FAZ UMA SEMANA QUE ESTOU EM NEWCASTLE, e muito me engano ou só volto a Portugal liquidar o caso e será a última vez.

Como se diz das mentiras, com as razões que tenho para decidir assim também poderia encher um saco, não fossem tão contraditórios os meus sentimentos, ver-me a balancear entre extremos, alternando nos juízos e, não poucas vezes, sendo inconsequente nas decisões.

Fosse eu mais capaz de retirar o biombo que quase sempre ponho entre mim e os outros, talvez conseguisse um certo equilíbrio ou, pelo menos, me abstivesse de ser tão avesso a matizes, me tornasse condescendente, mais capaz de simpatias. Sem pudor confesso a falha, e sem pudor aceito que não tenho intenção de me tornar diferente, dado que se o fizesse não saberia como conciliar o que sinto e o meu pensar, com forças que em mim existem, ditadas sabe Deus por que misteriosas razões ou com que estranho propósito.

Talvez um dia remoto lá volte, pode ser também que a próxima seja de facto a última vez, e Portugal se me torne memória antiga, embora nem a ausência me possa libertar da estranha cruz que, desde que me conheço, a pátria para mim é. Começou pelo sentir e ver o que me rodeava, foi-se alargando, tornando-me consciente de pertencer à nação, mas também sensível à mística do patriotismo e às inverdades da História.

Uma tarde no Porto, adolescente ainda, estando numa livraria a folhear distraído o que por ali havia, atentei num romance de Graham Greene, menos por ser ele então um dos meus autores favoritos, do que pela singularidade do título: England made me.

Curioso é que, como se encerrasse uma mensagem, no instante em que o li me apropriei dele, Portugal made me, sentindo disparar uma mistura de orgulho e melancolia, como se em simultâneo continuasse a sentir-me parte de algo que me transcendia, mas também, e sem remissão, me fosse revelado que a contrapartida desse orgulho era a cadeia de muitos elos de que vagamente tinha consciência, mas ignorava ainda com que fim e por que razão me tolhia.

Recordo ter-me entretido ali a ensaiar traduções – o que sou a Portugal o devo, de Portugal sou cria, sou como Portugal me fez, de Portugal sou feito, Portugal formou-me… – mas nenhuma satisfazia. Faltava-lhes garra, concisão, apenas me pareciam interessantes porque nelas transparecia qualquer coisa, um cheirinho daquilo em que a língua portuguesa se esmera, é tão nosso, e eu, fascinado, começava então a descobrir: uma certa pomposidade, o estendal, o medo de que o que se diz não chegue, não mostre o bastante, a vontade de empolar.

É muito meu entregar-me de alma e coração a algo que realmente importa, e com o mesmo ímpeto perder o interesse, confundir-me a mim próprio com saltos de ideias, mudanças repentinas, alternando doentiamente o entusiasmo com a apatia. Tirante o que vem dos que me geraram, creio que essa maneira de ser deve muito à maneira e ao lugar da minha criação, a circunstâncias que sem exagero se podem chamar bizarras, e a uma pouco corrente mistura de solitude, curiosidade e temor.

Criei-me a falar sozinho, a brincar sozinho, forçado a inventar um mundo que, pela fantasia, compensasse o escasso território do pátio em que me isolavam, como se o contacto com outros fosse um perigo ou desse peçonha.

Deixa marca o só ter galinhas e cães por companhia, passar os dias com duas mulheres silenciosas, raro ver mais longe do que deixava a porta quando se abria, encolher-me cada vez que meu Pai acontecia passar.

Sofri? Creio que não. Ignorava outro viver, e o que apercebia das vidas alheias causava-me um misto de nojo e insolência, era próximo e ao mesmo tempo distante, estranho como visionar um filme. Em parte devia-se isso à circunstância de parecermos o que não éramos, de num meio de pobreza extrema a nossa mediania ter ares de abastança, e meu Pai, «o Senhor Engenheiro», assumir atitudes de fidalgo e dono só possíveis num fim do mundo como as Quintas do Maçarico.

O ele não ser engenheiro de coisa nenhuma, e de seguida a um vago estudo no que se chamava então a escola de regentes agrícolas se atribuir o título, era astúcia sua, maneira corrente de distinção. E os que dele dependiam, de facto todos, usavam esse tratamento como mostra de respeito, mas era também a maneira segura de, verdadeiros servos, ocultar o ódio e o desprezo que lhe tinham.

Vendo-o feudal de mentalidade e temperamento, cedo adivinhei que se arrogava o direito de senhor e, interpretando meias-palavras, certos olhares, movimentos de queixo, compreendi que poucas lhe escapavam e, à moda antiga, sem vocação para o Altíssimo, uma ou outra tinha sido levada a esconder a vergonha num mosteiro.

Galaroz, todos lhe conheciam o fraco, mas quando disso se falava era em sussurros que terminavam mal chegasse um terceiro ou se visse sombra perto. Para mim, o nome e umas poucas palavras surpreendidas num bichanar de minha Mãe com Felisbela tinham sido a chave do mistério que em certas noites o levava a casa do tanoeiro «ver» a Deolinda, a graciosa de modos senhoris que raro se mostrava porque ele, ciumento, preferia que não saísse à rua.

Há mistério no facto de eu, criança, sem que mo contassem, não apercebendo mais que uma palavra aqui e ali, um ou outro sussurro, soubesse tanto de meu Pai, da existência de Deolinda, não precisar que me dissessem que quando o Meças – então ainda lhe chamávamos o «Antolinho» – aparecia na escola com pisaduras era porque em casa lhe batiam por refilar contra meu Pai.

São sem conta e antigas as razões de não se gostar de um filho, abundam no Velho Testamento, na mitologia grega, com pouco esforço as encontramos à nossa volta.

O que distinguia a raiva que meu Pai me tinha era o lado patológico, a obsessão de que eu, criança, pela simples maneira como o olhava ou respondia sem encará-lo, fosse capaz de penetrar o seu pensamento, os seus fins e segredos. A maneira como me gritava «Sai daí!» era menos uma ordem do que um exorcismo, um tarrenego que me impedisse de ver e saber o que não era da minha conta, nem para a minha idade.

E pode ser que sim, talvez tivesse razão, quase compreendo que por volta dos dez anos, como se levasse uma encomenda, me tenha entregue na Rua de Cedofeita à Dona Rosa, flor das hospedeiras e porto de abrigo para o miúdo que levaria anos em busca dos porquês e, chegado à meia-idade, sabe que nunca virá a termos com a rejeição.

Daí para colégio interno, pensão, casa de família, de novo colégio interno, quarto de aluguer, me vi a crescer sozinho, guardando das esporádicas visitas a casa recordações que confirmavam a certeza de que a minha presença não era bem-vinda e tornava meu Pai paranóide.

Discordava por princípio, ria-se do meu modo e das minhas ideias, buscava maneira de constantemente se opor, mostrando o que pode um páter-famílias à antiga. Quando lhe pesava demais o fastio da minha presença, virava-me as costas, rosnando entredentes o clássico dito do peixe e do hóspede, ou quem não está bem muda-se.

Duas vezes, inesperadamente mãos largas e muito em contrário à sua natureza de somítico, deu-me vinte contos e o conselho amigo – ele que odiava viagens e nunca fora mais longe que Santarém – que a viajar se aprendia muito. Por razões de que não tenho ideia, em ambas essas despedidas quase se mostrou cordial, foram também as únicas que lhe mereceram um abraço.

Guardo, todavia, lembranças menos serenas, como a do dia em que me atrevi a perguntar-lhe pelos meus avós, dizendo que de certeza os tinha, mas não conhecia, e deles nunca se falava.

Ensandeceu, rugindo pragas e ameaças, às patadas no chão, minha Mãe e Felisbela abraçadas a chorar como se carpissem mortos, eu perguntando-me em que ferida tocara, que mistério seria aquele.

Recordava de uma vez ou outra ter visto minha Mãe montar um macho com os alforges abarrotados, e dar-me conta da sua falta, mas nem Felisbela, a única que me acarinhava, me querer dizer para onde tinha ido de viagem e se voltava.

Voltava sempre, eram então longos cochichos, outra vez lágrimas e suspiros, meu Pai de novo aos gritos e às ameaças, numa fúria que demorava a passar.

Anos depois, senhor de mim, fui-me à procura da gente a que pertencia, mas o que encontrei, o que me contaram e o que mais tarde viria a descobrir justificavam o segredo, a separação, o ódio de meu Pai e o choro das duas mulheres. Há tragédias que obrigam a cortar de vez, há gente a que só pertencemos pelo sangue, dão-se nas famílias casos terríveis, vergonhas, horrores que nada limpa.

Meu Pai tinha razão na fúria que o tomava, e as histórias que ouvi não são para contar nem se escondem no armário, atiram-se à fossa.

Uma manhã de Agosto de 1965, com dois anos de Medicina e vinte e um de idade, vi-me a enfrentar um dilema que só era inesperado pela pouca conta que dava do ambiente à minha volta, a carga do estudo e a descoberta recente da liberdade sexual exigindo dedicação a tempo inteiro.

Para a escolha entre ir dar o corpo ao manifesto na defesa das colónias ou pôr-me a salvo em busca de segurança e melhor futuro, não precisei de dias, só horas.

Estupefacto com a ordem de marcha, chamei a última paixão para que me guardasse os poucos pertences, fiz a mala à trouxe-mouxe, meti no bolso o que tinha de documentos e, a tarde a findar, estava em Monção em casa de um colega que tinha oferecido se alguma vez precisasse lhe batesse à porta.

Barqueiro arranjou-o ele, de subornar os guardas e os carabineiros cuidou o barqueiro, por cinco contos vi-me eu na noite seguinte em Salvaterra de Miño e daí a dois dias no porto de Santander, a olhar para um navio que me pareceu colossal, descrente que me levaria para Inglaterra, surpreso de que me deixassem passar sem visto e até com alguma mostra de compaixão ao ouvirem que ia fugido à guerra e ao regime de Salazar.

Esse tempo vai longe, até para mim próprio se tornaram quase folclóricos os agravos e os trambolhões, só de vez em quando, ao acaso de uma peripécia, uma insónia, coincidências, recordo este e aquele momento feliz que compensou dos desesperos, das horas más.

Como de mala na mão e próximo do estado de choque, me vi a desembarcar em Plymouth, sofrendo do meu mau inglês, atarantado depois em Londres, e por muito boa sorte um ano mais tarde me surpreender a continuar o estudo de Medicina, agora em Newcastle, tem tanto de rocambolesco, como das vicissitudes e acasos da vida, seria para entreter ao serão, tivesse eu filhos e valesse ainda o tempo em que havia serão.

Salto agora talvez ano e meio, tenho presente o momento, surpreso da calma que se apoderou de mim, pois um telegrama era quase sem falha o anúncio de más novas.

Qual dos dois teria falecido? Dava-me pena se fosse a Mãe, mesmo que morte a libertasse da triste sina de uma vida de servidão. Do Pai não teria pena, pois morrendo podia eu, finalmente senhor de mim, ter a certeza de que findava a opressão que mesmo à distância me fazia sofrer, para o que bastavam as poucas cartas que entretanto me tinha escrito, eu dando graças de ele não ter telefone, melhoria que só no começo dos anos noventa chegaria às Quintas do Maçarico.

Em palavras formais e rebuscadas que ela desconhecia, mais certo serem da menina dos Correios na vila, minha Mãe anunciava que meu Pai tinha falecido de «morte violenta», acrescentando um «rezemos pelo eterno descanso da sua alma».

De facto, não foi verdadeira surpresa, nem senti pena, a probabilidade de que alguém o matasse andava comigo desde pequeno, arrepiava ver como era capaz de espezinhar, o gosto que tinha em se fazer obedecer, o modo soberbo de sem resposta virar as costas aos que pediam o que lhes devia pelas suas jeiras.

Só quando voltei, depois do 25 de Abril, ouviria que se suspeitava deste e daquele, do Meças, uns dizendo que não podia ser, até tinha ido ao enterro, ou que não, que estava na Alemanha, outros certos de ser coisa do Ramiro Cigano, do Perneta, do filho da Mouca, que mesmo sem vinho jurava que ainda um dia lhe havia de lhe meter uma faca no bandulho.

De certeza tinham aberto processo, feito investigações, mas por desinteresse duns, desleixo doutros, tendo as autoridades mais que resolver, o caso tinha sido arrumado. Minha Mãe e Felisbela continuavam a carpi-lo, a rezar-lhe pela alma, masoquismo que eu compreendia, pois tinha sido para ambas senhor e guardião, encarnando um poder logo abaixo do Altíssimo.

A mim acontecia recordá-lo de vez em quando, surpreso de que pudesse fazê-lo com frieza, como se em vez do meu progenitor se tratasse de um simples caso. A horas mortas divertia-me, se assim se pode dizer, com lucubrações que o mais certo era terem origem no afastamento da família e da pátria, descobrindo então bizarras semelhanças de Portugal com meu Pai, como se aquele, em vez de país, fosse também pessoa.

Via-os ambos autoritários, inconsequentes, injustos, não suportavam críticas, reagiam à bruta contra o que lhes parecesse ofensa, tinham-se a si próprios em alta estima, era patética a sua arrogância.

É facto que, já antes de abandoná-lo, eu guardava de Portugal impressões que se baseavam menos numa tomada de consciência do que na sensibilidade, reagindo com amargura à opressão e às diferenças sociais, ao mesmo tempo, sabendo-me indefeso, levantando entre mim e a sociedade um muro que me permitia observar, mas alto bastante para que só me pudessem tocar se eu deixasse.

Essa era, noutra proporção, atitude igual à que tinha para com meu Pai, mas verdade é que Portugal viria a ocupar-me de maneira bem diferente, levando-me a descobrir no exílio sentimentos de vergonha que se juntavam, mas excediam, os que até então só tinham sido de revolta.

Ao insulto pode responder-se com outro, não custa pagar a arrogância com moeda igual, mas dói, dói muito, quando sinceramente, e com fundamento, nos demonstram piedade pela pouca sorte de termos nascido num país de ternura, de tanta gentileza, mas ser ele há séculos coito de quadrilhas que pela força e o embuste chamam a si a lei, a impõem a uma gente que, amedrontada e pobre, se verga ao jugo e muda em subserviência o seu natural carinho.

Em companhia conseguia inventar, senão desculpas, pelo menos uma ou outra atenuante, disfarçando o meu sentir, o que apenas aumentava o desequilíbrio das emoções que me assaltavam, quando a sós podia dar largas aos meus próprios medos e incoerências.

O passar dos anos e o cansaço das emoções têm acalmado alguma coisa, não muito, da raiva que me possui, mas continua a enfurecer-me a desigualdade, a desvergonha e o desdém dos governantes pelos governados, a roubalheira que fazem da coisa pública, o desmedido fosso entre os que têm e os que nunca terão.

Feliz contrapartida, descubro algum equilíbrio graças ao que nem os anos ou o cansaço ainda em mim diminuíram, o prazer – o gozo, como à moderna se diz – de atentar naqueles aspectos que nos distinguem das sociedades, senão mais civilizadas, em todo o caso com atitudes e costumes que pecam menos pela bacoquice, o infantilismo da vaidade, a caricata auto-satisfação de que os ingénuos e os pobres de espírito parecem ter o privilégio.

Longe de mim querer pôr outra gente nos cornos da lua para melhor acentuar a pequenez da minha, mas onde vou encontrar um chico-espertismo à portuguesa, a tão original mistura de trafulhice e ingenuidade? Uma bazófia assim? Aquele modo de falar do Mercedes? A cómica soberba dos que se crêem donos-disto-tudo e tomam Cascais e a Foz do Douro pelo supra-sumo da elegância?

De meu Pai separou-me a morte, de Portugal tenho-me aos poucos afastado, o futuro dirá se, como julgo, a próxima visita será a última ou irei ceder à nostalgia, deixar que me prendam as raízes que ninguém sabe realmente de que são feitas e, talvez por isso, têm misteriosa força.

Minha Mãe tinha aguentado uma dezena de anos, mas a morte de Felisbela, e quase ao mesmo tempo a notícia de que a barragem, engolfando tudo, lhe iria tirar a única casa onde achava que a vida fazia sentido, foi o golpe de misericórdia.

O seu mundo ia desaparecer, um lar estava fora de questão, quando lhe disse que ir comigo era a única alternativa, não se opôs, deixou que literalmente a tomasse pela mão como se o fizesse a uma criança.

A caminho do Porto nada pareceu interessá-la, acenou que sim quando lhe disse que íamos descer o Marão, e se alguma coisa estranhou dos aviões, que ali tão perto lhe deveriam ser grande novidade, guardou-o para si.

Silêncio igual à chegada a Newcastle, surpresa nenhuma com o ascensor que nos levou ao décimo andar, o apartamento, a vista, o seu quarto, parecendo mergulhada num total abandono, uma forma de transe.

Certo de que assim lhe proporcionaria, senão conforto, pelo menos entretenimento, eu tinha posto um cadeirão junto da janela que mostrava uma esplêndida vista do rio Tyne, das pontes e do movimento do porto. Nesse cadeirão se sentou no dia seguinte, e nele praticamente iria passar quase dois anos, pouco mais falando que o essencial, desinteressada, ausente, correspondendo com acenos contrafeitos à alegria e aos cuidados de Katerina, a jovem russa que vinha arranjar a casa, trocando comigo um mínimo de palavras, de longe a longe um ocasional sorriso.

Das nossas refeições em comum, pouco frequentes devido aos meus horários, posso dizer que eram soturnas, mas também os únicos momentos em que ela se tornava loquaz, criticando com azedume a hortaliça, o gosto da carne, pondo de lado a fruta que desconhecia, o pão, os bolos que por terem outra forma não lhe pareciam de confiança.

Seria longo, e para ninguém proveitoso, falar da mudança dos meus hábitos e da minha vida social, de como uma situação assim transtorna as amizades. Sofria ela pelas suas razões, apoquentava-me eu por me ver incapaz de lhe agradar ou, pelo menos, de descobrir maneira de tirá-la de uma apatia que poderia ser um primeiro indício de demência.

Sem aviso, uma tarde que me encontrava de folga e tinha pensado aproveitar para rever um artigo, surpreendeu-me com um chamamento que eu não ouvia desde a infância e que de tão improvável de facto me perturbou, me fez olhá-la com o receio de que tivesse fundamento a minha suspeita.

Talvez a fazer contravapor ao carinho que Felisbela me dava, ou porque os muitos afazeres lhe fossem prioridade, a sua ternura para comigo era rara e apressada, mais dever que sentimento, esquecia-me mal qualquer coisa, planta, bicho ou gente, pedisse a sua atenção.

A essa maneira me habituara eu, além de que Felisbela, se por acaso se dava conta, logo me mimava a dobrar.

– Chega aqui, meu lindo.

Era tão inesperado e absurdo que sobressaltei, mas o seu olhar e o vago sorriso de certo modo me sossegaram, e ela, talvez consciente de que me tinha chocado, repetiu com um sorriso triste:

– Chega aqui, meu lindo.

Perdi a noção de tempo e lugar, quando voltei a mim demorou a que me apercebesse de que me encontrava em casa, lentamente a retomar posse do corpo, dos sentidos, encarando minha Mãe com descrença, incerto de que atitude tomar, que juízo fazer, incapaz de raciocínio, de concluir se aquilo era a vida e tinha sido assim, ou havia ali razões que me escapavam, outros segredos que se sobrepunham àquele.

Porque ao fim e ao cabo, como eu tinha descoberto, embora só pela rama, também a história da família de minha Mãe era um amontoar de mistérios, violências, de traições e barbaridades, tudo entrelaçado, tão confuso que, conforme o ponto de vista, os personagens ora pareciam diabólicos, ora se mostravam capazes de abnegação e generosidade, mas todos trocando cientemente as voltas a quem tentasse deslindar-lhes o intento ou a razão, quisesse saber se havia ali mal e crueldade, ou apenas loucura.

– Chega aqui, meu lindo.

Desprevenido, e nesse instante de certa maneira alheado do que ela me quereria dizer, só depois me ocorreu que minha Mãe deveria ter repetido as palavras vezes sem conta, não para ensaio do relato, mas para que eu ao ouvir-lhas dizer não duvidasse: tinha sido como dizia, era a verdade.

Para mim de forma nenhuma foi questão de dúvida, só sei que ao ela terminar me senti desorientado, como se em turbilhão tivesse viajado no tempo e mudado de lugar, incapaz de por inteiro retomar consciência de que nos encontrávamos num apartamento em Newcastle, tínhamos em frente o rio, era real o gigantesco porta-contentores azul que saía para a barra.

Sabendo que mesmo se lhe apetecesse primeiro iria recusar, e eu teria de insistir para que aceitasse, levantei-me sem mais, fui fazer dois cafés, de facto a dar-me ocasião de recompor do choque e assentar ideias.

Por vontade minha pedia-lhe que contasse tudo de novo, recordasse momentos que tivesse esquecido, os detalhes que, por de uma ou doutra maneira serem dolorosos, tivesse passado por alto.

Para não afligi-la em demasia, esperei que bebesse o café à sua maneira, espaçando os pequeninos goles. E ali ficámos, alheados, silenciosos, minha Mãe olhando o rio, eu perguntando-me se tinha dado a atenção precisa ao que ela contara, se conseguia de facto compreender o que acontecera, se o meu cérebro se encontrava já suficientemente calmo para fazer perguntas e ajuizar respostas.

Havia detalhes que pareciam absurdos, talvez porque ocultassem parte da verdade, do mesmo modo que algumas situações encaixavam mal no tempo e na narrativa, a ponto de em determinada altura ter a impressão de que, valendo-se da idade, minha Mãe exagerava um tanto no fingimento da confusão e da perda de memória.

Finalmente decidi que não iria martirizá-la, pedindo que repetisse ou aclarasse este ponto, aquele também, e a pretexto da obrigação de trabalhar fui para o meu quarto.

Como se digere uma história com semelhantes implicações? Por que ponta se lhe pega? Qual é a parte do próprio interesse e a melhor maneira de evitar atritos?

Que meu Pai tivesse bastardos era da ordem das coisas, facto assente. Das suas «visitas» à Deolinda também todos sabiam, participavam no fingimento, e se um ou outro não deixaria que lhe desonrasse as filhas, os mais boamente o aceitariam, invejosos da sorte do tanoeiro, que assim tinha protecção e casa cheia.

Talvez a ganhar coragem, temendo o desabafo, ou incerta de como eu iria reagir, minha Mãe começara por aí, com minúcias, fazendo rodeios, explicando o que não precisava de explicação, a falar desta e daquela, boatos, outras vergonhas, para de repente, como quem se atira ao vazio, perguntar se me lembrava do Meças.

– Então não me hei-de lembrar?

E ela, como se fosse razão de pasmo ou se se lhe atrasasse o entendimento, ainda a adiar:

– Lembras-te dele?

– Lembro, Mãe. Lembro.

– O filho do tanoeiro.

– Mãe! Pelo amor de Deus!

– O da Clarice, irmão da Deolinda.

– Oiça, então não sei que é filho da ti Clarice e irmão da Deolinda? Porque não diz o que tem a dizer? Para que está com rodeios?

Interrompeu-se, parecendo afligir-se com a minha impaciência, depois baixando os olhos, talvez assustada de como eu iria reagir:

– O rapaz não é filho da Clarice.

– Não? Então de quem é?

– É filho da Deolinda.

– Mãe! Oiça! A Deolinda é a irmã! A Deolinda…

– Bem sei. Não precisas de gritar.

De verdade precisaria, mas então já tinha perdido a voz, sentia a cabeça à roda, compreendia mal aquela serenidade de contar que, ao terem descoberto que a rapariga emprenhara, era tarde para o desmancho, e o Senhor Engenheiro não queria chatices, mãe e filha em lágrimas, escondendo a vergonha, foram bater à única porta donde lhes poderia vir ajuda.

Minha Mãe e Felisbela tinham-se-lhes juntado a chorar, mas havia pressa, esqueceram as lágrimas, dali a dias estava resolvido. Do parto se trataria chegando a hora, o preciso era não desgraçar a rapariga, porque novinha e bonita, mesmo com fama de arrombada, sempre haveria de arranjar um que a quisesse.

Felizmente mal se lhe via a barriga e Clarice estava ainda em idade de emprenhar, de modo que era Deolinda não aparecer, a mãe enchumaçava a saia a fingir-se grávida, e seria o que Deus quisesse, mas tudo havia de correr bem.

Assim foi, tudo correu bem. Se houve murmúrios só se ouviram paredes adentro. Clarice passava vagarosa, com uma barriga de respeito, se lhe perguntavam pela saúde respondia que ia bem graças a Deus, só a afligia sobrecarregar Deolinda, com tanto trabalho a pobre nem tempo tinha de sair à rua.

Nasceu o rapaz, baptizaram-no António, foram registá-lo filho de Amadeu Roque e Clarice Oliveira, do lugar Quintas do Maçarico, e não demorou a que o Senhor Engenheiro, que há tempos andava pelo Porto a tratar das suas coisas, voltasse a casa, pelos jeitos pouco interessado no sucesso.

É agora, passado quase meio século, que eu finalmente compreendo o que uma noite, ela não se dando conta de mim, tinha ouvido Felisbela resmungar baixinho ao vê-lo sair: – Lá vai ele ver o herdeiro!

Como assim? Não era eu o herdeiro? Estaria fraca do juízo?

Então talvez fosse, mas minha Mãe, lenço nos olhos, falando em sussurros a temer que me zangasse, achava que para descanso da alma do falecido, eu deveria falar ao meu meio-irmão, abrir-me com ele, dividir entre ambos o que eu ainda tinha a herdar da parte do nosso pai.

Nosso pai! Era verdade, era facto, mas soava como uma interjeição de comédia antiga, tinha um não-sei-quê de forçado, irreal, coisa que se lê ou ouve e faz sorrir, mas não nos toca. E a herança que tanto consumia minha Mãe era apenas o que viéssemos a receber pela expropriação dos terrenos que a barragem iria alagar, e de que eu, nessa altura, não fazia ideia de quanto pudesse ser.

– Está bem, Mãe. Não se preocupe. Quando puder irei a Portugal, falo com ele, tratamos disso.

– Também só já somos nós – acrescentou, parecendo querer dar à frase um sentido que me escapava.

De facto assim era. Restávamos ambos, mas seria por pouco tempo, creio que ela tinha adiado a confissão até pressentir que o fim se aproximava. Embora não lhe conhecesse doenças e de nada se queixasse, uma semana mais tarde, depois do jantar, julguei que tivesse adormecido no cadeirão, mas tinha-se finado como era o seu desejo: de repente, sem incomodar ninguém.

Com um sentimento de excitação e nostálgica melancolia, de novo me encontro no curioso hotel que me alegra pela vista, entristece pelo ar mole de desleixo, de decadência e, sabe Deus como, porque também nele entrevejo uma miniatura do país que temos e da gente que somos.

No geral os hóspedes assemelham-se aos da estada anterior, mas com alguma malícia sinto a ausência do curioso personagem de fato branco que vinha espalhar por estes lados a abundância e as delícias do Eldorado, como também me falta a sibila que o acompanhava e, junto da piscina, em poses de ioga, saudava o nascer do Sol.

Daqui a nada telefono a Carla a dizer-lhe que estou de volta, mas desta vez, dependendo de como as coisas vão correr, convido-a para um almoço de despedida, sem oportunidade para passos em falso.

Pouco dias depois de ter regressado a Newcastle, num e-mail cheio de desculpas pelo que ela chamava «a travessura», dizia que estavam terminados «os trâmites» e, como procuradora, tinha recebido a importância da compensação. Sem adiantar detalhes acrescentava que o Meças se encontrava internado.

Eu não tinha esquecido, mas deixara correr, fora que o meu trabalho tem a propriedade de acelerar o calendário, e ao dar conta tinham passado dois meses.

Também é verdade que a perspectiva de me ver a revelar ao Meças – meio-irmão continuava a soar incoerente – o que acontecera, quem era a sua verdadeira mãe e por que razão ia receber o dinheiro, além de me desagradar pelo embaraço, e não fazer ideia de como ele iria reagir, incomodava-me o encontro, porque suporto mal a bruteza e não disponho de suficiente espírito cristão para lidar com bêbedos.

Há hora e pico que estou no escritório. Carla foi longa nos detalhes, minuciosa a explicar as exigências da burocracia, assinei de boa-fé onde ela dizia que devia assinar, recebi o cheque da indemnização dos terrenos, passei-lhe um em paga dos honorários, que me pareceram razoáveis, e, fazendo rapidamente contas de cabeça, decidi que nada quero para mim. Não por generosidade, mas por o cálculo mostrar que a minha metade, uns oito mil euros, fazendo-me subir no escalão dos impostos, me iria custar dinheiro.

Arrumado o assunto desse lado, falta o Meças. Carla tinha-lhe escrito, mas ele não aparecera, depois fora ela própria visitá-lo ao hospital, achando-o desconfiado, teve de garantir que era assunto do seu interesse e não lhe ia dar trabalho nem causar complicações. Mas queria à viva força saber do que se tratava, ela insistindo que só no escritório, e com os papéis à frente, lho poderia explicar. Calando, evidentemente, a minha presença.

À cautela falara também com o filho, e de manhã voltara a telefonar-lhe, era termos paciência.

Esperamos não sei há quanto tempo, já esgotámos os temas da crise, do tempo que vai seco, da pasmaceira da província. Com rodeios, mas escondendo mal a curiosidade, volta ao Meças, se somos parentes, porque um caso assim… Não lhe respondo e ela compreende, muda para o seu desejo de emigrar, e não o diz, mas pela cara que põe só por cortesia concorda que fazer limpezas, lavar pratos ou ir de porta a porta tentando vender assinaturas de revistas não mancha o brasão.

Talvez distraída, ou para encher o silêncio, quando me perguntou se estava no mesmo hotel, a recordação da «travessura» permaneceu um instante no ar, mas com um sorriso evitámos o estorvo e, feliz acaso, nesse momento a campainha tocou, foi à porta atender.

Meses atrás, no café, a última vez que o vi e ele, entornado, a falar alemão, não me reconheceu, era o Meças de que me lembrava, de quem podia dizer que, ao contrário de mim, que sou mediano, tinha a postura do nosso Pai – «nosso Pai»! nada a fazer – desempenado, forte como um touro.

O Meças que acaba de entrar causa-me um abalo: velho antes da idade, corpo mirrado, olha em redor parecendo que não vê ali gente, agarra os braços da cadeira de rodas como se temesse cair, torva-se-lhe o olhar ao dar comigo, mas nada diz, espera que o rapaz empurre a cadeira para junto de nós.

– Olá, António.

Estendo-lhe a mão, mas ele volta a cara e grita:

– Tira-me daqui, Abel! Tira-me daqui! Este filho da puta é o do… – Engasga-se, apopléctico, roxo de fúria.

Dou um passo atrás e Carla toca-lhe o braço, a serená-lo, põe-se-lhe defronte, obriga-o a encará-la:

– Então, senhor Roque! Então! É pra seu bem e o senhor…

– Pra meu bem o caralho! Abel! Não quero nada com estes filhos da puta! Tira-me daqui antes que faça alguma!

Era trágico, tocante, e para mim doloroso, assaltado por emoções contraditórias de pena e irritação, piedade, pasmo, reconhecendo naquele modo a raiva em que tantas vezes, apavorado, vira explodir o que nos tinha gerado.

A falar verdade julguei que ficaríamos por ali, era assunto arrumado, pois mesmo diminuído ele parecia justificar a fama de irrazoável e violento, mas Carla mostrou qualidades que eu, por conhecê-la mal, não suspeitaria, aquela mistura feminina de carinho e paciência, a capacidade de mostrar concordância quando se discorda e, por atalhos, conseguir que o interlocutor ceda sem se sentir vencido.

A certo ponto tinha-se agachado junto da cadeira, segurando-lhe a mão num gesto afectuoso, e embora por me ter afastado pouco ouvisse do que ela lhe dizia, o tom soava cordato, animador.

Finalmente vi-a erguer-se, segredar qualquer coisa que o levou a acenar que sim, e então ela própria virou a cadeira, empurrando-a para o meu lado:

– Vá. Aperte-lhe a mão.

Brusco, olhando de lado, estendeu-me a mão e pareceu acalmar, numa inesperada reviravolta quase loquaz, querendo saber onde eu estava e que fazia, se alguma vez tinha ido à Alemanha, dando-me ideia de que as palavras não eram apenas conversa, mas as usava para esconder a curiosidade de saber porque estávamos ali:

– No café bem me pareceu, inda disse comigo este é o Adolfo do Engenheiro, o que está lá fora… Até me lembro de que te falei e não abriste a boca.

– Estavas um bocado tocado.

– E que tem isso? Então não somos da mesma terra? Da mesma criação?

Fiz um gesto de apaziguamento, certo de que o seu carácter não mudara, se a invalidez lhe impedia a violência física, de maneira alguma o fizera menos agressivo.

O silêncio em que tínhamos ficado quebrou-o ele, autoritário e impaciente:

– Então? Vamos lá saber o que é.

Instruída de que eu queria tratar aquilo a sós, Carla apontou que fôssemos para a saleta ao lado, e ela própria voltou a agarrar a cadeira, sorrindo ao rapaz de corpanzil desmesurado e modo frouxo, que não dissera uma palavra e se mostrava constrangido, o avesso do pai.

A porta fechada, frente a frente, eu julgando que me tinha preparado e agora sem saber por onde começar, tanto e tão contrário era o que me ia na cabeça, a vontade de me ver longe e esquecer, ser outro, doutra gente, com outra vida, outro passado. Não estar ali defronte de um bruto, meio-irmão pelos acasos do cio, a quem teria de explicar o que me parecia uma ideia tonta, nascida na cabeça de minha Mãe, sei lá por que razões de desforra ou compaixão.

E tinha decidido poupar-me, poupá-lo a ele também, nada lhe revelando do nosso parentesco, nem do drama de sermos filhos do mesmo pai e ele ter por mãe quem julgava irmã.

Fora de que pô-lo ao corrente iria dar azo a complicações de que eu não imaginava as consequências, um não acabar de querelas e demandas, processos, em que eu nenhuma vontade tinha de me ver envolvido.

Criado entre eles, conhecendo o género e a ganância dos que pouco ou nada têm, podia apostar que cheirando-lhe a dinheiro, ainda por cima de mão beijada, ia repontar, se eu lhe dava aquilo de certeza havia mais a espremer.

Ele a olhar-me irónico e, mau grado a cadeira de rodas, curiosamente teso, já quase nada do velho mirrado, parecendo que o ter-me ali lhe emprestava um não-sei-quê de força e superioridade.

Abri o jogo surpreendendo-me a mim próprio com uma mudança total sobre o que antes tinha decidido: nada de cortesias, seco no modo, uma arrogância que nada devia à dele. Não ia haver confidências, e a explicação mais ou menos plausível tinha-me ocorrido num relâmpago: o dinheiro era a compensação da EDP por terrenos de que meu Pai em tempos se tinha apropriado por o dele não lhe ter pagado uma dívida.

– E quanto é isso? – O modo zombeteiro a anunciar a dúvida.

– Dezasseis mil e trezentos euros.

– Só?

– Porque te dou a minha metade, senão…

Tinha-se-me escapado, agora era remendar, ele encarando-me com um franzir dos lábios de inquisidor, exigindo que lhe dissesse de que metade falava, e metade de quê, que terrenos eram, pra que lado ficavam.

Raivoso do meu equívoco, pu-lo entre a espada e a parede. Não tinha de dar satisfações a ninguém, nada, coisa nenhuma, era o único herdeiro, estava tudo em meu nome, e o que recebia podia negar-lho se me apetecesse, se lho dava era por promessa feita a minha Mãe, que antes de falecer me pedira que endireitasse as coisas. Xeque-mate. Pegar ou largar.

O silêncio durou, ele a fazer carantonhas, parecendo que resmungava, e por fim, apontando o cheque que eu pusera sobre a mesita que nos separava:

– Dá cá.

Estendi-lho, ele verificou a quantia, dobrou-o, meteu-o no bolso do quispo, surpreendendo-me com o aceno de que lhe empurrasse a cadeira para o pé da janela, acrescentando que não queria que nos ouvissem.

– Então o filho da puta tinha ficado com as terras que eram nossas? E vens-mas pagar? Metes no bolso dez ou vinte vezes mais, mas não me importa. Chega aqui.

Aproximei-me. O bafo era de vinho e doença, talvez também de ódio, o rosto arreganhado num esgar de meter medo, coisa de loucura, os seus dedos a apertar-me o braço como se quisesse esmagá-lo, segredando-me ao ouvido:

– Ficas a saber! Fui eu que o matei! E não me podes fazer nada! Ninguém me pode fazer nada!

Hesitou um instante, como se se sentisse desfalcado por não me ver reagir, não me mostrar surpreso nem assustado, soprando de novo e a destacar as sílabas:

– Matei o filho da puta, e bem o merecia!

– E porquê? Porque é que o merecia?

Franze o sobrolho, transtornado, como se o ver-me calmo, quando esperava que me mostrasse excitado ou agressivo, desarranjasse a sua expectativa, o levasse a supor que é artimanha e que corre um perigo que não antecipou. Muda de tom, a resposta é infantil:

– Porque sim. Eu cá sei.

Senti que se pudesse se atiraria a mim, menos por não reagir como ele esperava, do que por ser de quem era, por ser dos que tinham quando a ele tudo faltava. Ódio secular, recalcado, inveja pura, fúria animal de que raro se salvam aqueles a quem o medo e a fome fazem sofrer de geração em geração.

Não dissemos mais. Empurrei a cadeira até ao escritório, a advogada olhando-nos perplexa, como tivesse esperado ver-nos em conversa amena, ou sorrindo por termos completado os «trâmites» com satisfação das partes, e não com o modo com que passei a cadeira de rodas ao rapaz e, sem encará-lo, virar as costas ao Meças. Embora não tão depressa que me escapasse o seu trejeito de escárnio e a mão espalmada a bater contente no bolso onde guardara o cheque.

Isso foi anteontem e já me parece alheio, distante, um caso de que tivesse ouvido falar, e não factos com que tinha a ver, gente que me dizia respeito.

O almoço com Carla foi de pressa e circunstância, eu pretextando afazeres, mas de facto pouco interessado na sua conversa e demasiado ciente de como o fosso entre as gerações desmesuradamente se alarga.

Porque não é apenas a diferença de interesses, costumes e conhecimento, o uso da língua, mas toda uma gama de hábitos e atitudes, desejos, esperanças que põe a nu diferenças de onda, de sensibilidade, e resulta nos equívocos da conversa de surdos.

Despedimo-nos com o afecto e os beijinhos tão nossos, eu pronunciando a fórmula que em geral é vazia de sentido – «Se por acaso um dia for a Newcastle…» – e quando entrei no carro ainda a vi no retrovisor, mas logo depois já pouco mais era que lembrança, embora me entristeça aquele sentir-se condenada a uma vida de pequenez e mesquinhice, tão outra do que a do sonho, ciente de que nunca escapará dali.

Com a nostalgia de que era a última vez, meti pela estrada velha, a das muitas curvas, parei no miradouro, em redor e à minha frente os montes carcomidos onde há milénios nada muda: nem a cor das fragas nem a pequenez da urze, em parte nenhuma árvore de porte, garridice de casario.

A albufeira é um monstro, um portento, o mar de água destoa naquele sem-fim de fraguedos, e será promessa de riqueza, mas não pertence ali, vejo-lhe um ar insólito de ameaça.

Corro os olhos pelas vinhas de plantio novo, nas encostas onde a água alcança, e só então, procurando instintivamente rever a paisagem do meu passado, dou conta de que se afundou, desapareceu.

É choque e ao mesmo tempo estranho alívio, um sentimento de libertação e novidade, quase diria de ligeireza, como se por não haver vivos a que eu pertença – o Meças é dos mortos – ressinta a euforia dos momentos cheios de promessa que só na juventude se desfrutam.

Aqui nada tenho, o que ainda me prendia sumiu-o a água, se estivesse com disposição poderia brincar aos infelizes, dizer que me sinto sem eira nem beira.

Mas assim não é. Chamem-lhe raízes, digam que vem do secreto poder da terra natal, dos cheiros da infância, da frescura que uma manhã se respirou, da lembrança de um instante feliz.

Continuo a olhar em redor e hesito, quero-me despedir, ouvir-me dizer que não voltarei, mas o grilhão pode mais: será sempre bilhete de ida e volta.