, a adivinhar-lhe o pensamento, e mais tarde havia de recordar que o tempo todo nada mais tinham dito, nem sequer quando os homens passaram numa algazarra de bazófia e vinho.
O proprietário desaparecera, de vez em quando via-se uma mulher à espreita no postigo da cozinha. Talvez por estarem sós e aquilo ser grande, a televisão no alto com o som desligado, o ambiente parecia-lhe estranho, um lugar de ameaças, e a aparência de restaurante, um pretexto.
Não se arrependia de ter mentido ao dizer que a comida lhe soubera bem, mas… pudesse ser franca havia de confessar que sim, agradecia, calando a vontade de se ver longe e só, livre do temor do que iria acontecer, pois embora parecesse calmo nos trejeitos do corpo, e até como agora no modo de comer, trespassava nele a violência, dava a impressão de constantemente refrear uma cólera.
Viu-o raspar com o dedo o fundo da tigela de arroz-doce, e lamber os beiços, afagando a barriga, consolado.
– Bem sei que não se pode fumar, mas já não está ninguém, pois não? Queres? – Chegou-lhe o maço, ela acanhada, recusando com um gesto.
Bateu palmas e o proprietário mostrou-se ao balcão, a acenar que sim, tinha compreendido, dois cafés.
– Um bagaço. E a dolorosa.
Pagou, bebeu o café em dois goles, o bagaço dum só, ergueu-se sem olhar o homem, fingindo que não ouvia o agradecimento e o boa-tarde.
Sorriu-lhe ela, desviando o olhar, certa de que o medo e a dependência que queria esconder se liam no seu modo de andar e no jeito forçado de erguer a cabeça.
Esperava-a encostado ao carro, todo ele satisfação, rindo do que estava a magicar ou dos arrotos que largava um atrás do outro, oferecendo-lhe de novo o maço, um sorriso maldoso a entortar-lhe a boca, desafiando-a para que voltasse a negar:
– A esta hora o Bolotinha anda pelo Rossio! Dá-lhe uma apitadela.
Encolheu os ombros, e até à vila não falaram, surpreendida de que em vez de meter para casa, ele fizesse um rodeio, subisse pela rua da Caixa, virasse para a praça e fosse estacionar defronte da sapataria.
– Há bocado disse para telefonares ao Bolota. Não respondeste.
– Pra que hei-de telefonar?
– Que te diga porque foi sozinho.
– Você já disse.
– Mas pergunta-lhe. Quero ouvir. E porque é que ele não te acordou.
– Deixe lá.
– Liga.
O tom era de mau agouro, ele virando a cara como se de repente a sapataria o interessasse, e porque fungava, mostrando que ia perder a paciência, cedeu, os lábios a tremer, a voz um cicio:
– Não tenho saldo.
Agastado, tirou o dele do bolso da camisa e entregou-lho, seguindo os dedos, a certificar-se de que marcava o número.
– …
– Então?
– Não atende. É o voice mail.
Pegou no telemóvel e ia marcar, mas com um encolher de ombros fechou-o, parecendo que se desinteressava:
– Deixa.
Esteve um bocado a fungar, resmungando palavras que ela não compreendia, o olhar no vazio, dizendo às vezes «Pois é, pois é», e num assomo puxou da carteira, abriu-a, estendeu-lhe uma nota:
– Vai carregar.
Apanhada de surpresa embaralhou-se no agradecimento, perguntando-se se devia sair ou esperar, porque ele continuava a bater com a carteira na perna, ao jeito de quem se dá tempo de pensar.
Ganhara uma expressão que nunca lhe vira, talvez embaraço, a demorar, como se não encontrasse as palavras ou dizê-las o aborrecesse. E passado um instante, sem encará-la:
– Também já não te pintas. É do dinheiro?
Não respondeu, envergonhada, mordendo os lábios para reter as lágrimas, fingindo não sentir as notas que ele lhe metia na mão.
– Vai lá. Vai tratar das tuas coisas. – Empurrou-a ligeiramente, como se a apressasse. – Inda tenho que fazer. Não te esqueças da cancela do quintal e de pôr a tranca.
Agradeceu num sussurro, atabalhoada, tropeçando no passeio, descrente do gesto e de que fosse seu o rosto que a vitrina da sapataria reflectia.
Zwei tak! Pronuncia baixinho, fingindo que levanta o dedo, como se estivesse no Kaffee Keitel a acenar à Marika, embora nem dum nem doutra tenha saudades, a cerveja aqui sabe melhor do que aquela aguada, e mais quer um bagaço que dois ou três schnaps.
De vez em quando abre o jornal, distraído, não sabe se é da aguardente, de que lhe começa a faltar a vista ou da revoada de pensamentos desencontrados.
Ora a pensar no Bolota e com vontade de desancá-lo, ora a ver-se miúdo, cheio de medo, agarrado à irmã. Vem-lhe a falecida à ideia, e se a Isaura já estará em casa, o gosto que lhe tinha dado o Mercedes, quase onze anos com ele, o cheque da reforma que traz no bolso e não foi descontar, a receita na farmácia.
Acena, e o Diogo apressa-se, endireitando a bandeja a equilibrar a cerveja e o cálice de aguardente.
– Ó tu, como se chama isto na Alemanha?
– Isto quê?
– Uma cerveja e um bagaço
– O meu irmão se calhar sabe, agora eu…
– Zwei tak.
O rapaz sorri, acanhado, como se aquilo fosse brincadeira, e vai-se retirar, mas ele segura-lhe a manga:
– Estás com pressa? Diz-me uma coisa: que motor tinha o Trabant?
– O Trabant?
– Era um carro, motor a dois tempos. Zwei tak. E isto é o mesmo, aselha! Bebes o bagaço, um tempo. Vai a cerveja atrás, dois tempos, Zwei tak. Estás a perceber?
– Eu disso… – e para lhe escapar, antes que comece com birras ou leve a mal, finge de atarefado, passa o pano sobre as mesas vazias.
Já lhe tinha levado quatro bagaços e quatro cervejas, mas às vezes ninguém o tira dali, e se lhe pedem que se vá embora, porque têm de fechar ou coisa assim, dá sempre sarilho.
Vê o homem entrar, espera que se sente, mas não se apressa a atendê-lo, parece-lhe estrangeiro, não os compreende, fica aflito com o palavreado. Alguns dizem cerveza, e se querem café apontam a máquina, mas outros põem-se a falar como se a gente tivesse de os entender e zangam-se, parece que lhe deitam a culpa.
– Um café e uma água. Sem gás – pediu o estranho.
Sorri aliviado. Pela roupa parecera-lhe estrangeiro, mas pela fala não era, se calhar turista ou alguém de fora.
Volta para o balcão, evitando olhar o Meças, perguntando-se do que é que o maluco se estará a rir.
Os poucos clientes, gente conhecida, viraram-se para a televisão, fingindo não ouvir as gargalhadas, sabem que é melhor não ligar.
Quando começa tem de beber a conta, porque se o não faz vêm-lhe ao de cima as raivas que o assustam, nessas horas não sabe quem é nem para o que lhe dá.
À falecida não se lembra de quantas vezes lhe apertou o gasganete, e, na Alemanha, uma noite, a puta tirou-lhe o copo e sem mais nem menos pôs-se a rir, a mexer-lhe nos peitos. Avisou-a que parasse, não era gaja, mas em vez de ficar quieta o estupor ainda se ria mais, a mexer, a apertar, não lhe deixava os bicos, ia pôr-se a chupá-los.
Assentou-lhe uma em cheio e foi como se tudo se pusesse a andar à roda: ela aos gritos, a ficar roxa, ele perdido da cabeça, olhando os dedos em que não mandava, como se fossem doutro.
Veio o chulo e de repente era uma cambada contra ele, aos socos, aos pontapés, tanta porrada que o tinham deixado uma lástima. E ninguém lhe acudiu, nem os polícias, esses puseram-se a rir de vê-lo na sarjeta, pediram-lhe os papéis, quando viram que os tinha em ordem viraram-lhe as costas. A sorte foi ser sábado e não estar de turno.
Cabeceia e amodorra um instante, abre os olhos, bebe o resto da cerveja, hesita se pede mais ou já chega.
Pra casa não vou.
Tinha-o decidido ao fingir que empurrava Isaura para fora do carro, a mão adivinhando a pele, sentindo a quentura do corpo, e é disso que se ri. Não compreende a própria generosidade, é como se a decisão lhe fosse ditada e ele, sem se importar, achasse bem assim.
Mesmo com o Bolota perto, às vezes tem vontade de se atirar a ela, levá-la pra um canto, nem lhe dar tempo de chiar. Que de certeza não chia. Com aquelas saias e a maneira de rebolar o cu, é mais das que o andam mesmo a pedir.
Mas está dito, pra casa não vai. Antigamente tinha a Raquel, ficava em Vilar Formoso a acalmar. Isso há quê? Quinze, vinte anos? Não faz ideia, nunca mais a viu, se calhar morreu.
Levanta-se, tira o porta-moedas do bolso e conta o dinheiro, fica encostado ao balcão a modo de quem pensa sobre o que vai decidir, acende outro cigarro, olha a porta, a calcular se lá chega sem ir aos bordos.
Hesita no passo, pára um instante a apoiar-se na mesa do desconhecido. Atenta nele, pela cara não o tira, mas parece-lhe estrangeiro e é como se já o tivesse visto, pode ser alguém que conheceu lá, sorri, pergunta familiar:
– Sprechen Sie Deutsch?
– Desculpe? – O homem olha-o de bom modo, e ele, de súbito encavacado, já não sabe porque lho perguntou, retira a mão da mesa, faz um aceno de desculpa.
Hesita na porta que abre e fecha, à segunda vez passa, tropeça ao deixar o passeio, mas dali por diante tem a impressão de que vai direito.
Com o alívio de carregar o telemóvel e fazer compras, como que se lhe tinha desligado o entendimento, só ao dar com a bandalheira da roupa espalhada e a mala em cima da cama, coisas no chão, é que a ideia lhe ocorreu.
O dinheiro que sobrara era à justa para a carreira da manhã, e assim que o sogro voltasse explicava, tinha a certeza de que não ia levar a mal, para ele até seria um descanso. Era bruto, desconcertado, ficava a gente de pé atrás, ainda mais se estivesse com os copos, agora de repente parecia ter mudado de todo, e a ela, que lhe conhecia o feitio, custava a acreditar.
Fosse como fosse não se iria embora sem lhe dar satisfações. E se não deixasse? Ou não aparecesse? Com a bebedeira às vezes passavam-se dois, três dias que não lhe punham a vista em cima.
Horas a hesitar entre o sim e o não, entretida com as compras, mexendo nisto, naquilo, esquecera o tempo, há muito fazia escuro quando se lembrou do que ele tinha pedido e saiu a pôr a tranca no quintal.
Depois, por duas vezes desceu a certificar-se de que tinha fechado bem a porta da rua, e nesse momento, como num ataque de febre, o temor que conseguira reprimir apossou-se dela, correu para o quarto.
Encheu a mala à toa, desinteressada do que deixava, certa e segura de que iria na carreira das sete. Num acesso de nervos já não procurava desculpas nem sentia remorso, ele e o filho que se arranjassem, a única coisa que contava, agora mais porque julgara a ocasião perdida, era escapar, ir para onde não se sentisse enjaulada nem tivesse de dar contas.
De vez em quando espreitava do patamar, julgando ouvir barulho, assustada de que tivesse entrado e a fosse surpreender. Mais tarde, descalça, aproximou-se do quarto dele e encostou-se à porta um instante, à espera de ouvi-lo ressonar, mas só lhe chegavam os fracos ruídos da vila a adormecer.
Aumentou o som do telemóvel, pôs o despertador para as seis e, julgando que rezava, adormeceu.
Deve ter estado no alto da serra, mas não tem ideia de como lá foi nem quanto se demorou, só julga recordar o barulho dum avião e faróis na estrada, o que tanto pode ser de agora como doutra altura.
Volta ao carro a certificar-se de que o fechou, e está de novo à porta de casa, o relógio da igreja badala as quatro quando se debruça à procura do buraco da fechadura. Abre e entra, cresce nele um inesperado sentimento de euforia, ao tirar a chave hesita, finalmente guarda-a no bolso, faz o mesmo com a dos arrumos e a do quintal.
A apetecer uma cerveja, vai às arrecuas para a cozinha e abre o frigorífico, tira duas, resmungando do brilho daquela luz que o cega e fere os olhos.
Sobe de gatas, com os vagares da bebedeira, perguntando-se como segura as garrafas que leva na mão, e sorri, maldoso, ao relembrar a alegria que o tomou ao entrar.
Pára diante do quarto da nora e tacteia o fecho, sem ideia nem intento do que fará se estiver aberta. Está fechada. Encosta-lhe o ombro, como se a quisesse arrombar, mas é fingimento, brincadeira de que ele próprio se ri, dali a nada cai de borco na cama, uma das garrafas quebra-se no chão.