DEVIDO TALVEZ À LONGA AUSÊNCIA, quando cheguei surpreendeu-me, quase diria que me assaltou, o cheiro da terra transmontana, o odor que se me deve ter entranhado à nascença e agora aspiro com a satisfação de viciado a quem faltou a droga.

Há aí retalhos de memória e alguma fantasia, pois desapareceram os montes de estrume a fumegar, não se vêem cagalhetas nem bosta, nenhum forno coze pão. Todavia, sem que os chame, esses cheiros antigos vêm de mistura com os de resina e terra seca, dos eucaliptos, das encostas que são mares de esteva, giesta, urze e rosmaninho.

Para mim continua no ar o relento de terra lavrada, do fumo acre de lenha a arder, mosto, figos, maçãs podres, bedum, o calor cheiroso das vinhas ao fim da tarde, o das pedras torradas pelo sol de Agosto.

Ontem, ao rever o lugarejo onde nasci, desabitado há vidas e que dentro em pouco se afundará na albufeira da barragem do Sabor, mais do que serem vivas as recordações, todas me chegaram acompanhadas de cheiros: o de pólvora na roupa de meu Pai, do soro do leite nas mãos da Felisbela a fazer queijo, do sabão de potassa, o das chouriças a defumar.

Há muito que tudo ali é abandono, fim, em parte nenhuma vi, nem poderia ver, candeeiros de petróleo ou lampiões de azeite, botas ensebadas, feno, a palha húmida, a urze repisada do mijo das bestas para fazer estrume, mas a cada porta de casebre, nos muros arruinados, no que ainda está em pé do que foi a nossa casa, por toda a parte me acompanhou, penetrante, a memória desses cheiros, como se por instantes fosse devolvida a parte de mim que há muito cientemente descartei.

A história alheia pode ser agradável leitura, à leitura da minha só me dou quando como agora as circunstâncias obrigam, pois me faz encarar o que prefiro esquecer e leva a juízos que, sei-o de antemão, apenas servem para tornar mais espessa a carapaça com que me guardo dos outros.

Não é caso de que vá alargar-me em confidências ou detalhes, pois nem os factos são sempre como se contam ou o que parecem, e dentro da família, nas relações que mantemos, o que sentimos e mostramos ou não, as palavras que nos saem da boca, tudo é sujeito a incompreensíveis mudanças. A realidade de hoje vemo-la amanhã como tonta fantasia, mostra-se de pechisbeque o que pareceu genuíno.

Talvez parte da tragédia da vida se deva a que nenhum artista iguala o tempo no mudar de ângulos e perspectivas, no fundir dos coloridos, nenhum como ele nos leva por tão enganosos bastidores ou cria máscaras de perfeição igual.

Foi surpresa encontrar o Meças no café, e sorte que ele tenha passado sem me reconhecer, pois não parecia em maré de ouvir, nem eu decidi ainda qual a ponta por onde hei-de pegar para resolver o que a ambos diz respeito, mas já só a ele afecta.

A mim, passado o choque, sobrou-me tempo para atingir uma quase indiferença, foi como se visse peças desirmanadas dum puzzle que, julgara eu, não pertenciam todas ao mesmo tabuleiro, encaixar-se nele pela arte mágica de que só a vida tem o segredo.

Há muito deixei de me pôr interrogações inúteis. Consegui libertar-me de culpas que supunha minhas, aquelas de que os pais, inconscientemente ou não, se mostram tão capazes de assacar aos filhos e nestes deixam marca para a vida.

Terei de pacientar, mas fácil não vai ser, nem é previsível a reacção do Meças, que, assegura a advogada, continua igual de violência e repentes, imprevisível no modo, difícil no trato, perigoso com o vinho.

Fora a da pobreza em que se criou, razões todos temos para que nos falte a paz, e a ele por certo irão sobrar, pelo que já umas quantas vezes me perguntei se não será melhor arranjar maneira de que, sem saber donde lhe vem, receba o que lhe devo dar, e ir sossegadamente embora sem me dar a conhecer.

Prometi-o a minha Mãe, não me passaria pela cabeça deixar de cumprir. Contudo, que benefício lhe pode trazer a revelação de um segredo que foi a enterrar com aqueles que o partilhavam e agora só eu conheço?

É improvável que venha a sentir-se feliz, antes me parece que irei aumentar as razões do seu desequilíbrio, pois nada garante que receba a notícia de sangue-frio ou seja capaz de entendimento bastante para conseguir suportá-la.

Pessoalmente, a confidência de minha Mãe foi-me menos uma revelação do que uma ajuda para, até certo ponto, compreender a estranheza do meu passado, a figura de meu Pai, a bizarra maneira como vivíamos, a singular família que éramos e, sobretudo, o ambiente do lugarejo, onde por razão do isolamento, os costumes e modos de viver figuravam tempos remotos.

Para aceitar que assim foi e em parte diminuir as más recordações, muitas vezes me obrigo a reviver o passado como uma irrealidade, fábula que invento e na qual só meu Pai avulta. O resto somos personagens secundárias ou, descendo na escala, apenas sombras e vultos.

Montes escalavrados, encostas de luz, encostas de sombra, outeiros, um rio a marulhar apertado na estreiteza de fraguedos, mais arbustos do que árvores, casario em longes que a vista mal enxerga. Imutável desde a Criação, daquela paisagem sempre fiz cenário de teatro, dizendo-me que por detrás dos penedos e dos baldios começava o mundo, maneira que tinha de, criança ainda, lhe suportar a ameaça e a formidável imponência.

Falo de quando a realidade era a da minha fantasia, não tanto porque desse modo conseguisse alindar o que me cercava, mas para tudo reduzir a proporções que me oferecessem refúgio, e assim conseguisse amenizar os meus temores.

O que anteontem apressadamente visitei, com o sentimento de tornar ainda mais estranho o que via, e a esconder de mim próprio a crueza do que foi, causou-me a impressão de que testemunhava um funeral a caminho da sepultura onde, em simultâneo e sem bênção, iam a enterrar pessoas, casas, vivências, animais, lugares e memórias.

É-me escasso alívio o saber que escapei, pois em demasia são as horas em que o passado me cerca com uma ferocidade de matilha e a arte do carrasco que, doseando a tortura, aumenta o sofrimento.

Chamam-lhes quintas, mas por estes lados o significado não é o que se espera: são umas poucas casas aqui e ali sem razão que se adivinhe, as paredes dalgumas a denunciar o palheiro que foram, esta e aquela mostrando uma esperança de melhoria na mão de cal, na garridice das malvas, os ramos de manjerico, o pé de vinha a sombrear a porta.

Comparado a outros lugarejos, Quintas do Maçarico era quase um povoado, e entre pobres, menos pobres, a do Cegonho, a do senhor Acácio e a nossa, seriam à roda de uma dúzia as casas, umas poucas juntando as paredes, as mais espalhadas ao azar das heranças, de desavenças e partilhas malfeitas. Rua não havia, só caminhos, as canelhas dos palheiros, e um largo diminuto entre a nossa porta e a da Bexigosa, onde uma tília dava sombra, quase encostada a duas amoreiras, tão secas da idade que raro mostravam folha.

Para o lado do rio, meio escondidas entre fragas, as choupanas dos ciganos, que só o eram na alcunha e na estranheza do seu viver, gente a quem bastava a esmola e o pouco que havia para roubar.

A nossa havia de chamar-lhe a atenção, por parecer o dobro das outras e estar caiada, mas forasteiro que por ali se perdesse veria casas toscas e palheiros, um ou outro garoto, cachorros, anciãos, mulheres silenciosas a puxar o bioco para a testa, espreitando com um modo antigo pelos olhos em fenda. De mais não daria fé, que lugares assim ignoram o mundo, fecham-se no medo, na pobreza, nas vergonhas que se segredam com rodeios e acenos, os olhares dizendo o que as palavras temem.

Dos homens restavam os de menos força, os outros tinham-se sumido do dia para a noite, falava-se deles em sussurros, esconjurando, de medo, que não voltassem, que também lá por onde andavam a vida lhes corresse mal, ou alguma sabida lhes deitasse o anzol.

À vila, lonjura num subir sem fim e voltas sem conta, só se ia em último aperto de doença, contribuição ou mortório, porque nem capela ou cemitério tínhamos.

Nesse tão perdido lugar vim ao mundo, mas para pouco mais conhecer dele fora a nossa casa, o pátio murado, a pocilga e o galinheiro. O resto espreitava-o duma janela ou doutra, às vezes da sacada, menos interessado no passar de alguém do que nas andanças da cozinha, onde Felisbela e a minha Mãe, ambas de poucas falas, se apressavam, ora na comida, ora em afazeres que escapavam ao meu entendimento ou de que não conhecia a precisão.

Cachorros eram dois, grandes, pastores que nunca tinham visto rebanho nem monte, acorrentados à casota, as galinhas e eu a sua companhia, todos nós, de facto, como a Mãe e Felisbela, presos sem algemas, degredados dentro das quatro paredes, sujeitos ao mando e à vontade do Pai.

Adianta recordar? Aprendi que não. A memória tem chagas que nada sara, nada fecha, insensíveis ao tempo, constantes na dor. Tocar-lhes aumenta o sofrimento, remexer no que foi é sem proveito nem paz, basta já quando a recordação nos assalta, inimigo que trazemos nas entranhas e a horas mortas fere sem aviso.

Mas quem me garante a certeza do que lembro, do que doeu, dói ainda? Foi assim? Não será a minha maneira de procurar explicação para o que, criança, não abarcava, julguei realidade e ficou?

Da despedida lembro o choro, posso ver minha Mãe e Felisbela a acenar, mas a viagem é como se tivesse sido em sonho e pelos ares. Saio da nossa casa e, sem passagem de tempo ou novidade doutros sítios, vejo-me ir pela mão de meu Pai numa rua de muito povo, que me assusta pela grandeza, o barulho, o imenso casario, até que estamos diante duma porta que, sem eu compreender como nem ver gente que o faça, de repente se abre.

Subimos. Fazia escuro. Tropecei nos degraus. Recordo a mulher de ar bondoso que sorri e me beija, vamos atrás dela para uma sala de janelas altas, espantosa de tamanho e do que por ali há de mobília, santos, bonecada que desconheço.

Mandam-me sentar. Ao mesmo tempo que pousa a mala no chão, meu Pai diz qualquer coisa à mulher e ambos riem, ficam a conversar, olham-me de vez em quando, mas, não sei porquê, compreendo mal o que dizem.

E abrupto como começou o filme termina. Há muito perdi a conta das vezes que sem resultado tentei reconstruir esse dia e os primeiros tempos, esbarro sempre no mesmo último episódio: a mala no chão, a mulher a sorrir, o meu Pai que me aperta a bochecha, resmunga um «Porta-te bem!» e sem mais adeus volta as costas, desaparece.

Terá sido assim? Será que enegreço a aflição do abandono para justificar a raiva que em mim foi aumentando e o inconsciente desejo de vingança?

Por ser corrente, suponho cada vida um enfiar de casos, memórias, rebuliço, o que me faz aceitar mal e como de menos preço a minha, uma de isolamento, esse tanto mais doloroso quanto nela é permanente, mas secreto o anseio de companhia.

Porque o destino o quis, há muito deixei de lutar, procurando não a impossível mudança daquele que sou, mas fugindo na invenção de mim mesmo, um pouco à maneira do bicho que para se defender escolhe a aparência que mais seguramente o disfarça. E é por certo para melhor me ocultar que torno mais vivos e detalhados os outros, que levanto o biombo atrás do qual desapareço e os deixa a eles no palco.

Do Pai lembro a estatura, as carrancas, a voz com que dizia «Sai daí! Pára com essa merda!», como se tudo lhe desagradasse ou fosse avesso, e o modo de andar, a pressa de quem vai ao ataque e espera o caminho desimpedido.

Eram da sua criação, vizinhos de sempre, mas tratava pior que servos os jeireiros que lhe cuidavam dos olivais. De mau modo e aos berros, fazia-os esperar pela paga, que não eram horas ou tinha mais que fazer, viessem amanhã, um amanhã que era prà semana ou depois, e então, enraivecidos, já não vinham eles, mandavam as mulheres esmolar em segredo que a minha Mãe acudisse, já ontem se lhes acabara o pão.

Às escondidas, a chorar com elas, a minha Mãe abonava a medida do azeite, enchia de batatas os aventais, cortava-lhes metades de bola centeia e fazia-as sair pela porta da adega, murmurando que acabassem com o «seja pelas alminhas de quem lá tem».

Ignorante das diferenças, eu assistia sem compreender, estranhando os soluços, o desespero das faces arrepanhadas, supondo a pobreza um castigo que alguns mereciam por desagradarem a quem mandava.

Recordo. Há vezes que manipulo sem dar conta, passo por alto o que deveria esmiuçar para ver claro no que me rodeava, no sentir de então, naquela parte de mim que por defesa escamoteio. E pergunto-me: para quê? Porque remexo no que findou, um passado que só eu conheço, a ninguém interessa, e de facto agora só ao Meças toca?

Mal chegado ainda, e lugares, memórias, gente, as palavras, tudo me parece de um tempo estranho num país que nunca foi, tão de raiz tenho a vontade de eliminar, reduzir a nada, pôr-me a salvo dos fantasmas que aqui me atormentam.

A poucos será dado compreender como é possível sentir-me bem em terra longínqua, privando com gente que em pouco se me assemelha, no meio da qual me obrigo a uma aparência que me fez tão consumado actor que por vezes a mim próprio surpreendo, encontrando mais conforto no papel que faço do que na pessoa que sou.

Certo é que me prefiro anónimo, e quando posso escolho a solidão, avesso que sou a exibir e a partilhar, a sofrer dependências, prestar contas. Ninguém, todavia, adivinhará em mim o solitário, pois bem novo comecei o tirocínio, ciente de que aquele que se cria como eu não tem armas com que se defenda, nem saberia usá-las se as tivesse ganhado.

Deixado a mim próprio, cedo descobri que melhor caminharia sozinho, não me estavam na natureza laços nem cadilhos, pertenças ou aderenças, a memória de meu Pai desencadeando no íntimo reacções extremas, ora de raiva e asco, ora de um medo infantil, potente e permanente como uma maldição.

Faço o que posso para calar a memória, olhando o tecto do meu quarto neste hotel provinciano e pretensioso, isolado na serra, artificial no arranjo e de fraca pensão, mas o menos mau dos daqui em redor.

Assentaria bem no alto onde está, não fosse a arquitectura modernaça, a postura de novo-rico e um não-sei-quê de melancolia, como se o edifício se veja ali contra vontade ou se envergonhe de sentir que os montes o encaram e vêem com maus olhos a intrusão e a promessa de ruína.

No tempo que aqui passo entretenho-me com o ambiente, e porque não sou de conversas de bar, familiaridades, ou cortesias, gasto a imaginação a fabricar histórias sobre a vintena de hóspedes, se bem que no geral de aparência e atitude fiquem pelo pouco excitante corriqueiro: gente que nunca viu montes e mostra o seu pasmo, citadinos equipados para os Andes, senhoritas a imaginar-se em estância de luxo, fazendo boquinha para dizer spa, resort, vou ao lounge, pares de meia-idade e queixo pendente a quem tudo parece enfado, adolescentes sofrendo as hormonas, casalinhos a imitar ternuras da publicidade.

Felizmente, há uma figura que destoa no postiço do lugar e das atitudes: sessentão, o garbo acentuado pela magreza, longas melenas grisalhas, o senhor veste linho branco como os coloniais de antigamente, deles guarda o azedume autoritário com que fala ao pessoal e atende os que lhe vêm com petições ou esperam ordens.

Isolado num recanto, pernas estendidas, fazendo girar a bengalinha de castão de prata, escuta os requerentes com um ar de soberano tédio, acena que sim a este, despede outro com um agitar dos dedos, quando se levanta mostra uma displicência aristocrática, e os que ali estão recuam, abrem alas, demonstrando o misto de respeito, subserviência e medo que se espera dos oprimidos na presença do ditador.

Dizem-no rico, poderoso, com relações no governo, ligado a tudo o que por esse mundo fora são grupos de influência e alta finança. Pelo que corre, o extraordinário interesse que criou por este longínquo e atrasado sítio parece dever-se menos a acúmen financeiro do que ao seu espírito humanitário e a uma inspiração que, à maneira dos mandamentos, terá recebido do Altíssimo.

Ouvi de uma empregada que não demorará a que tudo por aqui esteja revirado: ele vão ser hotéis, ele vão ser lagos com grandes praias e ondas artificiais, ele vão ser discotecas onde caberão milhares, uma pista de esqui, parques, circuitos de corridas, um jardim zoológico, lojas de luxo, campos de golfe, campos de ténis, campos de aviação.

Sussurrando isto e a olhar de esguelha para o homem que, como convém aos seus tantos milhões, ocupa aqui duas suítes, a rapariga acrescenta que até vai haver um centro médico com seis ambulâncias e helicóptero.

– Graças a Deus acaba-se a pobreza!

Não a contradigo nem comento. Pela vida fora não é a primeira maravilha que oiço, nem me pasma a crença desta boa gente que ainda vai à bruxa, há uma geração corria a ver o milagre do sol em chamas a rodar no céu e defumava os doentes para que se livrassem do espírito maligno.

Calo a vontade de repontar e, porque não vejo razão para desfazer sonhos, finjo até crença, cumplicidade, mas no íntimo dá-me uma agonia que não vem só daqui, de agora, nem da charada burlesca que vejo desenrolar-se, sim de um fundo onde me dói ser quem sou, pertencer a esta terra, e quando nela me encontro sentir-me impotente, agrilhoado, como se em vez de um país de verdade me veja numa quermesse de dependências e jeitos, favores, golpes de todo o feitio, medos e ameaças, anseios irreais, amanhãs que nunca chegam.

Ali no canto o homem dá audiência e despacha como lorde em salão de castelo, nem sequer falta o secretário que, reverente na postura, lhe traz um por um os solicitantes.

Em certas tardes, hierática, esfíngica, de palidez nórdica e vestida de sedas que a cobrem por inteiro, senta-se com ele uma estrangeira a quem nunca se ouviu palavra. Dizem-na uns concubina, garantem outros que é a mulher do capital e mais rica do que as Arábias. Certas manhãs, antes de o Sol nascer, vêem-na agachar-se junto da piscina, virada para o nascente, em pose de ioga e olhos fechados, murmurando como se estivesse a rezar.

Subitamente desaparecem ambos. Ouve-se então que viajaram para o estrangeiro, e como de costume os foram levar a Valladolid, onde ele deixa o seu avião particular, grande demais para os aeroportos da vizinhança.

Rocambolesca história, imperdível personagem que vai pelos cafés prometendo empregos, regalos, mordomias, apontando ao séquito onde planeia construir isto, mudar aquilo, fazer novo, derrubar o caduco, garantindo que a este duplicará o salário, aquele passará a chefe dos seguranças ou dos bombeiros, ao miúdo atilado vai pagar os estudos, o filho da viúva pode abrir a garagem, trabalho de sobra.

Que a farsa só pode acabar mal augurei-o a uns hóspedes que insistiam na minha concordância e me acharam escusadamente céptico, derrotista, descrente do que mostram os jornais e umas quantas vezes já deu na televisão. Porque a coisa, garantem, vai em acelerado, passou a Assembleia da República, o mês passado foi entregue ao ministro.

Assim será, mas eu há muito perdi a capacidade de me maravilhar, a vida curou-me de sonhos, fez barrela do que na minha inocência e ignorância tive de teias de aranha e ingenuidade patriótica.

Bem gostaria que fosse doutro modo, e talvez um dia, chegando a velho, me sinta capaz de menos azedume, aprenda a limar arestas e a fazer concessões. Por enquanto, todavia, cada esperança que me dou, ilusão que acalento, promessa que me juram, quase sempre parece ter de vir acompanhada do seu contrário, a ponto que às vezes duvido do meu sentido do real e da capacidade que suponho ter para ajuizar as acções e os intentos alheios.

A advogada que trata da indemnização dos terrenos que a barragem irá submergir é caso exemplar da minha fraca sintonia com o semelhante, dando-me por vezes a impressão de que não falamos a mesma língua, nem às palavras e aos modos damos igual significado.

Vai em quase um ano que o assunto começou, passa de três semanas que cheguei, mas rara é a ocasião em que não tenha de desfazer o feito, recomeçar o que julgava pronto, acrescentar isto, registar uma vez mais aquilo, satisfazer exigências que desafiam o entendimento. A assinaturas, relatórios, pareceres, carimbos e certidões perdi a conta, para paz de espírito já não discuto honorários nem taxas.

Se há necessidade vemo-nos no seu escritório, num ou noutro dia convido-a para jantar aqui, e desde o começo pelos vistos reparou que a paciência não é o meu forte, pois só já traz a papelada urgente, reduz ao preciso a informação sobre o que pomposamente insiste em chamar «os trâmites», e aligeira a conversa ou desvia-a para o Meças, curiosa de saber do meu interesse pelo sujeito de má fama e, fora o sermos do mesmo lugar, que relação terei com ele.

Não me esquivo à resposta, fico por dizer-lhe que é assunto pessoal, se por acaso houver motivo para isso a seu tempo o saberá.

Cala-se, escondendo mal o amuo, pouco habituada a respostas directas, mais à vontade nos circunlóquios e fórmulas da sua profissão, mas não desiste: faz um rodeio, fala de ninharias, volta ao Meças. Adivinhando o jogo, e como por tão pouco não vou perder a calma, repito bem-humorado as minhas razões, mudo o assunto.

Foi assim que no terraço, depois do jantar, a acendermos os cigarros, olhando o negrume das fileiras de montes, ela acabou por falar de si própria.

– Se não fosse aquela ponta da serra via-se daqui a minha aldeia.

Por cortesia, ou a fingir interesse, nesse momento deveria eu ter produzido um som qualquer, ou ao menos fazer um gesto que mostrasse que tinha ouvido, mas quando reparei já ela voltara a cabeça e, puxando um lenço, enxugava discretamente os olhos.

– Não faça caso. É do gim. A mistura com o vinho não dá certo.

Disse aquilo num sussurro, a melancolia do tom a contradizer a indiferença das palavras, o que me levou a tocar-lhe o braço num gesto de simpatia e inútil conforto, que ela pareceu não notar.

Virando-me as costas, esmagou o cigarro e, os braços descaídos, a cabeça pendente, foi encostar-se ao muro, dando a impressão de alguém que hesita numa confissão ou teme um castigo.

Desconcertado, sem experiência que me ajudasse a enfrentar o equívoco, mas também aborrecido com a lamechice de que não sabia a causa, ia voltar ao bar, quando ela de súbito correu a apertar-se contra mim, tomada de um choro convulso, a cabeça escondida no meu peito, numa aflição tão grande que em meu juízo tinha de ser drama ou falcatrua que decidira revelar.

Aliviado por nos encontrarmos sós, tentei confortá-la, dizendo as palavras que em momentos assim pouco ou nenhum sentido fazem, e ela, aliás, parecia não ouvir.

Dei tempo a que se acalmasse e, segurando-lhe o braço, sugeri que voltássemos ao bar:

– Vamos pra dentro, Carla. Mais um gim só nos pode fazer bem.

Para minha surpresa e perplexidade, em vez de me seguir vi que sem razão se detinha, levando-me a crer que lhe dera um ataque de histeria ou tivesse enlouquecido, pois por entre os soluços desatara num riso sufocado:

– Desculpe! Não faça caso!

– Mas do que se está a rir?

– Se lho disser vai-me achar destravada, não acredita.

– Acredito.

– Sabe que foi a primeira vez que disse o meu nome?

– Não compreendo. Como assim, o seu nome?

– Palavra.

– Mas então como é que a trato quando nos encontramos? Ou ao telefone?

– Muito correcto, mas sempre impessoal, nunca diz o meu nome, nem me trata por doutora. Ao princípio achei estranho, depois disse para comigo que talvez fosse hábito onde vive e já nem ligava. Agora apanhou-me de surpresa.

– Está bem. Mas não era por isso que estava a chorar, pois não?

Não faço ideia há quanto tempo aqui estou, absorto, repassando cenas e ocasiões, pessoas, figuras, gente viva, gente defunta. Oiço restos de conversa e diálogos, frases soltas, mas desta vez não me perdi a remoer a infância nem os percalços da juventude: cedendo a um incompreensível masoquismo, enfileiro umas quantas ocasiões dolorosas de falha, medo, vergonha de mim próprio.

Há muito padeço da obsessiva necessidade de registar, talvez pela esperança inconsciente de que feito o assento veja claro, consiga destrinçar o que realmente foi daquilo que para meu conforto inventei, tentando desse modo emprestar a certas vivências a segurança de um princípio, meio e fecho.

Mas nunca assim é. Tudo começa e se evolve num antes que me escapa, somem-se as causas e o acontecido em nevoeiro, idem as consequências. E a felicidade que então me cabe, ou o desaire que magoa, raro vem donde espero ou parece.

A minha memória tão-pouco se mostra fiel, pronta e muito capaz que é de emendar, de torcer, servindo interesses que variam à mercê das inesperadas conveniências do sentimento e do remorso, da humilhação ou do segredo.

Nas recordações em que me perco, sobram dúvidas, perturba-me a insegurança do julgamento. Ora vejo que sem razão válida e cego para a evidência começo a alindar, minto a mim mesmo, ora me sujeito à tortura de exceder na crueza, recusando atenuantes.

Tenho contas a ajustar com as mulheres que de facto contaram na minha vida, e as mais das vezes é-me doloroso reviver o tempo em comum, não tanto porque seja caso de faltas e acusações, antes desencontro dos corpos, choques da sensibilidade, modos de ver, de julgar, e ainda os pecados e pecadilhos que, agora à defesa, agora ao ataque, nos fazem de começo peritos na guerrilha conjugal, para um dia, generais derrotados, nos vermos a enfrentar armistícios que não curam chagas nem apagam cicatrizes.

Duas deixaram marca, ambas amei e ambas perdi, mas para meu bem e sossego a memória vai-se esfumando, sem fotografias custar-me-ia recordar-lhes as feições, quase tudo apaguei dos seus vícios e virtudes.

Por vezes a sério, em geral num tom de maliciosa ironia, os poucos que me conhecem têm dito que, seja qual for a bitola, duas mulheres são pouco, estranhamente pouco, na vida de um homem de meia-idade em boa saúde, mas que extramuros de certeza não me faltam ligações.

Ironizo também e passo por alto, dispenso-me de partilhar confidências, sorrio quando pedem que lhes conte aventuras, lhes diga se de facto as enfermeiras… Todavia, incredulidade e choque sentiriam se lhes confidenciasse que, embora sem falta de namoros, ainda era virgem aos dezoito, a sombra de meu Pai, garanhão bruto, fazendo que me envergonhasse da sensibilidade e do desejo, temeroso de me descobrir desajeitado, impotente, nem por sombras capaz de alcançar a sua craveira, ouvindo ecos do vozeirão a troar nos meus ouvidos de criança: «Salta daí, medricas! Vai bater punhetas!»

Visão de sonho e momento isolado em que só o presente existe, não há nele cabimento para historiar razões ou detalhes. É apenas um instante. O resto esvaneceu-se, de nada interessa se foi a primeira ou a segunda, como éramos então, qual o ano, o ponto do mundo, se a desgraça vinha de atrás, ou foi boa fortuna o que a seguir mudou.

Estranhamente, como desde o divórcio acontece, só chamo o seu nome em pensamento, incapaz de o dizer em voz alta, receoso de que pronunciá-lo abra uma brecha na determinação de cortar com o passado e, uma vez que seja, por descuido me deixe amolecer com a lembrança do que foi maravilhoso, mas irremediavelmente acabou.

Revejo-a na desinibição com que Carla começou a despir-se, mas, no instante seguinte, a luz a mudar, o quarto de hotel desvanece-se num fade out cinematográfico, dá lugar a uma sala onde estou pela primeira vez.

Contra a parede avulta o divã em que me sentei, há estantes, um relógio antigo, gravuras, plantas, um ramo de amarílis, um espelho, numa peanha de mogno uma lamparina acesa, um buda de marfim. A única janela é alta e estreita.

O sapato de verniz preto e salto alto que a rapariga, esticando a perna num movimento impaciente, fez voar ao descalçá-lo caiu ao meu lado.

Vejo-a curvar-se quando desaperta o vestido que deixa no chão e, displicente, empurra com o pé. Seminua, aproxima-se da janela, detém-se na claridade baça da tarde de Inverno, fecha o cortinado e, de costas, ergue vagarosamente os braços, sacode os cabelos, despe o resto.

Conhecemo-nos há horas, sigo-a desnorteado pelo imprevisto, tomado de força estranha, inquieto com o sentimento de que não me pertenço e sinto outro, a vontade diluída em expectativa. Desejando intensamente ser másculo, aquele que toma a dianteira e mostra força, aquieto-me paralítico onde ela apontou que ficasse.

Erecta, a um passo de mim, tudo no seu jeito manda que espere, me deixe hipnotizar pela beleza, sofra a vertigem do almíscar que a pele exala, descubra o arrebatamento da obediência, aceite que ela me guie. Numa irrealidade de sonho, não compreendo porque me resigno, escapa-me o significado da sua expressão: os lábios entreabertos a desdizer a calma do olhar, a doçura do rosto nega os músculos tensos, a febre do corpo é o avesso do controlo. Vem para mim, sustentando os seios com um gesto natural, como a ajeitá-los, e enlaça-me, beija-me nos lábios.

Foi derrota. Derrota previsível pelos empeços que carregava comigo: a inexperiência, a ansiedade da iniciação, a lista de agravos de meu Pai, sabe Deus quantas inseguranças mais. Mas derrota só minha. Vitória para ela, que nessa tarde, essa primeira vez, logo se deu conta da desigualdade, e de que se ia haver um caminho para ambos a mim caberia o papel de seguidor.

Assim foi, até ao dia em que, reencontrando-me, me libertei da doce masmorra de consolos e cuidados onde me deixara enjaular, amolentado, caindo de aceitação em concessão, descobrindo-me eunuco.

É que a uns desgraça-nos a angústia, outros nascemos sem sorte, este recusa dar, aqueloutro teme receber ou não compreende a dádiva, e como se esses males não bastassem raro somos capazes de entrega, fingimos emoções, fingimos encontros.

Joguei falso, fingi muito, mas nem sempre com consciência da duplicidade, as mais das vezes enganando-me também a mim próprio, crendo genuínas as palavras e os sentimentos que mostrava, alerta na satisfação do que supunha que ela de mim queria, vivendo como que por empréstimo em pele alheia, mas tão acomodado que só nela sentia conforto.

Apenas da fantasia dava conta, ignorante de que o que julgava proveito mais não era que uma agiotagem que a mim próprio impunha e da qual, quando chegasse o prazo, seria incapaz de satisfazer os juros.

Fui mau pagador, mas de nada adianta o remorso ou a confissão, porque no rescaldo de um matrimónio que finda, mesmo que seja decente o querer das partes, nunca as versões se conjugam: muda um as culpas em desculpas, acusa este o perdão, dói-se o outro da indiferença, o que a ambos pareceu harmonia vêem-no depois como guerra de trincheiras.

O juiz levanta-se, o escrivão arrumou os seus papéis. Ela vem, agarra-me os braços, encosta a face à minha e fica assim, demorando o instante em que, finalmente separados, me irá beijar e despedir-se.

Dolorosa memória: a de que nesse instante o último beijo me trouxesse à lembrança a visão do corpo seminu que se aproxima da janela, detém-se na claridade baça da tarde de Inverno, fecha o cortinado e, ainda de costas, ergue vagarosamente os braços, sacode os cabelos.

Perdido a recordar devo ter caído numa aparência de hipnose, volto a mim num relâmpago de alucinação, assombrado pelo corpo de través na cama, Carla nua dormindo de borco, a cabeça pousada nos braços.

Cubro-a com o lençol, apago a luz e saio para o corredor, um momento distraído pela vozearia em língua estranha que oiço no quarto ao lado, por certo o casal idoso que vi ao jantar e chamava a atenção pela muita exigência.

De volta ao bar tínhamo-nos sentado num canto, Carla pede gim com uma avidez de alcoólica, e quase de seguida outro, na minha ideia talvez menos para satisfazer um vício do que com o propósito de lhe supor uma fraqueza e, aceitando-a, partilhe a intenção. A ideia de que tenha algo para confessar não será de todo sem motivo, ao mesmo tempo sinto-me descansado, pois se houver desfalque ou trafulhice nunca o prejuízo será por aí além.

Carla sorri, Carla volta a dizer a surpresa que foi e como achara graça a ouvir-me nomeá-la, até tinha pensado que não simpatizasse, tivesse alguma coisa contra ela ou lhe deitasse a culpa pelas demoras.

– Mas não era, pois não?

– Não.

Sorri de novo, exagera o à-vontade, parece querer demonstrar a quem nos vê que estamos ali em boa amizade, camaradagem, o que temos em comum pode ser uma relação profissional, mas deixa em aberto outras hipóteses.

Arrasta a conversa ou muda de assunto sem propósito aparente, finge hesitações, repete as frases como se assim lhes emprestasse persuasão, e eu, aborrecimento ou fadiga, noto que deixei de segui-la, estou a pontos de, quando terminar o que esmiúça e mal compreendo, lhe dizer que são horas.

Ao vê-la acenar franzo involuntariamente o sobrolho, pela minha conta é o terceiro gim desde que chegou, talvez o quarto, e agora empurra o assento, quase a encostá-lo ao meu, interrompe-se para agradecer ao barman.

A sua juventude dá-lhe uma margem de desculpa, e talvez nem repare, mas chegou a altura de lhe lembrar que é melhor conter-se, não pisar o risco.

– Carla.

Bebe um gole e pousa o copo, encara-me com um sorriso de troça:

– Vai pensar que estou bêbeda.

– Não parece.

– Não estou. É pra ver se me atrevo. Se arranjo coragem. Há tempo que lhe quero falar, mas duma maneira ou doutra não consigo. Umas vezes sinto-me sem jeito, calo-me, ou então o seu modo é…

– É?

– Como hei-de dizer? Frio? Distante?

– Acha?

– Acho. Mas pelo caminho prometi a mim mesma, não vou embora sem lhe falar.

– Então diga.

Mas não diz. Baixa os olhos, com um gesto distraído pega no maço de cigarros, volta a pousá-lo, abre a bolsa e tira um lenço, assoa-se discretamente.

– Pra me embebedar preciso de mais. Outras vezes menos. É conforme.

– Arrisque. Pegue o touro pelos cornos.

Calma na aparência, bebe o resto do gim e pousa o copo, foi só pelo acaso de nesse instante a encarar que, lendo-o nos lábios, lhe compreendi o sussurro:

– Dê-me a sua mão.

Pouco de confidências, o meu embaraço aumenta se tenho de ouvir as alheias, pois as sofro com o incómodo de quem testemunha uma angústia e, por pessoa interposta, vê a nu a própria fragilidade ou descobre na praça pública os seus vícios e vergonhas.

É coisa que me vem do princípio e do mais fundo, a necessidade de esconder, o medo de revelar o que exijo só meu e é, em simultâneo, o que me dá força, mas deixa também à mercê de um descuido ou das precisões de simpatia.

Por isso, e por ser de poucas falas, ninguém se dará conta do turbilhão que me assalta ao ouvir confidências: nas palavras dos outros imagino as minhas, as suas fraquezas projectam as que tenho, o seu medo exagera o meu.

Carla parecia não saber por onde começar, e fosse diferente a minha maneira de ser, ou mais brando o preconceito para com o seu modo, uma desajeitada mescla de provincianismo e desembaraço, por certo lhe teria facilitado a confidência. Mas não via motivo, nem me agradava a intimidade, mostrou-se chocada ao eu desprender brusco a mão e, de olhos baixos, murmurando uma desculpa, ficou a rodar o copo vazio, talvez incerta sobre o que faria a seguir.

De repente, totalmente outra, à maneira de quem encarna um papel ou se vê no tribunal, a fingir ou escolhendo a sinceridade, encarou-me e de novo se desculpou do impulso, acrescentando que sinceramente agradecia que tivesse paciência para ouvi-la.

Sufocava, disse, e não era apenas do meio tacanho, da mesquinhice das pessoas e dos hábitos, do controlo social, da pasmaceira, da rotina que tudo tornava previsível.

Sentia-se desnorteada, incapaz de ver claro em si mesma e nos outros, constantemente em dúvidas, temores, insegura do que sentia e do que mostrava, arrependida a cada passo, acobardada.

Que talvez se isolasse em demasia, mas como não, em semelhante meio e se ninguém tinha com quem se pudesse abrir? Em ocasião nenhuma se sentia capaz de desabafar, amizades não conseguia fazer, com os colegas nem por pensamento. Remoendo frustrações, sentia-se como quem enfrenta uma barreira que não aceita salvo-condutos e só se consegue transpor pagando caro.

Por vezes detinha-se, absorta, parecendo que, talvez por influência da sua profissão, cautelosamente se dava tempo de escolher as palavras ou de decidir entre o que queria confessar e o que preferia esconder.

A acenar que sim, preso à minha concessão, eu ouvia-a um tudo-nada aborrecido com as minúcias, os detalhes da sua vida na aldeia, os pais emigrados na Suíça e como ainda bebé também para lá tinha ido, os anos da adolescência em Lausanne, o choque do retorno.

A mudança e o desfasamento tinham sido um longo calvário, não conseguia esquecer os rancores, o desdém, a animosidade que enfrentara na universidade. Depois o isolamento, tão doloroso o real como o imaginado, a certeza de que em todas as ocasiões a faziam sentir-se de fora, desajustada, menos, e por fim a aceitação cobarde de se conformar.

Procurara trabalho aqui e ali, umas vezes atendida como por favor, ouvindo ridicularizar o seu sotaque, noutras a sofrer o desprezo dos que, eles próprios espezinhados, se sabiam com poder para humilhar e gozavam a ocasião de lho fazer sentir.

Recordava mal, mas devia ter sido ano e meio depois de terminar o curso: sem porta a que pudesse bater ou bóia a que se agarrasse, numa última cedência satisfizera o orgulho dos pais, abrira escritório na vila.

– E aqui me tem. Desavenças de herdeiros, questões de águas, mudanças de marcos nos terrenos, roubo de pinhos… Desde que tenho placa na porta é você o primeiro cliente que não vem com questões dessas. Será capaz de imaginar o que é a minha vida?

– Sou.

– Trinta e quatro anos, seis nesta pasmaceira, futuro nenhum.

Vendo que levava o copo aos lábios, a beber um imaginário fundo, acenei com dois dedos ao barman que, só nós ali, veio ronceiro, apagando de caminho uma ou outra lâmpada.

Brindámos em silêncio, ela com o seu desgosto, eu evitando olhar o relógio, pois dispensava a impertinência do empregado para saber que passava da hora, também a perguntar-me que moleza ou distracção a faz sempre adiar as despedidas, enfiando mexeriquices, perdendo-se em explicações que sigo mal ou não me interessam.

– Vamos?

Notando que se levantava a custo, dei-lhe o braço, o rapaz a apagar o resto das luzes atrás de nós, despedindo-se com um irónico «Boa-noite» ao ver-nos chamar o ascensor.

Como não vinha ou deixara de funcionar, subimos a desmedida escadaria que leva à entrada, ela incerta nos passos, tão apoiada em mim que cambaleávamos ambos e nos teríamos dado em espectáculo se por ali houvesse alguém.

No hall, a porta automática começou a abrir, mas Carla, com a teimosia dos bêbedos, largou-me, deu um passo atrás e especou, tentando dizer qualquer coisa.

Receoso de vê-la cair, prendi-lhe os braços, obriguei-a a encarar-me:

– Oiça, você não pode conduzir. Eu levo-a a casa.

De cabeça baixa, um modo ausente, segurando a bolsa às mãos ambas como em busca de apoio, ia voltar-me as costas quando um espasmo a tomou, parecendo que só à justa conseguira parar o vómito.

– Sente-se mal?

– Desculpe. Acho que não consigo descer até à casa de banho lá em baixo. Importa-se que use a sua?

– Claro que não.

Fomos a passo pelo corredor, de seguida fechou-se na casa de banho, eu saí para o terraço, tentando esquecer o aborrecimento e a canseira, esperançado de que não tardasse.

Mas tardou, e quando finalmente abriu a porta hesitava eu entre lhe censurar o que me parecia abuso e o receio de me ver a braços com o transtorno que teria causado tão longa demora.

Fui ao seu encontro e não pude esconder o pasmo, reviravolta daquelas teria de ser acesso de histeria, loucura ou dose dupla de cocaína.

Esperava-a frágil, pálida, nauseada, vinha ela eufórica e decidida, com um repelão fez voar a bolsa, agarrou-se a mim:

– Vou prà cama consigo! Palavra que vou!

– Deixe-se de tolices. Acalme-se.

– Estou calma. Dê-me um beijo.

– Acabe com isso.

Passada de todo e insensível à minha irritação, tentava beijar-me, fingia passos de dança, ensaiava poses. Se a empurrava fazia trejeitos de criança ou punha-se de joelhos, agarrando-me as pernas, eu a perguntar-me como iria pôr fim àquilo e convencê-la a que se deixasse levar para casa.

Certo de que se era de droga a excitação não ia durar e o cansaço levaria a melhor, foi então que ao vê-la defronte do espelho, dando começo a um desajeitado striptease, peguei nos cigarros e, desatento aos seus tristes meneios, fui sentar-me no terraço.

– Não estou a compreender. O senhor está cá e quer um quarto? Outro quarto?

– Exactamente.

– Mas guarda o outro, não vai mudar? E só por esta noite?

– Só por esta noite.

Descrente, ensonado, temendo complicação ou problema que não soubesse resolver, o recepcionista olhava o relógio, olhava para mim, seguia mal o que eu lhe dizia.

– A minha advogada veio cá jantar, e quando…

– Eu vi. Conheço a doutora.

– Quando se ia embora sentiu-se maldisposta e ficou a descansar.

– Aqui?

– No meu quarto.

– No dezassete?

– Certo.

– Mas então pra que é que o senhor…

– Oiça, só uma coisa: tem quartos vagos?

Com uma lentidão de doente, olhando à vez para mim e para o ecrã do computador, lá encontrou, preencheu a ficha, e de seguida, espertalhaço, dando-me o cartão, acrescentou que era o vinte e um, quase ao lado.